CAAD: Arbitragem Tributária
Processo n.º 517/2014-T
Decisão Arbitral
I. Relatório
1. A.., contribuinte fiscal número …, residente na Avenida …, em Cascais, requereu ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em 25 de julho de 2014, a constituição de tribunal arbitral em matéria tributária, nos termos do disposto no artigo 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação de Imposto do Selo (IS) a que corresponde o documento n.º 2013…, no valor de €5.129,25 (cinco mil, cento e vinte e nove euros e vinte e cinco cêntimos).
2. A Requerente optou por não designar árbitro.
3. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 28 de julho de 2014 e automaticamente notificado à AT na mesma data.
4. A Signatária foi designada pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD como árbitro de tribunal arbitral singular, nos termos do disposto no artigo 6.º do RJAT.
5. A Signatária comunicou ao Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD a aceitação do encargo, no prazo legal, nos termos do disposto no artigo 4.º do Código Deontológico do CAAD.
6. As Partes foram notificadas da designação da Signatária, em 11 de setembro de 2014, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) do RJAT, não se tendo oposto à mesma.
7. O tribunal arbitral singular ficou, assim, regularmente constituído em 26 de setembro de 2014, de acordo com o disposto na alínea c) do n.º1 do artigo 11.º do RJAT.
8. A AT foi notificada, por despacho arbitral de 2 de outubro de 2014, para apresentar resposta no prazo de 30 dias.
9. A AT apresentou a sua resposta em 30 de outubro de 2014, tendo, igualmente, requerido a dispensa da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.
10. Por despacho arbitral de 14 de novembro de 2014, foi determinada a notificação da Requerente para se pronunciar sobre a dispensa daquela reunião, não tendo a mesma apresentado resposta.
11. O Tribunal Arbitral é materialmente competente, nos termos do artigo 2.º n.º1 alínea a) do RJAT.
12. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
13. O processo não enferma de vícios que o invalidem.
II. Do pedido da Requerente
A Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação de IS a que corresponde o documento n.º 2013…, no valor de €5.129,25 (cinco mil, cento e vinte e nove euros e vinte e cinco cêntimos), bem como do indeferimento expresso da reclamação graciosa que apresentou relativamente ao mesmo.
Para o efeito, e em síntese, apresentou as seguintes alegações:
1. A Requerente é proprietária do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias de Cascais e do Estoril, concelho de Cascais, sob o artigo ..., o qual tem afetação habitacional.
2. Foi notificada, em 17.10.2013, da liquidação de IS n.º 2013…, no valor de €5.129,25, tendo por fundamento legal o artigo 6.º n.º1 alínea f) da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, com referência ao prédio supra identificado, o qual tem o valor patrimonial tributário (VPT) de €1.025.850,35 (um milhão e vinte e cinco mil, oitocentos e cinquenta euros e trinta e cinco cêntimos).
3. A Requerente procedeu ao pagamento do imposto.
4. A Requerente entende que a liquidação em causa é ilegal por baseada em norma que viola o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que se traduz no princípio da igualdade, na vertente da capacidade contributiva, porquanto, em síntese, e citando alguma doutrina e uma decisão do CAAD:
a. Um sujeito passivo que detém 10 prédios com afetação habitacional, cada um com um VPT de €100.000,00, encontra-se numa situação objetivamente comparável com um sujeito passivo que possui um único prédio com afetação habitacional e com VPT de €1.000.000,00;
b. Ambos dispõem de igual capacidade contributiva no tocante ao património;
c. Numa lógica de rentabilização imobiliária, o sujeito passivo com 10 imóveis fica, potencialmente, numa situação mais vantajosa, porquanto lhe é permitido proceder ao arrendamento de 9 imóveis, utilizando o 10.º para sua habitação;
d. Já o sujeito passivo com 1 imóvel apenas pode arrendar esse mesmo imóvel, não ficando sequer com um disponível para sua habitação ou, na lógica contrária, ficando com esse imóvel para habitação, não poderá proceder à correspondente rentabilização imobiliária;
e. Numa perspetiva de capacidade contributiva, as duas situações revelam igual capacidade contributiva entre os contribuintes;
f. Os dois sujeitos passivos encontram-se numa situação objetivamente comparável, devendo assim merecer tratamento fiscal idêntico no que respeita à tributação do património;
g. No entanto, tal tratamento fiscal idêntico não ocorre, já que um é apenas tributado em sede de IMI, o outro é tributado em sede de IMI e IS;
h. Por outro lado, não é admissível a distinção entre prédios com afetação habitacional e outros prédios com outras afetações;
i. Já que uma sociedade que tenha como sede, ou como fábrica, um prédio urbano com VPT superior a €1.000.000,00 não tem uma capacidade contributiva diferente de um contribuinte individual que tenha um prédio com afetação habitacional;
j. Sendo este tratamento diferenciado de situações objetivamente comparáveis claramente violador do princípio da capacidade contributiva enquanto vertente do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º e 104.º n.º3 da CRP.
k. Consequentemente, será materialmente inconstitucional o artigo 6.º n.º1 alínea f) da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, e a verba 28 da TGIS;
l. O que vicia, portanto, os atos praticados ao abrigo daquelas normas.
5. A Requerente entende ainda que a liquidação em causa é ilegal por emitida ao abrigo de norma que viola o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que se traduz no princípio da igualdade, na vertente da coerência do sistema fiscal, porquanto, em síntese:
a. Existe uma situação de tributação múltipla do mesmo facto tributário, que é a propriedade do imóvel;
b. Existe uma situação de dupla tributação interna, por se verificar a identidade do facto tributário e pluralidade de normas tributárias;
c. Identidade do facto tributário porque existe identidade do objeto (propriedade de bem imóvel), do sujeito, do período tributário (2012) e do tributo (devendo atender-se aqui não à identidade absoluta do tributo mas à sua natureza de imposto sobre o património);
d. Pluralidade de normas tributárias porque a propriedade de imóvel (o mesmo facto tributário) recai na previsão de duas normas de incidência tributária distintas;
e. A tributação do património deve contribuir para a igualdade entre cidadãos: e não existe igualdade no caso, já que se um sujeito tiver 10 imóveis com VPT de €100.000,00 cada apenas será tributado em sede de IMI, mas se tiver um imóvel com VPT de €1.000.001,00, será tributado em sede de IMI e IS;
f. Tal configura uma sobrecarga fiscal não justificada e discriminatória entre contribuintes com igual capacidade contributiva e com património de igual valor, o que é uma flagrante violação do princípio da coerência do sistema fiscal enquanto vertente do princípio da igualdade.
g. Consequentemente, será materialmente inconstitucional o artigo 6.º n.º1 alínea f) da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, e a verba 28 da TGIS;
h. O que vicia, portanto, os atos praticados ao abrigo daquelas normas.
6. Solicita assim a Requerente a anulação da liquidação de IS identificada, o reembolso do imposto pago e a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.
III. Da Resposta da Requerida
1. A AT refere que a Requerente não questiona a sujeição ao IS da verba 28.1 da Tabela Geral do IS, não padecendo a liquidação em causa de qualquer vício de ilegalidade com fundamento no VPT do prédio.
2. A Requerente não pretende a declaração de ilegalidade de qualquer ato de liquidação, mas sim a desaplicação da norma da verba 28 da TGIS por alegada inconstitucionalidade.
3. A primeira questão colocada pela AT e Requerida é a da manifesta falta de enquadramento da pretensão da Requerente na jurisdição arbitral.
4. A competência da jurisdição arbitral esgota-se na apreciação das pretensões de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação dos tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta e de declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria coletável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.
5. Estará vedada ao Tribunal Arbitral a apreciação da alegada violação de princípio constitucional da igualdade da verba 28 da TGIS nos modos formulados pela Requerente, por não assentar na situação concreta do caso sob apreciação e na legislação aplicável.
6. A situação do prédio da Requerente subsume-se cabalmente na previsão da verba em causa e, segundo a mesma, o imposto recai sobre o VPT utilizado para efeitos de IMI.
7. O artigo 2.º n.º4 do CIS dispõe que são sujeitos passivos do imposto os sujeitos passivos de IMI, nos termos do artigo 8.º do CIMI, sendo sobre estes que recai o encargo do IS (artigo 3.º n.º3 alínea u) do CIMI).
8. Um tipo de incidência de acordo com o qual o VPT dos prédios urbanos de que depende a aplicação da verba 28.1 da TGIS é o VPT inscrito na matriz do prédio urbano com afetação habitacional é o único que tem expressão na lei, pelo que a liquidação de IS impugnada não violaria o teor literal da verba 28.1 da TGIS.
9. Outra interpretação violaria a letra e espírito da verba 28.1 da TGIS e o princípio da legalidade dos elementos essenciais do imposto previsto no artigo 103.º n.º2 da CRP.
10. O legislador pode submeter a um enquadramento jurídico tributário distinto, logo, discriminatório, os prédios com VPT distinto, sem que essa discriminação deva ser considerada necessariamente arbitrária, podendo até, mesmo, ser imposta pela necessidade de impor coerência ao sistema fiscal.
11. A ratio legis que resulta do teor da proposta de lei apresentada à Assembleia da República seria apenas a tributação de prédios de elevado valor, fundamentando-se essa medida nos princípios da equidade e da justiça fiscal, que justificariam o agravamento da tributação estática dos prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor, os chamados prédios de luxo.
12. Seria contrário à letra e espírito da lei impor a interpretação e o tratamento diferenciado entre sujeitos passivos com 1 prédio de €1.000.000,00 e com 10 prédios de €100.000,00 cada um, como pretende a Requerente.
13. A interpretação conforme a CRP não pode sobrepor-se aos critérios gerais de interpretação e aplicação das leis.
14. Quando o teor da norma é inequívoco, como é o da verba 28.1 da TGIS, não há espaço para interpretação conforme a CRP.
15. A pretendida inconstitucionalidade da verba 28.1 da TGIS é insuscetível de ser suprida mediante uma interpretação conforme a CRP e violaria o princípio da legalidade formal consagrado no artigo 103.º n.º2 da CRP, sem qualquer expressão no direito constituído.
16. O ato de liquidação impugnado não violou qualquer preceito legal ou princípio constitucional, pelo que deve ser mantido.
IV. Questões a decidir
Considerando os factos e a matéria de direito constantes do pedido de pronúncia arbitral apresentado pela Requerente e a resposta da Requerida, a questão fundamental a decidir por este Tribunal Arbitral é a de saber se a liquidação de IS em questão é ilegal por ter sido emitida ao abrigo de norma violadora do artigo 13.º da CRP, princípio da igualdade, nas vertentes capacidade contributiva e coerência do sistema fiscal (a saber, o artigo 6.º n.º1 alínea f) da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro e a verba 28 da TGIS na redação por esta mesma lei introduzida).
V. Matéria de Facto
Com relevância para a apreciação do pedido, são os seguintes os factos que se dão por provados, com base nos documentos juntos ao processo, e não contestados pela Requerida:
a. A Requerente é proprietária do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias de Cascais e do Estoril, concelho de Cascais, sob o artigo ..., o qual tem afetação habitacional;
b. A Requerente foi notificada, em 17.10.2013, da liquidação de IS n.º 2013…, no valor de €5.129,25, tendo por fundamento legal o artigo 6.º n.º1 alínea f) da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, com referência ao prédio supra identificado;
c. O prédio urbano em questão tem o valor patrimonial tributário (VPT) de €1.025.850,35 (um milhão e vinte e cinco mil, oitocentos e cinquenta euros e trinta e cinco cêntimos);
d. A Requerente procedeu ao pagamento do imposto;
e. A Requerente apresentou reclamação graciosa do ato de liquidação de IS, em 31.03.2014;
f. A Requerente foi notificada do indeferimento expresso daquela reclamação graciosa em 15.05.2014;
g. Não existem, com relevância para o processo, outros factos que não se considerem provados;
h. A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se na prova documental indicada, junta pela Requerente, cuja autenticidade e correspondência à realidade não foram questionadas pela Requerida.
VI. Matéria de Direito
A. Primeira questão prévia: da Competência do Tribunal Arbitral
A Requerida alega a falta de enquadramento da pretensão da Requerente na jurisdição arbitral, já que a competência da jurisdição arbitral se esgota na apreciação das pretensões de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação dos tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta e de declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria coletável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.
Estaria, assim, vedada ao Tribunal Arbitral a apreciação da alegada violação do princípio constitucional da igualdade da verba 28 da TGIS nos modos formulados pela Requerente, por não assentar na situação concreta do caso sob apreciação e na legislação aplicável.
Por ser uma questão que, a ser assim considerada, determina a absolvição da instância, procede-se, em primeiro lugar, à respetiva apreciação, nos termos do disposto no artigo 29.º n.º1 alíneas a) e e) do RJAT, 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e 608.º n.º1, 96.º alínea a) e 99.º n.º1, todos do Código de Processo Civil.
No seu pedido de pronúncia arbitral, a Requerente requer a declaração da ilegalidade da liquidação de IS n.º 2013…, no valor de €5.129,25, por considerar que a mesma é ilegal por emitida ao abrigo de normas violadoras de princípios constitucionalmente consagrados.
O mesmo é dizer que a Requerente solicitou a apreciação do Tribunal Arbitral relativa a um ato tributário concreto, ou seja, uma liquidação de imposto que lhe foi notificada, por considerar que o mesmo é ilegal.
Ora, como a Requerida bem refere, o Tribunal Arbitral é competente para apreciar a pretensão de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de tributos, nos termos do disposto no artigo 2.º n.º1 alínea a) do RJAT.
E o que a Requerente alega é que o ato de liquidação do tributo, neste caso, o Imposto do Selo, é ilegal por ser emitido ao abrigo de norma que, por sua vez, é inconstitucional, ou seja, o ato terá sido emitido sem normal legal válida subjacente e, portanto e consequentemente, será uma liquidação ilegal.
Conclui-se, assim, que está em causa um ato concreto a que é imputado um vício de ilegalidade, facto que pode ser apreciado pelo Tribunal Arbitral, e não um pedido de apreciação de fiscalização abstrata de uma norma, tout court, para que este não teria, de facto, competência (a qual se encontra exclusivamente atribuída ao Tribunal Constitucional).
Todos os tribunais, seja qual for a sua categoria (cfr. artigo 209.º n.º2 da CRP, que refere, expressamente, os tribunais arbitrais como uma categoria de tribunal), exercem fiscalização concreta da constitucionalidade (“Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”, artigo 204.º da CRP). E os tribunais arbitrais exercem, sem qualquer dúvida, a função jurisdicional[1], pelo que têm, consequentemente, competência para deixar de aplicar uma norma que considerem inconstitucional, por um lado, bem como competência para aplicar uma norma que uma parte tenha reputado de inconstitucional, por outro lado. Mais, poderá então haver lugar à aplicação do disposto no artigo 280.º da CRP, cabendo recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais (quaisquer tribunais) que recusem a aplicação de uma norma que considerem inconstitucional ou que apliquem uma norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada – questão já também perfeitamente resolvida pelo disposto no artigo 25.º n.º1 do RJAT.
Perante o exposto, entende o Tribunal Arbitral não ser procedente a incompetência material alegada pela Requerida, pelo que apreciará e decidirá a questão submetida, nos termos indicados.
B. Segunda questão prévia: do indeferimento expresso da AT
A Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação ora em apreço, essencialmente com os mesmos fundamentos com os quais apresenta o seu pedido de pronúncia arbitral, tendo a AT indeferido a sua pretensão.
Refira-se, em jeito prévio, que outro não poderia ser o resultado daquela reclamação graciosa, já que a AT está subordinada à lei (artigo 55.º da Lei Geral Tributária), não podendo – não tendo legitimidade nem competência para – desaplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade. Como referido no ponto anterior, e para o que releva na presente situação, apenas os tribunais têm essa função de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas – não os órgãos administrativos.
Como refere Jorge Miranda[2], “não cremos, todavia, possível reconhecer aos órgãos administrativos um poder de controlo – necessariamente concreto – análogo ao dos tribunais (…).
Por um lado, a estrutura da Administração directa e indirecta, (ligada ao Governo e aos governos regionais) não se compara com a estrutura, marcada pela independência, dos tribunais e seria pouco adequada ao desenvolvimento da garantia. Por outro lado, ao invés, a estrutura plurifacetada da Administração autónoma (…) poderia trazer graves inconvenientes de insegurança e ineficácia. (…)
Se a Constituição afirma o dever de conformação da actividade administrativa pelos preceitos e princípios constitucionais e se são nulos, e não anuláveis (por conseguinte, não sanáveis) os actos administrativos ofensivos de direitos, liberdades e garantias, têm de ser os tribunais a decidir sobre essa conformação.”
No mesmo sentido, Gomes Canotilho[3] afirma que o “problema do poder-dever de rejeição de leis (normas) inconstitucionais pela administração é complexo, pois coloca-nos perante a questão de vinculação da administração pelo princípio da constitucionalidade (…) e pelo princípio da legalidade, ou seja a subordinação da administração à lei. (…) o princípio básico é o de recusar à administração em geral e aos agentes administrativos em particular qualquer poder de controlo de constitucionalidade das leis, mesmo se dessa aplicação resultar a violação dos direitos fundamentais.”
Assim, a AT não tinha possibilidade de analisar, apreciar e decidir favoravelmente a reclamação graciosa apresentada pela Requerente, na medida em que, como referido, está sujeita ao princípio da legalidade, por um lado, e não tem legitimidade para a apreciação da constitucionalidade de normas, por outro.
C. Apreciação
Para a apreciação das questões a decidir importa analisar o artigo 4º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, que aditou à TGIS, anexa ao CIS, a verba nº 28, com a seguinte redação:
“28 — Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1 000 000 — sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:
28.1 — Por prédio com afetação habitacional — 1 %;
28.2 — Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças — 7,5 %.”
Importará ainda conhecer o artigo 6.º n.º 1 alínea f) da mesma Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, disposição transitória definida para o ano de 2012, e ao abrigo da qual foi emitida a liquidação em crise, que estabelece que:
“Em 2012, devem ser observadas as seguintes regras por referência à liquidação do imposto do selo previsto na verba n.º 28 da respetiva Tabela Geral:
f) As taxas aplicáveis são as seguintes:
i. Prédios com afetação habitacional avaliados nos termos do Código do IMI: 0,5 %;
ii. Prédios com afetação habitacional ainda não avaliados nos termos do Código do IMI: 0,8 %;
iii. Prédios urbanos quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças: 7,5 %.”
a. Da violação do princípio da igualdade – capacidade contributiva
Nesta sede, importa assim aferir se a Verba 28 da TGIS introduzida pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, bem como o artigo 6.º n.º1 alínea f) daquela Lei são, ou não, violadores do princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado (artigo 13.º da CRP).
Como refere Casalta Nabais[4], aliás citado pela Requerente, “o princípio da igualdade fiscal teve sempre ínsita sobretudo a ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério – o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)”.
Sobre o princípio da capacidade contributiva, e pela relevância para o caso em apreço, permitimo-nos citar recente Acórdão do Tribunal Constitucional[5]:
“O princípio da capacidade contributiva representa uma certa conceção do sistema fiscal segundo a qual “cada contribuinte deve pagar na medida da sua capacidade”, opondo-se, assim, a uma conceção em função do princípio do benefício, que determinaria o dever de “cada um pagar na medida dos benefícios que recebe do Estado”.
Sendo certo que a Constituição não se refere expressamente ao princípio da capacidade contributiva, existe uma consistente construção doutrinária e jurisprudencial em torno desse conceito.
Sousa Franco (Finanças Públicas e Direito Financeiro, vol. ii, citado, págs. 186-187), é perentório na afirmação de que a capacidade contributiva está subjacente à Constituição fiscal, extraindo-se da «forte personalização do imposto sobre o rendimento, com a consideração da situação do agregado familiar, fator que parece ser essencial — mas não único — para que se possa considerar que um sistema leva efetivamente em conta as faculdades contributivas». Saldanha Sanches (ob. cit., pág. 227), analisando a estrutura do sistema fiscal português que resulta dos artigos 103.º e 104.º da Constituição, conclui haver uma «definição indireta da capacidade contributiva como princípio estruturante do sistema através da tributação do rendimento». Casalta Nabais (ob. cit., págs. 445 e segs.) afirma que o princípio da capacidade contributiva extrai-se do princípio da igualdade, estabelecido no artigo 13.º da Constituição. Também Sérgio Vasques (Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2011, pág. 251), considera que o princípio da capacidade contributiva representa «o critério material de igualdade adequado aos impostos».
O Tribunal Constitucional, debruçando-se sobre um conjunto de normas da Lei Geral Tributária respeitante à avaliação indireta da matéria coletável, através de “métodos indiciários” ou de “presunções”, começou por afirmar que o princípio da capacidade contributiva não tem expressa consagração constitucional, sublinhando a dificuldade em «retirar consequências jurídicas muito líquidas e seguras do princípio da capacidade contributiva, traduzidas num juízo de inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adotadas pelo legislador fiscal», concluindo-se que, no caso aí em apreço, o princípio da capacidade contributiva não era sequer “parâmetro constitucional relevante” (Acórdão n.º 84/2003).
Mas foi mais afirmativo em jurisprudência posterior. Reportando-se à admissibilidade constitucional de normas que estabelecem presunções em matéria tributária, veio a acolher o entendimento de que a capacidade contributiva, apesar da sua não consagração expressa na Constituição, mais não será do que «a expressão (qualificada) do princípio da igualdade, entendido em sentido material, no domínio dos impostos, ou seja, a igualdade no imposto» (cfr. acórdãos n.ºs 211/2003, 452/2003 e 601/2004).
É, assim, de reafirmar que o princípio da capacidade contributiva está implicitamente consagrado na Constituição, enquanto corolário tributário dos princípios da igualdade e da justiça fiscal e do qual decorre um comando para o legislador ordinário no sentido de arquitetar o sistema fiscal tendo em vista as capacidades contributivas de cada um.
A proposição mais elementar que flui do princípio da capacidade contributiva respeita ao modo de organizar a tributação, que, deverá necessariamente ser orientada para a seleção de fatos tributários que revelem a maior ou menor capacidade contributiva do sujeito, apontando-se, desde logo, o imposto sobre o rendimento, como o mais apto a espelhar a força económica dos contribuintes. Mas, como nota Saldanha Sanches (ob. cit., pág. 228), o princípio da capacidade contributiva padece de uma relativa “indeterminabilidade estrutural”, que coloca problemas na sua aplicação, quando confrontado com uma concreta solução legislativa. Essa indeterminação resulta do fato de, por um lado, o conceito de capacidade contributiva não caber numa definição exata e precisa, mas corresponder a um princípio ordenador do ordenamento jurídico tributário.” (sublinhado nosso).
É neste âmbito que deveremos, assim, apreciar se as normas supra citadas são violadoras do princípio da igualdade, nos termos expostos relativamente ao conceito de capacidade contributiva, por resultarem diferenças injustificadas de tratamento entre contribuintes que se encontram nas mesmas condições, constatando-se, assim, um injustificado arbítrio na definição dos conceitos legais em apreço.
A exposição de motivos constante da Proposta de Lei n.º 96/XII – 2.ª, de 21/09/2012 (a qual originou a já citada Lei n.º 55-A/2012), refere que:
“A prossecução do interesse público, em face da situação económico-financeira do País, exige um esforço de consolidação que requererá, além de um permanente ativismo na redução da despesa pública, a introdução de medidas fiscais inseridas num conjunto mais vasto de medidas de combate ao défice orçamental.
Estas medidas são fundamentais para reforçar o princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efetiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento. O Governo está fortemente empenhado em garantir que a repartição desses sacrifícios será feita por todos e não apenas por aqueles que vivem do rendimento do seu trabalho. Em conformidade com esse desiderato, este diploma alarga a tributação dos rendimentos do capital e da propriedade, abrangendo equitativamente um conjunto alargado de sectores da sociedade portuguesa.
Nestes termos, será agravada a tributação dos rendimentos de capitais e das mais-valias mobiliárias, passando as respetivas taxas de 25% para 26,5% em sede de IRS. As taxas de tributação aplicáveis aos rendimentos obtidos de, ou transferidos para, os paraísos fiscais são também agravadas para 35%.
Por outro lado, é criada uma taxa em sede de Imposto do Selo incidente sobre os prédios urbanos de afetação habitacional cujo valor patrimonial tributário seja igual ou superior a um milhão de euros.” (sublinhado nosso).
De quanto citamos, decorre, pelo menos, a intenção de abranger todos pelas normas indicadas. Aprofundemos, no sentido de perceber se são todos mesmo os abrangidos.
Como constante do Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 9/XII, 2.ª sessão legislativa, de 11 de outubro de 2012, o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais apresentou esta inovação legislativa nos seguintes termos:
“Esta proposta tem três pilares essenciais: a criação de uma tributação especial sobre prédios urbanos de valor superior a 1 milhão de euros; (…).
Em primeiro lugar, o Governo propõe a criação de uma taxa especial para tributar prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8%, em 2012, e de 1%, em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros.” (sublinhado nosso).
Conforme indicado anteriormente, o princípio da igualdade, quando referido ao princípio da capacidade contributiva, proíbe definições arbitrárias e injustificadas de impostos. Mas, para uma tributação sobre o património, o princípio da capacidade contributiva não é de aplicação simples e descomplexa. Casalta Nabais (op. cit. p. 151) refere mesmo: “Embora não nos forneça uma resposta para problemas como o da (in)admissibilidade da tributação do capital ou património ou da dupla (ou múltipla) tributação, o princípio da capacidade contributiva tem, todavia, importantes préstimos. De um lado, constituindo a ratio ou causa da tributação, este princípio afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que, na seleção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objeto e matéria coletável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto.” E continua, sobre a tributação do património (p. 177): “a Constituição apenas exige que ela constitua um instrumento de igualdade entre os cidadãos. A diminuição das desigualdades é assim o objetivo constitucional da tributação do património, um objetivo que abre a porta ao legislador para proceder, nomeadamente, à discriminação de patrimónios, tributando os mais elevados (…)”.
A tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos (artigo 104.º n.º3 da CRP). A discussão desta medida na Assembleia da República, como decorre da leitura do Diário da Assembleia da República, foi realizada no sentido de considerar a mesma como uma medida de tributação sobre bens de luxo.
Assim sendo, nesta perspetiva, embora sempre enquadrando o princípio da capacidade contributiva alegado pela Requerente:
a. Não considera o Tribunal Arbitral que um sujeito passivo com um imóvel habitacional com VPT superior a €1.000.000,00 tenha, necessariamente, igual capacidade contributiva relativamente àquele que tenha dez imóveis, cada um com VPT de €100.000,00.
De facto, não é líquido nem certo quem seja proprietário de imóvel para habitação com um VPT superior a €1.000.000,00 tenha a mesma capacidade ou rendimento de quem tenha dez imóveis nos termos indicados.
É manifesto que ser proprietário de um imóvel de elevado valor será, segundo o legislador, uma manifestação de luxo. E foi esse, precisamente, o objetivo do legislador, que se manifestou claramente nesse sentido: tributar “casas de elevado valor” e não tributar património que, conjuntamente, atinja tal valor. O legislador entendeu, de forma não arbitrária, considera-se, estabelecer um critério quantitativo, em sede de valor (tributário, e não de mercado), que permitisse considerar a existência de especial capacidade contributiva.
A diminuição de desigualdades (pretendendo o legislador distribuir os sacrifícios impostos pela austeridade por todos) permite a discriminação de patrimónios, como já indicado.
E não se acolhe o argumento da Requerente quanto à rentabilização imobiliária: de facto, e como referido, a lógica do legislador não foi tributar o investimento. Aliás, o rendimento resultante da rentabilização imobiliária, e da detenção de imóveis para investimento e rentabilização é, por si só, objeto de tributação. O que se pretendeu, nesta sede, foi exclusivamente definir que a propriedade de imóveis afetos a habitação de valor superior ao indicado demonstra que o respetivo proprietário tem especial capacidade contributiva: pode adquirir um único imóvel nestas condições e afetar o mesmo à sua habitação. Naturalmente, habitar um imóvel de VPT superior a €1.000.000,00 não será, para a generalidade dos cidadãos e contribuintes, igual a habitar um com um VPT de €100.000,00.
As duas situações não são, objetivamente, comparáveis.
b. Também não se considera que sejam comparáveis as situações indicadas pela Requerente relativas a sociedades comerciais e industriais.
Se uma sociedade tiver como sede um prédio urbano com VPT superior a €1.000.000,00 e tal prédio tiver afetação habitacional, será, como qualquer pessoa singular, sujeito passivo deste imposto em questão.
Se uma sociedade tiver um imóvel destinado a indústria com VPT superior a €1.000.000,00, não será alvo de IS, verba 28, na medida em que não está em causa a consideração de património de elevado valor afeto a habitação. A sua função económica é, obviamente, totalmente diferente, e tal facto não faz com que, necessariamente, a capacidade contributiva seja igual.
Se a afetação económica do imóvel e respetiva função social são diferentes, pode – e deve – a situação ser tratada de forma diferente, como, aliás, impõe o próprio princípio da igualdade.
Não existe arbitrariedade do legislador:
1. O legislador referiu a necessidade de repartir sacrifícios por todos, e não apenas por quantos vivem exclusivamente do seu trabalho, no sentido de tributar o património e não apenas o rendimento;
2. O legislador fixou critérios objetivos para o efeito: imóveis afetos a habitação com VPT superior a €1.000.000,00;
3. O legislador entendeu – e assumiu – que quem fosse proprietário de tais imóveis, com tal função económica, podendo habitar e usufruir dos mesmos, teria superior capacidade contributiva relativamente a quantos sejam proprietários de imóveis com VPT inferior (mesmo que o seu conjunto determine igual valor);
4. O legislador não colocou no mesmo patamar, para efeito deste imposto, porque as funções económicas e sociais são completamente diferentes, proprietários de imóveis com idêntico VPT mas com afetações diferentes, ou seja, tratou de forma desigual aquilo que é desigual.
Conforme referido pela doutrina, o princípio da capacidade contributiva não permite, por si só, uma definição concreta, determinada e precisa do que seja a sua aplicação num imposto como aquele em apreço. Mas o Tribunal Arbitral entende, neste caso em concreto, que foi tratado de forma desigual o que é desigual, cumprindo-se assim o desígnio do princípio da igualdade, por um lado, e por outro lado, que não houve definição arbitrária nos conceitos enformadores do que seria, para o efeito, especial capacidade contributiva. Se por um lado, o princípio da capacidade contributiva permite a discriminação de patrimónios, por outro, proíbe a arbitrariedade do legislador. Ora, o Tribunal Arbitral entende não existir, no caso, arbitrariedade, como indicado.
As normas foram aprovadas, como citado, em prossecução do interesse público e numa perspetiva manifesta de procura de justa repartição de sacrifícios, “abrangendo equitativamente um conjunto alargado de sectores da sociedade portuguesa”. E para o efeito, foi definido um pressuposto económico como manifestação da capacidade contributiva exigida para o pagamento do imposto que, entende-se, não deixa de ser válido.
Como se indica no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 620/04, “O Tribunal Constitucional tem tido frequentemente ocasião de se pronunciar sobre o sentido e o alcance do princípio constitucional da igualdade. Ainda recentemente, no Acórdão n.º 232/03 (Diário da República, I Série A, de 17 de Junho de 2003), tirado em Plenário, em autos de fiscalização preventiva, se procedeu a uma síntese da abundante jurisprudência constitucional nesta matéria. Dessa jurisprudência resulta que o princípio da igualdade obriga que se trate como igual o que for essencialmente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante.
Assim, como se escreveu no Acórdão n.º 187/01 (Diário da República, II série, de 26 de Junho de 2001), “como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera, pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante”.
Mais, “importa ainda evidenciar que, como tem sido reiteradamente afirmado, na sequência do Parecer da Comissão Constitucional n.º 458, de 25 de Novembro de 1982, (Apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de 1983), “o Tribunal Constitucional ao aferir a compatibilidade de uma norma legislativa com o princípio da igualdade, não deve pôr em causa a liberdade de conformação do legislador ou a discricionaridade legislativa. Deve abster-se de [se substituir] ao legislador, ponderando a situação como se estivesse no lugar deste e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução «razoável», «justa» e «oportuna». O seu controlo deve ser tão-só de carácter negativo, consistindo este em saber se a opção do legislador se apresenta intolerável ou inadmissível de uma perspectiva jurídico-constitucional, por não se encontrar para ela qualquer fundamento material”.”
Consequentemente, e conforme supra aduzido, não procede a pretensão da Requerente, na medida em que as normas em apreço (artigo 6.º n.º1 alínea f) da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, e Verba 28 da TGIS, na redação introduzida pela mesma Lei) não são, no entendimento deste Tribunal Arbitral, violadoras do princípio da igualdade na vertente da capacidade contributiva, nos termos e com os fundamentos alegados pela Requerente.
b. Da violação do princípio da igualdade – coerência fiscal e tributação múltipla
Alega a Requerente que existe uma situação de dupla tributação interna. Em primeiro lugar, porque há identidade do facto tributário, e em segundo lugar, porque há pluralidade de normas tributárias.
Identidade do facto tributário porque existe:
i. identidade do objeto;
ii. identidade do sujeito;
iii. identidade do período tributário;
iv. identidade do imposto.
Pluralidade de normas tributárias, na medida em que há tributação em sede de IMI e em sede de IS.
Os casos de dupla tributação designam-se, geralmente, de casos de concurso de normas. Haverá concurso de normas quando o mesmo facto se integra na previsão de duas normas tributárias distintas, dando origem à constituição de mais do que uma obrigação de imposto.
Apreciando:
i. Quanto ao objeto: de facto, o IMI tributa a propriedade de bens imóveis, independentemente do valor, o IS, no caso, tributa a propriedade de bens imóveis afetos a habitação de elevado valor. Poderá, aparentemente, verificar-se uma identidade do objeto nos casos de bens imóveis afetos a habitação.
ii. Quanto ao sujeito: é o mesmo sujeito passivo, o respetivo proprietário do bem imóvel (no caso), nos termos do disposto no artigo 8.º do CIMI e do artigo 2.º n.º4 do CIS.
iii. Período tributário: no caso em apreço, o período é o mesmo, e nos mais será também, já que a liquidação é realizada de acordo com as mesmas regras.
iv. Identidade do imposto: como facilmente se depreende, a situação não se refere ao mesmo imposto (IMI e IS). Na verdade, dos respetivos aspetos materiais e bases de cálculo, não se poderá retirar a sua identidade. Mais, se se considerasse assim, vários seriam os casos em que a dupla tributação teria lugar – designadamente os previstos na TGIS.
A este propósito, veja-se o disposto no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 10-07-2014: “Com a Lei 150/99, de 11/9, e posterior reforma do património (cfr.dec.lei 287/2003, de 12/11), o tributo em análise mudou a sua natureza essencial de imposto sobre os documentos, passando a afirmar-se como um verdadeiro imposto incidente sobre operações que, independentemente da forma da sua materialização, revelem rendimento ou riqueza. No que especificamente diz respeito aos bens imóveis, a determinação do seu valor tributável passou a ter por base o novo sistema de avaliações constante do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (cfr.preâmbulo do dec.lei 287/2003, de 12/11; José Maria Fernandes Pires, Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, Almedina, 2011, pág.359 e seg.)” (sublinhado nosso).
As normas tributárias que contemplam o facto tributário são as relativas à incidência real, as quais definem os seus elementos objetivos. Tal incidência real é, no caso, diferente, pelo que não existirá pluralidade de normas relativamente ao mesmo facto.
Mas ainda que assim não se considerasse, e conforme foi já apreciado pelo Tribunal Constitucional, a dupla tributação não é constitucionalmente proibida[6]. Não se encontra na CRP qualquer proibição expressa para o efeito. Aliás, refere também Casalta Nabais[7]: “a dupla tributação qua tale não está constitucionalmente proibida, sendo a mesma contestável se e na medida em que envolva a violação de princípios jurídico-constitucionais ou específicas disposições constitucionais, que possam ser interpretadas nesse sentido, como nos parece ser a da nossa Constituição que exige unicidade na tributação do rendimento pessoal. (...) Também na chamada sobreposição de impostos (ou a dupla tributação económica) (...) se pode apelar à ideia de sistematicidade para se apurar se o legislador, ao estabelecê-la foi coerente consigo mesmo, conformando-se com o sistema jurídico por ele adoptado e respeitando assim a lógica material do sistema”.
E no caso em apreço, o legislador foi, aparentemente, coerente.
Não cabe ao Tribunal Arbitral, neste âmbito, apreciar quais as eventuais alternativas que o legislador poderia ter consagrado para tributar quanto pretendeu, como a Requerente parece indicar, ou a bondade da solução encontrada. Cabe ao Tribunal Arbitral apreciar da existência da alegada dupla tributação jurídica, que se entende não existir, conforme indicado, por um lado e que, mesmo a existir, não estaria proibida constitucionalmente.
Adicionalmente, nada impede, constitucionalmente – sem referência a apreciação de opções alternativas – que os mesmos bens sejam objeto de diferentes impostos. A pretensão do legislador com a verba 28.1 da TGIS foi a tributação do que entendeu ser especial capacidade contributiva e tal não é, no entendimento do Tribunal Arbitral, conflituante com qualquer exigência de coerência do sistema fiscal.
Improcede, assim, a pretensão da Requerente quanto à ilegalidade da liquidação em apreço por emitida ao abrigo de norma violadora do princípio da igualdade na vertente da coerência do sistema e tributação múltipla, o que não se verifica.
VII. Dos Juros Indemnizatórios
Improcedendo a pretensão da Requerente, não procederá, consequentemente, o seu pedido de restituição do imposto pago acrescido de juros indemnizatórios.
VIII. Decisão
Nestes termos, e com base nos fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se a liquidação impugnada.
Valor do processo: €5.129,25 (cinco mil cento e vinte e nove euros e vinte e cinco cêntimos).
Custas: Ao abrigo do disposto no artigo 22.º n.º 4 do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor das custas em €612,00 (seiscentos e doze euros), a cargo da Requerida.
Lisboa, 30 de janeiro de 2015
O árbitro
Ana Pedrosa Augusto
[1] Veja-se, por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/2014, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20140042.html, no qual se refere expressamente que se encontra “sedimentado o entendimento de que os Tribunais Arbitrais exercem a função jurisdicional (cfr. Acórdãos n.ºs. 230/86, 52/92, 250/96, 506/96 e 181/2007, entre outros)”.
[2] Jorge Miranda, “Manual de Direito Constitucional, Tomo II, Constituição e Constitucionalidade”, 3.ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, Coimbra, 1996, p. 431 e 432.
[3] J.J. Gomes Canotilho, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7.ª edição (8.ª reimpressão), Almedina, Coimbra, 2003, p. 443-445.
[4] Nabais, José Casalta, “Direito Fiscal”, Almedina, Coimbra, 6.ª edição, 2010, p. 149.
[6] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 338/2006.
[7] Nabais, José Casalta, “O dever fundamental de pagar impostos: Contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo”, Almedina, Coimbra, 1998, pp. 602-603.