Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 302/2025-T
Data da decisão: 2025-11-21  IRC  
Valor do pedido: € 68.666,76
Tema: IRC. Dedutibilidade de perdas por imparidades de créditos de cobrança duvidosa. Especialização dos exercícios e princípio da justiça.
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SUMÁRIO: 

I - Do princípio da especialização de exercícios, consagrado no artigo 18.º do CIRC, decorre que não possam ser constituídas imparidades num dado período de tributação relativamente a créditos cujo risco de incobrabilidade já existia e era manifestamente conhecido em períodos anteriores. 

II – A qualificação do risco de incobrabilidade dos créditos não é arbitrariamente fixada pelos sujeitos passivos. 

III – O princípio da justiça pode e deve operar como “válvula de segurança do sistema”, numa óptica de ponderação de direitos e interesses ao nível dos princípios, para corrigir situações excepcionais de grave e manifesta injustiça que possam ser provocadas por situações externas incontroláveis.

IV – Fora de situações excepcionais de grave e manifesta injustiça, a derrogação do princípio da especialização dos exercícios pode constituir uma injusta discriminação dos contribuintes que cumpram as normas legais que consagram tal princípio, e um desincentivo ao cumprimento dessas normas.

 

Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, Ana Pinto Moraes e
Gaspar Vieira de Castro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte: 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

     I.         RELATÓRIO

A..., S.A., sociedade comercial anónima com sede em ..., ..., ...-... ..., pessoa coletiva n.º..., vem, ao abrigo do disposto disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de janeiro, que instituiu a arbitragem como meio alternativo de resolução de conflitos em matéria tributária e da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, não pretendendo designar árbitro, para apreciação do indeferimento da reclamação graciosa deduzida nos termos dos artigos 68º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) contra a liquidação de IRC e de juros compensatórios referentes ao exercício de 2020.

É Requerida a AT.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 31 de março de 2025. 

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 21 de maio de 2025, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. 

O TAC encontra-se, desde 11 de junho de 2025, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro. 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

Notificada para o efeito, a Requerida, depois de revogar parcialmente o ato em requerimento datado de 2 de julho de 2025, apresentou a sua resposta a 1 de setembro de 2025.

No dia 3 de setembro de 2025, este Tribunal proferiu o seguinte despacho:

“1. Pretende este Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é apenas de direito e a prova produzida é meramente documental.

2. Por outro lado, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, dispensa-se a produção de alegações escritas devendo o processo prosseguir para a prolação da sentença. 

3. Informa-se que a Requerente deverá proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, no prazo de 10 dias a contar desta notificação.

4. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.

Notifiquem-se as partes do presente despacho.”

 

 II.           DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS

II.1       Posição da Requerente

 

O Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:

a)     A Requerente – de ora em diante, Impugnante – é uma sociedade comercial anónima que desenvolve a atividade de construção, renovação e conservação de vias-férreas, bem como a sua eletrificação em território nacional e no estrangeiro, atuando sob o Código de Atividade Empresarial (CAE) principal 42120 “Construção de vias- férreas” e sob os CAE secundários 42990, 33120 e 77320, pelas atividades de “Construção de outras obras de engenharia civil, N.E., “Reparação e manutenção de máquinas e equipamentos” e “Aluguer máquinas e equipamentos para a construção e engenharia civil” respetivamente.

b)    Para efeitos de IRC, a Impugnante encontra-se registada no regime geral e, para efeitos do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), no regime normal com periodicidade mensal.

c)     A Impugnante foi objeto de um procedimento de inspeção externo com referência ao IRC e IVA de 2020, conduzido pelos Serviços de Inspeção Tributária (SIT) e credenciado pela Ordem de Serviço n.º OI2023 ... .

d)    Na sequência da ação inspetiva, a AT notificou a Impugnante, no dia 6 de dezembro de 2023, do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (PRIT), e, bem assim, para, querendo, exercer o seu direito de audição sobre as correções propostas ao IRC e ao IVA.

e)     Em sede de direito de audição, pese embora ter aceite parte das correções a efetuar à matéria coletável do IRC de 2020, a Impugnante contestou as correções a efetuar à matéria coletável do IRC de 2020, decorrentes da não aceitação, para efeitos fiscais, dos custos contabilizados nas rubricas “Diferenças cambiais desfavoráveis” e “Perdas por Imparidade em créditos”, na medida em que, no seu entender, as mesmas são ilegais.

f)     Contudo, após análise do direito de audição exercido no dia 20 de dezembro de 2023 e dos documentos que o acompanharam, a AT notificou a Impugnante do Relatório de Inspeção Tributária (RIT), por intermédio do qual tomou conhecimento da materialização das correções à matéria coletável do IRC de 2020, no valor de € 996.351,84 e correções relativas a IRC em falta no montante de € 23.090,07.

g)    A Impugnante considerou – e considera – ilegais as seguintes correções à matéria coletável:

h)    Não se conformando com essas correções e, concomitantemente, com a liquidação adicional de IRC e correspondentes adicionais, a ora Impugnante apresentou, no dia 27 de setembro de 2024, reclamação graciosa contestando as acima referidas correções efetuadas à matéria coletável do IRC de 2020, bem como às inerentes liquidações.

i)      No entanto, apesar de todo o esforço probatório levado a cabo pela Impugnante, a Autoridade Tributária notificou-a no dia 3 de janeiro de 2025, do despacho de indeferimento que recaiu sobre a sua reclamação graciosa.

j)      Por entender que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa é manifestamente ilegal e lesa os seus legítimos direitos e interesses em matéria tributável, deduz-se a presente impugnação.

 

 

 

II.2. Posição da Requerida

 

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

DA REVOGAÇÃO PARCIAL DO ATO DE LIQUIDAÇÃO ADICIONAL DE IRC N.º 20248310031595

 

a)     Por despacho da Subdiretora geral da Área de Gestão Tributária - IR, datado de 30-06-2025, foi parcialmente revogado o ato impugnado – objeto mediato dos presentes autos: ato de liquidação de IRC n.º 2024... .

b)    Do referido despacho foi dado imediato conhecimento aos autos, por requerimento datado de 02-07-2025.

c)     O referido despacho procedeu à anulação parcial da liquidação de IRC em análise, determinando a anulação da parte correspondente às diferenças cambiais desfavoráveis em itens monetários (no valor de €888.903,84) com fundamento no n.º 1 do art.º 18.º e n.º 1 do art.º 23.º, ambos do CIRC.

d)    E mantendo a liquidação relativamente às perdas por imparidade em créditos de clientes no valor de € 107.448,00, fiscalmente não dedutíveis, por contrariarem o disposto no n. º1 do art.º 18.º, na al. b) do n. º1 do art.º 28.º-A e na al. c) do n.º 1 do art.º 28.º-B, todos do CIRC.

e)     Como decorrência da anulação parcial do ato de liquidação posto em crise nestes autos arbitrais, impõe-se requerer a redução do pedido, por inutilidade superveniente da lide quanto à matéria objeto de revogação. 

f)     No que concerne à parte do ato não abrangida pela revogação, a Autoridade Tributária entende não assistir razão ao Requerente pelas razões que detalhará infra. 

 

 

DAS PERDAS POR IMPARIDADE EM CRÉDITOS

 

a)     Dever-se-ão considerar impugnados os factos alegados pela Requerente que se encontrem em oposição com a presente defesa, considerada no seu conjunto, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 574.º do Código do Processo Civil (CPC), ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do art.º 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT).

b)    A partir da análise das perdas por imparidade contabilizadas, designadamente na conta SNC 6511090020 - "S.ARG-PRED IMPAR CLS", com os respetivos documentos de suporte, os SIT destacaram o crédito no montante de €107.448,00, relativo à Sucursal situada na Argélia.

c)     De acordo com o RIT, a ora Requerente informou que este crédito se refere ao cliente "B...”, em mora há mais de 24 meses, tal como evidenciado no extrato apresentado.

d)    Face ao disposto no artigo 28.º-B, n.º 1, alínea c), do CIRC, os SIT entenderam que se encontra cumprido um dos seus requisitos essenciais, podendo originar, nos termos do n.º 2, alínea d) do mesmo artigo, uma perda por imparidade correspondente a 100% do seu montante por se encontrar em dívida há mais de 24 meses.

e)     Todavia, a norma legal citada impõe o cumprimento de outros dois requisitos: (i) existência de provas objetivas de imparidade e (ii) provas objetivas de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento.

f)     Assim, com intuito de validar o preenchimento do último requisito, os SIT solicitaram os comprovativos das diligências efetuadas, tendentes ao recebimento do crédito em causa.

g)    Foram obtidos documentos que, todavia, se encontravam redigidos em língua árabe, o que impossibilitou a sua compreensão e análise, sendo, no entanto, perceptível a data aposta nos, correspondente ao ano de 2013.

h)    A Requerente apresentou as respetivas traduções no exercício do direito de audição.

i)      Da análise destes documentos, os SIT concluíram tratar-se de um recurso interposto contra decisão de um processo judicial anterior, no qual o perito nomeado pelo tribunal de recurso em causa emitiu parecer, apresentado em 2020, desfavorável à pretensão do sujeito passivo.

j)      Adicionalmente, face aos esclarecimentos prestados em sede de direito de audição, foi possível concluir que foi interposto processo judicial por parte da “C... SA” (doravante ‘C...’) contra o cliente da Argélia, cuja data, embora não divulgada, se presume anterior a 2020, dado tratar-se de um processo de recurso para o Supremo Tribunal da Argélia, o que implica a existência prévia de processo judicial de primeira instância.

k)    Assim, os SIT consideraram que o risco de incobrabilidade do crédito em causa ficou comprovado, bem como a realização, em data anterior, de diligências para o seu recebimento junto do cliente/devedor.

l)      Além da comprovação do risco de incobrabilidade do crédito, impunha-se, ainda, determinar o período em que o mesmo se verificou, com vista a determinar em que momento é que o gasto associado à perda por imparidade é dedutível ao lucro tributável, nos termos do artigo 18. ° do CIRC.

m)   Conforme apurado anteriormente, o risco de incobrabilidade dos créditos do cliente da Argélia ocorreu num período anterior a 2019, visto que a documentação apresentada menciona a nomeação de um novo perito no ano de 2019, cujo relatório foi apresentado em 2020.

n)    Ora, deste modo, a perda por imparidade relativa àquele crédito deveria ter sido reconhecida no período de tributação em que foi interposto o processo judicial inicial.

o)    Acrescentam que a C... poderia ter constituído a perda por imparidade no período em que, tendo efetuado diligências para o recebimento do crédito em causa, completasse o decurso dos 24 meses de mora do respetivo crédito, o que ocorreria a partir do final do período de 2013, considerando que existiam evidências objetivas do risco de incobrabilidade.

p)    Ou a perda por imparidade poderia ter sido constituída aquando da fusão com a C..., em 2016, ao ter constatado a existência de um crédito em mora há mais de 24 meses.

q)    Por último, referem os SIT que o montante dos créditos a que se referem os documentos apresentados (€105.203,77) não coincidiu com o montante pelo qual foi constituída a respetiva perda por imparidade (€107.448,00), não se podendo assim considerar como comprovada a dedutibilidade da perda constituída.

r)     Pelo que, em face do exposto, e da legislação citada, não poderá ser aceite como fiscalmente dedutível, a perda por imparidade contabilizada como gasto no montante de €107.448,00.

s)     Nesta matéria, a Requerente começa por questionar a posição dos SIT sobre o momento do risco de incobrabilidade, afirmando que não tem legitimidade para decidir quando se verifica este risco, «cabendo esse papel à gestão e administração da sociedade que conhece os processos, os clientes e a atividade da empresa que se encontra melhor posicionada para o fazer (…)».

t)      No caso em apreço, esclarece, «tratava-se de um crédito decorrente de trabalhos a mais reclamados junto do cliente», sendo «uma situação que tinha vindo a perdurar por vários anos, como é normal no caso de diferendos com clientes internacionais.».

u)    Alegadamente, até 2020, perante a informação disponível, revelar-se-ia favorável à cobrança do crédito e, somente a partir daí, por terem ocorridos factos relevantes para a probabilidade de recuperação do valor em causa, «nomeadamente a apresentação do relatório pericial (...), conforme se comprova na troca de emails cuja cópia se anexou ao direito de audição apresentado como Documento n.º 4».

v)    Prossegue, afirmando que «se é inegável que em anos anteriores a 2020 se desenhava um contexto de cobrança duvidosa, tal não excluí que […] ainda considerasse que tinha a possibilidade de recuperação dos créditos, tendo posteriormente vindo a concluir pela sua incobrabilidade, nomeadamente, após emissão do referido relatório pericial.»

w)   Procurando demonstrar, assim, a razão pela qual não registou a imparidade em 2013, por contagem dos 24 meses de mora, ou em 2016, por incorporação por fusão da OMF pela Reclamante, conforme observado pelos SIT.

x)    Deste modo, não aceita que o critério assumido para a correção em apreço se baseie no ano da contabilização da imparidade em questão, requerendo a sua anulação.

y)    Ora, e conforme se viu, o thema decidendum diz respeito à dedutibilidade de uma perda por imparidade em créditos.

z)     Os SIT entenderam que a ora Requerente não respeitou as normas previstas no CIRC sobre o momento da relevância desta perda para efeitos de apuramento do lucro tributável, não o tendo feito no momento que já havia riscos objetivos de imparidade, em 2013; no momento de fusão da A... com a C..., em 2016; ou, ainda, quando foi interposto o processo judicial contra os devedores, em 2019.

aa)  Por sua vez, a Requerente entende que não cabe aos SIT determinar o momento de reconhecimento da perda por imparidade para efeitos de apuramento do lucro tributável, visto que é a própria que está na posse do conhecimento necessário para agir em conformidade.

bb) O reconhecimento das imparidades em dívidas a receber de clientes deve ser avaliado no final de cada período contabilístico, podendo apenas ser efetuado com base em evidência objetiva que comprove a existência dessa imparidade.

cc)  A Requerente utiliza, na preparação e apresentação das suas demonstrações financeiras, como referencial contabilístico as normas que integram o Sistema de Normalização Contabilística.

dd) Atendendo ao pressuposto subjacente à elaboração das demonstrações financeiras (parágrafo 22 da Estrutura Conceptual (EC) do Sistema de Normalização Contabilística (SNS)), importa referir que as perdas por imparidade devem ser preparadas de acordo com o regime de acréscimo (periodização económica) e com prudência (parágrafo 37 da EC do SNC) que significa incluir «um grau de precaução no exercício dos juízos necessários ao fazer as estimativas necessárias em condições de incerteza, e forma que os ativos ou os rendimentos não sejam sobreavaliados e os passivos ou os gastos não sejam subavaliados.»

ee)  No que concerne às dívidas a receber, estas têm o seu tratamento contabilístico previsto na NCRF 27 – Instrumentos financeiros, decorrendo que à luz do SNC, e são definidas como um ativo financeiro, por se tratar de um direito contratual que traduz no direito em receber dinheiro, conforme dispõe a NCRF 27 – Instrumentos financeiros, no §5, alínea c) e subalínea (i).

ff)   Em termos de mensuração, os ativos financeiros com maturidade definida, ou seja, com um prazo de vencimento definido à partida, devem ser registados ao custo (ou ao custo amortizado), deduzido de eventuais perdas por imparidade.

gg) Assim, a norma refere que o reconhecimento das imparidades de dívidas a receber deverá ser avaliado em cada relato, isto é, no final do período contabilístico. 

hh) No entanto, este reconhecimento da imparidade apenas deverá ser efetuado quando exista uma evidência objetiva da mesma, concretamente quando existam dúvidas na cobrabilidade de uma dívida a receber de clientes, conforme previsto no seu §24 (atual §25).

ii)    O §23 (atual §24) da mesma NCRF, determina que: “À data de cada período de relato financeiro, uma entidade deve avaliar a imparidade de todos os ativos financeiros que não sejam mensurados ao justo valor através de resultados. Se existir uma evidência objetiva de imparidade, a entidade deve reconhecer uma perda por imparidade na demonstração de resultados”.

jj)    Também do §24 (atual §25) da NCRF27 se retira que a: “evidência objetiva” de que um ativo financeiro ou um grupo de ativos está em imparidade inclui dados observáveis que chamem a atenção ao detentor do ativo sobre os seguintes eventos de perda:

(a) significativa dificuldade financeira do emitente ou devedor;

(b) quebra contratual, tal como não pagamento ou incumprimento no pagamento do juro ou amortização da dívida;

(c) o credor, por razões económicas ou legais relacionados com a dificuldade financeira do devedor, oferece ao devedor concessões que o credor do outro modo não consideraria;

(d) torne-se provável que o devedor irá entrar em falência ou qualquer outra reorganização financeira;

(e) o desaparecimento de um mercado ativo para o ativo financeiro devido a dificuldades financeiras do devedor;

(f) informação observável indicando que existe uma diminuição na mensuração da estimativa dos fluxos de caixa futuros de um grupo de ativos financeiros desde o seu reconhecimento inicial, embora a diminuição não possa ser ainda identificada para um dado ativo financeiro individual do grupo, tal como sejam condições económicas nacionais, locais ou setoriais adversas”. 

kk) Isto é, contabilisticamente, sempre que o sujeito passivo identifique uma forte probabilidade de que determinada dívida a receber se torne de duvidoso recebimento, deverá reconhecer, como gasto, a provável perda pelo não recebimento, em respeito ao princípio da prudência, enquanto característica qualitativa das demonstrações financeiras, e ao princípio da periodização económica, pressuposto basilar das mesmas. (cfr. Estrutura conceptual do SNC).

ll)    Conclui-se assim, que o reconhecimento de perdas por imparidade tem como objetivo influenciar o resultado do período através de um gasto correspondente a riscos ou encargos de ocorrência provável ou certa e de montante incerto.

mm)               No caso em apreço, e com base na prova constante dos autos, a perda por imparidade em causa, no montante de €107.448,00, que a Requerente pretende considerar fiscalmente dedutível em 2020, tem subjacente:

·      um crédito detido pela sociedade C... SA (sociedade que integrada na Requerente por fusão em 2016), contra um cliente da Argélia, referente a faturas que datam de 2011, como evidenciado no extrato de contas disponibilizado, no valor de €105.203,23;

·      cuja cobrança já se encontrava a ser discutida em processo judicial em curso, desconhecendo-se desde que data por recusa da Requerente em facultar essa informação, mas cujo recurso efetuado pela Requerente junto do Supremo Tribunal (Conseil d’État) culminou com uma decisão desfavorável à Requerente em 2020.

nn) Reiteramos, ainda, que os créditos em causa dizem respeito a créditos sobre clientes de 2011, ou seja, o que corresponde a um período de nove anos anterior à constituição da perda por imparidade que a Requerente pretende ver fiscalmente relevante.

oo) Ora, daqui decorre que, desde logo, e de acordo com o normativo contabilístico, a Requerente deveria ter reconhecido contabilisticamente uma imparidade, por existir a evidência objetiva (cfr. determina o §24 (atual §25) da NCRF 27) de que se estava diante da probabilidade de o devedor vir a entrar em falência ou qualquer outra reorganização financeira, em períodos muito anteriores ao de 2020.

pp) Desta forma, contabilisticamente, a Requerente deveria ter reconhecido aquela perda por imparidade, reduzindo, ou anulando na totalidade o valor do ativo, por contrapartida de gastos do período, pelo menos no momento em que instaurou o processo judicial contra o referido cliente, que, conforme evidenciado, não ocorreu, certamente, em 2020.

qq) Salientamos que, contrariamente ao que parece defender a Requerente, não releva para o reconhecimento contabilístico da perda por imparidade de um crédito, de acordo com as regras do SNC, as expectativas subjetivas do credor - neste caso da sociedade incorporada na Requerente desde 2016 e Requerente a partir daí -, nem tampouco a avaliação baseada em critérios casuísticos que este faz quanto ao risco de incobrabilidade dos respetivos créditos, como ocorreu no caso em apreço.

rr)   E este entendimento não constitui qualquer violação ao princípio da liberdade de gestão empresarial, conforme único argumento aduzido pela Requerente, uma vez que as perdas por imparidade devem ser constituídas quando há evidências objetivas de risco de imparidade, conforme dispõe os atuais §§24 e 25 da NCRF 27, normas contabilísticas de cumprimento obrigatório para a Requerente, conforme já demonstrado anteriormente.

ss)   Da argumentação aduzida pela Requerente decorre que a conduta adotada foi deliberada, o que não pode deixar de ser entendido como uma omissão voluntária, que se confirma com as alegações constantes no presente PPA. 

tt)    Conforme evidencia §5 da NCRF4 – Políticas Contabilísticas, Alterações nas Estimativas Contabilísticas e Erros, “erros de períodos anteriores são omissões, e declarações incorretas, nas demonstrações financeiras da entidade de um ou mais períodos anteriores decorrentes da falta de uso, ou uso incorreto, de informação fiável que:

a) Estava disponível quando as demonstrações financeiras desses períodos foram autorizadas para emissão; e

b) Poderia razoavelmente esperar -se que tivesse sido obtida e tomada em consideração na preparação e apresentação dessas demonstrações financeiras.

uu) Tais erros incluem os efeitos de erros matemáticos, erros na aplicação de políticas contabilísticas, faltas de cuidado ou interpretações incorretas de factos e fraudes”

vv) Nos termos da NCRF4 “[a]s demonstrações financeiras não estão em conformidade com as NCRF se contiverem erros materiais ou erros imateriais feitos intencionalmente para alcançar uma determinada apresentação da posição financeira, desempenho financeiro ou fluxos de caixa de uma entidade.” (§32).

ww)                E ainda acrescenta a NCRF4 (§37), “a correção de um erro de um período anterior é excluída dos resultados do período em que o erro é descoberto”.

xx) Vertendo ao caso dos autos, resulta que a omissão de gastos com perdas por imparidade em períodos anteriores não pode justificar o reconhecimento desses mesmos gastos no resultado contabilístico do ano de 2020, período em que a Requerente, de forma discricionária e em desrespeito pelas normas contabilísticas, procedeu ao seu reconhecimento.

yy) Saliente-se que as regras do SNC se mantiveram inalteráveis (nesta matéria) ao longo dos períodos contabilísticos. 

zz)  E que reconhecer contabilisticamente as perdas por imparidade somente no período de 2020, contrariando o disposto no normativo contabilístico, resulta de uma opção (consciente) da Requerente.

aaa)                  Apesar de conhecer o modelo exigido no SNC, a Requerente optou por não cumprir aquele normativo contabilístico (voluntariamente).

bbb)                Estava ao seu alcance proceder ao reconhecimento contabilístico das Perdas por Imparidade no período económico correto, contudo decidiu não o fazer, agindo de acordo com a sua própria conveniência. 

ccc)                 A opção tida pela Requerente traduz-se numa omissão de perdas contabilísticas referentes a períodos anteriores, resultante de uma opção voluntária.

ddd)                Quanto ao reconhecimento fiscal das perdas por imparidade, como é sabido, a determinação do lucro tributável para efeitos de IRC segue o modelo de dependência parcial entre a fiscalidade e a contabilidade – artigo 17.º do CIRC –, segundo o qual, como regra, a primeira segue a segunda, ressalvados alguns ajustamentos ao resultado líquido apurado pela contabilidade consagrados no CIRC. 

eee)                 Naqueles termos, refere o n.º 1 do art.º 17.º do CIRC, que o apuramento do lucro tributável “é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado”.

fff) Porém, nos termos da alínea a) do n.º 3 do art.º 17.º do CIRC, para o efeito a contabilidade deve  “estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respetivo setor de atividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste código.”

ggg)                Também nesse sentido, o preâmbulo do Código do IRC, republicado pela Lei n.º 2/2014 de 16 de janeiro, refere o seguinte: 

“As relações entre contabilidade e fiscalidade são, no entanto, um domínio que tem sido marcado por uma certa controvérsia e onde, por isso, são possíveis diferentes modos de conceber essas relações. Afastadas uma separação absoluta ou uma identificação total, continua a privilegiar-se uma solução marcada pelo realismo e que, no essencial, consiste em fazer reportar, na origem, o lucro tributável ao resultado contabilístico ao qual se introduzem, extra contabilisticamente, as correções – positivas ou negativas - enunciadas na lei para tomar em consideração os objetivos e condicionalismos próprios da fiscalidade”.

hhh)                Dito isto, é notória a importância de um correto apuramento do resultado contabilístico (resultado líquido do exercício) para efeitos de um correto apuramento de lucro tributável, já que é a partir do primeiro, não olvidando os ajustamentos a efetuar nos termos do Código do IRC, que resulta o respeito pelo princípio da tributação do rendimento real previsto no art.º 104.º, n.º 2 da CRP.

iii)  Não obstante o normativo contabilístico prever vários princípios que norteiam o correto reconhecimento contabilístico das operações, cabe aqui realçar a importância redobrada que o legislador deu ao princípio de especialização dos exercícios (regime do acréscimo ou da periodização económica), quando, sabendo-o ser um dos princípios basilares da contabilidade, ainda assim, fez questão de o incorporar expressamente nas regras do IRC, através do art.º 18.º do Código do IRC.

jjj)  E como já desenvolvemos anteriormente, de acordo com o normativo contabilístico e em respeito ao princípio da especialização dos exercícios (princípio da periodização económica ou do acréscimo), a constituição de perdas por imparidade (o reconhecimento contabilístico) deve ser efetuada sempre que se verifique que esse crédito está em imparidade, de acordo com §24 (atual §25) da NCRF 27.

kkk)                E neste contexto, em matéria de perdas por imparidade, embora seja imperativo respeitar o normativo contabilístico, onde se inclui o princípio da especialização de exercícios, tem de satisfazer os requisitos para a dedução fiscal são os que constam dos artigos 28.º-A, 28.º-B, e 18.º do CIRC.

lll)  Prevê a al. a) do n.º 1 do art.º 28.º-A do CIRC que as perdas por imparidade relacionadas com créditos resultantes da atividade normal, incluindo os juros pelo atraso no cumprimento de obrigação, que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade “[p]odem ser deduzidas para efeitos fiscais (…) quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores”. 

mmm)           Nos termos do n.º 1 do art.º 28.º-B do CIRC, consideram-se créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos:

a) O devedor tenha pendente processo de execução, processo de insolvência, processo especial de revitalização ou procedimento de recuperação de empresas por via extrajudicial ao abrigo do Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto;

b) Os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral;

c) Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento e existam provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento.

nnn)                Paralelamente, o montante anual acumulado da perda por imparidade de créditos referidos na al. c) do n.º 1 do art.º 28.º-B do CIRC, para créditos em mora há mais de 24 meses, é de 100%, conforme se encontra definido no n.º 2 do mesmo artigo.

ooo)                Por seu turno, na constituição das imparidades, o princípio da periodização económica constante no artigo 18.º do CIRC deve ser respeitado, sendo que as perdas por imparidade para dívidas de clientes só podem afetar negativamente o resultado do período de tributação a que respeitam e estar reconhecidas, contabilisticamente, no período económico em que esses riscos se consideram verificados.

ppp)                Quer isto dizer que, conforme resulta da lei fiscal vigente à data dos factos, a Requerente não tem a faculdade de reconhecer e deduzir as perdas por imparidade sob apreciação no período de tributação que bem entender, antes compete-lhe agir de acordo com o que os dispositivos legais supra mencionados.

qqq)                Assim, em cumprimento do dever que decorre do cumprimento das normas legais, as perdas por imparidade devem ser imputadas ao período de tributação em que ocorram, de acordo com o princípio estruturante da periodização económica, podendo ser deduzidas para efeitos fiscais:

“(a) Quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores” (n.º 1 do art.º 28.º-A do CIRC);

“(b) Se os créditos estiverem em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento” (al. c) do n.º 1 do art.º 28.º-B, do CIRC);

“(c) Quando existam provas objetivas de imparidade e tiverem sido efetuadas diligências para o seu recebimento” (al. c) do n.º 1 do art.º 28.º-B, do CIRC);

“d) Com a limitação percentual dos créditos em mora em função do tempo decorrido que, no caso de créditos em mora há mais de 24 meses corresponde à uma dedução total, isto é de 100%.” (n.º 2 do art.º 28.º-B, do CIRC).

rrr) Donde se conclui que o reconhecimento das imparidades em dívidas a receber terá de obedecer a uma avaliação no final do período de tributação com verificação objetiva do risco de incobrabilidade, o qual terá de estar devidamente justificado e comprovado, bem como aferido de acordo com o regime da periodização económica (art.º 18.º do CIRC) e do princípio da prudência (parágrafo 37 da Estrutura Conceptual do SNC), exigindo-se um grau de precaução na realização de estimativas em condições de incerteza, de forma que os ativos ou os rendimentos não sejam sobreavaliados e os passivos ou os gastos não sejam subavaliados.

sss)Daí que não se possa admitir que o desrespeito pelas normas contabilísticas e, consequentemente, o desrespeito pelas normas fiscais, seja afastado e suplantado pela invocação do princípio da justiça, sob pena de violação do almejado tratamento igualitário aplicável a todos os sujeitos passivo e ainda do princípio constitucional da tributação do rendimento empresarial pelo lucro real.

 

 III.         SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

 IV.         FUNDAMENTAÇÃO

IV.1.     Matéria de facto

 

Factos dados como provados

Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:

a)     A Requerente é uma sociedade constituída sob a forma comercial que usa a firma "A..., SA”, NIPC..., com domicílio fiscal em ..., ..., ...-... ... .

b)    A Requerente configura uma sociedade comercial que exerce atividade nos termos do n.º 4 do artigo 3.º do CIRC, sendo, à data dos factos em apreço, tributada de acordo com o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”).

c)     No que diz respeito ao período de tributação de 2020, a ora Requerente foi, com base na Ordem de Serviço n.º OI2023..., alvo de procedimento administrativo de inspeção tributária atinente à verificação e comprovação da sua verdadeira situação tributária em matéria de IRC e IVA.

d)    Concluída a prática dos atos inspetivos, os SIT, após a elaboração do respetivo “Projeto de Relatório" (PRIT), deram cumprimento ao determinado peio artigo 60. ° do RCPITA, conjugado o disposto no artigo 60.º da LGT.

e)     Em sede de exercício de direito de audição, a ora Requerente aceitou as correções propostas pelos SIT relativas ao IVA e aceitou, ainda, parte das correções propostas à matéria coletável de IRC de 2020.

f)     Porém, entendeu não acolher as correções propostas pelos SIT à matéria coletável de IRC de 2020, relacionadas com a não aceitação, para efeitos fiscais, dos custos contabilizados nas rubricas “Diferenças cambiais desfavoráveis” (objeto de revogação nos termos do despacho acima enunciado) e “Perdas por imparidade em créditos”, por considerar que as mesmas são ilegais.

g)    Elaborado o RIT, onde, ao abrigo do n.º 3 do artigo 16.º do CIRC, constavam determinados ajustamentos à matéria coletável e ao próprio cálculo de imposto, os SIT procederam à notificação da ora Requerente, nos termos e efeitos do disposto no artigo 62.º do RCPITA, conjugado com o preceituado no artigo 77.º da LGT.

h)    Atento o disposto no n.º 1 do artigo 63.º do RCPITA, as conclusões tomadas pelos SIT fundamentaram os atos tributários aqui contestados, validamente notificados à Requerente, nos termos determinados pelos artigos 35.ºa 41.º, estes do CPPT.

i)      Os factos subjacentes à correção fiscal no montante de €107.448,00, referente a perdas por imparidade em créditos, encontram-se no pormenorizadamente expostos no RIT (em V.1.1.4., fls. 113 a 116 e em X., fls. 127 a 129), bem como na Reclamação Graciosa (pontos 68 a 117) cfr. fls. 56 a 61 do PA, para os quais se remete.

j)      Não se conformando com essas correções e, concomitantemente, com a liquidação adicional de IRC e correspondentes adicionais, a ora Impugnante apresentou, no dia 27 de setembro de 2024, reclamação graciosa contestando as acima referidas correções efetuadas à matéria coletável do IRC de 2020, bem como às inerentes liquidações.

k)    A Autoridade Tributária notificou a Requerente no dia 3 de janeiro de 2025, do despacho de indeferimento que recaiu sobre a sua reclamação graciosa.

 

Factos dados como não provados

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária e Aduaneira, e em factos não questionados pelas partes.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos, tendo admitido, ao abrigo da livre condução do processo, todos os documentos pertinentes ao apuramento da verdade material, garantindo o pleno contraditório às partes.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental, testemunhal e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1]“o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

IV. 2. Matéria de Direito

 

IV.2.A. Quanto à inutilidade superveniente da lide (parcial)

 

Como decorre da posição da Requerida supra explanada, veio esta, em sede de Resposta, pugnar pela existência de inutilidade superveniente da lide relativamente:

a)     Por despacho da Srª Subdiretora geral da Área de Gestão Tributária - IR, datado de 30-06-2025, foi parcialmente revogado o ato impugnado – objeto mediato dos presentes autos: ato de liquidação de IRC n.º 2024... .

b)    Do referido despacho foi dado imediato conhecimento aos autos, por requerimento datado de 02-07-2025.

c)     O referido despacho procedeu à anulação parcial da liquidação de IRC em análise, determinando a anulação da parte correspondente às diferenças cambiais desfavoráveis em itens monetários (no valor de €888.903,84) com fundamento no n.º 1 do art.º 18.º e n.º 1 do art.º 23.º, ambos do CIRC.

d)    E mantendo a liquidação relativamente às perdas por imparidade em créditos de clientes no valor de € 107.448,00, fiscalmente não dedutíveis, por contrariarem o disposto no n. º1 do art.º 18.º, na al. b) do n. º1 do art.º 28.º-A e na al. c) do n.º 1 do art.º 28.º-B, todos do CIRC.

e)     Como decorrência da anulação parcial do ato de liquidação posto em crise nestes autos arbitrais, impõe-se requerer a redução do pedido, por inutilidade superveniente da lide quanto à matéria objeto de revogação. 

f)     No que concerne à parte do ato não abrangida pela revogação, a Autoridade Tributária entende não assistir razão ao Requerente pelas razões que detalhará infra. 

A inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, atualmente prevista no art.º 277.º al. e), do CPC, dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo.

Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio – neste sentido, vejam-se os ensinamentos de José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, I Volume, 2ª Edição, Almedina, 2003 anotação 3 ao art.º 287.º, p. 512.

Deste modo, a instância extingue-se porque se tornou inútil ou impossível o seu prosseguimento: verificado o facto, o tribunal não conhece do mérito do PPA formulado, antes se limitando a declarar aquela extinção, sem prejuízo depois do apuramento do montante de imposto a pagar.

A inutilidade superveniente da lide é, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 29.º do RJAT, uma causa de extinção da instância, a qual ocorre quando, «por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio.» - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no processo n.º 0875/14, de 30.07.2014. 

No caso concreto, apenas se considera inútil supervenientemente e parcialmente a lide a parte respeitante às diferenças cambiais desfavoráveis, continuando a haver interesse na Requerente, por não se ter oposto, na manutenção da instância na parte concernente relativamente às perdas por imparidade em créditos de clientes no valor de € 107.448,00, fiscalmente não dedutíveis, por contrariarem o disposto no n. º1 do art.º 18.º, na al. b) do n. º1 do art.º 28.º-A e na al. c) do n.º 1 do art.º 28.º-B, todos do CIRC.

Nestes moldes, não podendo os Requerentes concordar com o referido ato tributação de liquidação adicional de IRC considerando o ponto em causa (e aceitando a revogação parcial) e correspondentes juros compensatórios, vêm apresentar o presente pedido, requerendo a consequente anulação do ato tributário em apreço.

Cumpre decidir.

 

IV. 2. B. Thema decidendum

 

Pretende a Requerente, pôr em causa uma correção feita pela AT, diz respeito à desconsideração, para efeitos fiscais, do custo contabilizado na rubrica “Perda por imparidade em créditos”, no montante de € 107.448,00, crédito este relacionado com a Sucursal da Argélia, fundamentando a AT, tal correção, do seguinte modo:

“Neste caso, está comprovado o risco de incobrabilidade do crédito em causa, uma vez que foi interposto processo judicial, o que por sua vez pressupõe terem sido efetuadas diligências junto do cliente, para o seu recebimento, em data anterior. (…) Porém, para além da comprovação do risco de incobrabilidade do crédito, nos termos do previsto no artigo 28.º-B do CIRC, é importante saber qual a data em que esse risco se verificou, ou seja, em que existiram evidências objetivas desse risco de incobrabilidade (…)”.

Vindo a referir posteriormente que, na sua opinião, o risco de incobrabilidade “ocorreu anteriormente a 2019, uma vez que nos elementos ora disponibilizados, é referido que foi nomeado novo perito no ano de 2019, cujo relatório foi apresentado em 2020.”

Concluindo, desta forma: poderia “a C...  ter constituído a perda por imparidade no período em que, tendo efetuado diligências para o recebimento do crédito em causa, completasse o decurso dos 24 meses de mora do respetivo crédito, o que ocorreria a partir do final do período de 2013 (…), ou a (…) própria A..., aquando da fusão com a C..., ocorrida no período de 2016, ao ter constatado a existência de um crédito em mora há mais de 24 meses, e com eventual processo judicial em curso, poderia ter constituído a perda por imparidade nesse período, desde que tal ainda não tivesse sido contabilizado pela própria C... .”

Face aos argumentos aduzidos pela AT, a Impugnante salienta, em primeiro lugar, que ao abrigo do princípio da liberdade de gestão empresarial, a AT não pode julgar a gestão de uma empresa.

Acresce que, para averiguar o risco de incobrabilidade para efeitos do registo da provisão, há que ter em consideração, nomeadamente, o tipo de crédito, a jurisdição, as circunstâncias económicas desse crédito e a opinião dos peritos envolvidos no caso.

Invoca a Requerente que no caso em apreço, tratava-se de um crédito decorrente de trabalhos adicionais reclamados junto do cliente. Assim, no seu entender, trata-se de uma situação que tinha vindo a perdurar por vários anos, como é normal nos casos de diferendos com clientes internacionais. Não obstante a permanência no tempo desta situação, todas as evidências de que a gestão da Impugnante dispunha até 2020, eram bastantes favoráveis à cobrança do valor em questão, razão pela qual a Impugnante, tendo por base o princípio da prudência, decidiu, até então, não proceder à contabilização de qualquer imparidade.

Em 2020, a gestão da Impugnante tomou a decisão de registar a imparidade, dado a ocorrência de factos com um impacto relevante no grau de probabilidade de recuperação do valor em causa, nomeadamente a apresentação do relatório pericial contraditório e com vários lapsos, do perito D... em 09/02/2020, conforme se comprova da leitura da troca de e-mails cuja cópia se anexou ao direito de audição, e que ora se junta como Documento n.º 3.99º 

Senão vejamos se à Requerente assiste razão[2].

 

A)     Perdas por imparidade em créditos de cobrança duvidosa – conceito

 

Na interpretação do artigo 28.º-B, 1, c) do CIRC, o que deve ser demonstrado através de provas objetivas é a imparidade, não são as diligências para o recebimento dos créditos.

Não sendo incluído no CIRC qualquer conceito próprio de «provas objetivas de imparidade», a introdução deste conceito, utilizado nas normas contabilísticas sobre imparidade e incobrabilidade de ativos financeiros, visou aplicar no âmbito das perdas por imparidade de créditos, para efeitos de determinação do lucro tributável, o conceito contabilístico, que é utilizado, nomeadamente, na IAS 39 e na NCRF 27. De resto, por força do disposto no artigo 17.º, n.ºs 1 e 3, do CIRC, as regras de normalização contabilística são aplicáveis na determinação do lucro tributável, quando não há regras especiais deste Código que as afastem, pelo que também por esta via se conclui que é de fazer apelo aquelas normas.

O facto de o sujeito passivo não registar a percentagem da perda no exercício em que considera existir risco de incobrabilidade não o poderá impedir, em certos casos, de registar a perda num exercício posterior. Esta flexibilização do princípio da especialização dos exercícios, atendendo a princípios de justiça, tem vindo a ser sustentada em diversos Acórdãos dos Tribunais superiores. Assim, o princípio da especialização dos exercícios “deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios”. (Acórdão do STA de 04/02/2008, processo 0807/07).

Tem-se entendido, em suma, que o art. 18.º, 2 do CIRC não pode cobrir erros contabilísticos ou atos do próprio contribuinte, devendo, assim, a sua aplicação ser atenuada.

Assim, sem pôr em causa a relevância fiscal do princípio da especialização dos exercícios, permite-se a imputação de custos a exercícios anteriores, quando ela não tenha resultado de omissões voluntárias e intencionais, que visassem operar a transferência de resultados entre exercícios, exemplificando-se com casos em que tal se presumiria: como quando está para acabar, ou para se iniciar, um período de isenção, quando há interesse em reduzir os prejuízos de determinado exercício, para retirar benefícios do seu reporte ou quando se pretenda reduzir o montante dos lucros tributáveis para reduzir o imposto.

Esta é uma situação, pois, em que o exercício de um poder vinculado (correcção da matéria colectável em face de uma violação do princípio da especialização dos exercícios) pode conduzir a uma situação injusta; e em que, por isso, se coloca a questão de fazer operar o princípio da justiça, mormente o consagrado no art. 266.º, 2 da CRP, para obstar à possibilidade de ser efectuada a referida correcção.

Há assim, nesta situação, dois deveres a ponderar, ambos com cobertura legal: um é o de repor a verdade sobre a determinação da matéria colectável dos exercícios referidos, dando execução ao princípio da especialização, reposição essa que a administração fiscal deve efectuar mesmo que não lhe traga qualquer vantagem; outro é o de evitar que a actividade administrativa se traduza na criação de uma situação de injustiça. Entre esses dois valores, designadamente nos casos em que a administração fiscal não teve qualquer prejuízo com o erro praticado pelo contribuinte, indica a referida jurisprudência que se deve optar por não efectuar a correcção, limitando aquele dever de correcção em homenagem ao princípio da justiça.

Por seu lado, a boa prática contabilística mandaria que a imparidade tivesse sido reconhecida mais cedo: ainda que seja admissível algum grau de subjetividade nas decisões de gestão, um prazo tão longo sem conseguir o pagamento aconselharia, pelo menos, a que o órgão de gestão tivesse explicitado as razões por que mantinha o crédito esperando recebê-lo sem desencadear efetivos procedimentos de cobrança.

Aliás, em termos estritamente fiscais, para lá do reporte do lucro tributável ao resultado contabilístico,  entendemos  que o art.º 28.º-B do CIRC estabelece regras de periodização que em princípio devem ser respeitadas, ainda que, porventura, num quadro de articulação com o princípio da justiça, que a Requerente invoca;

 Ora, no caso concreto (de 2103 a 2020 vão 7 anos), afigura-se-nos que a aceitação fiscal da imparidade em 2020 por causa do princípio da justiça, refletiria o entendimento de que o princípio da justiça permite/aconselha o total esquecimento das regras de periodização: reconhece-se a imparidade (ou outros gastos, por que nao ?) quando se quiser, lembrando que o órgão de gestão não apresentou entre 2013 e 2020, que se saiba, qualquer justificação para manter o crédito em balanço).

 

B)      Perdas por imparidade em créditos de cobrança duvidosa – regime legal  

 

A questão que se discute nos presentes autos refere-se à não aceitação, pela Requerida, da dedução fiscal do gasto relativo a perdas por imparidade em créditos, matéria regida pelos artigos 23.º, n.ºs 1 e 2 alínea h), 28.º-A e 28.º-B do Código do IRC, que infra se transcrevem, nos segmentos com relevância para o caso, na redacção em vigor à data dos factos, aditando-lhes o art. 18.º, 1 e 2, que fixa o momento em que os gastos devem ser considerados:

“Artigo 23.º 

Gastos e perdas 

1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC. 

2 - Consideram-se abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, os seguintes gastos e perdas: 

[…]

h) Perdas por imparidade;”

 

Artigo 28.º-A 

Perdas por imparidade em dívidas a receber 

1 - Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes perdas por imparidade, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores: 

a) As relacionadas com créditos resultantes da atividade normal, incluindo os juros pelo atraso no cumprimento de obrigação, que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade;

3 - As perdas por imparidade e outras correções de valor referidas nos números anteriores que não devam subsistir, por deixarem de se verificar as condições objetivas que as determinaram, consideram-se componentes positivas do lucro tributável do respetivo período de tributação.

 

Artigo 28.º-B 

Perdas por imparidade em créditos 

1 - Para efeitos da determinação das perdas por imparidade previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, consideram-se créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos: 

a) O devedor tenha pendente processo de execução, processo de insolvência, processo especial de revitalização ou procedimento de recuperação de empresas por via extrajudicial ao abrigo do Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto; 

b) Os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral; 

c) Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento e existam provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento. 

2 - O montante anual acumulado da perda por imparidade de créditos referidos na alínea c) do número anterior não pode ser superior às seguintes percentagens dos créditos em mora: 

a) 25 % para créditos em mora há mais de 6 meses e até 12 meses; 

b) 50 % para créditos em mora há mais de 12 meses e até 18 meses; 

c) 75 % para créditos em mora há mais de 18 meses e até 24 meses; 

d) 100 % para créditos em mora há mais de 24 meses.

 

Artigo 18.º 

Periodização do lucro tributável 

1 - Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

2 - As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.

 

 

C)      Créditos de cobrança duvidosa

 

No reconhecimento de perdas por imparidade em dívidas a receber, resultantes de atividade normal e evidenciados como sendo de cobrança duvidosa na contabilidade, o art. 28º-B, 1 do CIRC considera como créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que se verificará nos seguintes casos: “a) O devedor tenha pendente processo de execução, processo de insolvência, processo especial de revitalização ou procedimento de recuperação de empresas por via extrajudicial ao abrigo do Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de Agosto; b) Os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral; c) Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento e existam provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento”. Condições a que se soma o pressuposto da duração da mora, definido em termos percentuais (art. 28º-B, 2).

A mora (art. 804.º do Código Civil) é um fator determinante da incobrabilidade, mas, como referimos já, não é sinónimo desta, pelo que o risco de incobrabilidade terá de ser concluído a partir de uma avaliação casuística. Este entendimento é sancionado por Despacho do SDGCI de 23.05.1994, divulgado no Ofício-Circulado n.º 023332, de 03.06.94, do SAIR: “(…) 2. Para efeitos fiscais, só haverá mora quando o credor não concorda com o deferimento do prazo normalmente estabelecido para o pagamento da dívida.”

Utilizando a linguagem das Normas Internacionais de Contabilidade, a constituição de imparidades tem por finalidade fazer face a contingências negativas (que, neste caso, resultem da eventual incobrabilidade), cuja probabilidade de ocorrência seja discernível, gerando o risco de perda para a empresa – caso em que se torna prudente reconhecer de imediato essa perda potencial nas demonstrações financeiras, constituindo-se ou reforçando-se a imparidade.

A constituição de imparidades, no pressuposto de que a contingência negativa existe, articula-se com o princípio da especialização dos exercícios sempre que o risco de incobrabilidade se mostre já firmado, e até relevado contabilisticamente por transferência das respectivas contas de terceiros (211 – Clientes) para as contas de clientes de cobrança duvidosa (conta 218), aconselhando a que, por prudência, seja imediatamente constituída a correspondente imparidade, ou reforçada a imparidade já constituída em parte.

O princípio de prudência traduz-se na necessidade de inserção nas contas de um determinado grau de precaução, para fazer face a situações de incerteza, de tal forma que os ativos e os resultados não sejam sobredimensionados.

Haverá, todavia, a considerar que a integração de um grau de precaução nas contas não pode conduzir à criação de reservas ocultas ou provisões excessivas, ou à deliberada quantificação de ativos e proveitos por defeito, ou de passivos e custos por excesso.

E é porque a constituição abusiva de imparidades para créditos de cobrança duvidosa poderia conduzir a uma distorção dos resultados duma empresa, para efeitos fiscais, que o legislador introduziu normas tipificando as situações que são passíveis de constituir custos para efeitos fiscais: e assim, à dedutibilidade estabelecida no art. 23.º, 1, h), contrapõem-se as limitações qualitativas e quantitativas dos arts. 28.º-A e 28.º-B do CIRC, enunciando-se, de forma taxativa, um elenco fechado de tipologias de provisões/imparidades com tal relevância.

Isso só pode significar, de novo, que foi objetivo do legislador não deixar a constituição das imparidades/provisões ao livre arbítrio dos contribuintes.

 

D)     A necessária periodização das imparidades

 

As imparidades são custos estimados e atuais do exercício, correspondentes a despesas cujo montante ainda não é certo, ou que são de eventual ocorrência futura.

A constituição de imparidades tem como finalidade essencial possibilitar a inclusão de custos ou perdas de dado exercício, em montantes que de outro modo nele não figurariam, por lhes faltar justificação documental para a respectiva movimentação; sendo precisamente essa falta de justificação documental que a constituição da imparidade vem suprir.

Ou seja, as contas de provisões e imparidades são aquelas nas quais se inscrevem as verbas destinadas a contrabalançar encargos ou prejuízos estimados e atuais, de provável processamento futuro; ou de encargos que, sendo inevitáveis, são ainda (atualmente) de montante incerto.

Ora a necessidade de constituição de imparidades surge precisamente porque a tributação do rendimento se processa anualmente, obrigando as empresas a estabelecer balizas teóricas da sua atividade para a periodização do lucro tributável, concretizada de acordo com o princípio da especialização dos exercícios.

Se se desconsiderar o princípio da especialização dos exercícios, total ou parcialmente, ou se se lhe sobrepuserem considerações tidas por superiores, como parece resultar de uma linha jurisprudencial a que já aludimos, então reduz-se, ou pode eliminar-se até a própria justificação para a constituição de imparidades.

 

E)      A prova objetiva de imparidade

Subjacente ao conceito legal de crédito de cobrança duvidosa encontra-se a realidade contabilística, e os deveres inerentes que impendem sobre as sociedades. Nos termos do art. 123.º, 1 do CIRC, “as sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais entidades que exerçam, a título principal, uma atividade comercial, indústria ou agrícola, com sede ou direção efetiva em território português, bem como as entidades que, embora não tendo sede ou direção efetiva em território português, bem como as entidades que, embora não tendo sede nem direção efetiva em naquele território, aí possuam estabelecimento estável, são obrigadas a dispor de contabilidade organizada nos termos da lei que, além dos requisitos indicados no n.º 3 do artigo 17.º, permite o controlo do lucro tributável”.

A organização da contabilidade passa pelo cumprimento do Sistema de Normalização Contabilística (SNC) aprovado pelo DL N.º 158/2009, de 13 de Julho, sendo que o enquadramento contabilístico do conceito de perdas por imparidade em dívidas de clientes consta da Norma Contabilística de Relato Financeiro (NCRF) 27 – Instrumentos Financeiros.

No respectivo §23 estabelece-se que, à data de cada período de relato financeiro, uma entidade deve avaliar a imparidade de todos os ativos financeiros que não sejam mensurados ao justo valor através de resultados. Se existir uma evidência objetiva de imparidade, a entidade deve reconhecer de imediato uma perda por imparidade na demonstração de resultados: “À data de cada período de relato financeiro, uma entidade deve avaliar a imparidade de todos os ativos financeiros que não sejam mensurados ao justo valor através de resultados. Se existir uma evidência objetiva de imparidade, a entidade deve reconhecer uma perda por imparidade na demonstração de resultados”.

A Estrutura Conceptual (EC) do Sistema de Normalização Contabilística (SNC), publicada no Aviso n.º 8254/2015, de 29 de Julho, dispõe no seu § 37: “Os preparadores das demonstrações financeiras têm, porém, de lutar com as incertezas que inevitavelmente rodeiam muitos acontecimentos e circunstâncias, tais como a cobrabilidade duvidosa de dívidas a receber, a vida útil provável de instalações e equipamentos e o número de reclamações de garantia que possam ocorrer. Tais incertezas são reconhecidas através da divulgação da sua natureza e extensão e pela aplicação de prudência na preparação das demonstrações financeiras. A prudência é a inclusão de um grau de precaução no exercício dos juízos necessários ao fazer as estimativas necessárias em condições de incerteza, de forma que os ativos ou os rendimentos não sejam sobreavaliados e os passivos ou os gastos não sejam subavaliados. Porém, o exercício da prudência não permite, por exemplo, a criação de reservas ocultas ou provisões excessivas, a subavaliação deliberada de ativos ou de rendimentos, ou a deliberada sobreavaliação de passivos ou de gastos, porque as demonstrações financeiras não seriam neutras e, por isso, não teriam a qualidade de fiabilidade, materializando-se ali uma das caraterísticas qualitativas das demonstrações financeiras consubstanciada na vigência do princípio da prudência.”

As perdas por imparidade referentes a créditos de cobrança duvidosa não devem obedecer a critérios fiscais, mas à referida Norma Contabilística de Relato Financeiro (NCRF) 27 – “Instrumentos financeiros”, já que tais créditos se enquadram no conceito de activos financeiros cuja definição se encontra no §5 daquela norma: “Os termos que se seguem são usados nesta Norma com os significados especificados: Ativo financeiro: é qualquer ativo que seja: a) Dinheiro; b) Um instrumento de capital próprio de uma outra entidade; c) Um direito contratual: i) De receber dinheiro ou outro ativo financeiro de outra entidade; ou ii) De trocar ativos financeiros ou passivos financeiros com outra entidade em condições que sejam potencialmente favoráveis para a entidade; ou d) Um contrato que seja ou possa ser liquidado em instrumentos de capital próprio da própria entidade e que seja: i) Um não derivado para o qual a entidade esteja, ou possa estar, obrigada a receber um número variável dos instrumentos de capital próprio da própria entidade; ou ii) Um derivado que seja ou possa ser liquidado de forma diferente da troca de uma quantia fixa em dinheiro ou outro ativo financeiro por um número fixo de instrumentos de capital próprio da própria entidade. Para esta finalidade, os instrumentos de capital próprio da própria entidade não incluem instrumentos que sejam eles próprios contratos para futuro recebimento ou entrega dos instrumentos de capital próprio da própria entidade.”

É na EC do SNC, na alínea a) do § 49, que poderemos encontrar a definição de Ativo – um dos elementos das demonstrações financeiras relevado no balanço – como “um recurso controlado pela entidade como resultado de acontecimentos passados e do qual se espera que fluam para a entidade benefícios económicos futuros”.

As dívidas a receber qualificam-se no balanço como ativos financeiros por contemplarem os três elementos essenciais apresentados na EC: i) Recurso controlado pela Entidade (§ 56 da EC); ii) Resultado de transações ou acontecimentos passados (§ 57 da EC) e, iii) Gerador de benefício económico futuro (§ 52 da EC).

A EC dispõe que o reconhecimento de ativos no balanço tem de ser mensurado com fiabilidade (§ 87 da EC); ressalvando que, quando um ativo deixa de proporcionar benefícios económicos futuros para a entidade, na totalidade ou em parte, não deverá ser reconhecido no balanço (§ 88 da EC) – sendo este parágrafo que irá permitir o efeito de reconhecimento do activo de acordo com critérios valorimétricos objetivos e adequados, através da constituição de perdas por imparidade.

O enquadramento contabilístico do conceito de perda por imparidade em dívidas de clientes consta da Norma Contabilística e de Relato Financeiro 27 – Instrumentos Financeiros. A NCRF 27 indica que as dívidas a receber, entre as quais as de clientes, devem ser mensuradas ao custo, ou custo amortizado, ou ao justo valor, com as alterações de justo valor a serem reconhecidas nas demonstrações de resultados, conforme definido nos seus §10 a §16, menos qualquer perda por imparidade constituída.

Como o art. 28.º-B, 1, c) do CIRC não define o que seja “prova objetiva de imparidade”, apesar de a impor como requisito necessário à aceitação da perda por imparidade de créditos de cobrança duvidosa, devemos recorrer ao §24 da NCRF 27 e ao seu conceito de “evidência objetiva”: “Evidência objetiva de que um ativo financeiro ou um grupo de ativos está em imparidade inclui dados observáveis que chamem a atenção ao detentor do ativo sobre os seguintes eventos de perda: a) Significativa dificuldade financeira do emitente ou devedor; b) Quebra contratual, tal como não pagamento ou incumprimento no pagamento do juro ou amortização da dívida; c) O credor, por razões económicas ou legais relacionados com a dificuldade financeira do devedor, oferece ao devedor concessões que o credor de outro modo não consideraria; d) Torne -se provável que o devedor irá entrar em falência ou qualquer outra reorganização financeira; e) O desaparecimento de um mercado ativo para o ativo financeiro devido a dificuldades financeiras do devedor; ou f) Informação observável indicando que existe uma diminuição na mensuração da estimativa dos fluxos de caixa futuros de um grupo de ativos financeiros desde o seu reconhecimento inicial, embora a diminuição não possa ser ainda identificada para um dado ativo financeiro individual do grupo, tal como sejam condições económicas nacionais, locais ou sectoriais adversas.”

Transpondo esta norma para as contas a receber de clientes, as empresas devem aferir se os valores que esperam vir a receber diferem da quantia escriturada em contas ou subcontas de clientes; e, em caso afirmativo, devem de reconhecer imediatamente uma imparidade.

A mensuração das perdas por imparidade das dívidas a receber de clientes deve ser determinada pela diferença entre a quantia escriturada e o valor atualizado dos fluxos de caixa estimados, descontado à taxa de juro efetiva original, sempre que o ativo tenha sido relevado no relato financeiro ao custo amortizado, conforme definido na alínea a) do § 28 da NCRF 27.

A cada data de relato uma entidade deve também avaliar se existem indícios de que uma perda por imparidade que já tenha sido reconhecida anteriormente, tenha diminuído ou deixado de existir. Nesta situação, deve-se proceder à reversão da perda por imparidade registada no passado. A reversão de perdas por imparidade está prevista no §29 da NCRF 27: sempre que num período posterior “(…) a quantia de perda por imparidade diminuir e tal diminuição possa estar objetivamente relacionada com um evento ocorrido após o reconhecimento da imparidade (como por exemplo a melhoria na notação de risco do devedor) a entidade deve reverter a imparidade anteriormente reconhecida.”. Na prática, tal sucede sempre que os fatores que levaram à constituição dessa perda por imparidade deixarem de ter significado no relato financeiro. Esta reversão não poderá ser superior ao custo amortizado do ativo escriturado no relato financeiro e deverá ser reconhecida na demonstração de resultados. Em suma, se ocorrer uma diminuição da perda por imparidade e a mesma esteja objetivamente relacionada com um evento ocorrido após o reconhecimento da imparidade, a entidade deve proceder à reversão da imparidade que tinha sido anteriormente reconhecida.

Ora, no caso concreto, em 2020, a gestão da Impugnante tomou a decisão de registar a imparidade, dado a ocorrência de factos com um impacto relevante no grau de probabilidade de recuperação do valor em causa, nomeadamente a apresentação do relatório pericial contraditório e com vários lapsos, do perito D... em 09/02/2020, conforme se comprova da leitura da troca de e-mails cuja cópia se anexou ao direito de audição, e que ora se junta como Documento n.º 3.99º 

Ora, na verdade, o processo que as partes referem não é um processo para cobrança de um crédito, mas (tanto quanto nos parece) um processo para decidir se o crédito existe: não é questão de “cobrança duvidosa”, mas antes de saber "se existe direito a cobrar”. E se assim é, talvez não fosse caso de reconhecer que o (suposto) crédito está em imparidade, mas antes avaliar se a fatura foi mal emitida em 2011, sendo caso de emitir agora uma nota de crédito.

Assim, tudo está em saber em que exercício o risco de incobrabilidade foi constatado, e isso refletido na contabilidade da Requerente.

Ainda que a expectativa de recebimento daqueles créditos se haja mantido até momento muito posterior ao do vencimento das faturas, a Requerente, para obstar a que as correções produzidas, e os atos tributários sindicados que nelas estão estribados, pudessem colher, teria de ter provado que a incobrabilidade dos créditos que originaram as imparidades foi constatada e refletida na contabilidade no exercício de 2020 porque não poderia – ou deveria, de acordo com o princípio da prudência – sê-lo em exercícios anteriores.

Ora o aludido risco de incobrabilidade tem de se manifestar objetiva e externamente, de modo a possibilitar a sua sindicância. Como judiciosamente estabeleceu o Tribunal Central Administrativo Norte, “À lei fiscal não interessa (...) o momento (subjetivo) em que a empresa equacionou o risco de incobrabilidade, que muito dificilmente poderia ser sindicado. Interessa sim o momento em que, objetiva e externamente, se manifestou o risco de incobrabilidade. «A ratio legis destes afunilamentos fiscais ancora-se, em especial, na impossibilidade desta ciência tolerar a subjetividade inerente à provisão contabilística, a qual, por repousar sobre critérios de probabilidade, contém necessariamente uma certa margem de discricionariedade» (Tomás Tavares, «Da relação da dependência parcial entre a contabilidade e o direito fiscal na determinação do rendimento tributável das pessoas coletivas: Algumas reflexões ao nível dos custos», in C.T.F. n.º 396, pág. 81/82)” (Acórdão do TCAN, de 10.11.2011, arresto n.º 00123/03-Porto).

Nesses termos, não só a Requerente não gozava do poder de livre escolha do exercício em que pretendia contabilizar os seus créditos de cobrança duvidosa, mas ainda há factos provados nos autos que suportam objetivamente a afirmação de que o risco de incobrabilidade dos créditos aqui em causa ficou evidenciado em diversos momentos anteriores a 2020 – momentos de exercícios nos quais as imparidades, para serem dedutíveis como custos fiscais, tinham de ser constituídas (em função do que dispõe o § 24 da NCRF 27), e não o foram.

Assim sendo, o Tribunal é levado a concluir, num juízo de normalidade, que a Requerente reagiu incorretamente ao risco de incobrabilidade dos créditos vencidos aqui em causa, que se firmou bem antes de 2020, só voltando a diligenciar no sentido do recebimento dos pagamentos em mora decorridos vários anos sobre a data de ocorrência das primeiras manifestações de incobrabilidade.

Invoca a Requerente que no caso em apreço, e como já referido supra, tratava-se de um crédito decorrente de trabalhos adicionais reclamados junto do cliente. Assim, no seu entender, trata-se de uma situação que tinha vindo a perdurar por vários anos, como é normal nos casos de diferendos com clientes internacionais. Não obstante a permanência no tempo desta situação, todas as evidências de que a gestão da Impugnante dispunha até 2020, eram bastantes favoráveis à cobrança do valor em questão, razão pela qual a Impugnante, tendo por base o princípio da prudência, decidiu, até então, não proceder à contabilização de qualquer imparidade.

No entanto, da consulta do processo resultam evidências contraditórias:

a)    Depreende-se do PPA e das peças da AT que os 24 meses de mora ocorreram em 2013 e a dívida será de 2011;

b)    Ocorreu uma fusão em 2016 na qual foi conhecida a existência da dívida;

c)    A Requerente limita-se a invocar a liberdade de gestão empresarial, e que não cabe à AT decidir quando há risco de incobrabilidade;

d)    A Requerente alega, mas não prova, que se tratavam de trabalhos adicionais e que até 2020 as evidências de boa cobrança eram favoráveis, pelo que de acordo com o princípio da prudência não reconheceu qualquer imparidade;

e)    A Requerente alega e junta o Doc. N.º 3 quanto à decisão de registar a imparidade apenas em 2020.

A conjugação destes elementos permite que se conclua, razoavelmente, pela existência de provas objetivas de imparidade em exercícios bem anteriores àquele em que elas foram constituídas pela Requerente.

 

F)     Quanto à injustiça notória do caso 

Como referido antes, há uma linha jurisprudencial (mormente no STA) que tem vindo a argumentar no sentido de que, ainda que tivesse ocorrido desrespeito pelo princípio da periodização do lucro tributável, sempre haveria de se concluir que o procedimento seguido pelo sujeito passivo não determinou prejuízo à receita tributária, daí se inferindo que uma alegada “rigidez” do princípio da periodização dos exercícios deverá ser ponderada com o princípio da justiça.

Um primeiro ponto corresponderá à constatação de que estamos aqui a lidar com regras, não nos situando no plano principiológico. Ora, como observa Jónatas Machado na decisão do Proc. n.º 196/2024-T do CAAD “importa ter presente que o que distingue, ao menos tendencialmente, os princípios das regras é que os primeiros podem admitir ponderação e uma leitura flexível, ao passo que estas são de aplicação definitiva, de acordo com uma lógica binária do tipo “all-or-nothing”. A dogmática dos princípios jurídicos tem salientado que os mesmos devem ser entendidos como exigências de otimização que podem ceder no confronto – e diante da necessidade de harmonização – com outros princípios vigentes no sistema jurídico. Assim se compreende que o princípio da especialização de exercícios, apesar de estar vertido em regra no artigo 18.º do CIRC, não seja totalmente imune à necessidade de ponderação e concordância prática com o princípio da justiça e as suas implicações práticas.” (§48)

Um segundo ponto será o determinar-se qual o fundamento de uma interpretação abrogatória do art. 18.º, 1 do CIRC – visto que a própria invocação do princípio da justiça parece dever estar reservada para domínios de maior gravidade, sob pena de uma invocação mais trivializada, ou trivializadora, de “princípios” contra “regras” poder inviabilizar a aplicação da lei – qualquer lei –, ou constituir uma violação do princípio da separação de poderes, com a interpretação judicial a invadir os domínios do arbítrio legislativo.

Exceptuar-se-ia, aqui, alguma incidência de inconstitucionalidade; mas é o próprio Tribunal Constitucional que esclarece que “o princípio da justiça, como parâmetro aferidor da conformidade constitucional das normas jurídicas, pressupõe, porém, que esteja em causa uma solução normativa absolutamente inaceitável (como sempre aconteceu nos casos apreciados nos arestos citados), que afecte uma dada dimensão do núcleo fundamental dos interesses essenciais da pessoa humana e que colida com os valores estruturantes do ordenamento jurídico” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2001, de 13.10.2001).

Não se vislumbra que a aplicação do regime do art. 18.º do CIRC possa ter-se como representando um atentado aos interesses essenciais da pessoa humana ou aos valores estruturantes do ordenamento jurídico, a ponto de se legitimar uma interpretação abrogatória com assento constitucional.

E menos se vislumbra, ainda, que, nesse esforço de anulação dos efeitos de uma norma em vigor, se tente criar uma nova regra jurídica, substituindo os critérios de “imprevisibilidade” ou “desconhecimento”, do art. 18.º, 2 do CIRC, por um critério de “intencionalidade” (o facto de a violação do princípio da anualidade não resultar de omissões voluntárias ou intencionais do sujeito passivo); critério que não tem a mais remota correspondência com a letra da lei, e não é isento de consequências práticas de patente gravidade.

Secundamos a este propósito a observação de Jorge Carita no seu voto de vencido na decisão do Proc. n.º 263/2022-T:

“O ERRO tem que ter consequências, porque se assim não fosse, legitimada ficava a prática do erro, lapso, descuido, não demos conta, não foi por mal (…)

Criada ficava uma outra figura: a do erro inocente.

(…)

E a censura do comportamento, onde é que fica?

A cobertura deste tipo de situações, como resulta desta Decisão, é, na minha modesta opinião, extremamente perigosa, e abre a porta à legalização de práticas absolutamente proibidas por lei.

Tudo se poderia resumir a ter ou não havido prejuízo para o Estado.

Sinceramente, tenho dúvidas que a conformação ditada jurisprudencialmente do princípio da especialização, como uma espécie de princípio menor, que cede perante o esplender do princípio da justiça, se resume tão simplesmente às contas que estamos a fazer neste processo, sobre se houve ou não prejuízo para o Estado.

Diga-se que o ordenamento fiscal está eivado de regras que determinam o momento em que as operações têm relevância contabilística e fiscal e que ultrapassado esse momento o contribuinte perde direito a elas (reconhecimento de provisões e imparidades, amortizações e reintegrações, etc).”

Numa leitura benigna, a jurisprudência do STA convoca o princípio da justiça para atenuar a rigidez do princípio da especialização dos exercícios, numa lógica de ponderação proporcional de direitos e interesses dos contribuintes e do Estado, indeferindo somente as omissões voluntárias e intencionais que visem operar a transferência de resultados entre exercícios.

Ponto é, para esta orientação jurisprudencial, que o sujeito passivo tenha sido prejudicado, ou não tenha tido qualquer vantagem, pelo atraso da relevância fiscal dos gastos por perdas por imparidade; realidade que, a verificar-se, constitui um elemento de relevo decisivo para presumir que os erros foram involuntários e não intencionais. Igualmente relevante, na jurisprudência do STA, é a questão de saber se a AT ainda poderia efectuar correções simétricas para determinação dos respectivos lucros tributáveis, imputando a cada um desses anos as perdas respectivas que não sejam aceites em relação ao ano de que se trate, de forma a evitar situações de manifesta injustiça.

Admitindo a boa intenção de uma tal ponderação de princípios, subscrevemos, no entanto, as objecções formuladas por Jónatas Machado na decisão do Proc. n.º 196/2024-T do CAAD (e Ricardo Marques Candeias na decisão do Proc. n.º 198/2024-T):

“54. Todavia, as exigências legais de normalização contabilística, a que se subordina o princípio da especialização de exercícios, desempenham uma importante função regulatória de toda a atividade empresarial – essencial para financiadores, fornecedores, investidores, consumidores, AT – fornecendo ao sistema económico globalmente considerado os necessários e desejáveis níveis de transparência, mensurabilidade, comparabilidade, segurança, prestação de contas, previsibilidade e calculabilidade, valores inscritos no princípio do Estado de direito e considerados indispensáveis a numa economia social de mercado – conceito com acolhimento expresso no artigo 3.º, n.º 3, do TUE – bem organizada, não podendo essas exigências contabilísticas, pelo interesse público que têm subjacente, ser colocadas na disponibilidade dos contribuintes e preteridas de ânimo leve, mediante a simples invocação do princípio da justiça. 

55. A relevância sistémica da contabilidade permite compreender, por exemplo, que na Estrutura Conceptual do SNC, § 22, se diga que, a fim de satisfazerem o seu objetivo, as demonstrações financeiras são preparadas segundo o regime contabilístico do acréscimo, nos termos do qual os efeitos das transações e de outros acontecimentos são reconhecidos quando ocorram e registados contabilisticamente e relatados nas demonstrações financeiras dos períodos com os quais se relacionem. Na mesma linha, ela explica o relevo que o § 37 confere ao princípio da prudência e a razão pela qual os § 77 e § 78 referem que as perdas representam diminuições em benefícios económicos e como tal não são na sua natureza diferentes de outros gastos, e que, quando reconhecidas na demonstração de resultados, são geralmente mostradas separadamente pois o seu conhecimento é útil para a tomada de decisões económicas. 

56. A função regulatória sistémica das exigências contabilísticas, inscritas nas NCRF e no CIRC, tem como objetivo repercutir-se positivamente na atividade económica e beneficiar, mesmo que indiretamente, o Estado, as empresas e as famílias. Essas exigências já refletem uma complexa ponderação multidimensional de direitos e interesses, com implicações sistémicas, que não pode ficar na dependência de apreciações subjetivas e casuísticas. Naturalmente que o princípio da justiça, na medida em que vincula toda a atividade estadual, com especial relevo para a AT, pode e deve operar, como válvula de segurança do sistema, numa ótica de ponderação de direitos e interesses conflituantes, para corrigir situações excecionais de manifesta injustiça. 

(…)

58. A Requerente pretende refletida no cálculo do seu IRS (…) perdas reconhecidas e imputadas (…) ao exercício de 2019, quando as mesmas deveriam ter imputadas a exercícios anteriores em cumprimento do princípio – vertido em norma legal – da especialização dos exercícios (artigo 18.º do CIRC e demais normas aplicáveis), sem que tenha sido feita qualquer prova ou alegadas razões, de natureza factual, que a sociedade pudesse ter tido para não proceder ao reconhecimento das perdas no exercício em que lhe era devido fazer, em aplicação da lei, ou seja, sem justificar a violação do referido princípio, insistindo, ao invés, na ideia errónea, à face da lei e das regras de contabilidade, de que é sempre ao contribuinte — em primeira e última instância — que cabe formular uma apreciação subjetiva acerca do risco de incobrabilidade, sem atender à existência de critérios objetivos. 

59. Determinando o princípio da especialização de exercícios, ou do acréscimo, que os proveitos e os custos devem ser imputados ao período a que respeitam, independentemente do seu recebimento ou pagamento, só a imprevisibilidade ou manifesto desconhecimento quanto a um gasto respeitante a um período anterior, e sendo ao sujeito passivo que aproveita a sua dedutibilidade fiscal, tal princípio faz impender sobre este o ónus probatório quanto a tais circunstâncias excecionais. Ónus que não foi cumprido (…)” [ênfase no original]

Mas há mais – e neste ponto não podemos deixar de mencionar a tomada de posição de Rita Correia da Cunha na sua declaração de voto no Proc. n.º 121/2023-T do CAAD: é que, ao não aplicarem o princípio da especialização dos exercícios em função do princípio da justiça, tanto os tribunais arbitrais como o Supremo Tribunal Administrativo estão efetivamente a recorrer à equidade, a resolverem um litígio, não com base no direito constituído, isto é, na aplicação de normas gerais e abstratas ao caso concreto, mas antes na consideração das particularidades do caso concreto para formarem uma solução diretamente consonante com um princípio de justiça que julgam ter sido obnubilado pela generalidade e abstração da regra jurídica positiva.

Esse afastamento ostensivo do direito constituído é que distingue a equidade propriamente dita de uma mera interpretação corretiva – a distância que separa os arts. 4.º e 9.º do Código Civil.

Mas é esse mesmo afastamento ostensivo, assumido, que gera dificuldades próprias do recurso à equidade: a perda de segurança, certeza e previsibilidade jurídicas, o risco de subjetivismo e aleatoriedade decisional, a colisão entre poderes, até com o risco de usurpação da legitimidade legiferadora, que cabe a representantes eleitos, por juízes não eleitos democraticamente.

Por outro lado, a aludida linha jurisprudencial do STA, que preconiza que a alegada “rigidez” do princípio da periodização dos exercícios tem de ser ponderada com o princípio da justiça, justifica-se a si mesma numa peculiar interpretação do art. 266.º, 1 da CRP (“Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé”).

É representativo dessa linha jurisprudencial o acórdão do STA de 25.06.2008 (Proc. n.º 291/08):

“O princípio da especialização económica dos exercícios traduz-se justamente em que devem ser considerados como custos de determinado exercício os encargos que economicamente lhe sejam imputáveis, sendo, em consequência, irrelevante o exercício em que se efectua o seu pagamento. Assim, tal princípio, no seu extremo rigor, leva a que só possam ser imputados a cada ano os proveitos e custos nele verificados, independentemente dos respetivos recebimentos e pagamentos. O princípio não pode, todavia, ser entendido com uma tal rigidez. Como logo resulta do próprio texto legal. Dispõe efetivamente o n.º 2 do predito artigo 18.º que ‘as componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a exercícios anteriores só são imputáveis ao exercício quando na data de encerramento das contas daquele a que deveriam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas’. Ao contrário do que pretende a recorrente, não é esse, todavia, o caso dos autos. Aí, como ela própria reconhece, o diferimento dos custos resultou de erro devido ao seu sistema informático pelo que, como refere a sentença, sibi imputet. Pois que erros humanos não são imprevisíveis nem podem ser manifestamente desconhecidos. Como bem refere o Exmo. Magistrado do Ministério Público, tal n.º 2 não pode cobrir erros contabilísticos ou atos do próprio contribuinte: ‘a norma há de interpretar-se no sentido de que essa impossibilidade e/ou esse desconhecimento, para serem relevantes, hão de decorrer de situações externas que o contribuinte não pode controlar’. Todavia, a predita rigidez ainda por outros caminhos deve ser atenuada. O que tem tido eco tanto na doutrina como na jurisprudência e, até, na própria administração fiscal. Na verdade e em idêntica matéria, ainda que respeitante à abolida Contribuição Industrial, onde vigoravam princípios e normas semelhantes, aquela rigidez foi flexibilizada, através do Ofício-Circular C-1/84, de 18 de Junho, consequência do parecer do Centro de Estudos Fiscais publicado in Ciência e Técnica Fiscal 307/309, p. 781 e ss., sobre que recaiu despacho de concordância do Secretário de Estado do Orçamento de 8 de Junho de 1984, acabando o fisco por adotar, pois, posição mais flexível quanto ao problema. E, bem assim, a jurisprudência deste STA – cfr. os acórdãos de 13 de Novembro de 1996 – recurso n.º 20.456, de 23 de Fevereiro de 2000 – rec. 24.039 e, mais recentemente, de 25 de Janeiro de 2006, recurso n.º 0830/05. Assim, sem pôr em causa a relevância fiscal do princípio da especialização dos exercícios, permite-se a imputação de custos a exercícios anteriores, quando ela não tenha resultado de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios, exemplificando-se com casos - em que tal se presumiria - como “quando está para acabar ou, para se iniciar um período de isenção, quando há interesse em reduzir os prejuízos de determinado exercício, para retirar benefícios do seu reporte e quando se pretende reduzir o montante dos lucros tributáveis para reduzir a contribuição industrial” - Cfr. Ciência e Técnica Fiscal 349-84 e Manuel Henrique de Freitas Pereira, A periodização do lucro tributável, 1986. Como, aliás, desenvolvidamente comentam Diogo Leite Campos, Benjamin Rodrigues e Jorge de Sousa, in Lei Geral Tributária anotada, 3.ª edição, pp. 242-243: Transcorrido ‘o prazo em que podiam ser efetuadas correções”, “se a administração fiscal tinha razão na correção que efetuou, o contribuinte, em princípio, teria sido prejudicado pelo seu próprio erro ao declarar a matéria coletável, pois, abatendo um custo no ano seguinte àquele em que o deveria ter deduzido, deixou de ver diminuído o montante do imposto correspondente no ano em que tal diminuição deveria ter ocorrido, para só ver tal diminuição ocorrer no ano seguinte e, paralelamente, a administração fiscal não tinha tido qualquer prejuízo, pois recebera no ano anterior o imposto sem que fosse tido em conta esse custo que o deveria diminuir’ pois, em tal circunstância, ‘o contribuinte, que já era o único prejudicado pelo seu erro, veria ainda agravada a sua situação, vendo-se impossibilitado de efetuar a dedução desse custo em qualquer dos anos. A administração fiscal, assim, reteria em seu poder um imposto a que manifestamente não teria direito. Esta é uma situação em que o exercício de um poder vinculado (correção da matéria coletável em face de uma violação do princípio da especialização dos exercícios) conduz a uma situação flagrantemente injusta e em que, por isso, se coloca a questão de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da Constituição, e 55.º da Lei Geral Tributária, para obstar à possibilidade de efetuar a referida correção. Há, nesta situação, dois deveres a ponderar, ambos com cobertura legal: um é o de repor a verdade sobre a determinação da matéria coletável dos exercícios referidos, dando execução ao princípio da especialização, reposição essa que a administração fiscal deve efetuar mesmo que não lhe traga qualquer vantagem; outro é o de evitar que a actividade administrativa se traduza na criação de uma situação de injustiça. Entre esses dois valores, designadamente nos casos em que a administração fiscal não teve qualquer prejuízo com o erro praticado pelo contribuinte, deve optar-se por não efetuar a correção, limitando aquele dever de correção por força do princípio da justiça. Por outro lado, é de notar que numa situação deste tipo não se verifica sequer qualquer interesse público na atuação da administração fiscal, pois não está em causa a obtenção de um imposto devido, pelo que, devendo toda a actividade administrativa ser norteada pela prossecução deste interesse, a administração deveria abster-se de atuar. Consequentemente, serão de considerar anuláveis, por vício de violação de lei, atos de correção da matéria tributável que conduzam a situações injustas deste tipo’.”

Mas tal interpretação é peculiar, porque não se descortina que de tal norma decorra, seja que o julgador pode, em homenagem à “justiça do caso”, enveredar resolutamente pela abrogação interpretativa de normas tributárias (ou outras), seja que a AT pode desviar-se da legalidade fiscal, consagrada no art. 103.º da mesma CRP, para decidir “criativamente” à margem, ou contra, o disposto em normas de direito positivo.

No caso presente, a questão esbarra, contudo, com a proibição decorrente do art. 2.º, 2 do RJAT, que veda aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD o recurso à equidade: “Os tribunais arbitrais decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade”. Para dissipar quaisquer dúvidas que pudessem subsistir, esclareceu o Tribunal Central Administrativo Sul: “O julgamento segundo critérios de equidade é aquele que confere ao tribunal a possibilidade de dar uma resolução ao litígio fundada em critérios de justiça, ao invés de recorrer às normas legais aplicáveis. É expressamente proibida pelo RJAT.” (TCAS, Acórdão de 25-02-2021, Proc. n.º 49/17.4BCLSB).

Poderiam colocar-se algumas questões de articulação entre a alegada permissão do art. 266.º, 1 da CRP e a proibição do art. 2.º, 2 do RJAT. Todavia, não encontramos no art. 266.º, 1 da CRP, como já referido, qualquer consagração do princípio da equidade no Direito Público, enquanto que, em contrapartida, a proibição contida no art. 2.º, 2 do RJAT não podia ser mais clara.

Logo, quando à luz do direito constituído uma dedução ao lucro tributável deveria ter ocorrido num determinado período de tributação, e não num período de tributação posterior, não ocorrendo desconhecimentos ou imprevisibilidades ditados por situações externas incontroláveis, é essa a solução que deve ser adoptada por um tribunal arbitral que esteja sujeito ao RJAT – sem mais.

Está vedado a este Tribunal enveredar por considerações que visem afastar normas legais para atingir um resultado fáctico que o tribunal entenda ser mais justo no caso concreto – pois é disso que se trata, e isso é, pura e simplesmente, o recurso à “justiça do caso”, à equidade, com todo o respeito de todas as interpretações que têm tentado superar essa limitação, nomeadamente invocando uma “interpretação conforme” ao art. 209.º, 2 da CRP, a norma constitucional que consagra a existência de tribunais arbitrais.

Além disso, e em concreto, não se vislumbra nos autos qualquer injustiça manifesta, notória, ou grave, que possa resultar da não-derrogação – que sempre seria excepcional, por força do disposto no art. 18.º, 2 do CIRC – da regra de especialização dos exercícios.

 

G)      A injustiça que constituiria a derrogação do princípio da especialização dos exercícios

 

Pelo contrário, parece ilustrado, no caso, o perigo de afastamento da regra da especialização dos exercícios, pois tal afastamento dificultaria, ou até impossibilitaria, o controlo da expressão do lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC, tornando-o demasiado oneroso e até incerto, o que, além de ferir o interesse público da prevenção e combate da evasão fiscal, resulta injusto para os contribuintes que cumpram e respeitem o princípio da anualidade; ou que, verificando o seu incumprimento, recorram aos meios legalmente previstos para reparação dos seus erros ou omissões – o que pode redundar numa violação do princípio da igualdade e da justiça em sentido diametralmente oposto àquele que se pretendia sustentar com a invocação do princípio da justiça.

Por outro lado, recordemos que, como bem enfatiza Jónatas Machado na decisão do Proc. n.º 196/2024-T, a qualificação dos créditos como sendo de cobrança duvidosa não está na livre disponibilidade dos sujeitos passivos, porquanto é o próprio legislador que, nos arts. 28.º-A e 28.º-B do CIRC, estabiliza as situações passíveis de se considerarem integrantes naquele conceito, densificado nos termos da NCRF 27.

Embora o conceito de créditos de cobrança duvidosa tenha um sentido mais restrito em sede jurídico-fiscal, é, pois, evidente que a qualificação do risco de incobrabilidade não é arbitrariamente e indiscriminadamente fixada pelos sujeitos passivos, antes obedece a princípios legais e contabilísticos que visam estruturar e clarificar, de forma precisa e inteligível, o funcionamento de toda a atividade económica.

Do art. 18.º, 1 do CIRC decorre que as demonstrações financeiras devem ser elaboradas com base no regime do acréscimo, ou periodização económica, que determina que os efeitos das transações, e de outros acontecimentos, são reconhecidos no momento em que ocorrem, de imediato, e não quando caixa, ou equivalentes de caixa, sejam recebidos ou pagos – sendo que é assim que deve ser organizada a contabilidade, e assim que deve proceder quem tem contabilidade organizada, como resulta do art. 123.º, 1 do CIRC.

E do n.º 2 do art. 18.º do CIRC, quando restringe a imputação a um dado período de tributação de componentes positivas ou negativas respeitantes a períodos anteriores aos casos em que as mesmas eram imprevisíveis, ou manifestamente desconhecidas, na data do encerramento das contas do período em que deviam ter sido imputadas, decorre que não podem ser constituídas imparidades num período de tributação relativamente a créditos cujo risco de incobrabilidade já existia e era conhecido, ou podia sê-lo (por ser previsível) em períodos anteriores.

Quando haja, nos exercícios anteriores, indicadores objetivos claros do risco de incobrabilidade dos créditos, não se aceitará a localização temporal, em exercício posterior, do juízo de risco de incobrabilidade subjacente ao reconhecimento da correspondente perda, e a consequente perda por imparidade do lucro tributável, considerada com referência a esse exercício posterior.

Do art. 18.º do CIRC, recapitulemos, decorre que o reconhecimento das perdas por imparidade das dívidas a receber de clientes deve ser avaliada em cada data de relato, ou seja, no final do período contabilístico; no entanto, este reconhecimento de perdas por imparidade apenas deve ser efetuado se existir uma “evidência objetiva” de um evento de perda, conforme referido no elenco de dados observáveis constante do § 24 da NCRF 27.

Ou seja, quando existam dúvidas sobre a cobrabilidade de uma dívida a receber de clientes, deve ser reconhecida uma perda por imparidade – logo no próprio exercício, sob pena de perdas por imparidade constituídas em violação do regime do acréscimo, e do inerente princípio da especialização de exercícios, não poderem ser aceites fiscalmente, à luz do disposto no n.º 1 do art. 28.º-B do CIRC, conjugado com o n.º 2 do art. 18.º do mesmo Código, devendo, ao invés, acrescer ao lucro tributável declarado pelo sujeito passivo.

Isto porque, interpretando o artigo 18.º, 1 do CIRC em conjugação com artigo 23.º, 1 do mesmo Código, conclui-se que as perdas por imparidade se consideram componente negativa do lucro tributável do exercício em que devem ser reconhecidas, sendo, em princípio, apenas nesse exercício que lhe pode ser atribuída relevância fiscal.

Conclui Jónatas Machado:

“A mencionada indisponibilidade do conceito de créditos de cobrança duvidosa associada às exigências formais de organização contabilística, fazem impender sobre os sujeitos passivos o dever de procederem ao registo contabilístico e fiscal dos créditos de cobrança duvidosa, mediante a prévia aferição da existência objetiva do risco de incobrabilidade daqueles créditos em determinado período, tomando em consideração os critérios normativos avançados pelo legislador, o que não significa que o juízo subjacente à avaliação do risco de incobrabilidade seja definitivo e impeditivo de um escrutínio a posteriori, mormente, pela AT em sede inspetiva” (Proc. n.º 196/2024-T).

O que não é razoável supor é que tenha sido querido pelo legislador conceder aos contribuintes a opção arbitrária entre aplicar ou não aplicar normativos a que estão obrigados em matéria contabilística e fiscal, jogando na probabilidade de não ocorrerem inspecções tributárias a tempo de “correções simétricas”, para dessa circunstância poderem tirar benefícios de um ostensivo incumprimento das normas legais – em claro detrimento e discriminação dos demais contribuintes que se cingissem ao acatamento rigoroso das normas legais.

Em suma, os gastos assinalados em 2020 estavam longe de ser imprevisíveis ou desconhecidos antes do final dos exercícios antecedentes, como resulta claro das diligências empreendidas em anos anteriores – pelo que o risco objetivo de incobrabilidade já estava consolidado antes de 2020, daí decorrendo uma clara violação do princípio contabilístico da especialização dos exercícios, e até do normativo constante do art.º 18º do CIRC, que o princípio da justiça não oblitera – pelo que as correções resultantes da Inspecção tributária, e a correspondente liquidação adicional, não estão feridos de qualquer ilegalidade.

 

   V.         DECISÃO

 

Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:

a)    Declarar a inutilidade parcial superveniente da lide e, em consequência, absolver a Requerida da instância no que diz respeito ao pedido de anulação dos atos tributários identificados com as diferenças cambiais desfavoráveis, no valor de € 888.903,84;

b)    Julgar improcedente o pedido da Requerente, mantendo na ordem jurídica os atos tributários impugnados no que concerne ao não reconhecimento das perdas por imparidade em créditos no valor de € 107.448,00;

c)    Absolver a Requerida de todos os pedidos;

d)    Condenar a Requerente e a Requerida no pagamento das custas do processo, na proporção do seu decaimento.

 

 VI.         VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 68.666,76, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

VII.         CUSTAS

 

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 2.448,00 a pagar pela Requerida no valor de € 2.184,00 e pela Requerente no valor de € 264,00, na proporção do decaimento, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 21 de novembro de 2025

 

 

Os Árbitros,

 

 

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 

 


(Ana Pinto Moraes)

 

 


(Gaspar Vieira de Castro)
 

 

 

 

 

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.

[2] E seguindo de perto a decisão proferida por este Centro no âmbito do Processo n.º 388/2024-T, disponível em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?u=1&id=9013.