Sumário Tributária
I. A totalidade do lucro tributável é, para efeito de derrama municipal, imputável ao município onde se situa a sua sede ou direção efetiva do sujeito passivo – salvo regra especial para a repartição da derrama municipal por diversos municípios – sem distinção em função do local onde os rendimentos são pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo.
II. Na determinação do lucro tributável, dos rendimentos de fonte estrangeira e, inexistindo norma legal que afaste tal situação no domínio apontado, ou seja, para efeito de derrama municipal, inexiste fundamento para os excluir, sendo que o artigo 18º nº 13 da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro é claro ao determinar que "[n]os casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo".
III. Não apontando a lei qualquer elemento no sentido de se poder afirmar que o rendimento se considera gerado no local da sede ou direção efetiva da entidade que paga ou coloca à disposição os rendimentos, a alusão a rendimentos obtidos no estrangeiro preenche apenas um conceito material e não o conceito contemplado na lei com referência ao rendimento gerado na sua área geográfica.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Prof. Doutor Fernando Araújo (árbitro-presidente), Dr. Manuel Lopes da Silva Faustino, que também usa Dr. Manuel Faustino, Machado e Dra. Ana Pinto Moraes (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 18-06-2025, acordam no seguinte:
1. Relatório
A...– SGPS, S.A., doravante abreviadamente designada por “A...SGPS” ou “REQUERENTE”, com o número único de identificação de pessoa coletiva ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa, sociedade dominante do grupo de sociedades sujeito ao Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”) em que se encontra incluída a entidade B..., S.A. (“B...”), com o número único de matrícula e identificação fiscal..., vem, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária” ou “RJAT”) e, bem assim, dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de tribunal arbitral com vista a anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º ...2024..., bem como a anulação parcial das autoliquidações de IRC referentes aos períodos de 2019 e 2020, nas partes relativas à derrama municipal que a Requerente considera indevidamente liquidada.
A Requerente pede reembolso da quantia de € 563.900,59, acrescida de juros indemnizatórios.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 07-04-2025
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 029-05-2025, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 18-06-2025.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou o processo administrativo (PA) e a resposta em 31-07-2025, em que suscitou as exceções de incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria («Revisão Oficiosa tout court»), e defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Em 01-08-2025, foi proferido despacho arbitral concedendo à Requerente a possibilidade de responder às exceções.
A Requerente pronunciou-se sobre a exceções em 14-08-2025.
Em 16-09-2025 foi proferido despacho a conceder prazo à Partes para querendo, apresentarem alegações escritas.
A Requerente apresentou as alegações em 29-09-2025 e a Requerida em 08-10-2025.
Na sequência da posterior apresentação de requerimento pela Requerente, o Tribunal proferiu, em 03-11-2025, o seguinte despacho:
O Requerimento apresentado pela Requerente em 23 de Outubro de 2023 não só extravasa daquilo que foi determinado no Despacho de 16 de Setembro de 2025 por este tribunal, como se funda no argumento de que as alegações da Requerida acrescentam matérias novas em relação ao que se continha na Resposta de 31 de Julho de 2025 – o que não é exacto, na medida em que os arts. 155 e seguintes das referidas alegações reproduzem o que já se continha nos arts. 157 e seguintes da referida Resposta.
Para não ferir a igualdade de armas e o princípio do contraditório, nos termos do art. 16.º, a), b) e c) do RJAT, concede-se à Requerida o prazo de 10 dias para, querendo, pronunciar-se sobre o Requerimento de 23 de Outubro de 2023 apresentado pela Requerente.
A requerida, até esta data, nada disse.
2. Saneamento
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
As exceções invocadas serão adiante apreciadas, em matéria de direito e antes do conhecimento de mérito, se for o caso.
3. Matéria de facto
3.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
A) A REQUERENTE é a sociedade dominante de um grupo de sociedades sujeito ao RETGS, do qual a B... faz parte (facto consensual - cf. artigo 5.º, segundo § da Resposta).
B) A B... é um sujeito passivo de IRC que tem como objeto social o exercício de atividades de disponibilização de serviços financeiros na área dos pagamentos (facto consensual - cf. artigo 5.º, terceiro § da Resposta).
C) No cumprimento das suas obrigações declarativas, a 29 de julho de 2020, a REQUERENTE procedeu à entrega da sua Declaração de Rendimentos Modelo 22 do IRC (“Declaração Modelo 22”) do Grupo sujeito ao RETGS com o número de identificação ..., referente ao período de tributação de 2019 (Cf. Doc. 1).
D) Com base nos montantes vertidos naquela declaração, a REQUERENTE apurou um resultado fiscal positivo no montante de € 39.294.145,45 e, para o que aqui releva, uma derrama municipal no montante de € 636.388,17, conforme se verifica na demonstração de liquidação de IRC com n.º 2020... (Cf. Doc. 2).
E) A título individual, a B... apresentou Declaração Modelo 22, com referência ao período de tributação de 2019, no dia 28 de julho de 2020, com o número de identificação ..., cujo comprovativo de entrega eletrónica, tendo apurado um montante de derrama municipal de € 341.459,40 (Cf. Doc. 3).
F) No que respeita ao período de tributação de 2020, a REQUERENTE apresentou, no dia 19 de julho de 2021, a respetiva Declaração Modelo 22 do Grupo sujeito ao RETGS, com o número de identificação ..., (Cf. Doc. 4).
G) Conforme resulta daquela declaração, a REQUERENTE apurou um resultado fiscal do Grupo positivo no montante de € 32.158.426,16 e, para o que aqui releva, uma derrama municipal no montante de € 506.410,78.
H) Posteriormente, a REQUERENTE procedeu à substituição da Declaração Modelo 22 do Grupo referente ao período de tributação de 2020, a 21 de junho de 2022, com número de identificação ... (Cf. Doc. 6),
I) Nela tendo apurado um resultado fiscal do Grupo positivo no montante total de € 31.553.878,90 e uma derrama municipal no montante total de € 504.452,08, conforme se verifica na demonstração de liquidação de IRC com n.º 2023 ... (Cf. Doc. 7).
J) Por sua vez, a título individual, a B... apurou um montante de derrama municipal de € 222.441,19, conforme resulta da Declaração Modelo 22 por si apresentada no dia 15 de julho de 2021, com o número de identificação ... (Cf. Doc. 8).
K) A nota de liquidação referente à primeira Declaração Modelo 22 do Grupo sujeito ao RETGS, relativa ao período de 2019, com o número de liquidação 2021..., é datada de 13 de agosto de 2021 (Cf. Doc. 5).
L) A nota de liquidação em apreço corresponde à execução de uma decisão proferida no processo de Reclamação Graciosa com o n.º ...2023..., a qual se traduziu no apuramento de uma derrama municipal corrigida de € 463.313,64 na esfera do Grupo Fiscal (facto consensual - ver ponto vi. do n.º II da Resposta)
M) São relevantes os seguintes montantes apurados a título de derrama municipal pela B...:

N) A B... liquidou derrama municipal sobre a totalidade do respetivo lucro tributável apurado com referência aos períodos de tributação de 2019 e 2020, não podendo apurar este tributo de forma distinta, atentas as limitações inerentes ao sistema informático da Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”).
O) Com efeito, o próprio modelo oficial da Declaração Modelo 22, constante do site da AT, para efeitos de apuramento da derrama municipal nos termos do Anexo A, impõe a consideração do lucro tributável total apresentado no Campo 302 do Quadro 09.
P) Em 27 de maio de 2024, a REQUERENTE apresentou pedido de revisão oficiosa contra as autoliquidações de IRC referentes aos períodos de tributação de 2019 e 2020, tendo em vista o ressarcimento do montante de derrama municipal por si suportada naqueles exercícios, na parte em que resultou da não desconsideração dos rendimentos obtidos no estrangeiro na determinação dos respetivos lucros tributáveis (cf. Doc. 9, que se dá como reproduzido e PA)
Q) O pedido de revisão oficiosa, a que foi atribuído o n.º ...2024... foi indeferido por despacho de 06-12-2024, proferido pelo Chefe de Divisão de Serviço Central da Unidade dos Grandes Contribuintes, que invoca delegação e subdelegação de poderes, que consta do documento n.º 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:
V. ANÁLISE DO PEDIDO DE REVISÃO
§ V.I. Da admissibilidade do pedido de revisão oficiosa
12. Atenta a factualidade e os fundamentos de direito que subjazem ao pedido em apreço, constata-se, desde logo, que o mesmo se afigura intempestivo, por extemporaneidade, uma vez que não se encontram preenchidos os pressupostos previstos na 2.ª parte do n.º 1 do art.º 78.º da LGT para, no prazo de 4 anos após a liquidação, se proceder à revisão oficiosa dos atos tributários acima identificados.
13. Com vista a fundamentar essa conclusão, importa trazer à colação a norma do n.º 1 do art.º 78.º da LGT, a qual dispõe o seguinte:
«A revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.».
14. Por se tratar tanto de uma garantia procedimental do contribuinte como de um poder-dever da administração tributária, a iniciativa da revisão dos atos tributários encontra-se repartida entre ambos, embora com prazos e fundamentos não totalmente coincidentes.
15. Por um lado, a 1.ª parte da disposição supratranscrita confere ao sujeito passivo o poder de, por sua iniciativa, requerer a revisão do ato tributário, com fundamento em qualquer ilegalidade, o que deve ser feito no prazo da reclamação graciosa – in casu, estando em causa atos tributários de autoliquidação de IRC, o prazo para reclamar graciosamente é de 2 anos após a apresentação da declaração, conforme previsto no n.º 1 do art.º 131.º do CPPT4.
16. Por outro lado, e em conformidade com a jurisprudência consolidada e pacífica nesta matéria, a parte final da referida norma consagra a possibilidade de a revisão ser efetuada por iniciativa da administração tributária, ainda que por impulso do contribuinte, num prazo mais alargado – 4 anos após a liquidação ou a todo o tempo, consoante o tributo tenha ou não tenha sido pago –, embora com fundamento exclusivo em erro imputável aos serviços, o qual compreende não apenas o lapso, erro material ou erro de facto, mas também o erro de direito.
17. Sendo ainda de mencionar que, nos termos do n.º 7 do art.º 78.º da LGT, o pedido do contribuinte dirigido ao órgão competente da administração tributária para realização da revisão oficiosa dos atos tributários tem efeito interruptivo do prazo de 4 anos previsto para o efeito.
18. É, portanto, com base na última previsão normativa do n.º 1 do art.º 78.º da LGT que a Requerente solicita, em 27/05/2024, a revisão oficiosa dos atos tributários de autoliquidação de IRC referentes aos períodos de tributação de 2019 e 2020, nos termos acima descritos.
19. Contudo, contrariamente ao exposto pela Requerente (e tal como a seguir se demonstrará), no caso concreto não se verifica a existência de qualquer erro que possa ser imputável à administração tributária, razão pela qual não se encontram preenchidos os pressupostos previstos na parte final do n.º 1 do art.º 78.º da LGT para, no prazo de 4 anos (por se tratar de tributo já pago), se proceder à revisão oficiosa dos atos tributários de autoliquidação de IRC em causa.
Dito isso,
§ V.II. Derrama municipal – base tributável – rendimentos obtidos no estrangeiro
20. A derrama municipal tem o seu fundamento legal no regime financeiro das autarquias locais e das entidades intermunicipais conforme estabelecidos pela Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, a usualmente designada de “Lei das Finanças Locais”, assumindo-se como um de vários instrumentos de financiamento dos municípios.
21. Traduz-se num imposto sobre o lucro das empresas com atividade económica na circunscrição municipal, partilhando a sua disciplina com o IRC, para o qual remete expressamente, assumindo-se fundamentalmente como uma taxa adicional e marginal a este imposto.
22. Prevista no art.º 18.º da Lei das Finanças Locais, a derrama municipal resulta da aplicação de uma taxa que não pode exceder 1,5% ao «lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.».
23. No apuramento da derrama municipal, a AT aplica assim a taxa marginal comunicada previamente pelo município ao lucro tributável apurada pelo sujeito passivo, conforme resulta do campo 778 do quadro 07 da declaração modelo 22 (declaração periódica de rendimentos).
24. A Requerente, porém, entende que ao lucro tributável deveriam ser expurgados os rendimentos obtidos no estrangeiro, antes de ser aplicada a taxa de derrama municipal, porque os mesmos não correspondem a rendimentos obtidos na circunscrição municipal.
25. Sustenta a sua posição com vasta jurisprudência arbitral emitida pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), que no fundo segue a doutrina sufragada no Acórdão do STA, proferido no âmbito do recurso n.º 0924/17, com decisão de 13 de janeiro de 2021.
26. Sobre este aresto, das suas conclusões e considerações, faremos a nossa análise e, em último, a refutação à tese proposta, pois no nosso entender a interpretação aí promovida resulta de uma convicção do julgador e não da letra da lei e da sua conjugação com as demais normas tributárias relevantes.
i) Do enquadramento jurídico promovido pelo Acórdão do STA, proferido no âmbito do recurso n.º 0924/17 (processo 03652/15.3BESNT) e o adotado pela AT em cumprimento da legalidade tributária
27. Dito isto, transcrevemos as conclusões do Acórdão:
«I - O reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar que o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.
II - As derramas municipais têm, para legitimação, de se ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo…
III - Em situações de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo.
IV - O lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do território nacional (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela).».
28. Cumpre esclarecer que apesar de esta decisão versar sobre o período de tributação/ano de 2010, sendo-lhe por isso aplicável a redação da derrama municipal prevista no art.º 14.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, a questão jurídica de fundo permanece.
29. Da leitura imediata das suas conclusões e nas suas palavras resulta que a derrama municipal incidirá
sobre o lucro tributável na parte dos rendimentos gerados na área geográfica do município apenas quando seja possível discriminar os rendimentos obtidos fora do território nacional.
30. No entendimento do tribunal, existe uma intenção legislativa sobre a derrama (municipal), a sua mens legis, de tributar apenas “o rendimento que é gerado no município”, leitura que extrai das normas contidas nos n.ºs 1 e 2 do regime da derrama previsto no art.º 14.º, ora no art.º 18.º da Lei das Finanças Locais, disposições que transcrevemos na sua redação atual.
«1 - Os municípios podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5 /prct., sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.
2 - Para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a (euro) 50 000 o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.».
31. Da letra da lei resulta que a base tributável da derrama municipal é o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município.
32. Havendo mais do que um estabelecimento e esse ou esses encontrarem-se na circunscrição de outro ou outros municípios e a matéria coletável for superior a € 50.000, deverá a imputação do lucro tributável efetuar-se em função dos encargos suportados com salários por cada estabelecimento face ao total suportado pelo sujeito passivo.
33. Nestas normas de incidência tributária e de desenvolvimento de incidência tributária, apenas um conceito é determinado: o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, que nos remete implicitamente para o art.º 17.º do CIRC.
34. A proporção do rendimento gerado na área geográfica do município sobre o qual deverá recair a derrama municipal, por sua vez, não é um conceito determinado e remete-nos para um grau de ambiguidade prática e casuística que permite um leque considerável de interpretações como a proposta nesta decisão do STA.
35. Já a segunda disposição legal cria uma ficção jurídica, através da qual imputa o rendimento gerado na área geográfica do município aos gastos com a massa salarial da entidade que, embora vise a hipótese da multiplicação de estabelecimentos através dos quais a atividade económica é exercida, não deixa de revelar uma desconsideração, numa análise casuística, à situação patrimonial do contribuinte, tendo em vista a discriminação ou isolamento dos rendimentos obtidos na área geográfica do município.
36. Ou seja, para efeitos da aplicação do referido n.º 2 do regime da derrama municipal, o legislador determinou que a imputação do lucro tributável sujeito e não isento de IRC do contribuinte a cada município onde possua estabelecimentos será repartido, não em função dos rendimentos obtidos na área do município, mas sim dos encargos salariais com os trabalhadores. Uma ficção legal.
37. Esta solução legislativa, que parece resultar de um compromisso intermunicipal tendo subjacente princípios de perequação financeira e de justa repartição dos recursos públicos entre o Estado e os municípios bem como pelos municípios entre si, resulta também na necessidade de um controlo eficaz e racional sobre esta receita tributária quer por parte da administração tributária como dos municípios.
38. Não se pode exigir que uma administração tributária com recursos limitados possa eficazmente controlar a imputação de rendimentos efetuada pelos contribuintes sujeitos à derrama municipal, consoante, no seu próprio entendimento, sejam obtidos num determinado município ou outro.
39. Regressando ao disposto no n.º 1 do regime da derrama municipal, onde se atende que a sua base tributável é “o lucro tributável sujeito e não isento de IRC que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica”, deve ser tomado como inexistindo mais do que um estabelecimento ou encontrando-se todos os estabelecimentos do sujeito passivo na circunscrição de um só município, a derrama municipal recairá sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC do contribuinte. determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.».
40. A leitura que neste aresto do STA faz é, porém, distinta, abrindo a porta, diga-se, a uma análise casuística à situação patrimonial, contabilística e fiscal do contribuinte, que permita, excecionalmente “[e]m situações de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro”, fazer a sua destrinça e sujeitar à derrama municipal apenas os rendimentos gerados na área do município, tratamento dado à situação concreta.
41. Reitera-se que este entendimento não é sufragado e adotado pela AT.
42. Isto porque, julgamos, este entendimento colide com outras disposições legais bem como certos considerandos doutrinais plasmados em jurisprudência do Tribunal Constitucional para além de impor outras operações para dar cumprimento aquele entendimento.
43. Desde já, porque os rendimentos obtidos no estrangeiro são sujeitos à derrama municipal, sendo ainda possível a dedução à sua receita do imposto suportado no estrangeiro, como resulta de forma evidente do campo 379 do quadro 10 da declaração modelo 22.
44. Transcrito das instruções de preenchimento da declaração modelo 22, dadas pelo Despacho n.º 314/2021, de 11 de janeiro, página 91:
«Campo 379 – Dupla tributação jurídica internacional – Países com CDT
• Quando o sujeito passivo tenha obtido rendimentos em país com o qual tenha sido celebrada Convenção para evitar a dupla tributação (CDT) e que sejam tributados nos dois Estados, a dedução do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional pode ser efetuada até à concorrência do somatório da coleta total (campo 378) e da derrama municipal (campo 364).
• Este campo só deve ser preenchido quando o crédito de imposto relativo à dupla tributação jurídica internacional não pôde ser integralmente deduzido no campo 353, por ser superior à coleta total (campo 378).
• O valor excedente, se respeitar a países com CDT, pode ser deduzido neste campo até à concorrência do valor da derrama municipal inscrito no campo 364.».
45. O fundamento jurídico reside aqui nos instrumentos de evitação de dupla tributação internacional, leia-se, as várias convenções para eliminar a dupla tributação em matéria de impostos sobre o rendimento (CDT) celebradas entre o Estado Português e outros Estados.
46. No art.º 2.º desses acordos, sob a epígrafe “Impostos visados”, encontra-se contemplada a espécie tributária da derrama municipal de uma forma ou outra, seja como “derrama”, “derrama municipal”, “derramas”, “impostos locais sobre o rendimento”, etc..
47. Ora, encontrando-se prevista e abrangida nestas convenções a figura da derrama municipal, resulta de forma evidente que a derrama municipal pode sim recair sobre rendimentos obtidos em território nacional de pessoas (coletivas) residentes noutro Estado como sobre residentes em Portugal, podendo ser deduzido o imposto suportado no estrangeiro ao imposto suportado em Portugal à receita da derrama municipal.
48. E cumprindo com a regra estabelecida pelo art.º 68.º do CIRC, a qual é aplicável também no método de eliminação da dupla tributação estabelecido pelos acordos, para haver lugar a dedução do imposto suportado no estrangeiro, devem os rendimentos a que no estrageiro foram sujeitos a imposto encontrar-se refletidos no lucro tributável sujeito a IRC.
49. Ou seja, o legislador não só admite como prevê nas CDT a incidência de derrama municipal sobre rendimentos obtidos em Portugal por não residentes como a dedução à derrama municipal do imposto suportado no estrangeiro sobre rendimentos aí obtidos que, para se reconhecer, deverão encontrar-se refletidos no lucro tributável.
50. Por outro lado, temos ainda as considerações jurisprudenciais, em particular do Tribunal Constitucional e do STA, que em momento algum dissociam a base tributável da derrama municipal daquela do IRC.
51. A começar pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 603/2020, de 11 de novembro, proferido no âmbito do processo n.º 172/20, onde a conformidade constitucional da norma contida na alínea b) do n. º 1 do art.º 91.º do CIRC, na redação dada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, interpretada no sentido segundo a qual a derrama municipal, à semelhança da derrama estadual, integra o cálculo da “fração do IRC”, aí prevista, para efeitos de eliminação da dupla tributação internacional, independentemente de os rendimentos serem obtidos em países com os quais Portugal tenha celebrado uma convenção para eliminar a dupla tributação.
«4. Atentos os poderes de cognição deste Tribunal, está em causa apenas cotejar a norma aplicada pela decisão recorrida com a Constituição (cfr. o artigo 79.º-C da LTC). O maior ou menor acerto do entendimento do direito infraconstitucional perfilhado pelo tribunal a quo não tem aqui de (voltar a) ser analisado, nomeadamente no que se refere à natureza jurídica da derrama municipal como adicionamento e à sua comparação com a derrama estadual (cfr., em especial, as conclusões C) a F) das alegações da recorrente). Com efeito, a decisão ora recorrida manteve, quanto a este particular – isto é: quanto ao sentido a imputar aos dados normativos infraconstitucionais –, o entendimento já sufragado no acórdão arbitral proferido autos em2 de novembro de 2018 relativamente ao objeto material do presente recurso. Neste aresto pode ler-se: “[A] derrama [municipal] continua a caracterizar-se como um imposto acessório, na medida em que apenas é devida quando seja exigível, em concreto, a prestação tributária principal, subsistindo nessa mesma medida uma relação de dependência entre o imposto municipal e oimposto estadual.
Daí [– ou seja, da diferença significativa resultante das mais recentes leis de finanças locais consistente em a derrama ter passado a incidir não sobre a coleta (isto é, sobre o imposto de IRC já liquidado), mas sobre o lucro tributável (isto é, sobre o rendimento que constitui a base do imposto), passando, desse modo, a dever entender-se, do ponto de vista jurídico-financeiro, como um adicionamento ao IRC em vez de um adicional –] não pode concluir-se – contrariamente ao que é afirmado pela Administração Tributária – que as deduções ao montante apurado de IRC, nos termos do disposto no artigo 90.º, n.º 2, do Código de IRC, em que se inclui o crédito por dupla tributação internacional, deva ser reportado à coleta de IRC com exclusão do adicionamento que deriva da derrama municipal. Uma tal interpretação não pode fundar-se, como vimos, na suposta autonomia da derrama municipal, visto que esta se reporta a alguns elementos estruturantes do imposto, mas não o descaracteriza como um imposto acessório, que continua a reger-se pelas regras próprias do IRC no que se refere à base de incidência subjetiva e objetiva, à determinação da matéria coletável e à liquidação. E não há sequer que distinguir, nesse ponto, entre a derrama municipal e a derrama estadual, visto que ambas participam da característica comum de tributos que acrescem ao imposto principal, não podendo estabelecer-se um critério distintivo quanto ao âmbito aplicativo do artigo 91.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC apenas com base na titularidade da receita tributária.» (cfr. o respetivo n.º 7; sobre a evolução em causa e a sua relação com a reforma fiscal de 1988, v., por exemplo, o n.º 5 do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 275/98).”». (sublinhado nosso).
52. Continuando no parágrafo 6.
«(…) o ponto decisivo é o de que, para efeitos da norma sindicada [al. b) do n.º 1 do art.º 91.º do CIRC], a derrama municipal, quando lançada pelo município (cfr. o artigo 18.º do regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro), é entendida como um adicionamento ao IRC, razão por que a sua coleta, tal como a da derrama estadual prevista no artigo 87.º-A do Código do IRC, se soma necessariamente à coleta daquele imposto. Consequentemente, em termos de capacidade contributiva e de tributação em sede de IRC, a situação dos sujeitos passivos deste imposto é, à partida, constante, independentemente do local de origem do respetivo lucro tributável.» (sublinhado nosso).
53. E conclui, no parágrafo 9. no seguinte:
«Com efeito, nos termos dos artigos 14, alínea c), e 18.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais, o produto da cobrança das derramas municipais que o Estado deve entregar aos municípios, a título de receita municipal, é, desde logo, pré-determinado pelo montante de imposto legalmente devido ao Estado pelos sujeitos passivos de IRC, o qual resulta não apenas da aplicação da taxa pertinente ao lucro tributável (incluindo a taxa concreta fixada por cada município), mas também das deduções legalmente devidas (cfr. o artigo 90.º do Código do IRC). Esta é uma condição necessária, pois só assim se garante que, nos termos da presente configuração legal da derrama municipal, todo o lucro tributável a ela sujeito se encontre também sujeito ao IRC, de modo a que a coleta da primeira corresponda, na proporção fixada por cada município nos limites da lei, à coleta do segundo.» (sublinhado e negrito nosso).
54. Tomamos a oportunidade de trazer ainda à colação os considerandos doutrinais contidos no Acórdão do STA de 10/11/2021, proferido no âmbito do processo n.º 0255/17.1BESNT, sobre a mesma temática:
«Acresce a este um outro argumento, que respeita à natureza autónoma da derrama e distinta do IRC e que conduz, não raramente, ao apuramento de coletas distintas num e noutro imposto. Com efeito, a derrama possui, de há vários anos, uma natureza indiscutivelmente independente da do IRC, com ele apenas partilhando (e, ainda assim, apenas parcialmente) a base de incidência, traduzida no lucro tributável e não na matéria colectável (como se prevê no IRC). Assim, como explica Saldanha Sanches, “a sua relação com o IRC cinge-se, portanto, para efeitos do seu cálculo e por razões de simplicidade, a uma base tributável comum, que não prejudica nem obsta à existência de relações jurídico-tributárias autónomas entre os dois impostos” – do autor, cfr. “A derrama, os recursos naturais e o problema da distribuição de receita entre os municípios”, Fiscalidade, n.º 38, 2009, p. 137.» [sic] (sublinhado nosso).
55. Ora, a nossa conclusão é idêntica às considerações tomadas nesta jurisprudência, isto é, a base de incidência da derrama municipal é a mesma que aquela do IRC, o lucro tributável, todo e apenas.
56. No que respeita à componente da “proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português” da norma de incidência tributária, deverá a mesma ser conciliada com a repartição do lucro tributável do sujeito passivo que detenha mais do que um estabelecimento através do qual exerce a sua atividade económica e esses encontrarem-se dispersos por mais do que um município.
57. Deste modo se expressa que a posição da AT é a materializada na liquidação de imposto de que se recorre, leia-se, a de sujeitar à derrama municipal o lucro tributável do sujeito passivo, sem qualquer discriminação do lugar da obtenção dos rendimentos, sejam esses domésticos ou obtidos no estrangeiro, cumprindo apenas a regra de imputação prevista no n.º 2 do regime da derrama municipal já transcrita.
58. No entanto, um olhar mais aprofundado às conclusões do Acórdão do STA proferido no âmbito do processo n.º 0924/17, às suas considerações e à factualidade subjacente revela-nos que este tribunal não afasta o entendimento defendido pela AT, mas antes admite uma exceção da situação concreta porque a destrinça dos rendimentos obtidos no estrangeiro é possível.
ii) Do (real) sentido e alcance do Acórdão do STA, proferido no âmbito do recurso n.º 0924/17
59. Julgamos oportuno primeiro referir que o Acórdão do STA proferido no âmbito do recurso n.º 0924/17 poderia ter sido mais claro na sua tomada de posição, pois o entendimento assumido em torno desta questão encontra-se aqui a ser distorcido e ostensivamente promovido através da mais variada jurisprudência arbitral que o invoca para, de facto, eliminar a tributação de derrama municipal pelo seu todo de qualquer entidade que possua rendimentos obtidos no estrangeiro, parcos que sejam.
60. Isto porque da jurisprudência arbitral invocada pela Requerente, apenas as decisões proferidas nos processos n.ºs 720/2021-T e 234/2022-T têm paralelo com o suprarreferido acórdão do STA, mas nenhuma tem qualquer paralelo com a situação aqui em apreço (rendimentos obtidos no estrangeiro resultantes de prestações de serviços), incluindo as demais decisões arbitrais invocadas associadas aos processos n.º 554/2021-T, 211/2023-T e 170/2023-T, que seguem, a nosso ver erroneamente, o entendimento apontado pelo STA.
61. Oportunamente, trazemos à colação o entendimento sufragado na decisão arbitral proferida em 22/05/2024, no âmbito do processo n.º 32/2024-T, em que, contrariamente à jurisprudência perfilhada pelas decisões anteriores, o tribunal arbitral entendeu que «a derrama municipal das sociedades residentes em território nacional incide sobre a totalidade do lucro tributável sujeito e não isento de IRC apurado, incluindo os rendimentos obtidos fora do território nacional.» (sublinhado nosso).
62. Para tanto, o tribunal arbitral considerou, em suma:
a) Que por a derrama municipal ter natureza de adicionamento ao IRC, as regras para a determinação do lucro tributável são as previstas no CIRC, não havendo normal legal que fundamente a exclusão dos rendimentos obtidos no estrangeiro da sua base de incidência, a qual não é delimitada pela norma do n.º 2 do art.º 18.º da Lei das finanças locais;
b) Que a exclusão daqueles rendimentos para efeitos de apuramento da derrama municipal equivaleria a tratar de modo injustificadamente diferente as entidades que desenvolvem a sua atividade exclusivamente no território nacional, em benefício daquelas que, ainda que parcialmente, exercem atividade no estrangeiro, em violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva; e,
c) Que a derrama municipal apenas pode estar abrangida por uma CDT e o crédito por dupla tributação internacional ser deduzido à fração de IRC que a inclua se na própria base de cálculo da derrama municipal estiverem também incluídos os rendimentos de fonte estrangeira.
63. Mas, conforme demonstraremos, as decisões arbitrais proferidas no processo n.ºs 554/2021-T, 211/2023-T e 170/2023-T subvertem o entendimento adotado no Acórdão do STA proferido no âmbito do recurso n.º 0924/17 quanto à base tributável da derrama municipal.
64. Reiterando as conclusões do referido Acórdão do STA, “[e]m situações de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo.”
65. Esta conclusão encontra-se descaracterizada do seu real sentido, pois é uma premissa truncada de um texto mais extenso daquele acórdão que ora transcrevemos:
«(…) em situações, como a que nos ocupa, de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas... Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (Nas primeiras, tenha-se em conta que, no estabelecimento da proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, se opera com a “massa salarial”, ou seja, com um fator ligado à relação de trabalho, estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem a sua atividade sob as suas ordens e direção, o que constitui mais um indício da vontade do legislador de ligar e condicionar o pagamento de derrama municipal à atuação concreta, efetiva, com utilização da força de trabalho, geradora de rendimentos, no território municipal respetivo.).» (sublinhado e negrito nosso).
66. No caso concreto apresentado ao STA encontrava-se a discussão da legalidade da inclusão no lucro tributável da impugnante de rendimentos obtidos no estrangeiro decorrentes da atividade de sucursais.
«A) O presente recurso vem interposto contra a Douta Sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que considerou improcedente o pedido de anulação da decisão de indeferimento de anulação de parte da Derrama Municipal apurada pelo GRUPO A…, no exercício de 2010, no âmbito do RETGS;
B) Do resultado do GRUPO A…, no valor total de € 65.181.876,87, resultou provado que € 52.079.027,80 resultam de rendimentos gerados exclusivamente pelas Sucursais e Estabelecimento Estável da Sociedade ora RECORRENTE (individualmente considerada), constituídos em Angola, Moçambique e Argélia.».
67. Designa-se por sucursal a estrutura montada por uma sociedade fora do território nacional através da qual exerce a sua atividade económica com caráter de permanência.
68. O conceito de sucursal não resulta da lei, tão-só admitindo-se a sua existência, nomeadamente pelos artigos 4.º e 13.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), cabendo essa tarefa para a academia e tribunais.
69. Trazemos assim à colação as considerações vertidas no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo n.º 487/08.3TBVFX.L1-1, que ilustram bem e de forma clara o conceito de sucursal:
«Por sucursal deve entender-se o estabelecimento comercial secundário, desprovido de personalidade jurídica, no qual se praticam actos comerciais do género daqueles que constituem a actividade principal da sociedade, sob a direcção do órgão de gestão da própria sociedade (cfr Abílio Neto, Código das Sociedades Comerciais, 4ª ed, pág. 116).
Já em anotação ao art.º 7.º do CPC de 1939 explicava Alberto dos Reis: «As sucursais, agências, filiais ou delegações são meros órgãos através dos quais se exerce a actividade da administração principal; são órgãos de administração local, inteiramente subordinados à superintendência da administração central. Não têm personalidade jurídica. Por se abrir uma sucursal ou agência não se modifica nem se restringe a personalidade jurídica da sociedade; unicamente se facilita a sua acção, criando-se condições favoráveis ao exercício da actividade social numa determinada localidade.
Para levar mais longe a facilidade de movimentos, a lei permite que as sucursais, agências, etc., posto que não tenham personalidade jurídica, demandem e sejam demandadas; quer dizer,atribuiu personalidade judiciária às sucursais e outras delegações da administração central, a fim de se realizar mais completamente o objectivo a que obedece a criação de tais órgãos.
Mas a sua personalidade judiciária é limitada: só podem demandar e ser demandadas quando a acção proceder de acto ou facto praticado por elas. Mesmo neste caso, a personalidade judiciária dos órgãos locais não faz desaparecer a sociedade. A acção, em vez de ser proposta pela sucursal ou contra a sucursal, pode ser proposta em nome da sociedade, pela administração principal ou contra esta.
Não sucede o mesmo quando a acção emerge de acto ou facto praticado pela administração principal; então só esta pode demandar ou ser demandada. Exceptua-se o caso de a administração principal ter a sede ou o domicílio em país estrangeiro» (cfr Código de Processo Civil anotado, 3ª ed., pág. 26/27)Também no ensinamento de Antunes Varela as sucursais, agências, filiais ou delegações (das sociedades ou pessoas colectivas) «como meros órgãos de administração local que são, dentro da estrutura da sociedade ou pessoa colectiva, não gozam de personalidade jurídica, porque não constituem sujeitos autónomos de direitos e obrigações.» [sic].
70. Ou seja, a sucursal apresenta-se como uma extensão da sociedade, não gozando de personalidade jurídica própria, assumindo-se como um instrumento através do qual é desenvolvida, total ou parcialmente, a mesma atividade, sob a orientação do órgão de gestão da sociedade, embora possa verificar-se alguma autonomia, caso seja conferido mandato para tal, deliberado pelo mesmo órgão de gestão.
71. O que a sucursal possui é também uma estrutura e organização próprias inerentes a sua existência física, como instalações, equipamentos, trabalhadores, etc. e, para o que nos releva, contabilidade própria, discriminada da sociedade.
72. A forma como a sociedade procede à integração de contas, a imputação contabilística das operações da sucursal à sua atividade, seja por lançamento ou por mapas periódicos é irrelevante. Relevante é apenas o facto de que a sua contabilidade se encontra discriminada, refletindo, ao nível dos resultados, tanto os rendimentos obtidos no território onde se encontra instalada como os gastos que incorreu na obtenção desses rendimentos.
73. É sobre esta realidade que o STA se pronuncia e no sentido de admitir, por exceção, que o lucro gerado pelas sucursais da impugnante, dispersas por Angola, Moçambique e Argélia, não deve ser refletido no lucro tributável da sociedade sujeita à derrama municipal.
74. Na sua lógica, o STA promove uma conexão com a infraestrutura e a força de trabalho usada para a obtenção dos rendimentos para se legitimar ou não a sujeição à derrama municipal desses mesmos rendimentos como resulta do excerto transcrito em supra.
75. E quando em causa se encontram rendimentos obtidos no estrangeiro, essa conexão é de escala nacional.
76. Regressando à fundamentação do suprarreferido Acórdão do STA, o tribunal continua:
«Obviamente, não é incorreto afirmar (como na sentença recorrida) que, na LFL, “nada … se refere à exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional, sendo certo que o Código de IRC ao estabelecer, relativamente a tais pessoas colectivas …, a regra de extensão da incidência da obrigação do imposto a tais rendimentos, nos termos do n.º 1, do art.º 4º, do CIRC, …”. Porém, retirar, daí, a conclusão de que, em todas as situações, sem exceção, o lucro tributável (com inclusão dos rendimentos obtidos fora do território português) é integralmente sujeito a derrama, afigura-se-nos exagerado e entender de forma cega, quanto às especificidades desta, concreta, figura tributária. Na verdade, consideramos evidente (em sintonia com a doutrina) que a disciplina legal da derrama municipal nasceu e permanece, há mais de 30 anos, pouco incisiva e desenvolvida, “relativamente ligeira”. Ora, neste cenário, compete ao juiz aplicar, sempre, a lei de forma geral e abstrata, mas sem deixar de atentar, casuisticamente, em particularidades justificativas de, pela via jurisprudencial, se ir completando o puzzle, assumidamente, incompleto, da tributação, dos sujeitos passivos de IRC, em derramas municipais.
Deste modo, assumimos que o lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela).».
77. Notamos que o tribunal contempla na letra da lei a omissão na pretensa exclusão dos rendimentos obtidos no estrangeiro do lucro tributável sujeito à derrama municipal, mas julga por manifesto exagero a sua impossibilidade absoluta, tendo presente o caso concreto quando uma sucursal possui uma contabilidade própria ou autonomizada da sociedade que lhe permite, antes da integração de contas, identificar e comprovar que são rendimentos e gastos imputáveis àquela instalação.
78. Ora, o caso da Requerente não tem paralelo com esta situação.
79. Isto porque não estamos perante rendimentos obtidos por intermédio de uma sucursal, onde seja, uma instalação localizada fora do território nacional através da qual a B... exerce a sua atividade, mas sim de rendimentos resultantes de prestações de serviços, conforme previsto na alínea a) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRC.
80. Ora, considerando que se trata de rendimentos resultantes de prestações de serviços e que a Requerente é omissa quanto aos recursos usados para a sua obtenção, depreendemos que os mesmos se encontram localizados em território nacional.
81. Esses recursos, a estrutura organizacional, as instalações, os equipamentos e, acima de tudo, os trabalhadores, tudo indica serem os da Requerente localizados em território nacional.
82. Neste contexto, apesar de não ser o entendimento adotado pela AT sobre a base tributável da derrama municipal, também não é a situação da Requerente idêntica à do Acórdão do STA.
83. Nem as decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 554/2021-T, 211/2023-T e 170/2023-T são idênticas ao caso desta jurisprudência do STA.
84. Como referido nos sumários das decisões proferidas nos processos arbitrais n.º 554/2021-T e 170/2023-T:
«Os rendimentos gerados fora do território nacional, designadamente os relativos a dividendos auferidos por via de participação social detida por entidade residente junto de uma sociedade participada não residente devem ser excluídos, para efeitos deste imposto, do lucro tributável e, como tal, não podem contribuir para a base do cálculo da derrama municipal lançada pelo município.» (sublinhado nosso).
85. Semelhantemente, na decisão arbitral proferida no processo n.º 211/2023-T estavam em causa rendimentos decorrentes do pagamento de dividendos e juros por entidades participadas.
86. Estamos perante rendimentos que não foram obtidos através de estabelecimentos localizados noutros territórios, mas sim obtidos com os recursos próprios da Requerente sitos em território nacional.
87. O elemento de conexão territorial que deve ser valorizado na análise casuística segundo o STA é a força de trabalho (por referência ao critério de repartição do lucro tributável da derrama municipal, a massa salarial) e, neste caso apresentado ao tribunal arbitral, tudo indica tratar-se de recursos próprios localizados em território nacional.
88. É, assim, nosso entendimento que o tribunal arbitral não foi fiel à jurisprudência do STA, um erro agravado pelo facto de que esse tribunal sustenta a sua decisão nessa mesma jurisprudência.
89. Aqui chegados concluímos pelo seguinte:
- A derrama municipal incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, independentemente da origem dos rendimentos (domésticos ou estrangeiros);
- A base tributável da derrama municipal (lucro tributável), quando os rendimentos são obtidos em mais do que uma circunscrição municipal, é repartida em função dos encargos com os trabalhadores;
- No Acórdão do STA proferido no âmbito do recurso n.º 0924/17 (processo 03652/15.3BESNT), é excecionalmente admitida a expurgação dos rendimentos obtidos no estrangeiro quando os mesmos são passiveis de discriminação, “isoláveis”;
- Esse cenário ocorre no caso de sucursais que apesar da ausência de autonomia da sociedade possuem uma estrutura própria através da qual exercem atividade, nomeadamente, instalações e trabalhadores;
- O elemento de conexão territorial, para a legítima exigência da sujeição do rendimento à derrama municipal, é a localização da força laboral para a obtenção dos rendimentos;
- Salvo indicação e prova em contrário da Requerente, os rendimentos obtidos no estrangeiro que pretende ver expurgados do lucro tributável sujeito à derrama municipal não advêm de um ou mais estabelecimentos sitos fora do território nacional, sendo antes rendimentos conexos com a sua atividade económica e obtidos com os recursos sitos em território nacional, nomeadamente, trabalhadores;
- Nesse sentido, o entendimento adotado pelo STA e seguido nas decisões arbitrais invocadas pela Requerente (processos n.º 554/2021-T, 720/2021-T, 234/2022-T, 211/2023-T e 170/2023-T), ainda que não partilhado pela AT, não tem aplicação ao presente caso.
- Destaca-se, por fim, o défice instrutório relacionado com a ausência de identificação, discriminada, dos gastos incorridos com a obtenção dos rendimentos no estrangeiro, pois se na leitura da Requerente esses rendimentos não devem concorrer para a base tributável da derrama municipal, também os gastos incorridos com a sua obtenção devem igualmente ser expurgados dessa mesma base tributável.
90. Em face do acima exposto, entendemos ser de rejeitar in toto a pretensão da Requerente e, em consequência, fica prejudicado o conhecimento do direito a juros indemnizatórios.
(...)
VII. CONCLUSÃO
Perante o exposto, atendendo às razões de facto e direito acima descritas, propõe-se o indeferimento total do pedido formulado nos presentes autos, conforme detalhe do “quadro-síntese” identificado no introito da informação, com todas as consequências legais.
Mais se informa que deverá ser promovida a notificação da Requerente, de acordo com as normas constantes nos art.ºs 35.º a 41.º, todos do CPPT, para, querendo-o, no prazo de 30 (trinta) dias, recorrer hierarquicamente ao abrigo do disposto no art.º 80.º da LGT, conjugado com o art.º 66.º do CPPT, ou, no prazo de três meses, deduzir impugnação judicial, nos termos do art.º 102.º também do CPPT, ou ainda, fazer uso da faculdade prevista no art.º 10.º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de janeiro.
R) No que respeita ao período de tributação de 2019, a B... apurou um lucro tributável no montante de € 22.763.959,87 imputável a rendimentos obtidos fora do território nacional resultantes de prestações de serviços, no montante bruto total de € 39.891.746,18, (Cf. Doc. 11 e 12).
S) Relativamente ao período de tributação de 2020, a B... apurou um lucro tributável no montante de € 14.829.412,93 (12), imputável a rendimentos obtidos fora do território nacional resultantes de prestações de serviços, no montante total de € 24.365.468,50, conforme evidenciado no mapa de rendimentos de 2020 (Cf. Doc. 13 e 14) .
T) A exclusão daqueles montantes do lucro tributável sujeito a derrama municipal, com referência aos períodos de tributação de 2019 e 2020, resultaria no seguinte montante devido a título de derrama municipal pela B...:

U) De onde resulta que, no que se refere ao período de tributação de 2019, foi apurado e liquidado um montante de derrama municipal em excesso de € 341.459,40, tendo a parcela em excesso referente ao período de tributação de 2020 ascendido a € 222.441,19, tudo somando € 563.900,59 (facto notório).
V) O montante de rendimentos de prestações de serviços com origem no estrangeiro consta de documento assinado (cf. Doc. 15).
W) Em 04-04-2025, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
III.2 - Factos não provados
Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.
III.3 - Fundamentação da matéria de facto
Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e os que constam do processo administrativo[1].
Relativamente aos valores dos rendimentos obtidos no estrangeiro, a Requerente apresentou com o pedido de revisão oficiosa lista dos rendimentos provenientes do estrangeiro, (documentos 8 e 10) cuja correspondência à realidade não foi questionada na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.
Designadamente, no procedimento de revisão oficiosa não foram pedidos à Requerente os «documentos probatórios do lucro tributável apurado naquelas operações realizadas com origem no estrangeiro», a que AT alude nos artigos 232.º a 234.º da sua Resposta.
O facto de a AT, na decisão do pedido de revisão oficiosa, não ter baseado a sua decisão em falta de prova dos elementos declarados, obsta a que a falta desses documentos possa relevar para improcedência da pretensão da Requerente.
Na verdade, o processo arbitral tributário é, assim, um meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), sendo, como este, um meio processual de mera apreciação da legalidade de atos, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por atos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele].
No âmbito de um contencioso de mera legalidade, esta tem de ser apreciada com base no ato impugnado tal como ocorreu, com a fundamentação que nele foi utilizada, não sendo relevantes outras possíveis fundamentações que poderiam servir de suporte a outros atos, de conteúdo decisório total ou parcialmente coincidente com o ato praticado. São, assim, irrelevantes fundamentações invocadas a posteriori, após o termo do procedimento tributário em que foi praticado o ato cuja declaração de ilegalidade é pedida, inclusivamente as aventadas no processo arbitral, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua atuação poderia basear-se noutros fundamentos.
Neste sentido, pode ver-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 01-07-2020, processo n.º 309/14.6BEBRG), em que se entendeu que:
I – O tribunal, na apreciação da legalidade de uma decisão administrativa, não pode considerar que esta se alicerça noutros fundamentos que não aqueles que aí foram externados.
II – Assim, não pode julgar improcedente a impugnação judicial da decisão que indeferiu o pedido de revisão de um acto tributário alicerçando-se na não verificação de um requisito se a AT não usou esse fundamento para indeferir aquele pedido.
Por isso, não pode a Administração Tributária, após a prática do ato, nem o Tribunal no processo contencioso, justificar o indeferimento por razões diferentes das que constem da sua fundamentação expressa.
Nos casos de pedido de revisão oficiosa de atos de autoliquidação, se a respetiva decisão mantém o ato impugnado, com fundamentação expressa, deverá entender-se que se opera revogação por substituição daquele ato, passando a subsistir na ordem jurídica um novo ato que, apesar de manter o conteúdo decisório, terá a nova fundamentação.
Assim, no caso em apreço, a invocada falta de prova dos valores declarados pela Requerente não pode ter relevância para a decisão da causa. De resto, mesmo quando a lei estabelece que o ónus da prova recai sobre o contribuinte, a Administração Tributária não está dispensada de «realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido» (artigo 58.º da LGT).
«O órgão instrutor pode utilizar para o conhecimento dos factos necessários à decisão do procedimento todos os meios de prova admitidos em direito» (artigo 72.º da LGT) e no procedimento, o órgão instrutor utilizará todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correto apuramento dos factos, podendo designadamente juntar atas e documentos, tomar declarações de qualquer natureza do contribuinte ou outras pessoas e promover a realização de perícias ou inspeções oculares»(artigo 50.º do CPPT), independentemente de o ónus da prova recair ou não sobre o contribuinte.
O funcionamento das regras do ónus da prova ocorre apenas quando, após a atividade necessária para a adequada fixação da matéria de facto, diretamente a partir dos meios de prova e indiretamente com base na formulação de juízos de facto, se chega a uma situação em que não se apurou algum ou alguns dos factos que relevam para a decisão que deve ser proferida. Nestes casos, por força das regras do ónus da prova, devem decidir-se os pontos em que se verifique tal dúvida contra a parte que tem o ónus da prova[2].
É apenas nestas situações em que, após a produção das provas e a realização de diligências necessárias para apurar a factualidade relevante para a decisão, subsistem dúvidas sobre factos em que deve assentar a decisão que funcionam as regras do ónus da prova, valorando procedimentalmente as dúvidas contra aquele a quem é atribuído o ónus da prova.
Assim, no procedimento tributário[3], as regras do ónus da prova não significam que seja sobre a parte à qual ele é atribuído que recai o dever de trazer ao processo os meios de prova dos factos relevantes para decisão, dispensando a Autoridade Tributária e Aduaneira de tal tarefa, pois esta nunca está dispensada de, em cumprimento do princípio do inquisitório, antes de aplicar as regras do ónus da prova, «realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido», por força do artigo 58.º da LGT.
O princípio do inquisitório, enunciado este artigo 58.º da LGT, situa-se a montante do ónus de prova (acórdão do STA de 21-10-2009, processo n.º 0583/09), só operando as regras do ónus da prova quando, após o devido cumprimento daquele princípio, se chegar a uma situação de dúvida (non liquet) sobre os factos relevantes para a decisão do procedimento tributário, situação esta em que a matéria de facto é decidida contra a parte a quem é imposto tal ónus.
A expressão «todas as diligências necessárias» não dá margem para interpretação restritiva quanto aos deveres de realização de diligências que a lei impõe a AT.
Neste caso, a Autoridade Tributária e Aduaneira não fez no âmbito do procedimento de revisão oficiosa qualquer diligência tendente a verificar a correspondência ou não à realidade dos valores declarados pela Requerente e os indicados nos documentos que juntou ao procedimento, pelo que não podem aplicar-se contra estas as regras do ónus da prova.
No que concerne aos factos referidos nas alíneas O) e P), consideraram-se provados com base nas afirmações da Requerente, feitas nos artigos 14.º e 15.º do pedido de pronúncia arbitral e não questionadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, e no exame do formulário da declaração modelo 22 e respetivas instruções de preenchimento no sítio da AT, em que não se prevê possibilidade de afastar os rendimentos provenientes do estrangeiro do âmbito de incidência da derrama municipal.
IV - Exceção de incompetência
A Autoridade Tributária e Aduaneira suscita uma exceção, que denomina de incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar decisões de pedidos de revisão oficiosa.
Os fundamentos da exceção são os seguintes, em resumo:
- A vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD quanto a atos de autoliquidação limita-se aos que forem precedidos de reclamação graciosa, como entende que decorre da referência expressa aos artigos 131.º 133.º do CPPT, que é feita no artigo 2.º alínea a) da Portaria 112-A/2011, de 22 de março, e da não inclusão de referência ao artigo 78.º da LGT, pelo que aqueles tribunais são incompetentes para apreciar a legitimidade de atos que não forem precedidos de reclamação;
- o entendimento contrário impõe-se igualmente por força dos princípios constitucionais do Estado de Direito e da Separação dos Poderes (cfr. Art.ºs 2.º e 111.º, ambos da Constituição, bem como da Legalidade Art.º 3. n.º 2 e 266.º n.º 2, ambos da CRP), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no Art.º 30.º n.º 2 da LGT, que vinculam o legislador e toda a atividade da Requerida;
A Requerente respondeu à exceção, defendendo que deve ser julgada improcedente, porque, em síntese, o que se discute nos presentes autos é a legalidade dos atos de liquidação de IRC que foram contestados junto da AT através do procedimento de Revisão Oficiosa e vindo a ser uniforme a posição da jurisprudência, de que independentemente do meio administrativo ter sido o procedimento de revisão oficiosa do ato tributário, esta legalidade deverá ser apreciada pelo Tribunal Arbitral.
A Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, exclui do âmbito da vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira à arbitragem tributária as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131º a 133º do CPPT».
No entanto, é jurisprudência assente que o artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, devidamente interpretado com base nos critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9.º do Código Civil e aplicáveis às normas tributárias substantivas e adjetivas, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a atos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.
Com efeito, é unânime a jurisprudência do Tribunal Central Administrativo sobre a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciar a legalidade de atos de autoliquidação na sequência da apresentação de pedidos de revisão oficiosa[4].
Como se expõe no acórdão do TCA Sul de 27-04-2017, processo n.º 8599/15 (reproduzindo a decisão arbitral proferida no processo n.º 630/2014-T):
Conforme resulta do art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação da declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta [alínea a)] e a declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais [alínea b)].
Por outro lado, a competência dos tribunais arbitrais depende dos termos da vinculação da Autoridade Tributária (AT) à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos do RJAT. Com efeito, o art. 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».
Nos termos da alínea a) do art. 2.º desta Portaria n.º 112-A/2011 ficam excluídas do âmbito da vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».
Considerando aqueles preceitos legais a decisão arbitral concluiu pela viabilidade de apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a atos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa, julgando não verificada a exceção de incompetência suscitada. Concordamos na íntegra com todo o discurso fundamentador da decisão arbitral, cuja fundamentação aqui transcrevermos apenas em parte:
“A referência expressa ao precedente «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser interpretada como reportando-se aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa, que é o meio administrativo indicado naqueles arts. 131.º a 133.º do CPPT, para que cujos termos se remete. Na verdade, desde logo, não se compreenderia que, não sendo necessária a impugnação administrativa prévia «quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária» (art. 131.º, n.º 3, do CPPT, aplicável aos casos de retenção na fonte, por força do disposto no n.º 6 do art. 132.º do mesmo Código), se fosse afastar a jurisdição arbitral por essa impugnação administrativa, que se entende ser desnecessária, não ter sido efetuada.
(...)
Assim, importa, antes de mais, esclarecer se a declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão do ato tributário, previstos no art. 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD pelo art. 2.º do RJAT.
Na verdade, neste art. 2.º não se faz qualquer referência expressa a estes actos, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que refere os «pedidos de revisão de atos tributários» e «os atos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de atos de liquidação».
No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado diretamente um ato de um daqueles tipos.
Na verdade, a ilegalidade de atos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um ato de segundo grau, que confirme um ato de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.
A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos atos aí indicados é efetuada através da declaração de ilegalidade de atos de segundo grau, que são o objeto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Com efeito, relativamente a estes atos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos arts. 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objeto imediato do processo impugnatório é, em regra, o ato de segundo grau que aprecia a legalidade do ato de liquidação, ato aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do ato de liquidação. A referência que na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do art. 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos atos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de atos de segundo grau.
Aliás, foi precisamente neste sentido que o Governo, na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, interpretou estas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ao afastar do âmbito dessas competências as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», o que tem como alcance restringir a sua vinculação os casos em que esse recurso à via administrativa foi utilizado.
Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um ato de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o ato de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do ato tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir, tanto mais que, nos casos em que o pedido de revisão é efetuado no prazo da reclamação graciosa, ele deve ser equiparado a uma reclamação graciosa[5].
A referência expressa ao artigo 131.º do CPPT que se faz no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de atos de autoliquidação.
Na verdade, a interpretação exclusivamente baseada no teor literal que defende a Autoridade Tributária e Aduaneira no presente processo não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».
(…)
A interpretação extensiva, assim, é imposta pela coerência valorativa e axiológica do sistema jurídico, erigida pelo artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil em critério interpretativo
primordial pela via da imposição da observância do princípio da unidade do sistema jurídico.
É manifesto que o alcance da exigência de reclamação graciosa prévia, necessária para abrir a via contenciosa de impugnação de atos de autoliquidação, prevista no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT, tem como única justificação o facto de relativamente a esse tipo de atos não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o ato, posição essa que até poderá vir a ser favorável ao contribuinte, evitando a necessidade de recurso à via contenciosa.
Na verdade, além de não se vislumbrar qualquer outra justificação para essa exigência, o facto de estar prevista idêntica reclamação graciosa necessária para impugnação contenciosa de atos de retenção na fonte e de pagamento por conta (nos artigos 132.º, n.º 3, e 133.º, n.º 2, do CPPT), que têm de comum com os atos de autoliquidação a circunstância de também não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade dos atos, confirma que é essa a razão de ser daquela reclamação graciosa necessária.
Uma outra confirmação inequívoca de que é essa a razão de ser da exigência de
reclamação graciosa necessária encontra-se no n.º 3, do artigo 131.º do CPPT, ao estabelecer que «sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efetuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102.º». Na verdade, em situações deste tipo, houve uma pronúncia prévia genérica da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o ato de autoliquidação e é esse facto que explica que deixe de exigir-se a reclamação graciosa necessária.
Ora, nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de ato de liquidação é proporcionada à Administração Tributária, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, pelo que, em coerência com as soluções adotadas nos n.ºs 1 e 3 do artigo 131.º do CPPT, não pode ser exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa[6].
Por outro lado, é inequívoco que o legislador não pretendeu impedir aos contribuintes a formulação de pedidos de revisão oficiosa nos casos de atos de autoliquidação, pois estes são expressamente referidos no n.º 2 do artigo 78.º da LGT.
Neste contexto, permitindo a lei expressamente que os contribuintes optem pela
reclamação graciosa ou pela revisão oficiosa de atos de autoliquidação e sendo o pedido de revisão oficiosa formulado no prazo da reclamação graciosa perfeitamente equiparável a uma reclamação graciosa, como se referiu, não pode haver qualquer razão que possa explicar que não possa aceder à via arbitral um contribuinte que tenha optado pela revisão do ato tributário em vez da reclamação graciosa.
Por isso, é de concluir que os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011, ao fazerem referência ao artigo 131.º do CPPT relativamente a pedidos de declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, disseram imperfeitamente o que pretendiam, pois, pretendendo impor a apreciação administrativa prévia à impugnação contenciosa de atos de autoliquidação, acabaram por incluir referência ao artigo 131.º que não esgota as possibilidades de apreciação administrativa desses atos.
Aliás, é de notar que esta interpretação não se cingindo ao teor literal até se justifica especialmente no caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, por serem evidentes as suas imperfeições: uma, é associar a fórmula abrangente «recurso à via administrativa» (que referencia, além da reclamação graciosa, o recurso hierárquico e a revisão do ato tributário) à «expressão nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», que tem potencial alcance restritivo à reclamação graciosa; outra é utilizar a fórmula «precedidos» de recurso à via administrativa, reportando-se às «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos», que, obviamente, se coadunariam muito melhor com a feminina palavra «precedidas».
Por isso, para além da proibição geral de interpretações limitadas à letra da lei que consta do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, no específico caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 há uma especial razão para não se justificar grande entusiasmo por uma interpretação literal, que é o facto de a redação daquela norma ser manifestamente defeituosa.
Para além disso, assegurando a revisão do ato tributário a possibilidade de apreciação da pretensão do contribuinte antes do acesso à via contenciosa que se pretende alcançar com a impugnação administrativa necessária, a solução mais acertada, porque é a mais coerente com o desígnio legislativo de «reforçar a tutela eficaz e efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes» manifestado no n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, é a admissibilidade da via arbitral para apreciar a legalidade de atos de liquidação previamente apreciada em procedimento de revisão.
E, por ser a solução mais acertada, tem de se presumir ter sido normativamente
adotada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Por outro lado, contendo aquela alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 uma fórmula imperfeita, mas que contém uma expressão abrangente «recurso à via administrativa», que potencialmente referencia também a revisão do ato tributário, encontra-se no texto o mínimo de correspondência verbal, embora imperfeitamente expresso, exigido por aquele n.º 3 do artigo 9.º para a viabilidade da adoção da interpretação que consagre a soluça mais acertada.
É de concluir, assim, que o artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, devidamente interpretado com base nos critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9.º do Código Civil e aplicáveis às normas tributárias substantivas e adjetivas, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a atos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.”
A Autoridade Tributária e Aduaneira questiona a constitucionalidade desta interpretação sobre o âmbito da vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, mas essa constitucionalidade já foi objeto de apreciação do Tribunal Constitucional que decidiu «não julgar inconstitucional a norma que considera os pedidos de revisão oficiosa equivalentes às situações em que existiu «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD»[7].
Nestes termos, aderindo à referida jurisprudência do Tribunal Central Administrativo Sul e do Tribunal Constitucional, considera-se que as autoliquidações são impugnáveis perante este Tribunal Arbitral e que este tem competência para apreciar a sua legalidade, na sequência de decisão de indeferimento de pedido de revisão oficiosa e à face da fundamentação desta decisão.
V - Matéria de direito
V.1 - Posições das Partes
A Requerente apresentou à Autoridade Tributária e Aduaneira um pedido de revisão das autoliquidações de derrama municipal referente aos períodos de tributação de 2019 e de 2020 por entender que não deviam ser considerados no seu cálculo os valores de rendimentos de obrigações, nomeadamente juros, pagos por entidades estrangeiras, do que entende resultar pagamento indevido de € 115.886,24 (€ 59.743,092 e € 56.143,33, em 2019 e 2020, respetivamente).
A Autoridade Tributária e Aduaneira indeferiu o pedido baseando-se, em suma, no entendimento de que:
· Na legislação em vigor que disciplina a figura da derrama inexiste qualquer norma que disponha a exclusão da base tributável de rendimentos provenientes do exterior, o que impõe que não se possa inferir um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, já que, na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados;
· Dessa mesma legislação não consta qualquer exclusão de tributação relativamente à parte do lucro tributável obtido fora do território nacional, sendo certo que o Código do IRC estabelece a extensão da obrigação do imposto relativamente às pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, consistindo no englobamento da totalidade dos rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território;
· A regra de carácter geral estabelecida no n.° 1 do artigo 18.° do diploma contempla a sujeição da derrama municipal à área da sede do sujeito passivo ou do estabelecimento estável, prevendo o n.° 2 do mesmo artigo uma regra especial, para a repartição da derrama municipal por diversos municípios, que apenas ocorre nos casos em que os sujeitos passivos possuam estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e apurem uma matéria coletável superior a € 50 000,00, situação em que o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional;
· E, caso não se encontrem reunidos os pressupostos para a repartição da derrama pelos diferentes municípios em que os sujeitos passivos possuam estabelecimentos estáveis ou representações locais, a mesma é devida apenas em função da área da sede do sujeito passivo.
No presente processo, a Requerente mantém a posição assumida no pedido de revisão oficiosa, invocando jurisprudência arbitral e dos Tribunais Superiores em abono da sua posição.
A Autoridade Tributária e Aduaneira mantém a posição assumida na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, invocando também jurisprudência arbitral e dos Tribunais Superiores.
Assim, a questão essencial que é objeto do presente processo é a de saber se os rendimentos de fonte estrangeira auferidos pela Requerente devem ser excluídos no cálculo da Derrama Municipal, nos exercícios de 2019 e 2020.
V.2 - Questão da inclusão dos rendimentos de fonte estrangeira no cálculo da derrama municipal
Transcreve-se a fundamentação de direito exposta na recente Decisão Arbitral de 13-10-2025, proferida no Processo Arbitral n.º 468/2025-T, uma vez que este Tribunal, por maioria, lhe adere, como já antes se referiu:
O artigo 14.º da Lei das Finanças Locais (Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro, republicada pela Lei n.º 51/18, de 16 de Agosto), estabelece que constituem receitas dos municípios «o produto da cobrança de derramas lançadas nos termos do artigo 18.º».
No artigo 18.º da mesma Lei estabelece-se, além do mais, que
1 - Os municípios podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5 %, sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.
2 - Para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a (euro) 50 000 o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.
A questão de saber se os rendimentos de fonte estrangeira devem ser considerados para efeitos de determinação do lucro tributável relevante para liquidação de derrama municipal foi objeto de decisão pelo Supremo Tribunal Administrativo, num caso em que estava em causa atividade produtora de rendimentos no estrangeiro, desenvolvida pela própria empresa portuguesa, através e estabelecimentos estáveis.
Nesse acórdão de 13-01-2021, proferido no processo n.º 3652/15.3BESNT, o Supremo Tribunal Administrativo entendeu, além do mais, o seguinte:
“... o legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar "o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município" envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se "o rendimento (que) é gerado no município", em que se situa a sede ...
Numa outra formulação, em função destes concretos e objetivos ditames legais, no pressuposto, ainda, de que o legislador não desconhecia a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do País e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à "proporção", à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.
Além de esta se nos apresentar como a interpretação que melhor respeita a letra da lei, julgamos, também, ser a que melhor respeita os mais lógicos objetivos pretendidos alcançar com a imposição de derramas municipais. Na verdade, embora o legislador não o haja assumido explicitamente ... certos de que os tributos e em especial os impostos, visam, desde logo, "a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas" e devem respeitar "os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material" (Artigo 5º da Lei Geral Tributária (LGT), presente, ainda, a condição de impostos autónomos (do IRC), só podemos assumir que as derramas municipais se têm, para legitimação, de ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo...
Ademais e em situações, como a que nos ocupa, de isoláveis parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas... Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (Nas primeiras, tenha-se em conta que, no estabelecimento da proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, se opera com a "massa salarial", ou seja, com um fator ligado à relação de trabalho, estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem a sua atividade sob as suas ordens e direção, o que constitui mais um indício da vontade do legislador de ligar e condicionar o pagamento de derrama municipal à atuação concreta, efetiva, com utilização da força de trabalho, geradora de rendimentos, no território municipal respetivo.).
Obviamente, não é incorreto afirmar ... que, na LFL, "nada se refere à exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional, sendo certo que o Código de IRC ao estabelecer, relativamente a tais pessoas colectivas ..., a regra de extensão da incidência da obrigação do imposto a tais rendimentos, nos termos do n.º 1, do artº 4º, do CIRC”. Porém, retirar, daí, a conclusão de que, em todas as situações, sem exceção, o lucro tributável, (com inclusão dos rendimentos obtidos fora do território português) é integralmente sujeito a derrama, afigura-se-nos exagerado e entender de forma cega, quanto às especificidades desta, concreta, figura tributária. Na verdade, consideramos evidente (em sintonia com a doutrina) que a disciplina legal da derrama municipal nasceu e permanece, há mais de 30 anos, pouco incisiva e desenvolvida, "relativamente ligeira"”.
Aparentemente, esta jurisprudência poderia ser aplicada também às situações em que se está perante rendimentos obtidos no estrangeiro diretamente pela própria empresa residente, como foi entendido em várias decisões arbitrais.
Porém, o Supremo Tribunal Administrativo no recente acórdão de 02-04-2025, processo n.º 560/22.5BEALM, veio entender, por unanimidade, que:
I - Desde a redacção inicial, o art. 18º da Lei n.º 73/2013 de 03-09 (RFALEI) estabeleceu a regra, inalterada até hoje, de que "(") Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 1, quando uma mesma entidade tem sede num município e direção efetiva noutro, a entidade deve ser considerada como residente do município onde estiver localizada a direção efetiva.
II - Na determinação do lucro tributável, dos rendimentos de fonte estrangeira e, inexistindo norma legal que afaste tal situação no domínio apontado, ou seja, para efeito de derrama municipal, inexiste fundamento para os excluir, sendo que o artigo 18º nº 13 da Lei n.º 73/2013, de 03-09 é claro ao determinar que "[n]os casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo ["]".
III - Na situação dos autos, em nenhum momento se fala em estabelecimentos estáveis ou representações que poderiam implicar uma outra leitura da realidade em apreço e a lei não aponta qualquer elemento no sentido de se poder dizer que o rendimento se considera gerado no local da sede ou direcção efectiva da entidade que paga ou coloca à disposição os rendimentos, de modo que, a conclusão firmada na sentença recorrida no sentido da existência de rendimentos obtidos pela Impugnante fora do território nacional é inapta a produzir o efeito de anulação dos actos de autoliquidação no domínio indicado, na medida em que a alusão a rendimentos obtidos no estrangeiro preenche apenas um conceito material e não o conceito contemplado na lei com referência ao rendimento gerado na sua área geográfica.
IV - Assim, a totalidade do lucro tributável é, para efeito de derrama municipal, imputável ao município onde se situa a sua sede ou direcção efectiva do sujeito passivo, não existindo qualquer razão para afastar os rendimentos de fonte estrangeira.
Na fundamentação desta decisão refere-se, além do mais, o seguinte:
A partir daqui, importa notar, como já ficou dito, que a derrama municipal continua a caracterizar-se como um imposto acessório, na medida em que apenas é devida quando seja exigível, em concreto, a prestação tributária principal, subsistindo nessa mesma medida uma relação de dependência entre o imposto municipal e o imposto estadual, tendo passado a incidir não sobre a colecta (isto é, sobre o imposto de IRC já liquidado), mas sobre o lucro tributável (isto é, sobre o rendimento que constitui a base do imposto), passando, desse modo, a dever entender-se, do ponto de vista jurídico-financeiro, como um adicionamento ao IRC em vez de um adicional, situação que convoca as regras para a determinação do lucro tributável previstas no CIRC.
Ora, de acordo com o disposto no artigo 17º nº 1 do CIRC, “[o] lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º [entidades que exerçam a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola] é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código”.
Por seu lado, o artigo 3.º do CIRC, sobre a base do imposto, no que releva para os autos, estabelece que:
“1 - O IRC incide sobre: a) O lucro das sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, das cooperativas e das empresas públicas e o das demais pessoas colectivas ou entidades referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo anterior que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola; […]
2 -Para efeitos do disposto no número anterior, o lucro consiste na diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correcções estabelecidas neste Código. […]”.
Depois, o artigo 4º nº 1 do CIRC, relativo à extensão da obrigação de imposto, determina que
“[r]elativamente às pessoas colectivas e outras entidades com sede ou direcção efectiva em território português, o IRC incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território”.
Deste modo, num primeiro momento, a análise destes preceitos implica a consideração, na determinação do lucro tributável, dos rendimentos de fonte estrangeira e, inexistindo norma legal que afaste tal situação no domínio apontado, ou seja, para efeito de derrama municipal, inexiste fundamento para os excluir, como bem refere a Recorrente.
Com efeito, em relação aos rendimentos obtidos no estrangeiro, como se viu, o artigo 18º nº 13 da Lei n.º 73/2013, de 03-09 é claro ao determinar que “[n]os casos não abrangidos pelo n.º 2, considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo […]”.
Pois bem, a regra estabelecida apenas cede nos casos em que “os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município” e só nestes últimos casos haverá repartição de derrama pelos restantes municípios, ou seja, “a repartição da derrama pressupõe a não coincidência (em rigor, a segregação) entre o município da sede/direcção efectiva da empresa e o(s) município(s) do(s) estabelecimento(s) estável(is) … .
No caso de não existir um município onde se encontre localizado um estabelecimento estável, não há elemento de conexão relevante e, por consequência, a derrama é entregue por inteiro ao Município da sede/direcção efectiva. …” – Saldanha Sanches, A derrama, os recursos naturais e o problema da distribuição de receita entre os municípios, Fiscalidade, nº 38, 2009, pág. 146.
Na situação dos autos, em nenhum momento se fala em estabelecimentos estáveis ou representações que poderiam implicar uma outra leitura da realidade em apreço.
Além disso, a lei não aponta qualquer elemento no sentido de se poder dizer que o rendimento se considera gerado no local da sede ou direcção efectiva da entidade que paga ou coloca à disposição os rendimentos.
Tal significa que a conclusão firmada na sentença recorrida no sentido da existência de rendimentos obtidos pela Impugnante fora do território nacional é inapta a produzir o efeito de anulação dos actos de autoliquidação no domínio indicado, na medida em que a alusão a rendimentos obtidos no estrangeiro preenche apenas um conceito material e não o conceito contemplado na lei com referência ao rendimento gerado na sua área geográfica (o que nos afasta da situação tratada no Ac. deste Supremo Tribunal de 13-01-2021, Proc. nº 03652-15.3BESNT 0924/17, www.dgsi.pt, apontado na decisão recorrida) por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, sendo que, “in casu”, em função dos elementos descritos e de acordo com a norma aplicável (artigo 18º nº 13 da Lei n.º 73/2013, de 03-09), tem de concluir-se que a totalidade do lucro tributável é, para efeito de derrama municipal, imputável ao município onde se situa a sua sede ou direcção efectiva do sujeito passivo, não existindo qualquer razão para afastar os rendimentos de fonte estrangeira.
Diga-se ainda que, admitir a exclusão dos rendimentos de fonte estrangeira para efeitos de derrama municipal, implicava tratar de modo diferente as entidades que desenvolvem uma actividade exclusivamente no território nacional e as que desenvolvem actividade também fora desse território, em benefício destas, pois que, no caso de uma entidade com sede num determinado município nacional, mas cuja actividade seja desenvolvida em todo o território nacional, deverá o respectivo lucro tributável, para efeitos de derrama municipal, ser imputável ao município onde se situa a sua sede ou direcção efectiva, conforme decorre do disposto nos n.ºs 1 e 13 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 03-09, não tendo qualquer sentido, nem fundamento legal, fazer uma distribuição dos rendimentos pelos diversos municípios onde os rendimentos foram pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo, a menos que em algum (ou alguns) o sujeito passivo tenha estabelecimento estável ou representação local(e o sujeito passivo tenha matéria colectável superior a €50 000) a que devam ser imputados os rendimentos gerados na respectiva circunscrição territorial, sendo então aplicável o disposto o descrito artigo 18º nº 2 da Lei nº 73/2013, de 03-09, matéria que tem de ser replicada quando os rendimentos são pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo fora do território nacional.
Se assim não fosse, no caso de duas entidades com sede no mesmo município e com o mesmo lucro tributável, mas em que os rendimentos de uma resultassem exclusivamente de actividade desenvolvida em território nacional e os rendimentos da outra fossem parcialmente obtidos com actividade desenvolvida também fora do país, esta pagaria menos derrama municipal do que a primeira, uma vez que os rendimentos pagos fora do território nacional seriam excluídos, situação que colocaria em crise os princípios da igualdade e da capacidade contributiva, uma vez que duas entidades com idêntica capacidade contributiva seriam tributadas de modo diferente em sede de derrama municipal sem qualquer justificação.
Tal equivale a afirmar o princípio de que o rendimento se considera “gerado no município em que se situa a sede ou a direcção efectiva do sujeito passivo”, sem distinção em função do local onde os rendimentos são pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo.
(...)
Em suma, o probatório fixado nos autos interpretado no sentido exposto na decisão recorrida por referência a rendimentos obtidos no estrangeiro não preenche a previsão legal com referência ao exposto no art. 18º nº 1 da Lei nº 73/2013, de 03-09, sendo que nada emerge dos autos em termos de colocar em crise o princípio de que o rendimento se considera “gerado no município em que se situa a sede ou a direcção efectiva do sujeito passivo”, sem distinção em função do local onde os rendimentos são pagos ou colocados à disposição do sujeito passivo, situação que, naturalmente, determina a procedência deste recurso, a revogação da sentença recorrida no segmento impugnado, quer em relação à anulação dos actos impugnado nesta sede, quer em relação aos juros indemnizatórios arbitrados na sequência da aludida anulação, impondo-se o total naufrágio da presente impugnação judicial no domínio em análise.
Sendo esta a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, especificamente sobre a questão em apreço, é essa que se adopta nesta decisão arbitral, tendo em mente a «interpretação e aplicação uniformes do direito», pretendida pelo artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil e postulada pelo princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP).
Por isso, improcede o pedido de pronúncia arbitral, ficando prejudicado o conhecimento de outras questões colocadas.
VI - Pedido de restituição de quantias pagas com juros indemnizatórios
Improcedendo o pedido de pronúncia arbitral, improcedem os pedidos de restituição de
quantias pagas e juros indemnizatórios, que pressupõem pagamento indevido.
VII - Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar improcedente a exceção invocada pela Autoridade Tributária e Aduaneira;
b) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;
c) Julgar improcedente o pedido de reembolso de quantias pagas;
d) Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios;
e) Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira de todos os pedidos.
VIII - Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 563.900,59, indicado pela Requerente e sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
IX - Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 8.568,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.
Lisboa, 18-11 -2025
O Presidente,
(Fernando Araújo)
Vencido, com declaração de voto
O Árbitro Vogal,
(Manuel Faustino)
Relator por vencimento
A Árbitro Vogal,
(Ana Pinto Moraes)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Discordo da posição que teve vencimento no presente processo – ressalvado todo o respeito que me merecem a decisão e a fundamentação.
Isto porque tenho entendido (na linha da jurisprudência já consagrada no acórdão do STA de 13 de Janeiro de 2021, Proc. n.º 03652/15.3BESNT0924/17) que as Derramas municipais não devem recobrir, a título pretensamente subsidiário ou residual, rendimentos comprovadamente obtidos no estrangeiro – isto, quando possa comprovar-se adequadamente que esse rendimento foi obtido fora da área geográfica do município onde se situa a direcção efectiva do sujeito passivo.
Porque, entre outras razões, essa "incidência expansiva" contenderia com o inicialmente disposto no art. 18.º, 1 da Lei das Finanças Locais (Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro), quando este estabelece que:
"Os municípios podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5%, sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território". (sublinhado nosso)
Retirando-se da letra da lei que estão excluídos os rendimentos gerados fora do território nacional – que não são rendimentos obtidos na área geográfica de qualquer município português.
O n.º 2 do mesmo art. 18.º determina o critério de repartição de receita relativamente a sujeitos passivos com estabelecimento estável ou representação local em mais do que um município. Ora, se nessa hipótese a lei impõe que a repartição da receita entre os vários municípios abrangidos seja determinada pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional, não faz sentido que aqui sejam incluídos os rendimentos de fonte estrangeira.
E não é aplicável, ao caso, a norma “residual” do n.º 13 do mesmo art. 18.º, porque é manifesto que ela se aplica somente a rendimentos obtidos no território nacional e já não a rendimentos de fonte estrangeira, porque o que esse preceito visa é dirimir algum conflito que subsista entre municípios portugueses.
Lê-se também no referido acórdão do STA de 13 de Janeiro de 2021 (Proc. n.º 03652/15.3BESNT 0924/17):
“(…) assumimos que o lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela)".
Esta posição, de destrinça entre os rendimentos gerados na área geográfica do município que lança e cobra a Derrama, por um lado, e por outro os rendimentos que foram obtidos fora do território português, para excluir estes últimos daquela base de incidência, tem vindo a ser seguida por numerosos Tribunais Arbitrais, salientando-se as decisões arbitrais nos Procs. n.os 554/2021-T, 720/2021-T, 234/2022-T, 31/2024-T, 315/2024-T, 917/2024-T, 946/2024-T, 947/2024-T, 969/2024-T, 1111/2024-T, 1121/2024-T, 1130/2024-T, 1156/2024-T e 88/2025-T.
Ora, no caso, deu-se como provada essa origem dos rendimentos no estrangeiro. E o facto de a Requerente não dispor de sucursal no estrangeiro não desmente a origem dos rendimentos, num ambiente dominado pela exclusiva desmaterialização dos serviços: essencialmente porque a prestação online de serviços no estrangeiro dispensa o estabelecimento de sucursais "bricks and mortar", ou qualquer tipo de "estabelecimentos estáveis" ou "representações", a que devam ser imputados tais rendimentos.
A Derrama municipal visa compensar a autarquia pelos custos assumidos pela presença de empresas na sua região geográfica, e é concebida como contrapartida dos rendimentos aí obtidos; ora, os rendimentos obtidos por via desmaterializada no estrangeiro não são materialmente obtidos no município; e, portanto, só por vocação "residual" poderiam abarcar esses outros rendimentos, ou por uma ficção - admitamos, arcaica[8] – de que o que é imaterial e online não chega a sair do próprio local, é literalmente "rendimento gerado na área geográfica de cada município", a pretexto de deixar aí uma “pegada” nas suas infraestruturas, serviços, e imobilizado corpóreo.
Insistamos no ponto decisivo: como se lê no acórdão do Proc. n.º 1121/2024 do CAAD, se o art. 18.º, 2 "impõe que a repartição da receita entre os vários municípios abrangidos seja determinada pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional, mal se entenderia que aqui fossem incluídos os rendimentos de fonte estrangeira".
E não convence o argumento, usado pela Requerida (art. 185 da Resposta), de que "verificamos a inexistência de qualquer norma que disponha no sentido de que os rendimentos provenientes do exterior estão excluídos de tributação" – porque uma tal afirmação prova precisamente o inverso, ou seja, a falta de cobertura legal – da necessária legalidade – para a pretensão “extensiva” do âmbito da Derrama municipal.
A única via possível para a tributação de quaisquer rendimentos através da Derrama é a prova de que eles ocorreram no município – ora, ficou provado, pelo contrário, que os rendimentos foram obtidos no estrangeiro.
Logo, o pedido da Requerente devia ter sido julgado procedente.
(Fernando Araújo)
[1] Passamos a seguir, de perto, com as necessárias adaptações, atenta a similitude dos factos dados como provados, a Decisão Arbitral de 13-10-2025 proferida no Processo n.º 468/2025-T, consultável em CAAD - Jurisprudência.
[2] Sobre este ponto pode ver-se ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 1.ª edição, página 432.
[3] E, eventualmente, com alcance diferente do que o ónus da prova possa assumir no processo civil, o que não interessa aqui esclarecer.
[4] Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 27-04-2017, processo n.º 8599/15; de 25-06-2019, processo n.º 44/18.6BCLSB; de 11-07-2019, processo 147/17.4BCLSB; de 13-12-2019, processo n.º 111/18.6BCLSB; de 11-03-2021, processo n.º 7608/14.5BCLSB; de 26-05-2022, processo n.º 97/16.6BCLS; de 12-05-2022, processo n.º96/17.6BCLSB
[5] Como se entendeu no citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-6-2006, proferido no processo n.º 402/06
[6] Essencialmente neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, proferido no processo n.º 402/06, e de 14-11-2007, processo n.º 565/07
[7] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 244/18, de 11-05-2018, processo n.º 636/17.
[8] E que parece subjazer ao entendimento do acórdão do STA de 2 de Abril de 2025 (Proc. n.º 0560/22.5BEALM), quando ele exige a materialidade de sucursais ou estabelecimentos estáveis do sujeito passivo no estrangeiro, para que se aceite a origem estrangeira dos rendimentos e se afaste a ficção de que foram gerados no território do município.