Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 251/2025-T
Data da decisão: 2025-11-17  IRC  
Valor do pedido: € 7.619,89
Tema: IRC – Princípio da especialização dos exercícios. Princípio da justiça.
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Sumário

 

  I.         Interpretando o artigo 18.º, n.º 1, do Código do IRC, em conjugação com os artigos 23.º, n.º 1 e 55.º, n.º 2, do mesmo Código, parece dever concluir-se que os gastos relativos a encargos gerais de administração que sejam imputáveis ao estabelecimento estável se consideram componente negativa do lucro tributável do exercício em que devam ser reconhecidos. 

II.         O princípio da periodização não é absoluto. Para além das exceções legalmente estabelecidas, haverá que sopesar a sua conciliação com o princípio da justiça, que tem arrimo constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT). 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            I.         Relatório

 

A... SL , doravante “Requerente”, NIPC ..., com morada no..., ..., ..., ..., ...-... ..., veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”), e nos artigos 99.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”). 

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”. 

 

A Requerente, como adiante melhor se verá, pretende que seja declarada a ilegalidade, e consequente anulação, do ato de liquidação n.º 2024..., respeitante ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), e da liquidação n.º 2024 ..., respeitante a Juros Compensatórios, relativas ao período de tributação de 2021, das quais resultou um valor global a pagar (incluindo Juros Compensatórios) de € 7.619,89 (sete mil seiscentos e dezanove euros e oitenta e nove cêntimos).

 

A 18.03.2025 o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e, de seguida, notificado à AT.

 

Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do Tribunal Arbitral Singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar (v. artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD).

 

O Tribunal Arbitral ficou constituído a 27.05.2025. 

 

            A 04.07.2025, a Requerida apresentou a Resposta, com defesa por impugnação, e juntou o processo administrativo (“PA”). 

 

Por despacho de 20.10.2025, o Tribunal Arbitral dispensou a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e a produção de alegações.

 

Síntese da Posição da Requerente

 

a)    A Requerente é uma sociedade de direito espanhol, sediada em Espanha, que possui um Estabelecimento Estável (“EE”) em Portugal.

b)    Para apurar o lucro imputável ao referido “EE”, que constitui a base do IRC nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 3.º do respetivo Código, deverão ser tidos em conta os rendimentos obtidos por seu intermédio, bem como os respetivos gastos suportados, respeitantes à atividade exercida em território nacional.

c)    A atividade exercida em Portugal é uma atividade imobiliária, que se prende, essencialmente, com a construção para venda e com o arrendamento de bens imóveis, em conformidade com o seu objeto social.

d)    Há certos gastos, nomeadamente gastos com a gestão/administração, que são incorridos em Espanha (pela “matriz”) e que são imputáveis ao EE em Portugal, razão pela qual se procedeu à sua imputação através da fatura n.º 01/EP, datada de 31.12.2021, no valor de € 147.182,62 (cento e quarenta e sete mil cento e oitenta e dois euros e sessenta e dois cêntimos) emitida pela “matriz” ao “EE”, em cujo descritivo consta “Liquidacion de prestacion por gestion de servicios de la central al estabelecimiento permanente”

e)    Tal fatura foi contabilizada como gasto, no período de 2021, na esfera do “EE”, tendo o respetivo valor incluído o correspondente IVA à taxa de 23%, vigente em Portugal, autoliquidado pelo “EE”, face às regras de localização previstas no Código do IVA (cf. alínea a) do n.º 6 do respetivo art.º 6.º), uma vez que o IVA em causa não foi deduzido, dado que as atividades (imobiliárias) exercidas pelo “EE”, por se enquadrarem nas alíneas 29) e 30) do art.º 9.º do Código do IVA, não conferem direito à dedução, daí que o gasto em apreço tenha ascendido ao montante global de € 181.034,62 (cento e oitenta e um mil, trinta e quatro euros e sessenta e dois cêntimos) (€ 147.182,62 x 1,23).

f)     A Requerente foi objeto de uma ação inspetiva, levada a cabo pelos Serviços de Inspeção Tributária (“SIT”) da Direção de Finanças de Viana do Castelo, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2023..., cujos atos inspetivos se iniciaram a 11.12.2023 e terminaram a 23.10.2024.

g)    Os SIT começaram por não aceitar a dedutibilidade do referido gasto na totalidade, com base nos fundamentos expostos no capítulo V (que contém a fundamentação utilizada no Projeto de Relatório de Inspeção), e, depois, após o exercício do direito de audição, continuaram a não o aceitar, desta feita parcialmente, com base na fundamentação exposta no capítulo X do Relatório de Inspeção.

h)    Na sequência de um pedido de esclarecimento dos SIT referente ao conteúdo da dita fatura, a Requerente informou que a “matriz” havia sido alvo de uma ação inspetiva em Espanha, tendo a AT espanhola entendido, no âmbito desse procedimento inspetivo, que parte dos gastos relativos à gerência e administração deveriam ser imputados ao EE situado em Portugal. 

i)     Tal ação inspetiva em Espanha foi comprovada através de um documento, intitulado “ACTA DE CONFORMIDAD – INSPECCIÓN DE HACIENDA DEL ESTADO”, datado de 18.01.2022, através do qual fica totalmente claro que a “matriz” foi, efetivamente, objeto de um procedimento inspetivo realizado em Espanha, que visou o período de 2019 (desenrolado na parte final do ano de 2021 e concluído em janeiro de 2022).

j)     A Inspeção Tributária espanhola entendeu que, não tendo os rendimentos obtidos em Portugal através do “EE” sido tributados na esfera da “matriz”, em Espanha, por se encontrarem isentos de Impuesto de Sociedades (IS) – tendo sido deduzidos ao resultado contabilístico para efeitos de determinação do resultado fiscal –, e devendo as “partes” (“matriz” e “EE”) relacionar-se como se fossem entidades distintas e independentes, não poderiam ter sido deduzidos na totalidade, em Espanha, os gastos relacionados com a gerência e administração, uma vez que os mesmos foram suportados, pelo menos em parte, em benefício do “EE” situado em Portugal.

k)    A Inspeção Tributária espanhola alicerçou o seu ponto de vista, igualmente, na Convenção para Evitar a Dupla Tributação (CDT) celebrada entre Portugal e Espanha, nomeadamente no disposto nos respetivos artigos 5.º a 7.º, destacando-se o disposto no n.º 2 deste último artigo, segundo o qual, quando uma empresa exerce a sua atividade no outro Estado através de um “EE”, as suas relações (internas) devem ser estabelecidas com critérios independência, tal como se estivessem em causa entidades distintas e independentes (na prática, está em causa a aplicação do regime dos preços de transferência, tal como consta, aliás, no capítulo V do RI, com base no Código do IRC).

l)     A quantificação dos rendimentos a tributar em Portugal (e os gastos a imputar) deve ter em conta as funções exercidas, os ativos utilizados e os riscos assumidos pelo “EE”, tendo os assessores (contabilista e advogado) da “matriz” elaborado alguns quadros, para, com base em critérios objetivos (volume de negócios e ativo não corrente), poderem ser repartidos os gastos incorridos com os colaboradores e gerência que desempenhavam as referidas funções de administração em benefício da entidade como um todo (“matriz”, em Espanha, e “EE”, em Portugal).

m)  Tomando como exemplo o período de 2017, apurou-se que o peso do volume de negócios obtido em Portugal representava 45,54% do total do volume de negócios, sendo o peso dos ativos não correntes, afetos a Portugal, ascendia a 19,61%, tendo sido escolhida a média aritmética simples das duas percentagens anteriormente mencionadas. 

n)    Com base na factualidade anterior, alegou-se, em sede de exercício do direito de audição, que, ao emitir e contabilizar (e declarar para efeitos de “VIES”) a referida fatura, a “matriz” acabou por suportar IS em Espanha, à taxa de 25%, relativamente ao período de 2021, ficando, assim acautelados os interesses da Fazenda Pública espanhola, razão pela qual se alcançou o referido acordo.

o)    A “matriz” comprovou que contabilizou a fatura como rendimento e declarou a operação no modelo 349 (Declaración recapitulativa de operaciones intracomunitarias), garantindo, assim, o seu compromisso firme de pagar IS em Espanha quanto à importância debitada ao “EE” situado em Portugal. 

p)    O valor faturado corresponde ao somatório dos gastos com pessoal imputados, em 2021, pela “matriz” ao “EE” situado em Portugal, relativos aos períodos de 2017 a 2021, ficando, assim, totalmente demonstrada a materialidade/efetividade do documento de suporte à dedutibiade do gasto em Portugal.

q)    Também ficou demonstrado que a importância em apreço acabou por implicar o pagamento de “IRC espanhol”, relativo ao período de 2021, para além de que foi entregue ao Estado português o IVA devido pela operação (autoliquidado pela Requerente, uma vez que o mesmo não foi deduzido).

r)     Conclui-se que o documento apresentado em sede de direito de audição (“ACTA DE CONFORMIDAD – INSPECCIÓN DE HACIENDA DEL ESTADO”), permite inferir, tal como anteriormente referido, que existiu, de facto, um acordo entre a Inspeção Tributária espanhola e a “matriz”, no âmbito da ação inspetiva. 

s)     A explicação não foi aceite e no Relatório de Inspeção entendeu-se que o gasto em apreço não era dedutível, em sede de IRC, baseando-se, essencialmente, na sua não comprovação e em questões formais inerentes à fatura propriamente dita.

t)     Em sede de audiência prévia, a Requerente juntou a documentação tida por relevante, de modo a comprovar de que se estava perante gastos efetivamente suportados pela “matriz” em Espanha, os quais, aplicando critérios objetivos de repartição, eram imputáveis ao “EE” situado em Portugal.

u)    Os factos acima mencionados poderiam ser confirmados pelos intervenientes no acordo, devidamente identificados na parte final do documento, especialmente pela técnica da Inspeção Tributária espanhola (B...), caso os SIT julgassem necessário, no âmbito da troca de informações.

v)    Os SIT poderiam também confirmar que o valor faturado consta na base de dados “VIES”, tendo sido devidamente declarado pela “matriz”, bem como que o IVA autoliquidado pelo “EE”, no montante de 33.852,00 EUR, foi atempadamente entregue ao Estado (português).

w)   Se os gastos imputados pela “matriz” ao “EE” não foram considerados para efeitos de dedução em sede de “IRC espanhol”, no período de 2021 (por via da emissão da fatura, reconhecida como rendimento), deveriam os mesmos ser aceites em Portugal, no mesmo período de tributação, desde logo, por razões de justiça e equidade.

x)    A manter-se a não aceitação dos gastos, cairíamos, forçosamente, numa situação de dupla tributação jurídica internacional, inadmissível à luz da CDT aplicável, a qual, constituindo um tratado internacional, se sobrepõe à nossa legislação interna.

y)    Alegou ainda a Requerente que o próprio Código do IRC (“CIRC”) admite a dedutibilidade deste tipo de gastos, nomeadamente no respetivo art.º 55.º, onde, relativamente a “EE” situados em Portugal, se permite a dedução dos “encargos gerais de administração”, para efeitos de determinação do lucro tributável (sendo a imputação efetuada de acordo com critérios bastante semelhantes aos utilizados em Espanha).

z)    Acresce, ainda, que o Direito da União Europeia não se compadece perante situações discriminatórias que colidam com as liberdades fundamentais, nomeadamente a livre circulação de capitais e o livre estabelecimento.

aa)  Após o exercício do direito de audição, as correções à matéria tributável em causa foram reduzidas, diminuindo de € 181.034,62 (cento e oitenta e um mil, trinta e quatro euros) para € 138.201,30 (cento e trinta e oito mil, duzentos e um euros e trinta cêntimos) referidos anteriormente, tendo-se aceitado apenas a dedução da parte dos gastos referente ao próprio ano de 2021, no valor de € 42.833,32 (quarenta e dois mil, oitocentos e trinta e três euros e trinta e dois cêntimos), incluindo o respetivo IVA.

bb) Os SIT mantiveram a correção em grande parte, tendo, no entanto, alterado radicalmente os respetivos fundamentos, abandonando-se a tese da falta de comprovação e enveredando-se por uma nova posição, baseada, essencialmente, num alegado desrespeito pelo princípio da periodização económica (ou princípio da especialização dos exercícios), sem que à Requerente tivesse sido dada a oportunidade de exercer novamente o direito de audição. 

cc)  Os SIT validam os factos apresentados em sede de direito de audição, concluindo da seguinte forma:

“Considerando os critérios aplicados e os cálculos efetuados, aos quais nada temos a obstar, foi possível verificar que o valor da fatura, objeto de correção, resulta dos gastos desconsiderados inerentes aos anos de 2017 a 2021 pela “matriz”, acrescidos de uma margem de 5%, de acordo com o Doc. 2, conforme quadro seguinte:

dd) Constatam os SIT que está em causa a imputação, no ano de 2021, de gastos relativos aos anos de 2017 a 2021, referindo o disposto no n.º 1 do art.º 18.º do Código do IRC, norma que alude ao “regime da periodização económica” para efeitos de periodização do lucro tributável.

ee)  A manter-se a tese dos SIT e ao não serem anuladas as correções efetuadas, tal como se pretende, os gastos em causa, desconsiderados na esfera do “EE” em 2021, acabarão por não ser dedutíveis, nem na esfera do “EE”, nem, também, na esfera da “matriz” – uma vez que está comprovado que a mesma contabilizou como rendimento, em 2021, a fatura emitida, o que, inevitavelmente, teve como consequência a “anulação” dos gastos contabilizados em anos anteriores e, concomitantemente, o pagamento de IS em Espanha (“IRC espanhol”), algo que, a manter-se, configura uma situação de dupla tributação jurídica internacional.

ff)   A própria CDT, no n.º 3 do art.º 7.º, nos termos do qual, para efeitos de determinação do lucro do “EE”, refere ser possível deduzir as despesas incorridas para a realização dos seus fins por si prosseguidos, nomeadamente, “(…) as despesas de direção e as despesas gerais de administração (…)”.

gg) Tal faculdade está também consagrada no Código do IRC, mais concretamente no n.º 2 do respetivo art.º 55.º, nos termos do qual é permitida a dedução dos designados “gastos gerais de administração”, como se se tratasse de entidades independentes, sendo que, nos termos do disposto no n.º 3 do mesmo artigo, são apontados critérios de imputação idênticos, precisamente, aos que foram adotados no caso em apreço, em que a repartição foi efetuada com base na conjugação dos critérios do volume de negócios e do ativo não corrente/ativo fixo tangível.

hh) Os SIT admitiram a dedução dos gastos referentes a 2021, mas não os dos anos anteriores, por causa do princípio da periodização do lucro tributável.

ii)    Acontece que o entendimento da AT espanhola apenas chegou ao conhecimento da Requerente no final do ano de 2021 (tal entendimento era manifestamente desconhecido até então), num momento em que as contas relativas aos anos de 2017 a 2020 já estavam encerradas.

jj)    A fatura, através da qual foram debitados os gastos de 2017 a 2021, apenas foi emitida naquele ano (2021), tendo sido contabilizada, nesse mesmo ano, como rendimento tributável na esfera “matriz” e, naturalmente, como gasto na esfera do “EE”.

kk) Tendo em conta as circunstâncias, afigura-se que os gastos em apreço, respeitantes aos exercícios de 2017 a 2020, devem ser, excecionalmente, considerados dedutíveis na esfera do “EE” no período de 2021,  na medida em que os mesmos (ou melhor, a necessidade da sua imputação ao “EE”) eram “imprevisíveis” e “manifestamente desconhecidos” naqueles anos, tal como dispõe, claramente, o n.º 2 do art.º 18.º do Código do IRC, norma cuja função é, precisamente, derrogar o disposto na regra geral prevista no número anterior (n.º 1), caso se verifiquem os respetivos pressupostos, tal como sucede no caso em apreço.

ll)    Conclui-se que, tendo existido uma ação inspetiva em Espanha, que é um facto externo que a Requerente não controla – por se tratar de um direito potestativo de que dispõe a AT espanhola –, estarão preenchidos os pressupostos (imprevisibilidade ou desconhecimento) de que depende a aplicação do disposto no n.º 2 do art.º 18.º do Código do IRC, norma excecional e especial que derroga o disposto no número anterior.

mm)       Cumpre salientar que a factualidade que subjaz ao caso em apreço permite concluir, de resto, que não se verificou qualquer intencionalidade de lesar o Estado português ao imputar os gastos de anos anteriores (de 2017 a 2020) ao período de 2021, não tendo o mesmo sofrido, de facto, qualquer prejuízo, antes pelo contrário uma vez que, ao não ter deduzido os gastos com remunerações nos períodos de 2017 a 2020 na esfera do “EE”, a Requerente acabou por, nesses períodos, apurar lucros tributáveis superiores e, consequentemente, matérias coletáveis também superiores e, como tal, terá pagado IRC a mais.

nn) No quadro seguinte constam os valores apurados pela Requerente (com base nos valores declarados nas declarações modelo 22), ou seja, com a consideração dos gastos somente no período de 2021:

oo)  Caso os gastos tivessem sido imputados, ao “EE”, nos períodos respetivos, a situação seria a seguinte:

pp) A não imputação dos gastos aos períodos de 2017 a 2020 não penalizou o Estado português, mas apenas a Requerente, uma vez que a mesma pagou IRC a mais em 2017, 2018, 2019 e 2020, sendo que a poupança, de valor equivalente, apenas veio a ocorrer em 2021 e 2022.

qq) O princípio da periodização económica não deve ser aplicado de modo inflexível, devendo antes ser compatibilizado com o princípio da justiça e da capacidade contributiva, tal como tem vindo a ser sufragado pela jurisprudência emanada dos nossos tribunais, nomeadamente do STA.

rr)   Pede, pois, a anulação das liquidações de IRC e Juros Compensatórios em apreço e o pagamento de Juros Indemnizatórios.

 

Síntese da Posição da Requerida

 

a)    No âmbito da inspeção que visou a Requerente, foi detetada a fatura n.º 01/EP, emitida, em 31.12.2021, emititda pela empresa “matriz”, A... S.L., CIF B-..., no valor de € 147.182,62, com o descritivo de “LIQUIDACION DE PRESTACION POR GESTION DE SERVICIOS DE LA CENTRAL AL ESTABLECIMIENTO PERMANENTE”. 

b)    O descritivo da fatura não é suficiente para alcançar todos os elementos necessários para considerar o custo/efeito fiscal por ela representado e pretendido.

c)    Convidada a esclarecer, a Requerente referiu que “A fatura 01/EP de 31/12/2021 deve-se ao facto de uma inspeção tributária na sua sede social da A..., S.L. entendeu que os gastos relativos à gerência e administração da empresa também deveriam ser imputados à representação Permanente em Portugal”, não juntando qualquer prova do referido. 

d)    Os SIT consideraram que a Requerente, relativamente aos elementos inerentes à fatura, nomeadamente substância e formalismos, nada comprovou/demonstrou.

e)    O que estava em causa não eram unicamente os requisitos formais da fatura, mas sim, e sobretudo, os requisitos de substância, nomeadamente a existência de uma operação económica tributada.

f)     A sociedade “matriz” espanhola, durante vários anos, no limite desde a constituição do EE em Portugal, mas comprovadamente pelo menos desde 2017, imputou sistematicamente os custos de administração/gestão do EE sito em Portugal, à entidade “matriz” com sede em Espanha.

g)    Ora, não podia ser alheia à empresa “matriz” espanhola, dada a sua atuação em ambos os países há várias décadas, a circunstância de que o imposto sobre os lucros das empresas exigido em Espanha é, e tem sido historicamente, superior ao exigido em Portugal.

h)    O que é facto é que o procedimento adotado pela “matriz” e pelas autoridades fiscais espanholas permitiu acautelar a receita fiscal em Espanha, já que a totalidade dos valores passíveis de correção (relativos aos períodos de 2017 a 2021), foram totalmente corrigidos por referência ao exercício de 2021. 

i)     Contudo, a verdade é que a Requerente pretende agora fazer valer em Portugal um acordo que delineou e implementou exclusivamente com as autoridades fiscais espanholas, querendo que a Requerida olvide o princípio da especialização dos exercícios e impute a totalidade dos custos de gestão/administração do EE dos anos 2017 a 2021 ao exercício de 2021.

j)     Pelo menos desde o final da inspeção realizada pelas autoridades espanholas em janeiro de 2022, a Requerente não poderia desconhecer o “erro” cometido, e poderia – aliás, deveria – ter suscitado a correção das declarações de rendimentos apresentadas em Portugal.

k)    Atento o ordenamento jurídico português, os SIT consideraram que a correção operada com o fisco espanhol, em relação ao EE, implicava, de facto, a correção dos exercícios em questão.

l)     Todavia, entenderam, e bem, que seria necessário repartir os custos da gestão/administração do EE – totalmente imputados ao exercício de 2021 – pelos respetivos exercícios a que se refere (2017, 2018, 2019, 2020 e 2021), em obediência ao princípio da especialização dos exercícios.

m)  O art.º 18.º do CIRC corporiza o princípio da especialização dos exercícios, que traduz a necessidade de definir regras orientadoras da imputação a cada período das componentes, positivas e negativas, que permitem a determinação do rendimento que lhe corresponde, e devem ser contabilizados e considerados num certo período todos os créditos e débitos respeitantes a esse período.

n)    Não se verifica qualquer erro involuntário ou não intencional, já que, como se viu acima, à data de encerramento dos registos, os referidos custos de gestão/ administração do EE não se podiam qualificar como sendo imprevisíveis – atento o percurso do EE em Portugal ao longo de mais de 20 anos, e à repetição anual dos custos relativos aos serviços de gestão/administração que a matriz sempre prestou ao EE – nem manifestamente desconhecidos, já que eram “manifestamente conhecidos”, pelo menos, na tese da Requerente, desde janeiro de 2022.

o)    O Código do IRC dispõe no seu artigo 17.º, n.º 3, alínea a) que os sujeitos passivos se encontram obrigados a cumprir as regras de normalização contabilística que lhes sejam aplicáveis, determinando a estrutura conceptual do SNC para as entidades a obrigatoriedade de elaborarem as suas demonstrações financeiras em obediência ao regime contabilístico do acréscimo ou da periodização económica.

p)    No que respeita aos rendimentos e gastos, bem como às outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, estabelece o art.º 18.º, n.º 1 do CIRC que estes são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

q)    Excecionalmente, as componentes positivas ou negativas respeitantes a períodos anteriores poderão ser imputáveis ao período de tributação, se e só se, na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas, o que não é manifestamente o caso.

r)     A empresa “matriz” não poderia deixar de saber que os custos que suportava com a gestão/administração do EE em Portugal deveriam ser imputados ao mesmo.

s)     As operações contabilísticas e fiscais não são registadas consoante o critério das empresas, antes obedecem a regras e princípios impostos na legislação fiscal e contabilística, nomeadamente nos Códigos Fiscais e no Sistema de Normalização Contabilística.  

t)     Uma componente negativa do lucro tributável, como é o caso dos gastos, só poderá ser imputada a um período de tributação posterior se, à data de encerramento das contas do exercício a que respeita, for manifestamente desconhecida ou imprevisível. 

u)    O princípio da justiça não é suscetível de aplicação no sentido pretendido pela Requerente, porque ela poderia ter utilizado os procedimentos de apresentação das declarações de substituição, sem prejuízo da possibilidade de recurso da reclamação graciosa ou do pedido de revisão do ato tributário a que se referem, respetivamente, o artigo 68º e seguintes do CPPT e o artigo 78º da LGT, um e outro com a possibilidade de abrirem o recurso à via judicial.

 

II.       Saneamento

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer da liquidação adicional de IRC ora posta em crise, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

A ação é tempestiva, nos termos previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT. 

 

Não foram identificadas nulidades que obstem ao conhecimento do mérito. Ainda que não de forma clara, foi alegado pela Requerente que lhe foi negado o direito de audição face aos novos argumentos do Relatório de Inspeção, o que, a verificar-se, constitui um vício que impede que o tribunal aprecie o mérito da causa. 

 

            III.      Fundamentação de Facto

 

            1.         Matéria de Facto Provada

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

A.   A Requerente é uma sociedade de direito espanhol, “A..., S.L” - sediada em Espanha, (“...”) que possui um Estabelecimento Estável ("EE") em Portugal com o NIPC ...(Relatório de Inspeção Tributária – “RIT” – , p. 60 do ficheiro Processo Administrativo – “PA”).

B.   O EE em questão está registado em Portugal desde o ano 2000, estando enquadrado em IVA desde junho de 2005 e encontrando-se registado para o exercício da atividade CAE: 68100, cujo objeto é: “Compra e venda de bens imobiliários, nomeadamente edifícios residenciais e não residenciais e de terras, arrendamento e exploração de bens imobiliários, nomeadamente edifícios residenciais e não residenciais e de terras.” (artigo 10.º da Resposta).

C.   A Requerente foi sujeita a um procedimento inspetivo de âmbito geral incidente sobre o IRC do exercício de 2021, realizado pelos SIT da Requerida – DF de Viana do Castelo com base na Ordem de serviço n.º OI2023..., iniciado no dia 15.12.2023 (pp. 8, 14 e 59 do ficheiro do PA e art.º 11.º da Resposta).

D.   Os SIT da Requerida detetaram uma fatura, com o n.º 01/EP, datada de 31.12.2021, no valor de € 147.182,62 (cento e quarenta e sete mil cento e oitenta e dois euros e sessenta e dois cêntimos) emitida pela “matriz” ao “EE”, em cujo descritivo consta “Liquidacion de prestacion por gestion de servicios de la central al estabelecimiento permanente” (pp. 18 e 63 do ficheiro do PA, art.º 12.º do PPA e art.º 13.º da Resposta).

E.   Convidada a esclarecer o conteúdo da fatura, a Requerente respondeu singelamente dizendo: “A fatura 01/EP de 31/12/2021 deve-se ao facto de uma inspeção tributária na sua sede social da A..., S.L. entendeu que os gastos relativos à gerência e administração da empresa também deveriam ser imputados à representação Permanente em Portugal” (pp. 21 e 66 do ficheiro do PA, art.º 15.º do PPA e art.º 15.º da Resposta).

F.    A empresa espanhola – “...” – foi sujeita a uma inspeção por parte das autoridades fiscais espanholas, que incidiu sobre o ano de 2019, tendo sido realizada de 27.09.2021 até janeiro de 2022 (art.º 20.º do PPA, p. 44 do ficheiro do PA e art.º 20.º da Resposta).

G.   As autoridades fiscais espanholas não solicitaram às autoridades fiscais portuguesas nenhuma informação relativa ao EE em Portugal (art.º 23.º do PPA e p. 47 do ficheiro do PA).

H.   Resultou da inspeção realizada pelas autoridades fiscais espanholas que a matriz, em Espanha, não estava a imputar ao EE em Portugal os gastos referentes à gestão/administração do EE em Portugal, sendo eles assumidos na íntegra pela matriz em Espanha (p. 68 do ficheiro do PA, art.ºs 10.º, 17.º e 21.º do PPA e art.º 36.º da Resposta). 

I.     A fatura referida em D. corresponde à quota parte dos gastos referentes à gestão/administração imputável ao EE em Portugal, que tem em conta, para cada um dos anos de 2017 a 2021, a média aritmética simples de dois indicadores, a saber, (i) o peso relativo das receitas auferidas pelo EE respeitantes a vendas e arrendamentos face ao total de receitas dessa natureza e (ii) o peso relativo do ativo não corrente do EE  face ao ativo não corrente total, sendo aplicada essa média aritmética simples aos custos globais de gestão/administração da sociedade, acrescida de uma margem de 5% (pp. 52 e sgs. do ficheiro do PA).

J.    Tal fatura foi contabilizada como gasto, no período de 2021, na esfera do “EE”, tendo o respetivo valor incluído o correspondente IVA à taxa de 23%, vigente em Portugal, autoliquidado pelo “EE”, face às regras de localização previstas no Código do IVA (cf. alínea a) do n.º 6 do respetivo art.º 6.º), uma vez que o IVA em causa não foi deduzido, dado que as atividades (imobiliárias) exercidas pelo “EE”, por se enquadrarem nas alíneas 29) e 30) do art.º 9.º do Código do IVA, não conferem direito à dedução, daí que o gasto em apreço tenha ascendido ao montante global de € 181.034,62 (cento e oitenta e um mil, trinta e quatro euros e sessenta e dois cêntimos) (€ 147.182,62 x 1,23) (pp. 21, 66 e 67 do ficheiro do PA e art.º 13.º do PPA).

K.   A “matriz” contabilizou a fatura como rendimento e declarou a operação no modelo 349 (Declaración recapitulativa de operaciones intracomunitarias), garantindo, assim, o pagamento de IS em Espanha quanto à importância faturada ao “EE” situado em Portugal (art.º 32.º do PPA).

L.   Os SIT, na sequência do exercício do direito de audição da Requerente concluiram da seguinte forma:

 “Considerando os critérios aplicados e os cálculos efetuados, aos quais nada temos a obstar, foi possível verificar que o valor da fatura, objeto de correção, resulta dos gastos desconsiderados inerentes aos anos de 2017 a 2021 pela “matriz”, acrescidos de uma margem de 5%, de acordo com o Doc. 2, conforme quadro seguinte:

(p. 71 do ficheiro do PA e art.º 51.º do PPA). 

M.  Após o exercício do direito de audição, os SIT promoveram uma correção à matéria tributável no montante de € 138.201,30 (cento e trinta e oito mil duzentos e um euros e trinta cêntimos) tendo aceitado apenas a dedução da parte dos gastos referente ao próprio ano de 2021, no valor de € 42.833,32 (quarenta e dois mil, oitocentos e trinta e três euros e trinta e dois cêntimos), incluindo o respetivo IVA (p. 72 do ficheiro do PA e art.º 46.º do PPA)

 

            2.         Factos não Provados 

 

Com relevo para a decisão não houve factos que se derem como não provados.

 

            3.         Motivação da Decisão de Facto

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes. 

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

A convicção do tribunal fundou-se unicamente na análise crítica da prova documental junta aos autos, em particular do Relatório de Inspeção Tributária, que está referenciada em relação a cada facto julgado assente. 

 

         IV.    Fundamentação Jurídica 

 

            1.         Questões Decidendas

 

No presente processo cumpre apreciar as seguintes questões:

a)    A de apurar se a Requerida, na sequência do exercício do direito de audição da Requerente, tendo em conta as conclusões a que chega no RIT, deveria ter dado a oportunidade para a Requerente exercer novamente o direito de audição;

b)    A de saber se se os custos de gestão/ administração do EE em Portugal, relativos aos exercícios de 2017, 2018, 2019 e 2020, podem ser globalmente imputados ao exercício de 2021 – através de uma fatura emitida pela empresa “matriz” espanhola ao EE em Portugal; e 

c)    A de determinar se, caso seja julgada ilegal a liquidação de IRC controvertida, a Requerente tem direito aos juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT. 

 

            2.         Da Eventual Postergação do Direito de Audição da Requerente 

 

Como se disse, a Requerente, nos artigos 48.º e 49.º do PPA, refere que “ainda assim, mantiveram a correção em grande parte, tendo, no entanto, alterado radicalmente os respetivos fundamentos, abandonando-se a tese da falta de comprovação e enveredando-se por uma nova posição, baseada, essencialmente, num alegado desrespeito pelo princípio da periodização económica (ou princípio da especialização dos exercícios). Todavia, apesar de ter sido profundamente alterada a fundamentação das correções, não foi concedida, à ora Requerente, a faculdade de exercer novamente o direito de audição”.

No artigo 48.º da sua resposta, a Requerida refere que “quanto à alegada alteração da fundamentação da correção, importa salientar que o RIT contém a mesma fundamentação que constava do projeto de RIT que foi notificado à Requerente, tendo sido apenas acrescentada a análise do carreado em sede de exercício direito de audição da Requerente, e que teve por efeito alterar a correção inicialmente projetada

É certo que se lê, no projeto de RIT, que “importa, para tanto, averiguar se estão ou não verificados os requisitos formais exigidos para a comprovação dos gastos, cuja violação implica a sanção da não dedutibilidade sobre o rendimento”. 

Contudo, no projeto de RIT também se diz que “face ao exposto, é condição essencial que, a empresa apresente os elementos que permitam aferir a razoabilidade e conformidade dos critérios de repartição de gastos comuns adotados, e que, num segundo momento, permitam descortinar a observância de que tais encargos foram efetivamente incorridos para a obtenção dos rendimentos sujeitos a imposto. O descritivo da fatura anteriormente identificada não permite confrontar a origem do valor imputado, nomeadamente, tipo de serviço realizado, quem realizou, quantidade, período a que se refere, calculo [sic] do valor imputado, entre outros, não sendo assim possível aferir a legitimidade da mesma, pelo que, estamos perante uma situação em que a fatura encontra-se “ferida” de substância e consequentemente, dos formalismos previstos nos artigos 23º e 23º - A, ambos do CIRC”.

No âmbito do direito de audição, conseguiu a Requerente demonstrar a razoabilidade dos elementos constantes da fatura, já que os SIT declararam nada ter a obstar aos critérios aplicados e aos cálculos efetuados. Mas, em rigor, não residia apenas neste aspeto a razão pela qual a Requerida se propunha desconsiderar a dedutibilidade dos custos titulados pela fatura.   Os SIT consideraram que o descritivo da fatura não permitia determinar a origem do valor imputado, nomeadamente, tipo de serviço realizado, quem realizou, quantidade, mas também o período a que se refere

Ora, se os SIT sublinham que o descritivo da fatura não possibilita apurar o período a que os serviços se referem, ou seja, a que exercícios respeitam os serviços prestados, é porque isso releva para o correto enquadramento tributário da questão em apreço. A Requerente, no exercício do direito de audição esclareceu todos esses elementos, o que levou a Requerida a rever a correção que se propunha realizar, aceitando a dedutibilidade dos custos referentes ao exercício de 2021 e recusando-a, em obediência ao princípio da especialização de exercícios, no que respeita aos exercícios anteriores. 

Assim, não se pode aceitar que a Requerida tenha posto em causa o direito de audição da Requerente, uma vez que o argumento da especialização de exercícios estava já implícita no projeto de RIT. 

 

            3.         O Princípio da Especialização de Exercícios e o Princípio da justiça 

 

O artigo 18.º do Código do IRC dispõe o seguinte: 

 

Artigo 18.º

Periodização do lucro tributável

1 — Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

2 – As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas”.

Como se vê, o artigo 18.º do Código do IRC enuncia o princípio da “especialização dos exercícios”, estabelecendo que “os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica”.

              O n.º 1 do artigo 23.º do mesmo diploma prescreve que “para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”.

            Por sua vez, o artigo 55.º, sob a epígrafe “lucro tributável de estabelecimento estável”, no n.º 2 prescreve que “podem ser deduzidos como gastos para a determinação do lucro tributável os encargos gerais de administração que sejam imputáveis ao estabelecimento estável, nos termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações, devendo esses critérios ser uniformemente seguidos nos vários períodos de tributação”. 

 Interpretando o artigo 18.º, n.º 1, do Código do IRC, em conjugação com os artigos 23.º, n.º 1 e 55.º, n.º 2, do mesmo diploma, parece dever concluir-se que os gastos relativos a encargos gerais de administração que sejam imputáveis ao estabelecimento estável se consideram componente negativa do lucro tributável do exercício em que devam ser reconhecidos.

Do princípio da especialização dos exercícios resulta que a imputação de um proveito ou de um custo a um determinado exercício obedece a um critério económico e não a um critério financeiro, pelo que devem ser considerados e contabilizados num determinado exercício todos os créditos e débitos respeitantes a esse exercício, e não somente os recebimentos e pagamentos que nele ocorreram.

Recorde-se que, depois do exercício do direito de audição, a Requerida aceita a dedutibilidade dos encargos referentes à prestacion por gestion de servicios de la central al estabelecimiento permanente. O litígio parece resumir-se na resposta a dar à questão de de saber se os encargos relativos aos anos de 2017 a 2020 podem ser considerados no exercício de 2021.

O n.º 2 do artigo 18.º do Código do IRC parece dar resposta a esta questão. Dispõe este preceito que as componentes negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.   

Entende a Requerente que, na data de encerramento das contas relativas aos períodos a que se referem os gastos (2017 a 2020), era totalmente imprevisível a imputação dos encargos de gestão suportados pela “matriz” em Espanha ao EE localizado em território português. A Requerente fundamenta a imprevisibilidade e o manifesto desconhecimento na circunstância de a fatura em causa nos presentes autos ser emitida na sequência duma inspeção realizada pelas autoridades espanholas à “matriz” em Espanha. As ditas autoridades forçaram essa imputação, uma vez que verificaram que todos os encargos com a gestão do EE estavam a ser deduzidos ao lucro tributável da “matriz”, em Espanha, não sendo consequentemente afetado por esses custos o lucro tributável do EE em Portugal.  

Tal argumento não colhe. Na verdade, a imprevisibilidade e o manifesto desconhecimento têm de referir-se aos encargos propriamente ditos. Ou seja, à componente negativa da determinação do lucro tributável. A inspeção levada a cabo pelas autoridades tributárias espanholas até podia ser imprevista, ainda que as inspeções realizadas por autoridades tributárias nunca assumam, deste ponto de vista, uma natureza inédita e espantosa. Contudo, a conclusão a que essa inspeção chegou, a de que os encargos de gestão de um estabelecimento estável devem ser imputados ao estabelecimento estável, não pode ser assumida como imprevisível. Ela decorre da aplicação das normas legais que regulam estas matérias. E se a existência ou o alcance destas regras fossem desconhecidas pela Requerente, sempre se dirá, em estrita observância do disposto no artigo 6.º do Código Civil que a ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas. 

Como bem refere a Requerida, “as operações contabilísticas e fiscais das empresas não são registadas ao livre arbítrio, mas obedecem a regras e princípios devidamente descritos na legislação fiscal e contabilística, nomeadamente Códigos fiscais e Sistema de Normalização Contabilística”.

Dito isto, importa ter presente que o princípio da periodização a que vimos fazendo apelo não é um princípio absoluto. Para além das exceções legalmente estabelecidas, haverá que sopesar a sua conciliação com o princípio da justiça, que tem arrimo constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT). Na verdade, tem vindo a ser permitida a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que isso não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios, tendentes a manipulá-los. 

Vale a pena atentar na fundamentação da recente decisão arbitral prolatada no Processo n.º 45/2025-T.

 

“O Supremo Tribunal Administrativo vem entendendo uniformemente que o princípio da justiça, aplicável por força do disposto nos artigos 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 55.º da Lei Geral Tributária (LGT), deve atenuar a rigidez do princípio da especialização dos exercícios, nomeadamente em situações em que a não consideração de um gasto em determinado exercício não é acompanhada de uma «correcção simétrica» favorável ao contribuinte, imputando esse gasto ao exercício em que a Autoridade Tributária e Aduaneira entende que deveria ser imputado. 

A observância do princípio da justiça é imposta à globalidade da actividade da Administração Tributária, pelos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT.

Da observância concomitante dos princípios da legalidade e da justiça conclui-se que o dever de a Administração Tributária aplicar o princípio da legalidade, inclusivamente o princípio da especialização dos exercícios,  não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente regulam determinadas situações, abrangendo também o dever de a Administração ter em conta as consequências da sua actividade e abster-se da aplicação estrita de normas quando dela decorra um resultado manifestamente injusto.

  O Supremo Tribunal Administrativo tem decidido, relativamente ao princípio da especialização dos exercícios, que «esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos (agora gastos) referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios».

Aliás, há muito que a Administração Tributária reconheceu a necessidade de flexibilidade na aplicação do princípio da especialização dos exercícios, no Ofício-Circular n.º C-1/84, de 8-6-84, publicado, com o respectivo parecer, em Ciência e Técnica Fiscal, n.ºs 307-309, páginas 781-791, em que se adoptou o seguinte entendimento, a propósito da questão paralela que se colocava no domínio da Contribuição Industrial:

 Sempre que em determinado exercício existam custos e proveitos de exercícios anteriores, o tratamento fiscal correspondente deverá obedecer às seguintes regras: 

a) Não aceitação dos custos e dos proveitos resultantes de omissões voluntárias ou intencionais no exercício em que são contabilizados, considerando-se, em princípio, como tais as que forem praticados com intenções fiscais, designadamente, quando: 

- está para expirar ou para se iniciar um prazo de isenção; 

- o contribuinte tem interesse em reduzir os prejuízos em determinado exercício para retirar maior benefício do reporte dos prejuízos previsto no artigo 43.º do Código; 

- o contribuinte pretende reduzir o montante dos lucros tributáveis para aliviar a sua carga fiscal. 

      b) Nos restantes casos, não deverão corrigir-se os custos e proveitos de exercícios anteriores.

 Subjacente à referida jurisprudência está a circunstância de o sujeito passivo ter sido prejudicado ou não ter tido vantagem pelo atraso da relevância fiscal do gasto, que, a verificar-se, é um elemento de relevo decisivo para presumir que o erro foi involuntário e não intencional.

 No caso em apreço, não se demonstra qualquer vantagem da Requerente em atrasar a relevância fiscal do referido reforço da provisão.

Com efeito, por um lado, o próprio diferimento da consideração fiscal de gastos, obrigando o sujeito passivo a suportar o pagamento de um imposto que podia ser evitado, é, em si mesmo, prejudicial para o sujeito passivo, pois atrasa a disponibilidade da quantia de imposto que resulta da consideração dos gastos.

(…)

Assim, não há qualquer razão para crer que o atraso na constituição da provisão tenha como motivação obter qualquer vantagem fiscal e, pelo contrário, é de concluir a Requerente foi prejudicada com tal atraso.

 De qualquer forma, da correcção efectuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira decorre manifesto prejuízo para a Requerente derivado do facto de não ter acompanhado a correcção desfavorável para esta efectuada ao exercício de 2022 relativa ao reforço da provisão em causa, com uma correcção simétrica, de sentido inverso, no exercício ao qual entendeu que o seu valor deveria ter sido imputado, o que se reconduz a privar a Requerente da relevância fiscal de uma componente negativa do lucro tributável, contrariando a jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal Administrativo.

Como se concluiu nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 09-10-2019, processo n.º 1278/12.2BELRS 0574/18, e de 27-10-2021, processo n.º 610/15.1BELRA:

«O princípio da justiça deve ser interpretado e aplicado como elemento integrador da norma da periodização do lucro tributável, no sentido de garantir a sua efectividade, resultando daí, para a Administração Tributária, a obrigação de harmonização inter-exercícios do enquadramento temporal de um elemento integrante do facto tributário que tenha natureza comunicante (simétrica inter-exercícios)».

Nestas condições, é manifesto que o princípio da justiça deve prevalecer sobre o princípio da especialização dos exercícios, pelo que a correcção relativa a reforço da provisão respeitante à acção instaurada pela B..., Lda, enferma de vício de violação de lei por erro de interpretação do princípio da especialização dos exercícios, limitado à luz do princípio da justiça.

Este vício justifica a anulação da correcção efectuada e da liquidação que nela se baseou, quer quanto ao IRC quer quanto aos juros compensatórios, na parte respectiva”.

 

Não vê o tribunal razão para se afastar deste juízo. Só com a emissão da fatura n.º 01/EP, datada de 31.12.2021, no valor de € 147.182,62 (cento e quarenta e sete mil cento e oitenta e dois euros e sessenta e dois cêntimos) emitida pela “matriz” ao “EE”, em cujo descritivo consta “Liquidacion de prestacion por gestion de servicios de la central al estabelecimiento permanente” podia a Requerente relevar na componente negativa do seu lucro tributável os encargos atinentes à gestão do EE. A Requerida adianta a possibilidade de não ser inocente a não imputação ao EE dos encargos que a “matriz” suportou com a gestão/administração do EE, admitindo a possibilidade de haver interesse da “matriz” em fazer diminuir o seu lucro tributável em favor do lucro tributável do EE. Não ficou demonstrada essa motivação. O que se verificou, isso sim, é que nos exercícios de 2017 a 2020, o lucro tributável (e, portanto, a tributação) do EE foi superior ao que teria sido caso tivessem sido esses gastos imputados aos exercícios a que dizem respeito. Portanto, não se vislumbra, numa ótica estritamente nacional, qualquer vantagem ou benefício para a Requerente do diferimento para 2021 dos encargos suportados com a gestão do EE em Portugal de 2017 a 2020. 

Assim, é manifesto que o princípio da justiça deve prevalecer sobre o princípio da especialização dos exercícios, pelo que a correção, no exercício de 2021, relativa à desconsideração dos gastos deduzidos ao lucro tributável do EE referentes aos encargos suportados pela “matriz” pela gestão do EE nos anos de 2017 a 2020, enferma de vício de violação de lei por erro de interpretação do princípio da especialização dos exercícios, limitado à luz do princípio da justiça, vício que justifica a anulação da correção efetuada e da liquidação que nela se baseou, quer quanto ao IRC quer quanto aos juros compensatórios, na parte respetiva.

 

            4.         Questões de Conhecimento Prejudicado 

 

Resultando do exposto a declaração de ilegalidade das liquidações de IRC e juros compensatórios, na parte em que são impugnadas, por vício que impede a renovação dos atos, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC),  o conhecimento das restantes questões que são suscitadas no processo.

 

            5.         Reembolso

 

 A Requerente pagou a quantia liquidada, referente a IRC e juros compensatórios, tendo direito ao reembolso, como decorrência da anulação ora decidida. 

 

            6.         Juros Indemnizatórios 

 

O direito à perceção de juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no seu n.º 1 que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

No caso em apreço, conclui-se que há erro nas liquidações de IRC e juros compensatórios impugnadas, que é imputável aos serviços da Requerida, pois foi ela que as promoveu por sua iniciativa.

Os juros indemnizatórios devem ser contados com base na quantia a reembolsar, desde a data em que a Requerente efetuou o pagamento da quantia liquidada, até ao integral reembolso do montante pago em excesso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril. 

 

V.        Decisão

 

            De harmonia com o supra exposto, decide o Tribunal Arbitral:


a)     Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)    Anular a liquidação de IRC n.º 2024... e a respetiva liquidação de juros compensatórios n.º 2024...;

c)    Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios nos termos referidos no ponto IV. 6 desta decisão arbitral.

 

VI.      Valor do Processo 

 

Fixa-se ao processo o valor de € 7.619,89, correspondente ao valor da liquidação de IRC aqui impugnada, incluindo juros compensatórios – v. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

VII.    Custas

 

            Custas no montante de € 612,00, a cargo da Requerida, por decaimento, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex viartigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT. 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 17 de novembro de 2025

 

 

 

O árbitro,

 


 

 

Nuno Pombo