DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1. Identificação das partes e objeto do litígio
O Demandante, A… (doravante, “Demandante”), apresentou petição inicial nos termos do artigo 10.º do Novo Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante, abreviadamente, designado por “Regulamento do CAAD”) contra o Demandado, B… (doravante, “Demandado”), estando as partes suficientemente identificados nos autos, e pedindo o Demandante a anulação dos atos impugnados de ordem de reposição de verba e correção de índice remuneratório determinados por ofício do Presidente do Demandado datado de 27/01/2016, com a Ref.ª B…-DRH-… -…/2016.
Distribuído o processo, foi o Demandado citado para contestar.
Por requerimentos do Demandado, datado de 26/04/2016, veio este requerer a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, tendo por fundamento a anulação administrativa do ato impugnado.
Em resposta do Demandante, em 06/06/2016, requer-se a suspensão da presente instância até ser proferida nova decisão final sobre reposição de verba e de correção de posicionamento remuneratório.
Por Despacho Inicial do subscritor, datado de 17/06/2016, foi o Demandado notificado para se pronunciar quanto à requerida suspensão de instância.
Em 07/07/2016, fez o Demandado chegar aos autos resposta ao disposto no Despacho Inicial, informando, em síntese, a sua não oposição à suspensão dos presentes autos; conquanto, lhe fosse concedida a oportunidade de renovação de prazo para contestação, uma vez impugnado o novo ato decisório.
Por sua vez, em 27/07/2016, veio o Demandante apresentar requerimento, por via do qual persegue: (i) A junção aos autos «da decisão final de novo procedimento administrativo», iniciado após a anulação do ato controvertido nos autos – juntando despacho do Exmo. Sr. Presidente do Demandado datado de 08/07/2016, com a Ref.ª B…-DRH-… -…/2016; (ii) o prosseguimento destes autos quanto ao novo ato; (iii) a fixação de prazo para se pronunciar «quanto aos (novos) fundamentos do novo ato» ou concessão de prazo para alegações finais escritas.
Por Despacho do subscritor, datado de 29/07/2016, norteado pelos princípios estatuídos no art.º 5.º do Regulamento do CAAD – maxime als. b), c, d) e f) – secundados pelo art.º 26.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo corpo normativo e pelo art.º 64.º, n.º 1 do CPTA, foi decidida: «1. Admitir a junção aos autos do despacho do Exmo. Sr. Presidente do Demandado datado de 08/07/2016, com a Ref.ª B…-DRH-… -…/2016; 2. Ordenar a prossecução dos presentes autos tendo como objeto aquele novo ato; 3. Conceder prazo de 20 dias ao Demandante para se pronunciar quanto ao novo ato, mais se determinando, por razões de clareza, precisão e coerência processual, que em tal prazo proceda a uma adaptação da petição ao novo ato; 4. Respeitando o contraditório, concede-se o prazo de 20 dias ao Demandado para contestar, contado da notificação da nova pronuncia (petição adaptada) do Demandante».
O Demandante apresentou, em 16/09/2016, nova petição, tendo como objeto o novo ato impugnado [despacho do Exmo. Sr. Presidente do Demandado datado de 08/07/2016, com a Ref.ª B…-DRH-… -…/2016]. Nesse articulado, peticionou o Demandante, a final, a anulação dos «atos impugnandos (ordem de reposição de verba/correção (redução) de índice remuneratório)», com a extinção da ordem de reposição (expressa na Guia n.º …/2016) e da ordem de correção/redução do índice remuneratório. Peticionando o processamento do valor diferencial mensal ilíquido de €218,24 de janeiro de 2016 até final do contrato, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos
Estriba o Demandante, em síntese, o pedido por si formulado no seguinte quadro fáctico e legal: (i) Os atos de ordem de reposição de verba e de correção/redução do índice remuneratório sustentam-se no pressuposto de que por em 01/10/2013 ter sido celebrado um novo contrato, esse contrato teria de estar abrangido pelo índice remuneratório base I100, todavia entende que não só não havia impossibilidade legal de renovação do contrato até então existente, como a celebração do novo contrato foi ilegal, o que inquina os atos impugnados do vício de violação de lei; (ii) a determinação unilateral do índice remuneratório aplicável ao Demandante viola o princípio da irredutibilidade da retribuição base, inquinando o ato de vício de violação de lei; (iii) a ordem de reposição de verba, entendida como ato de anulação administrativa, in casu de ato do Presidente do Demandado de 12/09/2013, é extemporânea por ter prescrito o direito à reposição, em violação do disposto no n.º 2, do art.º 168.º do CPA. Mais sustentado que a anulação dos atos constitutivos de direito (processamento de vencimentos), a existir, enquadrar-se-ia na hipótese legal da al. b), do n.º 4, do art.º 168.º do CPA e não na al. c) do mesmo normativo, conforme postulado pelo Demandado, pelo que a ordem de reposição seria ilegal por via da sua retroatividade; (iv) a celebração de novo contrato em 01/10/2013 foi ilegal, o que determinaria, face à vontade das partes na manutenção do vínculo, a conversão de tal ato de celebração em ato de renovação de contrato, afastando a norma fundamento dos atos impugnados do Demandado do n.º 3, do art.º 117.º da LVCR.
Em 26/09/2016, o Demandado apresentou contestação onde alegou, em síntese, que: (i)Não há qualquer ilegalidade na celebração do contrato de trabalho a termo certo datado de 01/10/2013, pois a mesma era permitida pelo regime transitório do art.º 12.º do Decreto-Lei n.º 207/2009 de 31 de agosto e esse novo contrato resultou da vontade das partes; (ii) A cláusula que determina a remuneração devida no âmbito daquele novo contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo certo, é nula por vício de violação de lei, no caso do n.º 3, do art.º 117,º da LVCR; (iii) Os atos de ordem de reposição da verba e correção de índice remuneratório não são atos constitutivos de direitos e, a admitir-se a sua qualificação como tal, não se enquadram na situação da al. b), do n.º 4, do art.º 168.º do CPA, mas sim da al. c) do mesmo normativo.
Pugna o Demandado, a final, pela improcedência dos pedidos e sua consequente absolvição.
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Nos termos do Regulamento do CAAD, foi o signatário designado como árbitro para o processo, considerando-se o Tribunal Arbitral constituído, após aceitação do aqui signatário, em 06/06/2016.
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2. Saneamento:
Findo os articulados foi proferido Despacho Saneador, em 23/11/2016, pronunciando-se o Tribunal Arbitral sobre os pressupostos processuais, mantendo-se, no presente, todos os pressupostos de regularidade e validade da instância que presidiram à prolação daquele Despacho Saneador, nada obstando ao conhecimento do mérito.
Por via do mesmo Despacho foram as partes notificadas para se pronunciarem quanto ao mecanismo de adequação formal, simplificação e agilização processual aí proposto, designadamente quanto à dispensa de realização de audiência de prova e de qualquer outra prova que não documental, bem como quanto à dispensa de realização de audiência de julgamento e de alegações finais.
Em resposta, tanto o Demandante, em 24/11/2016, como o Demandado, em 25/11/2016, declararam nada terem a opor àquele mecanismo de adequação formal, simplificação e agilização processual.
II. Questões a decidir
Fixa-se o objeto do litígio nos presentes autos: os atos impugnados de ordem de reposição de verba dirigida ao Demandante e de correção do índice remuneratório (redução do índice 140 para o índice 100) deste último, com efeitos desde 01/01/2016, determinados pelo Presidente do Demandado.
III. Fundamentos de Facto
Analisados os articulados, é convicção deste Tribunal Arbitral que devem dar-se por assente os seguintes factos, não havendo factos controvertidos e matéria por provar:
1) O Demandante de 12/02/2004 até 30/09/2013 exerceu funções como Equiparado à categoria de Assistente de 2º triénio, em regime de prestação de serviço a tempo parcial (60%);
2) O Demandante de 01/10/2013 até 30/09/2016 esteve contratualmente vinculado com a categoria de Assistente Convidado, em regime de prestação de serviço a tempo parcial (50%);
3) Foi celebrado contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo certo – pessoal especialmente contratado, entre Demandante e Demandado, com duração entre 01/10/2009 e 30/09/2011 e que foi objeto de renovação até 30/10/2013. Este contrato foi autorizado por despacho do Presidente do Demandado de 15/09/2009, exarado na informação …/DRH/… /…;
4) Foi celebrado contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo certo – pessoal especialmente contratado, entre Demandante e Demandado, com duração entre 01/10/2013 e 30/09/2014 e que foi objeto de renovação, por períodos sucessivos de um ano, até 30/09/2016. Este contrato foi autorizado por despacho do Presidente do Demandado de 12/09/2013, exarado na informação …/2013/DRH/… /…;
5) Na vigência dos contratos referidos nos factos assente como 3) e 4) e respetivas renovações a remuneração base mensal do Demandante foi a correspondente a 60%/50% de 2/3 do índice 140, do escalão 1, de acordo com o anexo 2 do Decreto-Lei n.º 408/89, de 18 de novembro;
6) O Presidente do Demandado, através do ofício B…-DRH-… -…/2016, de 27/01/2016, com o assunto epigrafado: Reposição de verbas/correção posicionamento remuneratório, enviou ao Demandante a Guia de Reposição n.º …/2016, referente à reposição de valores recebidos, a título de vencimento, subsídio de férias e subsídio de Natal, durante o período de 01/10/2013 a 31/12/2015, totalizando € 4.018,33;
7) Por via do ofício referido no facto assente como 6), o Presidente do Demandado, tendo em conta a informação recebida do B…, pelo ofício ref.ª …/DRH/…/2015, de 14/12/2015, informou o Demandante que a posição remuneratória em que se encontrava foi considerada incorreta, pelo que «a partir de 01/01/2016 foi corrigida a posição remuneratória, ficando situado no escalão 1, índice 100 (Tabela de vencimentos dos docentes do Ensino Superior Politécnico)»;
8) No recibo de vencimento do Demandante referente ao mês de janeiro de 2016, foi aplicado o I100, sendo reduzida a sua remuneração base de €763,85 (I140) para €545,61 (I100);
9) Por Despacho B…/… /…/2016, de 20/04/2016, o Presidente do Demandado determinou «a anulação administrativa, para todos os efeitos e consequências legais, do conteúdo decisório constante dos ofícios de notificação, datados de 27 de janeiro de 2016», no caso do Demandante o ofício B…-DRH-… -…/2016;
10) Por Despacho do Presidente do Demandado datado de 08/07/2016, com a Ref.ª B…-DRH-… -…/2016, foi determinada a: «anulação dos atos de processamento do docente A… praticados entre 01/10/2013 e 31/12/2015, nos termos conjugados do n.º 3, do artigo 117.º da Lei n.º 12/2008 e dos n.ºs 1 e 4 da alínea c) do art.º 168.º do CPA; Imposição ao docente A… da reposição das quantias indevidamente auferidas no período supra indicado, nos termo do disposto no artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de julho, mediante pagamento da competente Guia de Reposição (Guia n.º…/2016)». A predita Guia determina a reposição do valor de €4.017,30.
A fixação da matéria de facto baseou-se nos documentos juntos pelas partes, bem como na aplicação dos princípios e regras em matéria de ónus de alegação e de prova.
Sendo que, a convicção e motivação do Tribunal Arbitral para a prova dos sobreditos factos, que se afiguram ser os pertinentes para a boa decisão da causa, resulta dos factos articulados pelas partes e da análise crítica da prova documental produzida, tendo sido ainda tomados em consideração os factos instrumentais para a compatibilização de toda a matéria de facto tida por adquirida. Neste conspecto, importa salientar que as partes juntaram documentos com os seus articulados que, na sua globalidade, foram submetidos ao pleno contraditório das partes, não tendo sofrido impugnação. Também se verifica que nos articulados das partes, embora a interpretação dos factos não seja coincidente, a subsunção jurídica efetuada radica na apreciação dos mesmos documentos. Assim, a controvérsia em análise assenta, essencialmente, na interpretação dos factos e das normas legais pertinentes e não tanto em torno de uma divergência, por ser inexistente, acerca dos factos (essenciais e instrumentais) documentalmente corporizados, já que as partes os aceitam.
IV. Fundamentos de Direito
O thema decidendi situa-se em aferir da alegada ilegalidade dos atos de ordem de reposição de verba e de correção/redução de índice remuneratório determinados pelo Demandado na vigência do contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo certo outorgado com o Demandante em 01/10/2013.
Em face dos factos assentes, importa aplicar o Direito, passando pela apresentação das questões jurídicas em apreço e do seu respetivo enquadramento jurídico.
A) Da legalidade da celebração do contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo certo em 01/10/2013:
A análise a esta questão passa, necessariamente, pelo seu entendimento à luz do que se encontra disposto no Estatuto da Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 185/81, de 1 de julho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 69/88, de 3 de março, e pelo Decreto-Lei n.º 207/2009, de 31 de agosto (que procede à sua republicação) e alterado pela Lei n.º 7/2010, de 13 de maio (adiante, ECPDESP).
Em concreto, cabe-nos avaliar a celebração de contrato de trabalho entre Demandante e Demandado, em 01/10/2013, à luz da interpretação e aplicação das normas transitórias constantes do capítulo III do Decreto-Lei n.º 207/2009, de 31 de agosto, na redação que lhes foi dada pela Lei n.º 7/2010, de 13 de maio.
Como se deixou acima expresso, aduz o Demandante que a celebração de novo contrato em 01/10/2013 foi ilegal, o que determinaria, face à vontade das partes na manutenção do vínculo, a conversão de tal ato de celebração em ato de renovação de contrato.
Advoga, primeiramente, que não havia impossibilidade legal de renovação do contrato existente, celebrado em 01/10/2009, pois, por força da disposição transitória do n.º 2, do art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 207/2009, de 31 de agosto, essa renovação era permitida e poderia ter ocorrido até 01/09/2015 (fim do período transitório).
É mister analisar o aludido dispositivo, onde se pode ler «Até ao fim de um período transitório de seis anos contado a partir da data de entrada em vigor do presente decreto-lei, podem (ênfase gráfico nosso) ainda ser renovados, para além do fim do contrato estabelecido de acordo com o número anterior, e nos termos do Estatuto na redacção anterior à do presente decreto-lei, os contratos dos docentes a que se refere o n.º 1». Temos, portanto, que este dispositivo não concede, aos docentes na situação do Demandante, o direito subjetivo à renovação do seu contrato de trabalho em funções públicas, deixando dependente da margem de livre discricionariedade do Demandado o proceder, ou não, a tal renovação do contrato. Note-se, por contraposição com a situação dos autos, que situações houve em que o próprio legislador determinou a obrigatoriedade da renovação, como sucede, à laia de exemplo, com os docentes que se encontrassem na situação revista no n.º 7, do art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 207/2009, de 31 de agosto, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 7/2010, de 13 de maio.
Destarte, sendo admissível a renovação do contrato do Demandante outorgado em 01/10/2009, nos termos do n.º 2, do art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 207/2009, de 31 de agosto, tal não era um direito subjetivo do Demandante, antes sim uma faculdade contida na margem de discricionariedade do Demandado que, legitimamente, optou por não o renovar.
Aqui chegados, cumpre analisar se a celebração de novo contrato de trabalho em funções públicas a termo certo, em 01/10/2013, representa uma celebração sucessiva de contratos sujeita ao regime estatuído no art.º 96.º do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, aprovado em anexo à Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro (adiante, RCTFP). E, nessa medida, desrespeitando o citado normativo que tem força imperativa [n.º 1 (in fine), do art.º 92.º do RCTFP], determinaria uma nulidade parcial do contrato, com a conversão do ato de celebração em ato de renovação, por aplicação da disposições conjugadas do art.º 82.º do RCTFP (invalidade parcial do contrato) e art.ºs 292.º e 293.º do CC (redução e conversão).
Dispensamo-nos mais lucubrações neste conspecto, pois para aferir da legalidade da celebração de novo contrato de trabalho em funções públicas a termo certo, ocorrida em 01/10/2013, não seremos guiados pelos sobreditos normativos gerais, mas sim pela disposição especial prevista no art.º 12.º do Decreto-Lei n.º 207/2009, de 31 de agosto [«O termo dos prazos contratuais estabelecidos nos artigos 6.º e 7.º não prejudica a celebração de um novo contrato entre o mesmo docente e a mesma instituição de ensino superior, nos termos do Estatuto, na redacção dada pelo presente decreto-lei»].
Decorre do normativo acabado de aludir que ocorrido o termo dos prazos contratuais estabelecidos nos artigos 6.º e 7.º do mesmo diploma, ambas sistematicamente inclusas no Cap. III Regime transitório, id est, os prazos primitivos dos contratos aí elencados e as suas renovações, pode a instituição de ensino superior celebrar um novo contrato com o mesmo docente, seguindo este novo contrato o regime do ECPDESP (na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 207/2009, de 31 de agosto).
Apresenta-se, com uma clareza meridiana, que o citado art.º 12.º do Decreto-Lei n.º 207/2009, de 31 de agosto, constitui norma especial1 aplicável ao contrato de trabalho sub judice e que afasta a norma geral da celebração sucessiva de contratos prevista no RCTFP. Pelo que, atendendo à relação de especialidade, a regra especial (de celebração de contratos ao abrigo do ECPDESP) derroga a regra geral (de celebração sucessiva de contratos de trabalho em funções públicas). Note-se que o art.º 7º, n.º 3, do CC impõe, inclusive, uma presunção no sentido da subsistência da lei especial, face a nova lei geral com ela conflituante, mas, no caso, nem essa situação se coloca, pois, a lei geral (entrada em vigor a 01/01/2009) até é anterior à lei especial.
Do acima exposto resulta que o contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo certo, outorgado em 01/10/2013, entre Demandante e Demandado, trata-se de um contrato resultante da vontade das partes, que, verificada a caducidade do contrato anterior, celebraram um novo contrato, para exercício pelo Demandante de uma nova categoria (Assistente Convidado), tendo presente o art.º 12.º do Decreto-Lei n.º 207/2009, de 31 de agosto, e respeitando os termos do ECPDESP, na redação introduzida pelo citado diploma.
B) Da correção/redução do índice remuneratório e da irredutibilidade da retribuição
Alega o Demandante que a determinação unilateral do índice remuneratório que lhe é aplicável viola o princípio da irredutibilidade da retribuição base, inquinando o ato impugnando de vício de violação de lei. Tanto mais que, pugnando pela ilegalidade na celebração do contrato datado de 01/10/2013, e pela conversão do ato de celebração em ato de renovação de contrato, afastaria a norma fundamento dos atos impugnados do Demandado, o n.º 3, do art.º 117.º da Lei de Vinculação, Carreiras e de Remunerações, Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro (doravante, LVCR).
Dispõe a norma acabada de referir que «Os contratos de trabalho são celebrados para as carreiras, categorias e posições remuneratórias de ingresso, previstas na lei, em regulamento ou em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho em vigor».
Ora, as partes ao celebrarem o referenciado contrato de 01/10/2013, ex novo, em plena vigência da LVCR, fixaram nesse contrato remuneração por referência a índice remuneratório (I140) não coincidente com o índice remuneratório do escalão inicial correspondente à categoria atribuída ao contratado (I 100), para a categoria de Assistente Convidado, em violação, portanto, do citado artigo 117º, nº 3 da LVCR, o qual constitui princípio transversal às diversas carreiras2.
A situação retratada não se confunde com o princípio da irredutibilidade de retribuição, plasmado, sucessivamente, nos artigos 89.º, al. d) do RCTFP e 72.º, n.º 1, al. d) da LTFP, aprovada em anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de junho – a solução normativa é a mesma nos dois diplomas – «É proibido ao empregador público (…) Diminuir a remuneração, salvo nos casos previstos na lei». A irredutibilidade da remuneração apresenta-se, de facto, como garantia mínima do trabalhador. No entanto, como recordam PAULO VEIGA E MOURA E CÁTIA ARRIMAR, temos de ter presente que «algumas dessas garantias mínimas não são absolutas (v. alíneas d), e), f) e g), mantendo-se apenas enquanto a lei não for objeto de alteração»3.
Sucede que, no caso vertente, as partes convencionaram ab initio uma retribuição alocada a um índice remuneratório que não era o devido para o escalão inicial correspondente à categoria atribuída ao novo contratado celebrado (Assistente Convidado), em contravenção ao aludido artigo 117º, nº 3 da LVCR. Ademais, estava-lhes vedada qualquer negociação sobre o posicionamento remuneratório (art.º 55.º, n.º 6 da LVCR). A necessidade de corrigir essa redução remuneratória não se trata, portanto, de uma diminuição da remuneração por vontade do empregador, mas sim o restabelecer da regularidade jurídica violada pela cláusula contratual. Impondo-se ao empregador público essa correção, por força da subordinação constitucionalmente gravada da Administração Pública à lei (vide art.º 266.º, n.º 2 da CRP), devendo a mesma guiar-se na sua atuação pelo princípio da legalidade (art.º 3.º do CPA).
Pelo que, a correção de índice remuneratório do Demandante, empreendida pelo Demandado, apresenta-se como uma decorrência da observância por este último do princípio da legalidade, não constituindo violação da irredutibilidade da retribuição.
C) Da natureza dos atos de processamento de vencimento e da sua anulação administrativa – os efeitos da ordem de reposição de verbas
Cumpre-nos no presente andamento dilucidar a questão da anulação administrativa realizada pelo Demandado quanto aos atos de processamento de vencimento e aos efeitos da ordem de reposição de verbas dirigida ao Demandante.
Primo, tendo presente que o Demandante determinou a anulação administrativa dos atos de processamento do vencimento do Demandante praticados entre 01/10/2013 e 31/12/2005, forçoso se torna desvendar a natureza desses atos de processamento de vencimento, maxime determinar se os mesmos se apresentam como atos constitutivos de direitos.
Propugna o n.º 3, do art.º 167.º do CPA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 07 de janeiro, que para efeitos do disposto quanto à revogação e anulação administrativa «consideram-se constitutivos de direitos os atos administrativos que atribuam ou reconheçam situações jurídicas de vantagem ou eliminem ou limitem deveres, ónus, encargos ou sujeições, salvo quando a sua precariedade decorra da lei ou da natureza do ato».
A questão da natureza do ato de processamento de remunerações, levantava controvérsia doutrinal e jurisprudencial na vigência do anterior CPA quanto à qualificação de cada ato isolado de processamento, liquidação e pagamento de remunerações como um ato constitutivo de direitos, e como tal sujeito ao mais rigoroso regime de anulação dos atos administrativos. O novo conceito de ato constitutivo de direito deixa ainda alguma margem de incerteza ao usar um termo pouco seguro como «situações jurídicas de vantagem». Todavia, acompanhamos aqui o entendimento de CARLOS BATALHÃO quando em anotação a este conceito refere que «parece que a lei quer abranger todos os atos favoráveis, o que mantém uma acentuada amplitude do conceito de atos constitutivos de direito»4.
Face a este enquadramento, traduzindo-se o ato de processamento de remuneração como um ato com um conteúdo necessariamente favorável – atribuição de retribuição pecuniária ao trabalhador como correspetivo da prestação do seu trabalho – entendemos que o mesmo ingressa no conceito de ato constitutivo de direto, preceituado no novel n.º 3, do art.º 167.º do CPA.
Secundo, face às razões atrás aduzidas, impõe-se analisar o novo regime de anulação administrativa previsto no CPA quanto aos atos constitutivos de direito, mormente quanto às situações especiais em que os atos constitutivos de direito podem ser anulados administrativamente no prazo de cinco anos, a contar da sua prática. Conforme previsto no n.º 4, do art.º 168.º do CPA: «Salvo se a lei ou o direito da União Europeia prescreverem prazo diferente, os atos constitutivos de direitos podem ser objeto de anulação administrativa no prazo de cinco anos, a contar da data da respetiva emissão, nas seguintes circunstâncias: a) Quando o respetivo beneficiário tenha utilizado artifício fraudulento com vista à obtenção da sua prática; b) Apenas com eficácia para o futuro, quando se trate de atos constitutivos de direitos à obtenção de prestações periódicas, no âmbito de uma relação continuada; c) Quando se trate de atos constitutivos de direitos de conteúdo pecuniário cuja legalidade, nos termos da legislação aplicável, possa ser objeto de fiscalização administrativa para além do prazo de um ano, com imposição do dever de restituição das quantias indevidamente auferidas».
Feita a apresentação do normativo, e sem mais delongas, podemos anunciar que aos atos de processamento de vencimento, pelo menos na parte em que constituam uma prestação periódica (v.g. retribuição base, subsídios), deve-se-lhes aplicar o regime dos atos constitutivos de direitos à obtenção de prestações periódicas, no âmbito de uma relação continuada (que o é a relação laboral), ou seja, a hipótese prevista no art.º 168.º, n.º 4, al. b) do CPA.
Nestes termos, se é verdade que os atos administrativos de processamento de vencimento do Demandante podem ser anulados na janela temporal de cinco anos – o que abrangia os processados desde 01/10/2013 – não é menos verdade que essa anulação tem apenas eficácia para o futuro «ou seja, cessa o pagamento das prestações periódicas vindouras, a anulação, neste caso, não tem, portanto, efeitos, retroativos»5. E compreende-se esta opção do legislador, pois, se, por um lado, dilata o prazo para anulação, por outro, neutraliza os efeitos retroativos do ato de anulação, em nome da proteção da boa fé dos administrados e da segurança jurídica.
Por conseguinte, não se trata a situação decidenda de nenhuma das hipóteses seguintes:
(i) De montantes recebidos indevidamente por o respetivo beneficiário ter recorrido a artifícios fraudulentos para a sua obtenção, prevista na al. a), do n.° 4, do art.º 168.º do CPA;
(ii) De situação de direito de conteúdo pecuniário cuja legalidade, nos termos da legislação aplicável, possa ser objeto de fiscalização administrativa para além do prazo de um ano, com imposição do dever de restituição das quantias indevidamente auferidas, prevista na al. c), do n.° 4, do art.º 168.º do CPA. Contrariamente ao sustentado pelo Demandado, entendemos que esta hipótese esta pensada para casos como os “subsídios comunitários” e não para pagamento de prestações retributivas no decurso de relação jurídica de emprego público6.
Em suma, a ordem de reposição de verbas em crise nos autos e concomitante anulação dos atos de processamento do vencimento do Demandante praticados entre 01/10/2013 e 31/12/2005, subsume-se à previsão da al. b), do n.º 4, do art.º 168.º do CPA e, como tal, não pode ter efeitos retroativos, tendo os seus efeitos para futuro, o que, in casu, determina a cessação do processamento de vencimentos do Demandante com o I140 e passagem para I100 a partir de 01/01/2016.
Quanto à reposição de montantes indevidamente recebidos previsto no Regime de Administração Financeira do Estado, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 155/92, de 28 de julho e alterado pelos Decreto-Lei n.° 275-A/93, de 09 de agosto; Decreto-Lei n.° 113/95, de 25 de maio; Lei n.° 10-B/96, de 23 de março; Decreto-Lei n." 190/96, de 9 de outubro; Lei n.° 55-B/2004, de 30 de dezembro; Decreto-Lei n.° 29-A/2011, de l de março e pelo Decreto-Lei n.° 83-C/2013, de 31 de dezembro (adiante, RAFE), invocado pelo Demando tanto no ato impugnando como na sua contestação, o mesmo é especialmente vocacionado para a retificação de erros materiais ou contabilísticos, e não para o caso de um erro quanto aos pressupostos de direito como sucede na situação em apreço, o qual determinou a anulação administrativa acima referida7. Acresce que, o aludido novo regime do CPA introduz novidades legislativas na matéria em causa, por via da previsão de um prazo mais longo de anulação, contrabalançado pela adoção de garantias de estabilidade e previsibilidade da atuação administrativa, colidindo, por isso, com o regime de restituição de verbas públicas previsto no n.° 3, do art.º 40.° do RAFE, o que determina a revogação implícita deste último normativo – não podendo o regime do RAFE ser sustentáculo da anulação administrativa realizada pelo Demandado.
V. Decisão
Tendo por fundamento as razões de facto e de direito acima aduzidas, julga-se o pedido parcialmente procedente, por provado, e, em consequência:
a) Dá-se como procedente a anulação da ordem de reposição de verba, datada de 08/07/2016 (e respetiva Guia n.º …/2016), na medida em que a anulação administrativa dos atos de processamento de vencimento, subsume-se na previsão da al. b), do n.º 4, do art.º 168.º do CPA e não pode ter efeitos retroativos.
b) Dá-se como improcedente o pedido do Demandante no que diz respeito à anulação do ato do Demandado de correção/redução do índice remuneratório, em razão de tal ato não enfermar de qualquer violação dos normativos legais aplicáveis. Pelo que, o processamento de vencimento do Demandante deverá corresponder ao I100, desde 01/01/2016. Ficando, assim, afastado o valor pedido pelo Demandante a título de diferencial mensal ilíquido entre o I140 e o I100, bem como dos juros de mora;
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Valor do processo: por ser esse o valor indicado pelo Demandante, sem oposição por parte do Demandado (mais se tratando de valor consentâneo com o preceituado nos artigos 31.º e 32.º, n.º 1 do CPTA), fixa-se o valor do processo em € 4.675,13 (quatro mil seiscentos e setenta e cinco euros e treze cêntimos).
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Relativamente às custas processuais, observe-se o disposto no n.º 5, do art.º 29.º do Regulamento do CAAD.
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Notifiquem-se as partes e promova-se a publicitação da decisão arbitral, nos termos do art.º 5.º, n.º 3 do Regulamento do CAAD.
Lisboa, 06/12/2016
O árbitro
Vasco Cavaleiro
1 Quanto à caraterização como lei especial, atente-se ao preceituado no n.º 3, do artigo 119º da Lei nº 62/2007, de 10 de setembro, que estabelece o regime jurídico das instituições de ensino superior, o regime do respetivo pessoal docente consta de lei especial.
2 Nesse sentido, por se debruçar em situação com similitude fáctica e de direito da dos presentes autos, veja-se o Relatório nº 2/2014 - 1ª Secção do Tribunal de Contas (Ação de fiscalização concomitante à Universidade do Algarve. Atos de gestão de pessoal relativos a remunerações e acumulações de funções em instituições de ensino superior).
3 MOURA, Paulo Veiga / ARRIMAR, Cátia, Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas 1.º Volume Artigos 1.º a 240.º, 1.ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 289.
4 BATALHÃO, Carlos José, Novo Código de Procedimento Administrativo – Notas Práticas e Jurisprudência, Porto Editora, 2015, p. 271.
5 Idem, ibidem, p. 278.
6 Idem, ibidem, p. 278.
7 Para a distinção entre erro de cálculo ou material e erro jurídico, vide o Ac. do Pleno da Secção do STA, de 5/07/2005, Proc. n.° 0159/04.
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 4 do Regulamento do CAAD e do artigo 131.º, nº 5, do CPC, aplicável por remissão do artigo 26.º do Regulamento do CAAD.
A redação da presente decisão arbitral rege-se pela nova ortografia à luz do Acordo Ortográfico de 1990, exceto quanto à transcrição de obras e/ou diplomas que mantenham a ortografia anterior ao Acordo.