Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 21/2023-A
Data da decisão: 2024-03-06  Relações júrídicas de emprego público 
Valor do pedido: € 30.504,93
Tema: Relação Jurídica de Emprego Público: “Serviço de Prevenção” por Especialista de Polícia Científica da Polícia Judiciária.
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DEMANDANTE: A...

DEMANDADO: MINISTÉRIO DA JUSTIÇA

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Sumário:

Considerando a permanente disponibilidade para o serviço que é legalmente inerente à carreira de especialista de polícia científica (EPC) da Polícia Judiciária, que o Demandante livremente escolheu abraçar, não pode deixar de reconhecer-se que a decisão impugnada, para além de legal, é perfeitamente proporcionada, já que, como ocorreu in casu, não pode deixar de considerar-se necessário, adequado e estritamente proporcional recorrer ao trabalho fora do horário normal de um EPC não escalado para os serviços de piquete ou de prevenção para, no chamado “reforço às unidades de piquete ou prevenção (prevenção ativa)”, que constitui um regime regulamentado obrigatório, assegurar um ato programado de investigação criminal que imprescindivelmente, sob pena de irremediável prejuízo, teve de iniciar-se antes do horário normal de trabalho, assim permitindo também preservar a disponibilidade dos meios humanos escalados para os serviços de piquete e de prevenção para acorrerem a situações urgentes e inopinadas.

 

I – Das Partes, do Tribunal Arbitral e do saneamento processual

 

I.1 – É Demandante na presente ação arbitral A..., pertencente à carreira (especial) de especialista de polícia científica (EPC) da Polícia Judiciária e exercendo funções no Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... .

 

E é Demandado, conforme a norma do n.º 2 do artigo 10.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), o Ministério da Justiça.

 

I.2 – A presente arbitragem em matéria administrativa relativa a relação jurídica de emprego público decorre junto do CAAD, na Avenida Duque de Loulé, n.º 72 A, 1050-091 Lisboa. 

 

Não oferece dúvida a legitimidade do CAAD, enquanto centro de arbitragem institucionalizada [cfr. artigo 3.º, n.º 2, dos Estatutos do CAAD (disponíveis em www.caad.org.pt/) e Despacho n.º 5097/2009, de 27 de janeiro de 2009, no Diário da República, 2.ª série – N.º 30 – 12 de Fevereiro de 2009, página 6113], nem a possibilidade de vinculação prévia à sua jurisdição.

 

Conforme a Portaria n.º 1120/2009, de 30 de setembro, e na decorrência do artigo 187.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA, o Ministério da Justiça, que integra a Polícia Judiciária (o serviço central do Ministério relevante in casu), está vinculado à jurisdição do CAAD “para composição de litígios de valor igual ou inferior a 150 milhões de euros” e que, entre o mais, tenham por objeto “questões emergentes de relações jurídicas de emprego público, quando não estejam em causa direitos indisponíveis e quando não resultem de acidente de trabalho ou de doença profissional” [cfr. artigo 1.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, da referida Portaria].

 

Seja pelo valor da presente ação (cfr. infra), seja pelo seu objeto, a mesma integra-se inequivocamente no âmbito da referida vinculação do Ministério da Justiça à jurisdição do CAAD, que é, pois, competente para o julgamento da mesma.

 

Este Tribunal Arbitral, é composto por um Árbitro e foi constituído em 14 de agosto de 2023, tudo conforme previsto nos artigos 15.º, n.º 2, e 17.º do Regulamento da Arbitragem [cfr. “Novo Regulamento de Arbitragem Administrativa”, aplicável à arbitragem em matéria administrativa que decorre no CAAD, disponível em www.caad.org.pt/].

 

Nos termos dos artigos 15.º, n.º 3, e 16.º, n.º 1, do mesmo Regulamento, o signatário foi o Árbitro designado para apreciar e decidir a presente causa, devendo fazê-lo segundo o direito constituído, conforme estatuem, seja os artigos 5.º, n.º 1, alínea f), e 26.º, n.º 1, também desse Regulamento, seja o artigo 185.º, n.º 2, do CPTA (“Nos litígios sobre questões de legalidade, os árbitros decidem estritamente segundo o direito constituído, não podendo pronunciar-se sobre a conveniência ou oportunidade da atuação administrativa, nem julgar segundo a equidade.”) [cfr., ainda, artigo 39.º, n.º 1, da Lei da Arbitragem Voluntária].

 

À luz dos artigos 5.º, n.º 1, alínea b), e 26.º, n.º 2, do Regulamento da Arbitragem, o Tribunal explicita que poderá recorrer subsidiariamente às normas da Lei da Arbitragem Voluntária e do CPTA.

 

Tendo presente o artigo 27.º, n.º 2, do Regulamento da Arbitragem, anota-se que as Partes não renunciaram ao recurso que possa caber da presente Decisão Arbitral [cfr., ainda, artigos 39.º, n.º 4, da Lei da Arbitragem Voluntária e artigo 185.º-A, n.ºs 2 e 3, do CPTA]. 

 

I.3 – Logo no Despacho n.º 1, de 25 de setembro de 2023, se declarou a legitimidade e a capacidade judiciárias das Partes, a regular representação destas e, nos termos acabados de enunciar, a competência do Tribunal Arbitral, tendo-se aduzido que também se não verificam nulidades processuais ou outras questões prévias a decidir; e nesse mesmo Despacho também se fixou, fundamentadamente, o valor da presente causa em € 30 504,94 (trinta mil quinhentos e quatro euros, noventa e quatro cêntimos), conforme resulta dos artigos 32.º, n.ºs 1, 7 e 8, e 34.º, n.ºs 1, 2 e 4, do CPTA.

 

II – Do objeto da presente ação e da prova produzida

 

II.1 – O Demandante termina a petição inicial – que deu entrada no CAAD em 7 de junho de 2023, tempestivamente, face ao disposto nos artigos 41.º e 58.º, n.º 1, alínea b), do CPTA – formulando o seguinte pedido:

 

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO APLICÁVEIS, deve a presente ação ser julgada procedente e, em consequência, ser

a)    Anulada, com fundamento em ilegalidade, a decisão proferida em 8 de Março de 2023 pelo Senhor Diretor do DIC de ... no sentido de o Demandante prestar trabalho no dia seguinte, fora do horário de trabalho;

b)    A condenação do Demandado a abster-se de determinar que o Demandante preste trabalho fora do horário de trabalho quando não esteja integrado no serviço de piquete ou prevenção, e quando não se encontrem cumpridas as condições previstas no Despacho n.º 06/2002-...;

c)    A condenação do Demandado no pagamento de indemnização no valor de € 500,00, a título de reparação dos danos morais causados ao Demandante com a atuação ilícita, a que acrescem juros vencidos no montante de € 4,93 (quatro euros e noventa e três cêntimos) e de juros vincendos, até integral pagamento. 

 

Como se enunciou no Despacho n.º 1, de 25 de setembro de 2023, estamos, na presente ação arbitral de natureza administrativa, perante uma ação tendo por objeto, cumulativamente, a impugnação de um ato administrativo, a condenação a uma abstenção de comportamento pela Administração Pública e, ainda, a indemnização de danos morais por responsabilidade civil de pessoa coletiva, à luz, respetivamente, das atuais alíneas a), h) e k) do n.º 1 do artigo 37.º do CPTA.

 

Contestou o Demandado – em 5 de julho de 2023, tempestivamente, face ao disposto no artigo 12.º, n.º 1, do Regulamento da Arbitragem –, alegando, em síntese, a inexistência de qualquer ilegalidade e, consequentemente, concluindo pela total improcedência da presente ação e por que seja absolvido dos referidos pedidos contra ele formulados.

 

II.2 – Para além da prova documental junta aos autos – incluindo o relatório de piquete do Departamento de Investigação Criminal (DIC) da Polícia Judiciária de ... referente aos dias 8 e 9 de março de 2023, requerido pelo Demandante na petição inicial e junto aos autos com a contestação, e o Relatório Final de Auditoria ao Pagamento de Remunerações Variáveis por Parte da Polícia Judiciária, requerido pelo Demandante em 1 de setembro de 2023 e junto espontaneamente aos autos pelo Demandado em 11 de setembro de 2023  –, arrolou o Demandante duas testemunhas.

 

Entendeu o Demandado “que não se justifica a prova testemunhal, porquanto a prova documental é bastante para a prova dos factos e as questões controversas são matéria de direito a apreciar e interpretar pelo tribunal arbitral”; mas, para o caso de “assim não se entender”, arrolou também duas testemunhas.

 

Porque o Demandante a considerou necessária e o Tribunal Arbitral nisso anuiu (cfr. Despacho n.º 2, de 2 de novembro de 2023), foi produzida prova testemunhal, em audiência, devidamente gravada, de 20 de dezembro de 2023, na qual prestaram depoimento as seguintes duas testemunhas, arroladas e apresentadas pelas Partes (cfr. Ata da Audiência de 2023/12/20): (i) B..., casada com o Demandante, assistente operacional numa escola, arrolada pelo Demandante; (ii) C..., Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... da Polícia Judiciária, arrolada pelo Demandado.

 

Do depoimento de B..., é de assentar, do que por ela foi dito com relevância, maior ou menor, para a análise e decisão da presente causa, aquilo que nos termos seguintes assim se sistematiza:

1.º - É casada com o Demandante e ambos têm dois filhos, uma rapariga, já maior de idade, e um rapaz, com 13 anos (12 anos em 8/9 de março de 2023).

2.º - É assistente operacional numa escola, na qual inicia diariamente as suas funções às 07H15, tendo a responsabilidade diária de abrir, pela manhã, o portão da mesma, de forma a que os alunos possam entrar, sendo que o marido, quando sai a escala do seu próprio serviço, articula antecipadamente com ela a organização das tarefas familiares e tendo ela então a possibilidade de, caso seja necessário, ser substituída nas suas obrigações matinais na escola, o que não pôde acontecer na manhã do dia 9 de março de 2023, por a convocação do marido para as funções fora do horário normal de trabalho que lhe foram atribuídas nesse dia ter ocorrido sem a necessária antecipação. 

3.º - O filho do casal, que começa a escola às 08H00, tem défice de atenção e hiperatividade, tendo de tomar medicação, sendo o pai, porque tem o horário normal das 09H00, a levar habitualmente o filho à escola.

4.º - Na manhã desse dia 9 de março de 2023, porque não lhe foi possível garantir atempadamente a sua substituição nas tarefas matinais de abrir a escola onde trabalha, foi necessário acordar o filho (Guilherme) muito mais cedo, para o levar a casa da avó, que foi quem assegurou a rotina de lhe dar a medicação e de o levar à escola, o que causou stresse e nervosismo no pai.

5.º - Não se lembra de outras situações inopinadas como esta, mas terão ocorrido talvez uma ou duas vezes.

 

Por seu turno, do depoimento de C..., é de assentar, do que por ele foi dito com relevância, maior ou menor, para a análise e decisão da presente causa, aquilo que nos termos seguintes assim se sistematiza:

1.º - As buscas domiciliárias no lar de idosos, aqui em causa, tiveram de começar às 07H00, razão por que optou por determinar que fosse o Demandante a acompanhar as mesmas, para assim deixar o Colega que estava escalado para o serviço de prevenção disponível para qualquer outra diligência inopinada que pudesse surgir, sendo que, se tivesse atribuído a este Colega o acompanhamento dessas buscas (e podia tê-lo feito), corria o risco de este poder ver-se impedido de o fazer, caso antes das 07H00 surgisse uma operação inopinada que exigisse a sua intervenção.

2.º - Não tinha, pois, mais ninguém a quem pudesse ter determinado o acompanhamento das referidas buscas e explicou-o na troca de emails ocorrida com o Demandante aquando da sua decisão de o convocar para acompanhar tais buscas (troca de emails essa que corresponde ao documento 1 da petição inicial, que lhe foi exibido); sendo que essa troca de emails foi antecedida de uma conversa entre os dois, pela qual foi dada nota ao Demandante da necessidade e da importância da tarefa atribuída.  

3.º - Entende que esta sua decisão cumpre o Despacho n.º 06/2002-....

4.º - Pelas razões referidas, não acionou os serviços de piquete ou de prevenção (de ... ou de ...); e acrescentou que só tinha duas hipóteses de decisão: ou decidia como decidiu, pelas razões expostas, ou convocava o Colega do Demandante que estava escalado para o serviço de prevenção, com os riscos que também já referiu, riscos estes que precisavam de ser acautelados, face à possibilidade de uma situação inopinada surgida durante a noite.

5.º - A escala do serviço de prevenção é elaborada pelo próprio Demandante, estando normativamente previsto que para cada período do serviço de prevenção seja escalado um  especialista de polícia científica (EPC).

6.º - Quando toma decisões como aquela que tomou, pensa no que lhes está subjacente, nomeadamente nos reflexos nas vidas pessoais e familiares dos seus subordinados; e isso aconteceu na concreta decisão aqui em causa; daí a conversa pessoal que existiu previamente com o Demandante, explicando-lhe as razões por que tinha de ser este a participar nas referidas buscas ao lar de idosos, sendo que ele sabia não haver mais ninguém disponível, pois quatro dos seis especialistas de polícia científica (EPC) existentes estavam em jornada contínua ou de baixa, estando o quinto de prevenção.

7.º - Tais buscas ao lar de idosos tinham mesmo de ser feitas antes das 09H00, porque o que estava em causa eram maus-tratos a idosos e verificar se estes ocorriam, ou não, se os idosos estavam, ou não, abandonados, implicava uma observação antes da entrada dos funcionários da manhã, pois era preciso ter a certeza se ao fim da noite estava, ou não, alguém a tomar conta dos idosos, se estes estavam, ou não, bem acamados, se tinham, ou não, proteção, se tinham, ou não, higiene, se havia, ou não, pequeno-almoço.

8.º - Este tipo de decisão, em que se opta por recorrer a alguém que não está escalado para os serviços de piquete ou de prevenção, só ocorre quando é absolutamente necessário; por regra, recorre-se a quem está escalado; mas, no caso concreto, foi preciso acautelar as duas situações: por um lado, uma diligência programada para começar às 07H00 e, por outro lado, a garantia da prevenção noturna, que em ... é muito solicitada; e repetiu que, se tivesse havido uma convocação inopinada de quem estava escalado para uma diligência às 06H30 da manhã, essa pessoa deixaria de poder participar nas buscas ao lar de idosos se a ela tivesse sido atribuída também essa tarefa, sem que houvesse então forma de pedir a outro elemento, que só iniciava funções às 09H00, que avançasse para o acompanhamento dessas buscas.

9.º - A especificidade referida destas buscas ao lar de idosos tornaram esta situação excecional: tratava-se de um lar de idosos ilegal, conhecido da comunicação social, em que os utentes tiveram de ser reencaminhados pela Segurança Social para um outro lar, sendo inevitável fazer a operação logo às 07h00 pelas razões já referidas.

10.º - Quanto à operação ocorrida no dia 10 de maio de 2023, também ela com a participação do Demandante, tratou-se de uma operação realizada dentro das horas de expediente, que terá terminado, segundo se recorda, pouco depois das 17H30, mas sendo que a hora exata em que a mesma terminou estará documentada no processo respetivo.

 

Cumpre, pois, apreciar e decidir a presente ação.

 

III – Da fundamentação de facto

 

III.1 – O Tribunal decide considerar provados os factos que, tendo sido alegados e que relevam para a decisão da presente causa, a seguir se especificam:

 

1.º - O Demandante, casado com B..., é funcionário da Polícia Judiciária, integrando a carreira (especial) de especialista de polícia científica (EPC) e exercendo funções no Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... .

 

2.º - Por comunicação de correio eletrónico das 15H39 do dia 8 de março de 2023, o Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... da Polícia Judiciária,  C..., determinou que o Demandado colaborasse nas buscas domiciliárias num lar de idosos a ocorrerem, no âmbito de um inquérito criminal, com início às 07H00 do dia 9 de março de 2023.

 

3.º - Tal determinação foi justificada por causa das “limitações dos elementos do GPC deste DIC (2 EPC com jornada contínua; 2 EPC em formação; e 1 EPC escalado para o serviço de prevenção)”, razão por que, considerando tais limitações, se concluiu que “o único elemento disponível é o Sr. EPC A...”.

 

4.º - Por comunicação de correio eletrónico das 15H45 do dia 8 de março de 2023, o Demandante, em resposta à comunicação identificada nos 2.º e 3.º factos considerados provados, escreveu o seguinte, dirigido ao Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... da Polícia Judiciária, C...: “Cumpre-me solicitar a V. Exa., qual o regime de trabalho que o signatário foi designado, em virtude de não se encontrar escalado para serviço de Piquete ou Serviço de Prevenção, sendo a informar V. Exa. que o signatário tem a cumprir compromissos de índole familiar.”

 

5.º - Por comunicação de correio eletrónico das 15H53 do dia 8 de março de 2023, o Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... da Polícia Judiciária,  C..., responde à comunicação identificada no anterior facto considerado provado, escrevendo o seguinte: “Perante as dúvidas infra colocadas, e não estando escalado para o serviço de prevenção, como se infere do meu email, o regime aplicado a esta minha determinação será idêntico ao serviço de prevenção ativo, visto que a diligência para a qual foi nomeado, implica trabalho efetivo.”

 

6.º - As buscas domiciliárias identificadas no 2.º facto considerado provado, que efetivamente ocorrerem e que ocorreram com a participação do Demandante, tiveram de começar às 07H00, antes da entrada dos funcionários do turno da manhã do lar de idosos em causa, por ser necessário verificar o modo de tratamento dos idosos, maxime se eram ou não alvo de maus-tratos, verificação essa que resultaria prejudicada ou dificultada se tais buscas ocorressem numa hora mais tardia, já depois da intervenção dos funcionários do lar responsáveis pelo turno iniciado pela manhã.

 

7.º - A determinação, identificada nos 2.º, 3.º e 5.º factos considerados provados, para que o Demandante acompanhasse, na sua qualidade de especialista de polícia científica (EPC) e apesar de não estar escalado para o serviço de piquete ou para o serviço de prevenção, as referidas buscas domiciliárias no lar de idosos, teve por fundamento um ato de gestão de pessoal do Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... da Polícia Judiciária,   C..., que, confrontado com as “limitações” dos demais cinco especialistas de polícia científica (EPC) integrantes do gabinete de polícia científica (GPC) desse Departamento [dois com jornada contínua, dois em formação (ou de baixa) e um escalado para o serviço de prevenção], optou por determinar que fosse o Demandante a acompanhar as referidas buscas, assim deixando o Colega escalado para o serviço de prevenção disponível para qualquer outra diligência inopinada e urgente que pudesse surgir.

 

8.º - Do Relatório do Serviço de Piquete do período noturno de 8 para 9 de março de 2023, extrai-se que o piquete não foi acionado para qualquer operação externa, que não foi convocado qualquer funcionário escalado para o serviço de prevenção e que o piquete foi constituído por um inspetor chefe, por quatro inspetores e por uma especialista adjunta de criminalística.

 

9.º - O Demandante leva normalmente à escola, que começa às 08H00, o seu filho de 12 anos (na altura), o que deixa de poder assegurar se for chamado para serviço fora do seu horário normal de trabalho com início numa hora matinal incompatível com essa tarefa familiar, algo que ocorreu na manhã do dia 9 de março de 2023, sem que tivesse podido reorganizar com a sua mulher a rotina familiar, por a sua convocação para as funções fora do horário normal de trabalho que lhe foram atribuídas nesse dia ter ocorrido sem a necessária antecipação, e algo que lhe causou preocupação, desassossego e dispêndio de tempo na busca de solução, obrigando o Demandante e o seu filho a acordarem às 05H00, para que este fosse transportado este até à casa da avó, tendo sido esta a dar ao neto a medicação que ele normalmente toma e a levá-lo à escola.

 

10.º - No dia 10 de maio de 2023, foi determinado ao Demandante, que cumpriu o determinado, que prestasse trabalho, entre as 16H30 e as 19H00, para realização de exame pericial no âmbito de um outro inquérito criminal.

 

11.º - Depois de o artigo 28.º, sob a epígrafe “Dever de disponibilidade”, do Estatuto Profissional do Pessoal da Polícia Judiciária (EPPJ), estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 138/2019, de 13 de setembro, estatuir que os trabalhadores das carreiras especiais devem manter permanente disponibilidade para o serviço, e depois de o artigo 33.º, sob a epígrafe “Serviço permanente”, estatuir que o serviço na Polícia Judiciária é de caráter permanente e obrigatório e que compete ao diretor nacional, entre o mais, determinar os regimes de prestação de trabalho e respetivos horários e autorizar os serviços de piquete e de prevenção, dispõe o artigo 34.º, agora sob a epígrafe “Regimes e horários de trabalho”, o seguinte:

1 – Aos trabalhadores das carreiras especiais aplica-se o regime de duração do período normal de trabalho estabelecido para os trabalhadores com vínculo de emprego público, na modalidade de nomeação, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

2 – O serviço prestado pelos trabalhadores das carreiras especiais é de caráter permanente, o que determina a obrigatoriedade da sua prestação durante o dia ou noite, incluindo os dias de descanso semanal, complementar e feriados.

3 – O serviço permanente é assegurado, fora do horário normal de trabalho, através de serviços de piquete, nas unidades orgânicas de investigação em que se justifique, e de um sistema de turnos e de prevenção, cuja organização e funcionamento consta de regulamento submetido pelo diretor nacional da PJ a homologação do membro do Governo responsável pela área da justiça.

4 – Compete ao dirigente máximo fixar o número de serviços de piquete e de prevenção, assim como o número de trabalhadores e a respetiva rotatividade. 

 

12.º - Ainda à luz do n.º 4 do artigo 13.º da Lei Orgânica da Polícia Judiciária aprovada pelo Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro, o Despacho n.º 248/MJ/96, de 10 de dezembro de 1996, publicado no Diário da República – II Série, N.º 5 – 7-1-1997, páginas 182 e 183, regulamentou o serviço de piquete, o serviço de unidades de prevenção e os turnos de funcionários, entendendo-se por serviço de unidades de prevenção (cfr. artigos 14.º e 15.º) aquele em que, funcionando fora do horário normal de trabalho diário, “o pessoal, não estando obrigado a permanecer fisicamente nas instalações, fica permanentemente contactável e disponível para acorrer às necessidades do serviço quando para tal seja solicitado”.

 

13.º - Do Despacho n.º 06/2002-..., entretanto subscrito, em 15 de fevereiro de 2002, para entrar imediatamente em vigor, pelo Diretor Nacional, ..., consta o seguinte em matéria de “Serviço de Prevenção” e em matéria de “Gestão e Controlo Administrativo”:

1. Serviço de Prevenção

1.1 – O Serviço que à Polícia Judiciária compete assegurar em regime de permanência é regularmente prestado, fora do horário normal, por serviços de unidades de prevenção (prevenção passiva) ou piquete, para o efeito previamente escalados.

1.2 – Considera-se de caráter permanente o serviço que, correspondendo à necessidade de assegurar a realização, ou continuação da realização, de atos de prevenção, investigação ou apoio à investigação, de cujo adiamento, ou interrupção da prestação, resultaria irremediável prejuízo para o sucesso da investigação.

1.3 – O serviço que, nos termos do número anterior, se deva realizar fora do horário normal de trabalho e não possa ser assegurado pelas unidades de prevenção ou piquete, será prestado em regime de reforço às unidades de piquete ou prevenção (prevenção ativa) e remunerado nos termos dos artigos 4.º, 5.º, 6.º e 7.º da Portaria  n.º 98/97, de 13 de fevereiro.

1.4 – Compete ao dirigente da unidade orgânica, suportado no juízo de imprescindibilidade referido em 1.2, a decisão de prestação de trabalho fora do período normal (prevenção ativa), não estando por isso na disponibilidade do funcionário que o presta.

1.5 – Do trabalho realizado nas circunstâncias dos números anteriores, bem como da prestação efetiva de trabalho quando integrando o serviço de unidades de prevenção, será elaborado, individualmente, um “Mapa do Serviço de Prevenção e Prestação Efetiva de Trabalho”, cujo impresso modelo se encontra disponível na rede, o qual, depois de visado pelo superior hierárquico, será submetido a despacho do dirigente da unidade.

(...)

3. Gestão e Controlo Administrativo

3.1 – Para além da fundamentação atrás referida, porque a prestação de trabalho fora do horário normal se reveste de caráter excecional, o recurso a tal prestação  apenas deverá ter lugar para a execução de tarefas que não possam e/ou não devam ser realizadas dentro do período normal de trabalho ou pelas unidades que têm por finalidade assegurar o trabalho fora deste período.

3.2 – Como consequência do pressuposto referido no número anterior, sobre as chefias nos diversos níveis da cadeia hierárquica, em geral, e sobre os dirigentes, em particular, impende um duplo dever de garantir a plena execução da missão de cada unidade dentro do período normal de trabalho e o de garantir o rigoroso cumprimento do horário de trabalho.  

 

14.º - Por seu turno, o Despacho n.º 11/2002-..., subscrito, em 20 de março de 2002, pelo Diretor Nacional, ..., para além de aclarar que o regime previsto nos pontos 1.2 a 1.5 do Despacho n.º 06/2002-... se aplica também ao pessoal de apoio à investigação criminal, vem esclarecer que a “prevenção ativa” abrange “todos os funcionários que, integrando unidades de prevenção – prevenção passiva –, forem chamados à prestação efetiva de trabalho e aqueles que, não integrando tais unidades, prestarem serviço nos termos dos pontos 1.2 e 1.3 do despacho em epígrafe – reforço às unidades de prevenção”, logo acrescentando que:

Do exposto resulta a possibilidade de ocorrência de três regimes diferentes (...): os regimes de “prevenção passiva”, de “prevenção passiva e ativa” e o de “prevenção ativa”, consoante os funcionários, respetivamente, integrem as unidades de prevenção mas não sejam chamados à prestação efetiva de trabalho, integrem as unidades de prevenção e sejam chamados à prestação efetiva de trabalho ou não integrem as unidades de prevenção e sejam, nos termos do despacho em epígrafe, chamados à prestação de serviço fora do horário normal de trabalho. 

 

15.º - E o Despacho n.º 24/2002-..., subscrito, em 26 de junho de 2002, pelo Diretor Nacional,  ..., veio assinalar que, competindo ao dirigente da unidade orgânica o “juízo de imprescindibilidade” da prestação de trabalho fora do período normal – prevenção ativa –, conforme o ponto 1.4 do referido Despacho n.º 06/2002-..., sobre esse dirigente “recai a responsabilidade pela manutenção efetiva da natureza rigorosamente excecional deste tipo de prevenção”.

 

16.º - No ponto 2.3.8 do Relatório Final de Auditoria ao Pagamento de Remunerações Variáveis por Parte da Polícia Judiciária (datado de 23 de janeiro de 2020 e homologado por despacho de 21 de fevereiro de 2020 da Ministra da Justiça) questiona-se a pertinência do suplemento remuneratório da prevenção passiva, já que a disponibilidade em causa “existe sempre, como aliás decorre do facto de um trabalhador poder ser chamado a prevenção ativa sem estar escalado em prevenção passiva”, acrescentando-se poder dizer-se “que a disponibilidade de quem está de prevenção é de um grau superior à de quem não está”, (...) mas que “essa diferença de grau é, essencialmente, uma questão de prioridade (e, portanto, de probabilidade) na chamada ao serviço, e mesmo assim só se não houver circunstâncias particulares que determinem a chamada de quem não está de prevenção”; daí que, na recomendação n.º 7, o mesmo Relatório aponte para a revisão da “regulamentação da prevenção”, nomeadamente para “dar base legal clara à prevenção ativa independentemente da prevenção passiva, fora ou dentro do ‘horário normal de trabalho’”, tendo o Diretor Nacional, ..., acolhido tal recomendação, em 21 de janeiro de 2020, remetendo para a regulamentação prevista no referido Decreto-Lei n.º 138/2019, de 13 de setembro.

 

III.2 – O Tribunal decide considerar não provados os factos que, tendo sido alegados e que relevam para a decisão da presente causa, a seguir se especificam:

 

1.º - Da realização das buscas domiciliárias identificadas no 2.º facto considerado provado dentro do horário normal de trabalho não resultaria prejuízo para o sucesso da investigação, inexistindo motivo para que as mesmas se não pudessem realizar dentro do período normal de trabalho.

 

2.º - É recorrente que o Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... da Polícia Judiciária determine a realização de atos de prevenção, investigação ou apoio à investigação antes das 09H00.

 

3.º - A insuficiência de recursos humanos que integram as unidades de prevenção e os serviços de piquete concorre para que tais serviços não sejam contactados, sendo reservados para o caso de vir a surgir uma situação efetivamente urgente que reclame uma intervenção imediata, ficando a generalidade dos funcionários, incluindo o Demandante, à mercê de serem chamados a prestar trabalho rotineiro fora do período normal de trabalho.

 

4.º - Pelo menos, uma vez por mês, o Demandante é chamado a prestar trabalho fora do horário normal, sem que esteja de piquete ou de prevenção, e para colaborar em diligências pré-programadas, não urgentes, como buscas, identificação de arguidos e realização de exames periciais.

 

III.3 – Todos os factos considerados provados constituem, objetivamente e entre as Partes, factos incontroversos.

 

O 1.º facto considerado provado foi-o porque, para além de assente por acordo das Partes e de ter de considerar-se ínsito no documento 1 da petição inicial, resulta integralmente da Ficha Biográfica do Demandante, constante do Processo Administrativo que foi junto aos autos pelo Demandado com a contestação.

 

Os 2.º, 3.º, 4.º e 5.º factos considerados provados foram-no por resultarem expressamente do documento 1 da petição inicial.

 

O 6.º facto considerado provado foi-o, quanto ao segmento de que as buscas em causa efetivamente ocorrerem e que ocorreram com a participação do Demandante, por se tratar de matéria absolutamente incontroversa entre as Partes; e foi-o, quanto agora à necessidade de essas buscas terem de ter começado às 07H00, com base no depoimento prestado em audiência por C..., Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... da Polícia Judiciária, sendo que a verosimilhança da explicação é de tal forma patente que a solidez da comprovação factual em causa é incontornável.

 

O 7.º facto considerado provado, para além de coerente com o teor do 3.º facto considerado provado, foi-o com base no depoimento prestado em audiência por C..., Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... da Polícia Judiciária, sendo que, uma vez mais, a verosimilhança da explicação é de tal forma patente que a solidez da comprovação factual em causa é incontornável.

 

O 8.º facto considerado provado foi-o com base no próprio teor do Relatório nele referido, constante do Processo Administrativo que foi junto aos autos pelo Demandado com a contestação.

 

O 9.º facto considerado provado foi-o com base na prudente ponderação do que o Demandante alega nos artigos 23.º a 29.º da petição inicial, conjugadamente com o depoimento prestado em audiência pela sua mulher,  B..., e com a plausibilidade, face à experiência comum, do que, em ambos os momentos, se afirmou.

 

O 10.º facto considerado provado foi-o com base no boletim diário (aprovado) junto aos autos pelo Demandante através do requerimento de 10 de janeiro de 2024.

 

O 11.º facto considerado provado foi-o com base no próprio teor das disposições normativas que nele se referem e que integram o Decreto-Lei n.º 138/2019, de 13 de setembro.

 

Os 12.º, 13.º, 14.º e 15.º factos considerados provados foram-no com base no próprio teor das disposições normativas que neles se referem e que integram os Despachos respetivos, constantes do Processo Administrativo que foi junto aos autos pelo Demandado com a contestação, sendo que o Despacho n.º 06/2002-... constitui igualmente o documento 2 da petição inicial.

 

O 16.º facto considerado provado foi-o com base no próprio teor, seja do Relatório nele referido, seja do ofício de 21 de janeiro de 2020 do Diretor Nacional da Polícia Judiciária, ..., também nele referido, ambos juntos aos autos pelo Demandado através do requerimento de 11 de setembro de 2023.

 

III.4 – Por seu turno, os factos considerados não provados foram-no por traduzirem meras afirmações feitas pelo Demandante, que o Demandado impugna, absolutamente desprovidas da produção de qualquer prova que as permita sustentar factualmente.

 

Na verdade, é absolutamente gratuita a afirmação de que as buscas domiciliárias identificadas no 2.º facto considerado provado poderiam, sem qualquer prejuízo, ter sido realizadas dentro do horário normal de trabalho, tratando-se, aliás, de matéria de oportunidade investigatória que o Demandante não está em condições funcionais de poder avaliar e, para mais, de matéria sobre a qual, como se viu, foi produzida prova testemunhal exatamente em sentido contrário.

 

Tal como são absolutamente gratuitas, por desacompanhadas de qualquer prova, as afirmações, seja do caráter recorrente com que o Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de... da Polícia Judiciária determina a realização de diligências antes das 09H00, seja de que uma vez por mês, pelo menos, é o Demandante chamado a prestar trabalho fora do horário normal de trabalho, apesar de não estar de piquete ou de prevenção; diga-se, aliás, que se trata de afirmações totalmente incompatíveis com o conteúdo dos depoimentos de ambas as testemunhas ouvidas em audiência.

 

E também nada se provou, ou sequer tentou provar-se, quanto à insuficiência de recursos humanos que concorre para que o serviço de prevenção seja reservado para situações urgentes e inopinadas; embora uma tal afirmação do Demandante – sublinhe-se este ponto – não deixe de constituir, em si mesma, uma “confissão” do quanto está ele bem ciente de que o chamamento dos funcionários, não escalados para as unidades de prevenção, para que prestem serviço fora do horário normal de trabalho assenta, pelo menos tendencialmente, em razões sérias, inerentes à gestão, necessária e adequada, dos recursos humanos disponíveis.

 

IV – Da fundamentação de Direito

 

IV.1 – Na base dos pedidos que formula, identificados supra em II.1, está o entendimento do Demandante, no que é essencial, de que a decisão tomada pelo Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... da Polícia Judiciária,  C..., no sentido de ordenar a prestação de trabalho pelo Demandante, para acompanhamento, fora do seu período normal de trabalho, das buscas domiciliárias identificadas no 2.º facto considerado provado, constitui um ato ilegal e anulável, por não ter assentado no juízo de imprescindibilidade subjacente às disposições do Despacho n.º 06/2002-..., já que, segundo ele, “não estava em causa ato de prevenção, investigação ou apoio à investigação, de cujo adiamento, ou interrupção da prestação, resultasse irremediável prejuízo para o sucesso da investigação”, sendo que “também não se tratava de ato que não pudesse ser assegurado pelas unidades de prevenção ou piquete”.

 

Como se deixou claro no Despacho n.º 1, de 25 de setembro de 2023, o Demandante não questiona a legalidade do referido Despacho n.º 06/2002-..., maxime por o mesmo regular um “serviço de prevenção” que abrange funcionários não previamente escalados para o “serviço de piquete” ou para o “serviço (de unidades) de prevenção”; o Demandante questiona, isso sim, a legalidade da concreta decisão, de 8 de março de 2023, que o sujeitou a um tal “serviço de prevenção”, por considerar não verificadas, in casu, as condições previstas nesse Despacho n.º 06/2002-... para que se pudesse recorrer a esse mesmo serviço.

 

Isto extrai-se da forma como o Demandante formula, a final, o seu pedido, já antecipado no artigo 30.º da petição inicial, ao referir-se a uma situação em que, não estando “integrado no serviço de piquete ou prevenção”, “não se encontrem cumpridas as condições previstas no Despacho n.º 06/2002-...” (ou, ainda, “sem que se verificassem as condições previstas no Despacho n.º 06/2002-...”); mas extrai-se, igualmente, da forma como o Demandante articula sequencialmente a sua petição inicial, maxime os artigos 36.º e 37.º.

 

Na verdade, se o Demandante, no artigo 36.º, constata que “o trabalho a prestar em regime de prevenção pressupunha que os trabalhadores estivessem previamente integrados em escala”, logo no artigo 37.º aduz o seguinte, sem nunca contestar a criação, de per se, de um tal regime de “reforço”: “Sucede que, por via do Despacho 06/2002-..., veio a ser criado o designado reforço às unidades de prevenção, permitindo, verificadas certas condições, que trabalhadores que não integram as Unidades de Prevenção sejam chamados à prestação efetiva de trabalho (...).”

 

Para mais, este sentido da fundamentação da pretensão do Demandante resulta notoriamente comprovado pelo seu requerimento de 20 de setembro de 2023, no qual se pronuncia sobre o já referenciado Relatório Final de Auditoria ao Pagamento de Remunerações Variáveis por Parte da Polícia Judiciária.

 

De facto – para além de se pronunciar sobre a existência de um horário normal de trabalho nas carreiras especiais da Polícia Judiciária (cfr. pontos 4 e 5) –, nos pontos 1, 2 e 3 desse seu requerimento de 20 de setembro de 2023, afirma o Demandante:

1 – Com a menção ao relatório de auditoria, pretendia o Réu fazer prova do alegado nos artigos 14.º e seguintes da sua contestação.

2 – Sendo certo que o artigo 14.º da contestação reproduz fielmente uma parte do ponto 2.3.8 da página 54 da auditoria [“Poder-se-á dizer que a disponibilidade de quem está de prevenção é de um grau superior à de quem não está, e isso não será incorreto, (...). Mas essa diferença de grau é, essencialmente, uma questão de prioridade (e, portanto, de probabilidade) na chamada ao serviço, e mesmo assim só se não houver circunstâncias particulares que determinem a chamada de quem não está de prevenção”], o que está em causa nos presentes autos é o facto de, no caso em apreço, não se verificarem as tais “circunstâncias particulares” que legitimam a chamada de quem não está de prevenção e que são definidas nos pontos 1.3, 1.4 e 3.2 do Despacho 06/2002-... .

3 – Aliás, como assinala o relatório de auditoria, a atribuição de um suplemento de prevenção passiva a quem está integrado na escala de prevenção corresponde necessariamente a um acréscimo de disponibilidade/prontidão relativamente a quem, não estando integrado em escala de prevenção e não auferindo suplemento de prevenção, é chamado a prestar trabalho.

 

Ou seja, para o Demandante a ilegalidade alegadamente verificada in casu estará no facto de, não tendo ele sido integrado numa escala para prestar serviço em regime de prevenção, ter sido chamado para prestar efetivamente serviço no tal apelidado regime de “reforço às unidades de prevenção”, sem que, segundo ele, estivessem concretamente verificadas as condições previstas no Despacho n.º 06/2002-... para que isso pudesse ocorrer.

 

Dito de outro modo, para o Demandante a ilegalidade existe quando, cumulativamente, o funcionário chamado a trabalhar fora do horário normal de trabalho não estiver integrado na escala do serviço de prevenção e não se verificarem as condições previstas no Despacho n.º 06/2002-...; bastando, portanto, que, alternativamente, esteja integrado na escala do serviço de prevenção ou que se verifiquem as condições previstas nesse mesmo Despacho para que a ilegalidade deixe de existir.

 

Sublinhe-se que o Demandante não alega ser-lhe devida qualquer retribuição (ou pagamento) pelo serviço de prevenção que desempenhou, como lhe foi determinado por aquela decisão de 8 de março de 2023, nem a esse título peticiona qualquer quantia na presente ação; o que o Demandante alega é a ilegalidade dessa mesma decisão, pretendendo que decisões idênticas se não repitam e que sejam compensados os danos morais que invoca e diz terem sido causados por tal decisão (dedicando os artigos 48.º a 70.º da petição inicial às razões, de facto e de Direito, por que entende existir, in casu, responsabilidade civil do Estado e o seu direito a ser compensado de danos morais, que avalia em € 500,00, acrescidos de € 4,93 de juros vencidos).

 

Por seu turno, o Demandado, contestando, sublinha, essencialmente, que: (i) a missão da Polícia Judiciária envolve diligências e operações efetuadas em qualquer hora do dia ou da noite, razão por que estão legalmente previstos os adequados regimes de horário e organização de trabalho, bem como de remuneração; (ii) o Demandante está sujeito a um regime legal de permanente disponibilidade para o serviço, sendo esta disponibilidade inerente à carreira que escolheu e respetivo conteúdo funcional; (iii) não compete ao Demandante pronunciar-se sobre se as buscas domiciliárias em causa podiam ou não realizar-se durante o seu horário normal de trabalho, pois (para além de não ter aduzido qualquer prova que permita infirmar o juízo de imprescindibilidade subjacente ao horário determinado para a concretização dessas buscas) são os seus superiores hierárquicos que têm de programar as diligências e operações, nos termos que considerem necessários, face aos respetivos contornos e à prossecução dos concretos objetivos em causa, que ele não conhece nem tem funcionalmente de conhecer; (iv) situações como aquelas buscas domiciliárias só ocorrem, como deve ser, em casos urgentes e em que não haja disponibilidade de outros trabalhadores; (v) é perfeitamente compreensível que se tivesse pretendido preservar a disponibilidade do outro especialista de polícia científica (EPC) escalado para o serviço de prevenção para uma qualquer outra diligência urgente e não programada que pudesse surgir.

 

Acrescenta o Demandado que o pedido do Demandante para que aquele se abstenha de determinar que este serviços fora do horário normal de trabalho, quando (não estando integrado nos serviços de piquete ou de prevenção) não se encontrem cumpridas as condições previstas no Despacho n.º 06/2002-..., constitui um pedido inadmissível, pois não se demonstra minimamente que a atuação para a qual se pretende a abstenção do Demandado é ilegal e suscetível de lesar um direito ou interesse legalmente protegido do Demandante.

 

Por fim, afirma o Demandado que inexiste qualquer sua responsabilidade civil, não só porque não se vislumbra qualquer ilicitude e culpa do Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... da Polícia Judiciária,  C..., ao ter ordenado a prestação de trabalho pelo Demandante, para acompanhamento, fora do seu período normal de trabalho, das buscas domiciliárias identificadas no 2.º facto considerado provado, tratando-se de uma decisão legítima, fundamentada e lícita, mas também porque, considerando o n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil, os danos não patrimoniais invocados não apresentam gravidade que lhes permita merecerem a tutela do Direito (“os simples incómodos, preocupações, desassossego e dispêndio de tempo alegadamente sofridos pelo Demandante (...) não se integram nas violações que, pela sua gravidade, a lei pretende ressarcir”; pois “que sempre seria necessário que tais realidades se mostrassem objetivamente concretizadas, que a sua amplitude, intensidade e duração se revelassem descritas e demonstradas, para que se pudesse avaliar e concluir se ocorreu dano e se este seria ou não grave e merecedor de tutela jurídica”).

 

IV.2 – Em tempo, produziram as Partes, simultaneamente, as suas alegações finais escritas.

 

O Demandante, para além de elencar os factos que entende deverem ser dados como provados, confirma que o que está em causa na presente ação arbitral é saber se a ordem dada pelo Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... da Polícia Judiciária,  C..., para que ele, que não estava escalado para os serviços de piquete ou de prevenção, colaborasse nas buscas domiciliárias no lar de idosos a ocorrerem, no âmbito de um inquérito criminal, com início às 07H00 do dia 9 de março de 2023, respeita as condições previstas no Despacho n.º 06/2002-... para a prestação de trabalho em regime de “prevenção ativa”; logo assumindo o Demandante uma resposta negativa, à luz, em síntese, dos seguintes argumentos:

a)    O Despacho n.º 06/2002-... pressupõe que o chamamento para a prestação de trabalho fora do horário normal por quem não está escalado para os serviços de piquete ou de prevenção só ocorra depois de acionados tais serviços e esgotados os respetivos meios humanos para os mesmos escalados, o que não ocorreu in casu;

b)    A diferente interpretação preconizada pelo Demandado revela um “jeito altaneiro” e não é conforme com o n.º 3 do artigo 34.º do Estatuto Profissional do Pessoal da Polícia Judiciária (EPPJ) e com os “direitos dos trabalhadores ao descanso e à organização do trabalho em termos que permitam conciliar a atividade profissional com a vida familiar”;

c)     Não colhe o argumento da necessidade de preservar o funcionário escalado para o serviço de prevenção para qualquer diligência inopinada e urgente que possa surgir, seja porque se isso ocorresse poder-se-ia, aí sim, recorrer à prestação de trabalho fora do horário normal para recompor a escala (“num real ‘reforço à unidade de prevenção’”), seja porque poderia sempre surgir mais do que uma dessas diligências inopinadas e urgentes.

 

Quanto ao pedido para que o Demandado se abstenha de determinar ao Demandante a prestação de serviços fora do horário normal de trabalho sem estar integrado nos serviços de piquete ou de prevenção, alega este que a referida interpretação do Despacho n.º 06/2002-... preconizada pelo Demandado “reforça o justo receio de que decisões idênticas à que está em causa nos autos se repitam, com notório prejuízo para o direito do Demandante ao repouso e à organização do trabalho em termos que permitam a conciliação da atividade profissional com a vida familiar”, sendo que não tem outra forma de, em tempo útil, assegurar uma tal tutela jurídica.

 

Por fim, em termos de responsabilidade civil, alega o Demandante: “Provados os danos resultantes do ato ilegal, é entendimento do Demandante que a perda de tranquilidade e a instabilidade pessoal e familiar causada pela decisão impugnada, serão dignos de ressarcimento, devendo o Demandado ser condenado nos termos peticionados.” 

 

Por seu turno, o Demandado reitera, nas suas alegações finais escritas, tudo quanto disse em sede de contestação e apresenta imediatamente as suas conclusões, das quais se transcreve aqui o seguinte:

Conforme se comprovou pelas declarações da testemunha C..., Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ..., foi o que se verificou no dia 8 de março de 2023, uma situação de exceção, que o dirigente do departamento onde se encontra colocado o Demandante, teve de resolver face a uma diligência a efetuar no dia seguinte bem cedo, num lar de idosos, antes da entrada dos funcionários do turno da manhã, e que, portanto, era necessário ser feita num período da manhã antes do horário normal de trabalho, e não sendo conveniente desfalcar os recursos humanos escalados para o piquete e prevenção, que deveriam ficar reservados para as situações imprevistas e não programadas e que têm de ser operacionalizadas imediatamente, houve necessidade de se recorrer ao Demandante, para participar na referida operação fora do horário normal de trabalho.

Ou seja, o Senhor Diretor do DIC de ... tomou a decisão no sentido de ordenar a prestação de trabalho fora do período normal de trabalho, assente no juízo de imprescindibilidade, a que se reporta o ponto 1.4, por referência ao ponto 1.2 e 3.1, todos do Despacho n.º 06/2002-... .

Por outro lado, confirma-se que a situação ocorrida foi, de facto, comprovadamente, excecional, conforme também resulta das declarações da testemunha B..., que expressamente declarou e confirmou que, a situação ocorrida na sequência da ordem de 8 de março de 2023 foi uma situação excecional e não tem memória de ter acontecido noutras situações.

(...)

Quanto ao trabalho prestado no dia 10 de maio de 2023, verifica-se que o trabalho foi iniciado dentro do período normal de trabalho, por isso se pode considerar que o serviço foi prestado dentro do horário normal e que se prolongou um pouco mais do que a hora normal de trabalho. Mas, terminando às 19.00h, não nos parecer que possa ser considerado como uma situação de ilegalidade, pois, não podemos esquecer o tipo de missão da PJ e o caráter permanente da prestação de trabalho pelos respetivos trabalhadores.

(...)

O que, tendo em atenção os registos trazidos pelo Demandante, também ocorreu apenas uma vez.

Nestes termos, face à missão da PJ, ao caráter permanente da prestação de trabalho do Demandante, à confirmação da imprescindibilidade e excecionalidade da prestação de serviço em causa nestes autos, deve considerar-se que a ordem impugnada está em conformidade com o Despacho n.º 06/2002-... .           

 

IV.3 – Quid juris?

 

IV.3.1 – Importa começar por delimitar, com a necessária clareza, os poderes de apreciação e decisão de que dispõe este Tribunal Arbitral, face à controvérsia que lhe é trazida pelas Partes, pois o artigo 3.º, n.º 1, do CPTA estatui que, considerando o princípio da separação e interdependência de poderes, “os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua atuação”, com o artigo 185.º, n.º 2, do mesmo CPTA a confirmar que, sobre as questões de legalidade em cada momento sub judice, os tribunais arbitrais “decidem estritamente segundo o direito constituído, não podendo pronunciar-se sobre a conveniência ou oportunidade da atuação administrativa”.

 

Neste ponto, reconhece, sem dificuldade, este Tribunal Arbitral que, ainda que no contencioso administrativo atual tenha deixado de estar-se perante uma mera jurisdição de cassação (invalidação), isso não pode, de modo algum, traduzir-se numa dupla administração, pois que é necessário preservar espaços autónomos próprios da Administração, salvaguardando a margem de livre apreciação e decisão da mesma.

 

Um tal judicial restraint, face a essa reserva de Administração, tem toda a pertinência na matéria sob apreciação e decisão na presente ação arbitral, pois não compete certamente a este Tribunal imiscuir-se nos juízos técnicos, táticos e operacionais inerentes, seja à decisão policial sobre a hora e o dia mais convenientes à concretização das buscas domiciliárias no lar de idosos, para a investigação criminal de maus-tratos, seja, até, à decisão policial sobre a conveniência de preservação dos recursos humanos de piquete e de prevenção para as situações urgentes e inopinadas, afetando às situações programadas para fora do horário normal de trabalho, como ocorreu com tais buscas, outros recursos humanos. 

 

Em contrapartida, compete certamente a este Tribunal verificar se tais decisões policiais, independentemente dos juízos de conveniência e oportunidade que inevitavelmente comportam em si mesmas, têm guarida nas normas que as regem, devidamente interpretadas, no caso as normas do Despacho n.º 06/2002-..., e não traduzem algum desvio de poder ou arbítrio, ou, dito de outro modo, se estão conformes com os princípios fundamentais da atividade administrativa, maxime da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da razoabilidade, da imparcialidade e da boa fé  (cfr. artigos 6.º, 7.º, 8.º, 9.º e 10.º do Código do Procedimento Administrativo e artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa).

 

IV.3.2 – Um segundo ponto de ordem se impõe, para sublinhar que o Demandante sustenta todas as suas pretensões, vendo bem as coisas, apenas em duas situações factuais, a saber: as buscas domiciliárias no lar de idosos ocorridas a partir das 07H00 do dia 9 de março de 2023; a realização de um exame pericial entre as 16H30 e as 19H00 no dia 10 de maio de 2023.

 

Daí que todas as afirmações do Demandante pelas quais procura inculcar a ideia de que estas duas situação são apenas exemplos de um padrão, não podem aceitar-se, por gratuitas e absolutamente desprovidas de comprovação; razão por que se considerou não provado ser recorrente a determinação da realização de atos de prevenção, investigação ou apoio à investigação antes das 09H00 ou que uma vez em cada mês, pelo menos, o Demandante seja chamado a prestar trabalho fora do horário normal, sem que esteja de piquete ou de prevenção, e para colaborar em diligências pré-programadas e não urgentes.

 

E, mesmo relativamente àquelas duas situações factuais, há diferenças assinaláveis, pois que sobre o exame pericial entre as 16H30 e as 19H00 do dia 10 de maio de 2023 nada o Demandante alegou, comprovou ou fez discutir sobre os contornos concretos dessa diligência ou sobre a conformidade da mesma às normas do Despacho n.º 06/2002-..., limitando-se a enunciá-la, à laia de exemplo da ultrapassagem do horário normal de trabalho.

 

Dito isto, temos pois de concluir que o thema decidendum da presente ação arbitral se reconduz, única e rigorosamente, à verificação da conformidade ao Despacho n.º 06/2002-... da determinação para que o Demandante participasse nas buscas domiciliárias no lar de idosos ocorridas a partir das 07H00 do dia 9 de março de 2023.

 

IV.3.3 – Sendo que, quanto a esta precisa questão, há que assinalar uma nítida evolução do posicionamento do Demandante ao longo da tramitação da presente ação arbitral. Entendamo-nos neste ponto.

 

Como assinalámos no Despacho n.º 1, de 25 de setembro de 2023, e retomámos supra em IV.1, o Demandante começou por assumir que o Despacho n.º 06/2002-... admite situações de imprescindibilidade de trabalho fora do horário normal por parte de funcionário não escalado para os serviços de piquete ou de prevenção; precisamente a razão por que afirmou que as referidas buscas domiciliárias no lar de idosos poderiam ter ocorrido dentro do horário normal de trabalho, sem que daí resultasse prejuízo para o sucesso da investigação.

 

Ora, certamente porque, entretanto, se terá apercebido da inviabilidade de uma tal afirmação, o Demandante evoluiu e, agora nas suas alegações finais escritas (cfr. supra IV.2), sustenta que o Despacho n.º 06/2002-... só admite o chamamento para a prestação de trabalho fora do horário normal por quem não esteja escalado para os serviços de piquete ou de prevenção depois de acionados tais serviços e esgotados os respetivos meios humanos para os mesmos escalados.

 

Esta “radicalização” da posição do Demandante surge bem assumida na forma como redige a conclusão segunda das suas alegações finais escritas, a saber: “Ainda que se admita que a diligência em causa tivesse de ser realizada naquela data e tivesse de ter início à hora determinada pelo dirigente, ficou demonstrado que não foi acionado o serviço de prevenção e piquete.”

 

Em abono da verdade, uma tal “mutação argumentativa” do Demandante já se intuía anteriormente, pois já em sede de contestação ele procurava enfatizar (cfr. supra 3.º facto considerado não provado) que a insuficiência de recursos humanos afetos aos serviços de piquete e de prevenção faz com que estes fiquem reservados para situações urgentes e inopinadas, com os funcionários não escalados para esses serviços a prestarem trabalho rotineiro fora do período normal.

 

É que, se esta (não provada) afirmação acaba por revelar (como se disse supra em III.4) um reconhecimento por parte do Demandante de que a prestação de trabalho fora do horário normal e fora dos serviços de piquete e de prevenção tende a assentar em razões sérias, inerentes à gestão, necessária e adequada, dos recursos humanos disponíveis, ela revela também que o que o Demandante verdadeiramente questiona é a falta de utilização prioritária de tais serviços sobre a prestação de trabalho fora do horário normal por quem para eles não foi previamente escalado.

 

IV.3.4 – Seja como for, não assiste razão ao Demandante, desde logo porque o Despacho n.º 06/2002-... não reconduz o juízo de imprescindibilidade nele pressuposto para a prestação de trabalho fora do horário normal por quem não esteja escalado para os serviços de piquete ou de prevenção à exigência de prévio acionamento de tais serviços e esgotamento das respetivas capacidades humanas; o que seria, aliás, como ficará claro, até um contrassenso. 

 

É que, no que aqui nos interessa, os serviços de piquete e de prevenção justificam-se essencialmente, como bem se compreende, pela necessidade de acautelar a disponibilidade de meios capazes de acorrerem a situações de urgência e inopinadas; já a demais prestação de trabalho fora do horário normal, podendo certamente ocorrer no reforço dos meios exigidos por tais situações urgentes e inopinadas, visa também corresponder a uma outra necessidade, da maior relevância, precisamente aquela verificada in casu: a resposta a operações programadas mas que, pelas características específicas da concreta investigação criminal em causa, têm de ser desenvolvidas fora do horário normal de trabalho.

 

Uma tal distinção terá passado despercebida ao Demandante; e, contudo, a mesma está nitidamente presente nas normas do Despacho n.º 06/2002-..., maxime nos seus pontos 1.2 e 1.4.

 

Obviamente, e por razões elementares de boa gestão dos recursos humanos e materiais disponíveis, a prestação de trabalho fora do horário normal por quem não está escalado para os serviços de piquete ou de prevenção [apelidada no Despacho n.º 06/2002-... (e também no Despacho n.º 11/2002-...) de “reforço às unidades de piquete ou prevenção (prevenção ativa)”] só deve ocorrer “para a execução de tarefas que não possam e/ou não devam ser realizadas dentro do período normal de trabalho ou pelas unidades que têm por finalidade assegurar o trabalho fora deste período” (de piquete ou de prevenção), tendo, por isso mesmo, “caráter excecional” (“natureza rigorosamente excecional”), isto mesmo tendo de ser assegurado pelas respetivas chefias ou direções (como resulta dos pontos 3.1 e 3.2 do Despacho n.º 06/2002-... e também do Despacho n.º 24/2002-...).

 

Mas, dito isto, não pode descurar-se que são os próprios pontos 1.3, 1.4 e 3.1 do Despacho n.º 06/2002-... a prever que a “prevenção ativa” ocorra em tarefas que “não possam e/ou não devam” ser desempenhadas no período normal de trabalho ou em tarefas que “não possam e/ou não devam” ser desempenhadas pelos serviços de piquete ou de prevenção; cabendo, óbvia e precisamente, no primeiro juízo (tarefas que “não possam e/ou não devam” ser desempenhadas no período normal de trabalho) situações como as buscas domiciliárias no lar de idosos ocorridas a partir das 07H00 do dia 9 de março de 2023, e cabendo, óbvia e precisamente, no segundo juízo (tarefas que “não possam e/ou não devam” ser desempenhadas pelos serviços de piquete ou de prevenção) situações como a necessidade de preservar a disponibilidade destes para situações de urgência e inopinadas.

 

Ora, ambos estes juízos e respetivas fundamentações estiveram claramente presentes na decisão do Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... da Polícia Judiciária, C..., para que o Demandante acompanhasse, na sua qualidade de especialista de polícia científica (EPC) e apesar de não estar escalado para os serviços de piquete ou de prevenção, as referidas buscas domiciliárias no lar de idosos ocorridas a partir das 07H00 do dia 9 de março de 2023 (cfr. supra 6.º e 7.º factos considerados provados).

 

Inequivocamente, tais buscas domiciliárias no lar de idosos refletem – como o próprio Demandante já terá reconhecido, face à evolução da sua argumentação que assinalámos – um serviço de caráter permanente, pois o seu adiamento para o horário normal de trabalho traria “irremediável prejuízo para o sucesso da investigação” (cfr. ponto 1.2 do Despacho n.º 06/2002-...), tendo sido precisamente um tal “juízo de imprescindibilidade” (cfr. ponto 1.4 do Despacho n.º 06/2002-...) a determinar a referida decisão do Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... da Polícia Judiciária, C... .

 

Decisão esta que, para mais, estando justificada como está, não reflete, minimamente que seja, desvio de poder, parcialidade, má fé ou tratamento arbitrário ou discriminatório do Demandante (o que, em boa verdade, também não foi por ele alegado); decisão esta que, estando justificada como está, é nitidamente justa e razoável; decisão esta que, por fim, considerando a permanente disponibilidade para o serviço que é legalmente inerente à carreira de especialista de polícia científica (EPC) da Polícia Judiciária, que o Demandante livremente escolheu abraçar, não pode deixar de reconhecer-se como perfeitamente proporcionada já que, como ocorreu in casu, não pode deixar de considerar-se necessário, adequado e estritamente proporcional recorrer ao trabalho fora do horário normal de um EPC não escalado para os serviços de piquete ou de prevenção para, no chamado “reforço às unidades de piquete ou prevenção (prevenção ativa)”, que constitui um regime regulamentado obrigatório, assegurar um ato programado de investigação criminal que imprescindivelmente, sob pena de irremediável prejuízo para o mesmo, teve de iniciar-se antes do horário normal de trabalho, assim permitindo também preservar a disponibilidade dos meios humanos escalados para os serviços de piquete e de prevenção para acorrerem a situações de urgência e inopinadas que pudessem surgir.

 

E, evidentemente, não faz sentido dizer, como o Demandante, que sempre poderia ocorrer um número de situações de urgência e inopinadas que acabasse por esgotar a disponibilidade dos meios humanos escalados para os serviços de piquete e de prevenção; pois, se haverá sempre o perigo de situações-limite, elas só revelam, contrariamente a uma tal lógica argumentativa do Demandante, a necessidade de criteriosa e cautelar gestão dos (sempre escassos) recursos humanos de piquete e de prevenção.

 

E também não faz sentido preconizar, como o Demandante, que se começasse então por convocar para os atos programados de investigação criminal que têm de ocorrer fora do horário normal de trabalho quem estivesse já escalado de piquete ou de prevenção, escalando depois para estes serviços de piquete ou de prevenção novos funcionários; pois que, por um lado, não se poderia obviamente preconizar substituições nas escalas só depois de constatado o esgotamento dos recursos primeiramente escalados para piquete e prevenção, e, por outro lado, uma alteração programada das escalas traduziria apenas uma diferente sequencialidade de atribuições de tarefas, como bem se evidência pela própria situação sub judice: as buscas domiciliárias no lar de idosos ocorridas a partir das 07H00 do dia 9 de março de 2023 teriam sido atribuídas ao colega do Demandante escalado nessa noite para o serviço de prevenção, com o Demandante a ser escalado para este serviço em substituição daquele, o que sempre, em abstrato, se poderia ter traduzido para o Demandante numa prestação de trabalho fora do horário normal e até com um nível de imprevisibilidade muito superior àquele que foi inerente às programadas referidas buscas.

 

Sendo ponto assente estar completamente arredado do objeto da presente ação arbitral a aferição da legalidade do Despacho n.º 06/2002-..., ainda assim não se diga, também como o Demandante acaba por dizer, que uma tal “diferente sequencialidade de atribuições de tarefas” corresponde à única interpretação desse mesmo Despacho compatível com o n.º 3 do artigo 34.º do Estatuto Profissional do Pessoal da Polícia Judiciária (EPPJ); pois que – sem prejuízo da preconizada revisão do “serviço/sistema de prevenção” em vigor, melhor o adequando ao caráter obrigatoriamente permanente do serviço prestado na Polícia Judiciária (cfr. supra 16.º facto considerado provado) – esse n.º 3, não só não reclama uma tal “diferente sequencialidade de atribuições de tarefas”, como admite uma ampla margem regulatória do sistema de prevenção, certamente compatível com a margem regulatória que foi assumida pelo Despacho n.º 06/2002-..., o qual, como sabemos, relaciona estreitamente com o “serviço de prevenção” a prestação de trabalho fora do horário normal por quem não está escalado para o piquete ou a prevenção, apelidando este trabalho não previamente escalado precisamente como “reforço às unidades de piquete ou prevenção (prevenção ativa)”.

 

Em conclusão, face à fundamentação que vem de enunciar-se, não pode, de todo, deixar de declarar-se a improcedência do primeiro pedido formulado pelo Demandante, a saber, a anulação, com fundamento em ilegalidade, da decisão de 8 de março de 2023, tomada pelo Diretor do Departamento de Investigação Criminal (DIC) de ... da Polícia Judiciária, no sentido de o Demandante, não previamente escalado para os serviços de piquete e de prevenção, prestar trabalho no dia seguinte fora do horário normal.

 

IV.3.5 – E, assim sendo, não pode também proceder o segundo pedido formulado pelo Demandante: A condenação do Demandado a abster-se de determinar que o Demandante preste trabalho fora do horário normal quando não estiver integrado nos serviços de piquete ou de prevenção e quando não se encontrarem cumpridas as condições previstas no Despacho n.º 06/2002-... .

 

Sem necessidade de recuperar aqui o que se revelou supra em IV.3.3 quanto à nítida evolução do posicionamento do Demandante sobre quais sejam afinal as ditas “condições previstas no Despacho n.º 06/2002-...”, é suficiente agora sublinhar que este seu segundo pedido não tem obviamente por objeto, o que o tornaria inadmissível, uma qualquer hipotética e indeterminada futura aplicação ilegal do Despacho n.º 06/2002-..., tendo antes por objeto – isso sim – a concreta futura aplicação deste Despacho em termos idênticos à aplicação que já concretamente do mesmo ocorreu com o Demandante, porque este considera ilegal esta concreta aplicação já ocorrida.

 

É este segundo pedido do Demandante que configura a presente ação arbitral como tendente também à condenação a uma abstenção de comportamento pela Administração Pública, à luz da atual alínea h) do n.º 1 do artigo 37.º do CPTA; e, como bem alerta o Demandado, a atuação para a qual se pretende a sua abstenção teria de ser considerada ilegal (para além, naturalmente, de ser suscetível de lesar um direito ou interesse legalmente protegido do Demandante).

 

Ora, tendo improcedido o pedido de declaração da ilegalidade precisamente da atuação para a qual se pretende agora a abstenção futura do Demandado, logicamente tem de improceder, por prejudicado, esta segunda pretensão do Demandante.

 

IV.3.6 – Tal como tem logicamente de improceder, por prejudicada, a pretensão indemnizatória do Demandante, sem necessidade aqui de outra fundamentação; pese embora algo merecesse ser dito, não estivesse tal pretensão prejudicada, seja sobre os termos como Demandante e Demandado a encararam, seja sobre a inegável perturbação da rotina familiar do Demandante causada pelas exigências daquela sua obrigação profissional cumprida a partir das 07H00 da manhã do dia 9 de março de 2023, sobretudo porque os contornos concretos de tal obrigação só puderam ser por ele conhecidos na véspera desse mesmo dia.  

 

V – Da Decisão Arbitral

 

À luz dos fundamentos expostos, declara-se totalmente improcedente a presente ação arbitral, absolvendo-se, consequentemente, o Demandado de todos os pedidos nela formulados pelo Demandante.

 

Registe e notifique.

 

6 de março de 2024

 

O Árbitro,

 

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Abílio de Almeida Morgado