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DECISÃO ARBITRAL
I - Relatório
R…, S. A., veio intentar a presente acção arbitral contra o M…, alegando, em síntese que: é uma sociedade comercial que tem por objecto principal o transporte público rodoviário de passageiros, seja em regime colectivo seja em regime dealuguer, efectuando, no exercício da sua actividade, transportes regulares, nacionais e internacionais, bem como alugando autocarros conduzidos por motoristas ao seu serviço; que o Demandado, no quadro das suas atribuições, sedirigiu aos serviços da Demandante com vista à obtenção de serviços de transporte colectivo de passageiros, em serviçoregular denominado TUC - Transportes Urbanos do …; que o Demandado tendo tomado conhecimento das condições da Demandante para a prestação do serviço de transporte de passageiros, decidiu contratar com esta serviços para o transporte urbano regular de passageiros no
...; que estes transportes deram origem a um conjunto de facturas que, depois de descontada uma nota de crédito de €8.217,60, totalizam o valor de € 123.799,88, IVA incluído; que as facturas foram remetidas para o Demandado, que asrecebeu e conferiu, sem reclamação alguma, ficando obrigado a liquidar a quantia pecuniária resultante de taisdocumentos, nas respectivas datas de vencimento; que, por factos exógenos à vontade da Demandante, o Demandado nada pagou; que, para além do capital em dívida, são ainda devidos juros à taxa legal, desde a data de vencimento, quecontabiliza até 5/04/2023, num total de € 11.095,50; que o Demandado deve à Demandante a quantia total de €132.881,38. Conclui pedindo a condenação do Demandado no pagamento de
€ 132.881,38, acrescidos dos juros vincendos à taxa legal máxima aplicável, até integral e efectivo pagamento. Indicoucomo “Valor dos autos” a quantia de € 132.881,38, juntou 18 documentos, sendo 17 deles facturas, e a remanescenteuma Nota de Crédito, e ofereceu testemunhas.
Regularmente citado, veio o Demandado oferecer a sua Contestação, defendendo-se por impugnação, na qual começa por impugnar todos os factos alegados na Petição Inicial, por considerar que os mesmos não se revelam precisos, não reflectem a realidade ou não se encontram devidamente provados.
Concretiza dizendo que, quanto aos factos alegados nos artigos 1.º e 2.º da Petição Inicial não foi apresentada certidão do registo comercial, pelo que fica por provar o objecto da Demandante; quanto ao artigo 3.º, refere que, além de não ser feita prova do interesse do Demandado na aquisição dos serviços, não foram detalhadas as circunstâncias dessarealidade; quanto ao facto alegado no artigo 4.º, refere que não resulta provada a celebração de contrato de prestação deserviços; quanto ao alegado no artigo 5.º, o Demandado reconhece ter recepcionado as facturas emitidas pelaDemandante, mas alega tê-las devolvido por ofício de 21.02.2022, pelo que não as aceitou, ficando impugnado o alegado no artigo 6.º. Em termos de direito, alega ainda o Demandado que não há lugar a responsabilidade contratual,por não haver contrato e por não se mostrarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil contratual, bemcomo que não há lugar à restituição por enriquecimento sem causa, pelo facto de a Demandante não provar que o Demandado usufruiu dos serviços de transporte por esta prestados. Juntou um documento e ofereceu duastestemunhas. Conclui pela improcedência da acção e pela sua absolvição de todos os pedidos.
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Foi proferido despacho arbitral em 15 de Maio de 2023, convidando a Demandante a oferecer Petição Inicialaperfeiçoada quanto a alguns aspectos de facto instrumentais, bem como concedendo ao Demandado o prazo para sepronunciar sobre o teor da Petição Inicial aperfeiçoada.
Em conformidade, veio a Demandante alegar: que é a sociedade comercial que tem vindo há décadas a assegurar o transporte público rodoviário de passageiros, seja em regime colectivo seja em regime de aluguer, em grande parte dosmunicípios do M… e da L…; que o Demandado, na prossecução dos interesses próprios da população residente na circunscrição do concelho do C…, prestou e presta um serviço denominado de Transporte Urbano do C…, queconsiste no transporte
rodoviário de passageiros, por veículos pesados, percorrendo as ruas da cidade de segunda a sexta- feira das 8h30 às 12h30 e das 15h00 às 19h00 e ao sábado das 8h00 às 13h00, sendo que, nos dias úteis, está também disponível um circuito de ligação à estação de comboios de S...; que, tendo tomado conhecimento das condições em vigor naDemandante, o Demandado decidiu contratar com esta serviços para o transporte urbano regular de passageiros no C…; que a Demandante prestou tais serviços a solicitação do Demandado, sem que se tenha verificado qualquerprocedimento pré-contratual ou contratual; que o tarifário praticado neste serviço de transporte foi e é definido peloDemandado, constando o mesmo da sua página na internet; que os passes mensais, sejam estes de pensionistas, de estudantes ou normais, bem como módulos de 10 bilhetes eram adquiridos na Câmara Municipal do C… e na própria Demandante, sendo que módulos de bilhetes, disponibilizados pela Câmara Municipal do C…, podem ser adquiridos no Centro de Convívio, na Casa da Juventude e Galeria J…, constituindo estas receitas proveitos do Demandado; que,produzida que seja a prova testemunhal, dúvidas não restarão que o transporte de passageiros de segunda a sexta-feiradas 8h30 às 12h30 e das 15h00 às 19h00 e ao sábado das 8h00 às 13h00, e nos dias úteis o circuito de ligação à estação de comboios de S… foi assegurado por veículos propriedade da Demandante e por motoristas ao seu serviço; que osserviços foram prestados de segunda a sábado, em todos os meses dos anos que melhor vêm descritos nas facturasemitidas e enviadas ao Demandado, por via postal, já juntas aos autos, das quais consta a respectiva data de vencimento; que o valor acordado entre a Demandante e o Demandado para tais prestações de serviço foi definido em função dos circuitos a realizar, horários e frequências e corresponde a um valor certo unitário e mensal, conforme evidenciado nas mesmas facturas; que dessa relação comercial resultaram as facturas e valores alegados, as quais indicam em concreto os períodos mensais e os valores correspondentes aos serviços prestados; que, como já exposto, as facturas foramremetidas ao Demandado, por via postal, que as recebeu e conferiu, sendo que por factos exógenos à vontade daDemandante, e por conta de tais débitos, o Demandado nada pagou; que foi deduzida a quantia de € 8.217,69 correspondente a uma Nota de Crédito, emitida pela Demandante em 30.11.2021, com o número 7905210154 respeitante a quantias recebidas por esta (receitas geradas do Transporte Urbano do C…) pertencentes ao Demandado.
No prazo, veio o Demandado pronunciar-se sobre o alegado pela Demandante, referindo, em resumo: que aDemandante não satisfez integralmente o convite ao aperfeiçoamento; que
corresponde à verdade o alegado nos artigos 1.º e 2.º; que os factos constantes dos artigos 3.º e 4.º são insuficientes para a concretização do putativo contrato entre as partes; que a Demandante não provou a intenção do Demandado de adquirir os serviços nem detalhou as circunstâncias dessa realidade; que a Demandante só se referiu aos horários da prestação de serviços, dizendo, pois, que o “transporte dos passageiros de segunda a sexta-feira das 8h30 às 12h30 e das15h00 às 19h00 e ao sábado das 8h00 às 13h00, e nos dias úteis o circuito de ligação à estação de comboios de S… foi assegurado por veículos propriedade da Demandante e por motoristas ao seu serviço”; que das facturas emitidas pelaDemandante apenas resultam elementos como a data de registo, a data do documento e os valores a cobrar, com e sem IVA, não se descortinando as datas de envio ao Demandado nem tão pouco as datas do respectivo vencimento; que o Demandado recepcionou as facturas, mas devolveu-as, por ofício de 21.02.2022, pelo que não as aceitou. Conclui pelaimprocedência da alegação da Demandante e pela absolvição do Demandado da presente lide.
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Foi proferido despacho arbitral em 15 de Junho de 2023, ouvindo as partes quanto à decisão do processo apenas combase no suporte documental e demais elementos disponíveis nos autos.
No prazo, vieram, respectivamente, a Demandante dizer que não prescindia da audiência – e aditar uma testemunha aorol – e o Demandado que não se opõe à decisão arbitral nos indicados termos referidos no despacho. Posteriormente, oDemandado veio prescindir da inquirição das testemunhas por si arroladas.
Foi, em face da posição das partes, designada data para a audiência, que se desenrolou em 6 de Julho de 2023, com observância do devido formalismo, tendo sido ouvidas duas testemunhas oferecidas pela Demandante, sendo que esteprescindiu do depoimento da outra testemunha.
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O presente Tribunal é composto pelo árbitro singular signatário, o qual integra a lista de árbitros do CAAD em matéria administrativa, e foi constituído em 11 de Maio de 2023, data da notificação às partes da aceitação do encargo (artigo17.º do RCAAD).
II - Saneamento
O Tribunal é competente, atendendo a que as partes declararam aceitar compromisso arbitral que se enquadra noobjecto do CAAD (n.º 1 do artigo 8.º do RCAAD).
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As partes gozam de personalidade e capacidade jurídicas e judiciárias, bem como de legitimidade
ad causam, e encontram-se devidamente representadas por mandatários regularmente constituídos.
A. Questão a decidir
A questão a decidir nestes autos é a de saber se a Demandante tem, ou não, direito ao pagamento dos serviçosalegadamente prestados ao Demandado e respectivos juros de mora.
B. Fundamentação de facto
i) Factos Assentes
Nos presentes autos, considera-se assente, com interesse para a decisão a tomar, a seguinte factualidade:
a) A Demandante é a sociedade comercial que tem vindo há décadas a assegurar o transporte público rodoviário de passageiros, seja em regime colectivo seja em regime de aluguer, em grande parte dos Municípios do M… e daL…;
b) O Demandado na prossecução dos interesses próprios da população residente na circunscrição do concelho doC…, prestou e presta um serviço denominado de Transporte Urbano do C…., que consiste no transporte rodoviário de passageiros, por veículos pesados, percorrendo as ruas da cidade de segunda a sexta-feira das 8h30 às 12h30 e das15h00 às 19h00 e ao sábado das 8h00
às 13h00, sendo que nos dias úteis, está também disponível um circuito de ligação à estação de comboios de S…;
c) Tendo tomado conhecimento das condições em vigor na Demandante, para a prestação do serviço de transporte de passageiros, o Demandado decidiu contratar com esta serviços para o transporte urbano regular de passageiros noC…, como vinha fazendo há mais de dez anos;
d) A Demandante, prestou tais serviços a solicitação do Demandado, sem que se tenha verificado qualquerprocedimento pré-contratual ou contratual;
e) O tarifário praticado neste serviço de transporte foi e é definido pelo Demandado, constando o mesmo da sua páginade internet, disponível em …;
f) Os passes mensais, sejam estes de pensionistas, de estudantes ou normais, bem como módulos com 10 bilhetes eram adquiridos na Câmara Municipal do C… e no Demandado, sendo que módulos de bilhetes, disponibilizados pela Câmara do C…, podem ser adquiridos no Centro de Convívio, na Casa da Juventude e Galaria J…,constituindo estas receitas proveitos do M…;
g) O transporte dos passageiros de segunda a sexta-feira das 8h30 às 12h30 e das 15h00 às 19h00 e ao sábado das 8h00 às 13h00 e, nos dias úteis, o circuito de ligação à estação de comboios de S… foi assegurado por veículospropriedade da Demandante, e por motoristas ao seu serviço;
h) Assim, os serviços foram prestados de segunda a sábado, em todos os meses dos anos que melhor vêm descritos nas facturas emitidas e enviadas ao Demandado, por via postal, já juntas aos presentes autos,
i) Consta de cada factura a indicação da respectiva data de vencimento;
j) O valor acordado entre a Demandante e o Demandado para tais prestações de serviço, foi definido em função doscircuitos a realizar, horários e frequências;
k) O mesmo valor é certo, unitário e mensal, tal como resulta de cada factura;
l) Resultando desta relação comercial as facturas que foram discriminadas, com indicação em concreto das datas(períodos mensais) e dos valores correspondentes aos serviços prestados:
m) As facturas foram remetidas para o Demandado, por via postal, que as recebeu e conferiu, sendo que, por factos exógenos à vontade da aqui Demandante, e por conta de tais débitos, aquele nada pagou;
n) Ao capital inicial em dívida foi deduzida a quantia de € 8.217,60€ (oito mil, duzentos e dezassete euros e sessentacêntimos), correspondentes a uma nota de crédito emitida pela Demandante em 30.12.2021 com o número 7905210154, respeitante a quantias recebidas por esta (receitas geradas do Transporte Urbano do C…),pertencentes ao Demandado;
o) Teor das facturas n.ºs 720321/0080, 720321/0099, 720321/0100, 720321/0101, 720322/0003, 720322/005, 720322/0012, 720322/0016, 720322/0020, 720322/0023, 720322/0025,
720322/0026, 720322/0028, 720322/0029, 720322/0030, 720322/0033, 710123/0001;
p) Teor da nota de crédito n.º 790521/0154;
q) Teor do Documento n.º 1 junto com a Contestação, de 18 páginas;
r) Teor da página electrónica do Demandado, cujo endereço foi referido em e), de onde resulta, entre outros aspectos:
«Transporte Urbano do C…
O TUC percorre as ruas da cidade de segunda a sexta-feira das 8h30 às 12h30 e das 15h00 às 19h00 e ao sábadodas 8h00 às 13h00.
Nos dias úteis, está também disponível um circuito de ligação à estação de comboios de S…:
> Período da Manhã
Partidas às 6h50 e 7h50 do Terminal Rodoviário do C…, com chegada prevista à Estação de Comboios de S…, às7h05 e 8h05, respetivamente.
> Período da Tarde
Partidas às 17h50 e 19h00 da Estação de Comboios de S…, com chegada prevista ao Terminal Rodoviário do C…,às 18h05 e 19h15, respetivamente.
Em ambos os trajetos, o TUC efetua paragem na Zona Industrial C./Vila C….
O veículo tem ar condicionado e todos os lugares sentados estão equipados com cintos de segurança individual, o veículo tem lotação para 17 passageiros sentados, sete passageiros de pé e está adaptado para transportar pessoascom deficiência.
O percurso, que deverá demorar cerca de 1 hora, inclui 39 paragens. A viagem tem início e fim na Praça ….
Preçário (euros):
Tarifa de bordo - 0,70 Módulos de 10 bilhetes - 5,95Passe mensal pensionistas - 8,10
Passe mensal estudantes - 9,15 Passe mensal normal -17,00
Os módulos de 10 bilhetes podem ser adquiridos na Câmara Municipal do C., R…, Centro de Convívio, Casa da Juventude e Galeria J…. Os passes podem ser adquiridos na Câmara Municipal do C… e R…».
ii) Factualidade não provada
Não se provou que o Demandado tenha devolvido à Demandante a totalidade das facturas referidas em o) dos FactosAssentes.
Nada mais se provou com interesse para a presente decisão.
iii) Convicção do Tribunal
1. Nos termos do n.º 2 do artigo 571.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável:
“O réu defende-se por impugnação quando contradiz os factos articulados na petição ou quando afirma que essesfactos não podem produzir o efeito jurídico pretendido pelo autor (…)”.
Por seu turno, os n.ºs 1 a 3 do artigo 574.º do mesmo Código dispõem o seguinte:
“1 - Ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocadapelo autor.
2 - Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem serprovados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior.
3 - Se o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se tratede facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento e equivale a impugnação no caso contrário.
(…)”.
2. Face aos indicados preceitos, o Demandado, quando alega impugnar certo facto alegado pelo Demandante, por nãoter sido oferecida prova do mesmo com o articulado, não está
juridicamente a impugnar o facto, pois não o contradiz nem afirma que esse facto não pode produzir o efeitojurídico pretendido pelo Demandante. Por isso, se tais factos não estiverem em oposição com a defesa considerada noseu conjunto, se for admissível confissão sobre eles ou se admitirem prova por outro meio que não apenas o documento escrito, deverão considerar- se admitidos por acordo.
3. É isso que sucede com vários factos alegados pela Demandante, que o Demandando expressamente aceitou como verdadeiros ou relativamente aos quais nada disse ou limitou-se a alegar o não oferecimento de prova.
4. Assim, a convicção do Tribunal quanto à factualidade provada e não provada, é a que se segue. Quanto àfactualidade considerada assente:
¾ sob as alíneas a) e b), admissão por acordo;
¾ sob as alíneas c) e d), com base nos depoimentos das testemunhas C… e M…, trabalhadores da Demandante, que foram claros, precisos, isentos e congruentes, os quais depuseram conjugadamente de modo a confirmar o alegado pela Demandante, em particular quanto à duração da relação comercial e quanto ao modo como a mesma, vindo do antecedente, continuou de Janeiro de 2021 em diante – ainda actualmente subsiste;
¾ sob as alíneas e) a h) e r), admissão por acordo; com base documento consubstanciado no teor da página electrónica do TUC cujo endereço consta de e); e com base nos mesmos depoimentos;
¾ sob a alínea i), com base no teor das facturas juntas pela Demandante com a Petição Inicial e nãoimpugnadas;
¾ sob as alíneas j) e k), com base no teor das mesmas facturas e no depoimento da testemunha C…;
¾ sob as alíneas l) e m) admissão por acordo e depoimentos das duas testemunhas; embora estas não tenham logrado concretizar o concreto valor em dívida, disseram ser acima de cem mil euros;
¾ sob a alínea n) admissão por acordo;
¾ sob as alíneas o), p), q) e r), com base nos correspondentes documentos, não impugnados.
Quanto ao facto considerado não provado, pelo confronto entre o Documento n.º 1 junto com a Contestação e asfacturas juntas com a Petição Inicial.
Diga-se, ainda, que resulta incontroverso das posições assumidas pelas partes que os serviços foram efectivamente prestados pela Demandante, a pedido e no interesse do Demandado e sem qualquer oposição deste, à semelhança do que se tem verificado há mais de dez anos. Aliás, de outro modo não se compreenderia que a receita do transporte urbano pertencesse ao Demandado – veja-se a Nota de Crédito junta com a PetiçãoInicial e que o Demandando não impugnou – e que a bilhética e os passes fossem comercializados por conta do Demandado em vários locais, incluindo instalações e veículos da Demandante, como se vê da própria páginaelectrónica do TUC.
É ainda de salientar que, das facturas que constam do Documento n.º 1 junto com a Contestação e que o Demandado alega ter devolvido ao Demandante, apenas uma delas foi reclamada nesta acção, o que significaque, ao contrário do que alega, o Demandado não devolveu a esmagadora maioria das facturas reclamadas nestaacção, tendo apenas devolvido uma em 17 facturas cujo pagamento é reclamado. Além disso, o Ofício do Demandado, ao abrigo do qual são alegadamente devolvidas as facturas, nunca refere que os serviços não foram solicitados ou não foram prestados, nem recusa a continuação da prestação dos serviços, limitando-se a alegar não poder proceder ao seu “lançamento contabilístico” por “constrangimentos orçamentais”. Acresce que adevolução das facturas teve lugar vários meses após a sua reconhecida recepção, incluindo a única em causa nestes autos, quando é certo que o prazo legal de devolução de facturas é de cinco dias.
Das posições das partes resulta, pois, evidente algo que se verifica com certa frequência: o recurso à aquisição de serviços sem - por uma ou outra razão – o cumprimento, pela entidade pública, dos procedimentos legalmente devidos, ficando, depois, inviabilizado o pagamento desses serviços, por falta de título. É uma prática a todos ostítulos lamentável, mas que, em última análise, não poderá servir para prejudicar, para além do razoável, osprestadores de serviços que estão de boa fé, os quais, de algum modo, acabam por, deste modo, financiar aentidade pública durante todo o tempo em que aguardam o pagamento.
C. O Direito
Para facilitar a apreciação da questão a decidir, iremos subdividi-la em três aspectos essenciais, que analisaremos em separado: a) da existência de contrato de aquisição de serviços; b) da validade do contrato e seus efeitos; c) dos juros de mora.
Assim:
a) Da existência do contrato de aquisição de serviços
Nos articulados apresentados nestes autos, as partes divergem quanto à existência de um acordo de vontades que permita concluir pela formação do contrato de aquisição de serviços. A Demandante não tem dúvidas quanto a essa questão. O Demandado defende que tal acordo de vontades não existiria por faltar uma declaração de vontade do Demandado, embora nunca ponha em causa que os serviços foram efectivamente prestados.
Conforme se deixou expresso a propósito da fundamentação da decisão quanto à matéria de facto, resulta inequívoco da factualidade assente que o Demandado solicitou à Demandante a prestação dos serviços de transporte em causa,consubstanciados no fornecimento de veículos pesados de transporte de passageiros com motorista para assegurar oTUC-Transporte Urbano do C…, nos dias e horários definidos pelo M… e por este divulgados ao público. Esse serviço – como salientou a testemunha M… – correspondeu à prorrogação não titulada de contratos anteriores, estes sim,
precedidos de concurso público ou de procedimento de ajuste directo simplificado ou com consulta a três entidades. No fundo, as condições de prestação do serviço já se encontravam pré-acordadas entre as partes e prosseguiram nos mesmos termos desde 1 de Janeiro de 2021 até 31 de Janeiro de 2023, a pedido do Demandado, quando este foiconfrontado pela Demandante quanto à continuidade ou não da prestação do serviço, apesar de não ter havido procedimento pré-contratual e as demais formalidades legalmente estabelecidas.
Nos termos do n.º 2 do artigo 200.º do Código do Procedimento Administrativo, “São contratos administrativos os que como tal são classificados no Código dos Contratos Públicos ou em legislação especial”.
O n.º 2 do artigo 1.º do Código dos Contratos Públicos (CCP) dispõe que o regime de contratação pública previsto nasua parte II é aplicável à formação dos contratos públicos, que independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados por entidades adjudicantes referidas no mesmo código. O Demandado é considerado entidade adjudicante, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do CCP, por ser uma autarquia local.
A alínea a) do n.º 1 do artigo 280.º do CCP dispõe que a sua parte III, que consagra o “regime substantivo dos contratos administrativos”, é aplicável aos contratos sujeitos àquela parte II, “entendendo-se como tal aqueles em que pelo menos uma das partes seja um contraente público e que, (…) por força do presente Código, da lei ou da vontadedas partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direitopúblico”.
O contrato em causa nestes autos encontra-se expressamente tipificado e regulado no CCP — contrato de aquisição deserviços, nos termos previstos nos artigos 450.º e seguintes do código, entendido como “o contrato pelo qual umcontraente público adquire a prestação de um ou vários tipos de serviços mediante o pagamento de um preço”.
A resposta à questão de saber se existiu um contrato de aquisição de serviços, no caso dos autos, depende, assim, dopreenchimento da previsão da citada alínea a) do n.º 1 do artigo 280.º do CCP.
Da factualidade considerada assente, resulta verificado um acordo de vontades entre Demandado e Demandantequanto à prestação dos serviços - transporte dos passageiros em vários percursos
da cidade do C… de segunda a sexta-feira das 8h30 às 12h30 e das 15h00 às 19h00 e ao sábado das 8h00 às 13h00 e, nos dias úteis, o circuito de ligação à estação de comboios de S…, entre 1 de Janeiro de 2021 e 31 de Janeiro de 2023 –e quanto aos preços a praticar – definidos em função dos circuitos a realizar, horários e frequências, correspondendo a valores certos, unitários e mensais, com determinadas datas de vencimento, tal como resultam de cada factura.
A referida factualidade demonstra a existência de um acordo de vontades relativamente aos elementos essenciais de um contrato administrativo de aquisição de serviços: a identidade dos contraentes, a espécie e quantidade dos serviçosa prestar e o preço contratual.
Conclui-se, por isso, pela existência de um contrato de aquisição de serviços estabelecido entre Demandante eDemandada, tendo por objeto a prestação de serviços transporte dos passageiros em vários percursos da cidade do C…de segunda a sexta-feira das 8h30 às 12h30 e das 15h00 às 19h00 e ao sábado das 8h00 às 13h00 e, nos dias úteis, o circuito de ligação à estação de comboios de S…, entre 1 de Janeiro de 2021 e 31 de Janeiro de 2023, pelos preços contratuais definidos consoante os percursos, que totalizam a quantia de € 130.003,48, IVA incluído, conforme facturas n.ºs 720321/0080, 720321/0099, 720321/0100, 720321/0101, 720322/0003, 720322/005, 720322/0012, 720322/0016, 720322/0020, 720322/0023, 720322/0025, 720322/0026,
720322/0028, 720322/0029, 720322/0030, 720322/0033, 710123/0001. Deste valor haverá que
subtrair a quantia de € 8.217,60, correspondente ao valor da nota de crédito n.º 790521/0154, que corresponde areceita do Demandado recebida pelos serviços do Demandante.
b) Da validade do contrato e seus efeitos
Importa, agora, averiguar um aspecto relacionado com o que antecede, que é o da validade do mesmo contrato e dosefeitos que o mesmo terá, ou não, produzido.
Ambas as partes admitem que o contrato dos autos não foi precedido do procedimento pré- contratual devido.
Nos termos do artigo 5.º da Lei n.º 8/2012, de 21 de Fevereiro, subordinado à epígrafe “Assunção de compromissos”:
“3 - Os sistemas de contabilidade de suporte à execução do orçamento emitem um número de compromisso válido e sequencial que é refletido na ordem de compra, nota de encomenda, ou documento equivalente, e sem o qual ocontrato ou a obrigação subjacente em causa são, para todos os efeitos, nulos.
4 - A nulidade prevista no número anterior pode ser sanada por decisão judicial quando, ponderados os interesses públicos e privados em presença, a nulidade do contrato ou da obrigação se revele desproporcionadaou contrária à boa-fé”.
Compulsadas
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as facturas n.ºs 720321/0080, 720321/0099,
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720321/0100,
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720321/0101,
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720322/0003,
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720322/005, 720322/0012, 720322/0016,
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720322/0020,
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720322/0023,
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720322/0025,
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720322/0026,
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720322/0028,
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720322/0029,
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720322/0030,
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720322/0033,
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710123/0001, verifica-se que nenhuma delas tem preenchidos os campos “Nº Compromisso” e “Nº Cabimento”.
Não obstante, tal factualidade não é decisiva para determinar a validade do contrato, na medida em que a previsão don.º 2 do artigo 5.º citado diz respeito a documentos emitidos pelo Demandado e não às facturas da Demandante.
Porém, já vimos que, por força do estabelecido no n.º 1 do artigo 201.º do CPA, o contrato dos autos encontrava-sesujeito ao regime de procedimentos pré-contratuais estabelecido no CCP, o qual não foi aplicado.
Nos termos do n.º 1 do artigo 94.º do CCP, na redacção ao tempo aplicável, “… o contrato deve ser reduzido a escrito através da elaboração de um clausulado em suporte papel ou em suporte informático com a aposição de assinaturaseletrónicas”. Por seu turno, o n.º 2 do artigo 284.º do mesmo código, dispõe que “Os contratos são nulos quando severifique algum dos fundamentos previstos no presente Código, no artigo 161.º do Código do Procedimento Administrativo ou em lei especial, designadamente (…)”.
Por último, a alínea g) do n.º 2 do artigo 161.º do Código do Procedimento Administrativo, dispõe que são nulos, entreoutros, “Os atos que careçam em absoluto de forma legal”.
Com o objectivo de fazer respeitar princípios constitucionais e procedimentais tão relevantes como os datransparência, da igualdade e da concorrência, que constituem pedra angular do regime da contratação pública, o legislador definiu requisitos formais para os contratos públicos, muito mais exigentes do que os estabelecidos para os contratos entre particulares. Por isso, as entidades adjudicantes encontram-se, por imposição legal, sujeitas aos procedimentos pré-contratuais formalmente estabelecidos no CCP, de entre os quais se destaca, para o que ora releva, a exigência legal de redução a escrito do contrato administrativo, consagrada no citado artigo 94.º do CCP.
No caso vertente, o facto de o contrato em causa não ter sido reduzido a escrito – sendo que, apesar de existirem várias facturas mensais, não poderá considerar-se que se trata de vários contratos, para efeitos das exclusões do artigo 95.º doCCP – torna o contrato nulo, por absoluta falta de forma legal, nos termos das disposições legais citadas.
Assim, embora se tenha formado, entre Demandado e Demandante, um contrato de aquisição de serviços de transporte urbano de passageiros, nos termos já descritos, a inobservância das formalidades legalmente impostas, determina a sua nulidade, que aqui se declara, para os devidos efeitos.
Aqui chegados, importa apurar quais os efeitos eventualmente produzidos pelo contrato ora declarado nulo, de modo aresponder à questão decidenda formulada nestes autos.
Como é sabido, a figura da nulidade de um negócio jurídico é distinta da figura da inexistência jurídica. No primeiro caso, o contrato existiu juridicamente, apesar de inválido; no segundo caso, o contrato nem sequer existiu.
No que respeita ao regime da nulidade e em situações nas quais os serviços foram efectivamente prestados, de boa fé porparte do prestador, a pedido do adquirente e – consequentemente – sem a oposição deste, como sucede no caso dos autos, tem vindo a entender-se que, no silêncio do CCP, deverá aplicar-se o disposto no n.º 1 do artigo 289.º do CódigoCivil, na medida em que a
aplicação tout court do regime da nulidade conduziria a uma solução violadora do princípios da proporcionalidade e daboa fé.
Quando a essa matéria, louvamo-nos no douto acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 7 de Dezembro de2022, proferido no processo n.º 0944/14.2BELSB, onde se abordou a questão nos seguintes termos:
«2.3. (…). Assim, em causa está apenas determinar se a “obrigação de restituição” que impende sobre o A…abrange o pagamento do valor correspondente ao serviço contratualizado, ou se essa obrigação se limita aoscustos em que a autora incorreu com a prestação do serviço, os quais não foram alegados e provados em juízo, razão pela qual nada há a restituir por parte do A….
2.4. A decisão recorrida adoptou a segunda tese, concluindo pela improcedência da acção com os seguintesfundamentos: “[…] Daí que, não obstante ser aplicável o regime da nulidade do contrato, nos termos do artigo289.º, n.º 1 do CC, que obriga à restituição de tudo quanto haja sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o pagamento do valor correspondente, por no presente caso não se terem provado quaisquer custosem que a Autora incorreu com a prestação de serviços à Ré, nos períodos identificados no probatório, nem tão pouco os ter reclamado durante a prestação de serviços, nenhumas faturas emitindo e enviando à Ré, terá de se entender por assistir razão à ora Recorrente quanto ao fundamento do recurso, por não poder ser condenada nopedido […]”.
2.5. A questão inscreve-se no conjunto de decisões a respeito das consequências jurídicas decorrentes da celebração de contratos nulos pela Administração Pública aos quais não é possível aplicar a regra do “afastamentodo efeito invalidante por via judicial”, sempre que aquele efeito se revele desproporcionado ou contrário aoprincípio da boa fé (como sucede nas situações subsumíveis no n.º 4 do artigo 283.º do CCP ou no n.º 4 do artigo5.º da Lei n.º 8/2012, de 21 de Fevereiro).
2.6. Esta é uma questão – a dos efeitos jurídicos decorrentes de contratos públicos nulos já executados – que carece de atenção directa pelo legislador, no sentido de vir a ser consagrada na lei portuguesa uma soluçãonormativa expressa reguladora desta questão, à semelhança
do que sucede nas legislações de outros países europeus (ex. artigo 42 da Lei dos Contratos do Sector Públicoem Espanha), de forma a determinar: i) se nestes casos o regime da nulidade deve dar lugar à restituição doque foi indevidamente prestado sem base legal, mas segundo as regras do enriquecimento sem causa, como parece resultar da jurisprudência europeia em matéria de contratos da União (proc. C-330/88); ii) se nestes casos vale integralmente a regra do artigo 289.º, n.º 1 do C.Civ. cabendo a restituição das prestaçõesindevidamente realizadas e, na sua impossibilidade, a respectiva realização pelo valor correspondente (comoresulta expressamente da solução legislativa espanhola e da jurisprudência portuguesa tirada até ao momento, assim como da jurisprudência francesa que também aplica a lei civil); ou iii) se nestes casos cabe aplicar o princípio da protecção da confiança legítima em harmonização com o princípio da legalidade da administração edeterminar o montante da “prestação a restituir” ao co-contratante do contrato público nulo já executado emfunção da confiança legítima que objectivamente se possa imputar ao seu comportamento, não sendo devida aquela prestação nos casos em que tenha havido dolo ou negligência grosseira da sua parte (por objectivamente não poder desconhecer a nulidade do contrato) no cumprimento do contrato nulo (como tem vindo a ser determinado pela jurisprudência alemã no âmbito da aplicação subsidiária do regime da nulidade da lei civil -
§812 e ss. do BGB – aos casos de nulidade do contrato administrativo - §59 da VwVfG
– v. SchochKoVwGO/Brosius-Gersdorf, 2 de abril de 2022, VwVfG § 59 parágrafos 208-
209, beck-online).
A necessidade de uma solução legal expressa é também ditada pela necessidade de estabelecer em abstracto uma ponderação entre o princípio da justiça (proibição de enriquecimento ilícito ou sem causa, que consubstancia uma dimensão jurídica comum aos ordenamentos jurídicos europeus – v. TJUE procs. C-47/07; C-575/18) eos princípios da legalidade administrativa e da concorrência, maxime, o respeito pelas regras da contrataçãopública, no quadro do princípio da boa administração (artigo 41.º da CDFUE). E essa ponderação (seja com base numa cláusula de “desconsideração do efeito invalidante verificados certos requisitos ou ponderação”, seja naafirmação da preponderância de um dos princípios em confronto) é reserva do legislador. Aos tribunais competea ponderação em concreto daqueles princípios face ao circunstancialismo do caso.
2.7. No caso de contratos nulos, por efeito da inobservância absoluta das regras legais necessárias à formação da decisão de contratar, a jurisprudência pretérita do Supremo Tribunal Administrativo tem entendido que anorma da lei civil (o artigo 289.º C. Civ.) impõe a restituição de tudo quanto se tenha prestado – por todos, v. acórdãos de 30.10.2007 (proc. 0379/07); de 17.12.2008 (proc. 0301/08). Porém, quando está em causa a prestação de serviço – como sucede aqui – torna-se impossível a restituição pela Entidade Pública dasprestações de serviço recebidas, pelo que, não tendo havido pagamento dos serviços prestados, como resultou assente no probatório, pode inferir-se daquela jurisprudência que se impõe a “devolução” do valor correspondente à prestação. Não se trata de cumprir o contrato, que, sendo nulo, é totalmente improdutivo no plano jurídico, trata-se apenas de restituir, in pecunia (ante a impossibilidade de restituição in natura) a prestaçãoindevidamente recebida. Ora, o montante da prestação recebida é, neste caso, calculado a partir do valor da prestação do serviço acordado pelas partes, como, de resto, também se decidiu no acórdão deste SupremoTribunal Administrativo de 04.05.2017 (proc. 0443/16).
É, pois, em cumprimento do dever de aplicação uniforme do direito (artigo 8.º, n.º 3 do C. Civ.) que se reitera nestecaso o decidido anteriormente por este Supremo Tribunal».
Também no Processo n.º 43/2018-A do CAAD se decidiu, com interesse, o seguinte:
«… importa dissuadir um novo problema que se coloca: a repetição das prestações realizadas pela Demandante(alocação de dois técnicos em regime de permanência em determinados períodos) não é agora possível. Os recursos humanos e logísticos despendidos na realização de tal prestação não podem agora ser restituídos àDemandante.
Acerca deste problema, porém, é hoje consensual na jurisprudência que, tendo a declaração de nulidade donegócio jurídico efeito retroativo (artigo 289.º, n.º 1 do C. Civil), deverá ser restituído tudo o que tiver sido prestado salvo nos casos de relações contratuais de execução continuada, em que a nulidade não deve abranger asprestações já efetuadas, produzindo o contrato os seus efeitos como se fosse válido em relação ao tempo durante o qual esteve em execução.
A este propósito citam-se entre os demais, os Acórdãos de 12/11/2015 e 14/01/2016, do Tribunal CentralAdministrativo Sul, proferidos respetivamente, no âmbito dos processos n.ºs 12248/2015 e 12235/2015.
No mesmo sentido vai a Sentença Arbitral do Centro de Arbitragem Administrativa de 07/6/2017, proferida noâmbito do processo n.º 77/2016-A, quando refere o seguinte:
“… a nulidade do contrato de execução continuada, como é o caso do contrato de aquisição de serviços, emque não seja possível a restituição em espécie das prestações realizadas pelas partes tem, por força doprincípio da justiça e de uma interpretação restritiva do artigo 289.º, n.º 1, do CC, de produzir efeitos apenas para o futuro, assumindo-se toda a execução do programa contratual anterior à declaração de nulidade como se da execução de um contrato válido se tratasse.”
Outrossim, temos como relevante, em reforço do que acaba de ser expendido, o disposto no artigo 162.º do CPA, que sob a epígrafe “Regime da nulidade”, estabelece, como principio, no seu n.º 1, que os atos nulos não produzem quaisquer efeitos jurídicos, acabando por admitir no seu n.º 3 que, não obstante, tal “… não prejudica apossibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, de harmoniacom os princípios da boa-fé, da confiança e da proporcionalidade ou outros princípios jurídicos constitucionais, designadamente associados ao decurso do tempo”.
Deste modo, a pretensão da Demandante tem de proceder nesta parte, isto é, não obstante a nulidade dos contratosde aquisição de serviços, tem a mesma, direito a receber o preço, contratualmente acordado, pelos serviços queprestou à Demandada e que cumpriu pontual e integralmente».
Aderindo às indicadas orientações jurisprudenciais, terá de concluir-se que, apesar da nulidade do contrato estabelecido entre o Demandado e a Demandante, essa sanção jurídica não afasta a obrigação do adquirente dos serviços de proceder ao pagamento dos preços contratuais ajustados com o prestador de serviços, no que diz respeitoaos serviços pelo mesmo efectivamente prestados.
Entende-se, por isso, que a Demandante tem o direito ao valor correspondente ao preço contratualmente ajustado como Demandado para os serviços que prestou.
Decorre da prova produzida que esse valor é de € 130.003,48, IVA incluído, ao qual haverá que subtrair a quantia de €8.217,60, correspondente ao valor da Nota de Crédito n.º 790521/0154, o que perfaz um total de € 121.785,88, em cujo pagamento à Demandante deverá o Demandado ser condenado.
Nesta parte, o pedido terá de ser considerado procedente.
c) Dos juros de mora
A Demandante peticiona ainda a quantia de € 11.095,50, a título de juros vencidos, sem prejuízo dos vincendos à taxamáxima aplicável até integral pagamento.
Como se decidiu no citado Processo n.º 43/2018-A do CAAD:
«Não obstante a declarada nulidade dos contratos de aquisição de serviços ajustados entre a Demandada e a Demandante, forçoso será admitir que aos mesmos será de aplicar as normas estabelecidas na parte III do CCP,relativas ao regime substantivo dos contratos administrativos.
Assim, dispõe o artigo 326.º, n.º 1 do CCP, sob a epígrafe “Atrasos nos pagamentos”, que havendo atraso do contraente público no cumprimento de obrigações pecuniárias, fica o cocontratante com direito a exigir juros de mora sobre o montante em dívida à taxa legalmente fixada, pelo período correspondente à mora.
Tendo em consideração que o objeto do presente litígio é o do reconhecimento do crédito da Demandante resultante dos serviços prestados à Demandada, entende-se que aquela só se constituirá no direito a exigir jurosde mora, a partir do trânsito em julgado da decisão arbitral que vier a ser proferida naquele âmbito, pelo período que venha a decorrer até integral e efetivo pagamento da correspondente obrigação pecuniária, não sendo, por conseguinte, de atender como início da mora o momento da citação da Demandada para contestar a presenteação».
Decorre do que se referiu em b), quanto aos efeitos da nulidade, que os mesmos implicam – na impossibilidade da reconstituição natural da situação anterior, através da restituição de tudo quanto haja sido prestado – o pagamento do preço ajustado entre as partes para os serviços. Este é um critério diferente do que ocorre, por exemplo, no caso danulidade do contrato de trabalho, em que o mesmo produz efeitos como se fosse válido durante o tempo em que foi executado (n.º 1 do artigo 122.º do Código do Trabalho).
No fundo, atenta a nulidade do contrato formado entre as partes, não poderá dizer-se que as facturas em causa se venceram nas datas nelas previstas, as quais pressupunham a validade do contrato subjacente. Também não poderá, pela mesma razão, dizer-se que, em face do não pagamento, o Demandado entrou em mora, pois o contrato não produziu efeitos enquanto tal.
Por este motivo e aderindo à fundamentação expendida no citado Processo n.º 43/2018-A, entende-se que sóapós o trânsito em julgado da decisão a proferir nestes autos é que poderá, em caso de incumprimento pelo Demandado,haver lugar a mora.
Nesta perspectiva, o pedido de juros formulado pela Demandante terá de improceder.
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Fixo à presente acção o valor de € 132.881,38, correspondente ao valor da quantia certa cujo pedido de pagamento foideduzido pela Demandante (n.º 1 do artigo 32.º do CPTA).
Nos termos do n.º 6 do artigo 29.º RCAAD, “Nas arbitragens que tenham por objeto quaisquer outras questões, a decisão final fixa o critério de repartição dos encargos processuais, com base no qual qualquer das partes pode ser reembolsada pela parte contrária dos pagamentos que tenha efetuado.”
Atendendo a que a Demandante decaiu no pedido de condenação no pagamento de juros de mora e venceu na parterestante, deverá a responsabilidade pelos encargos processuais ser repartida na proporção de 1/13 para a Demandante ede 12/13 para o Demandado.
III - Decisão
Face às considerações que antecedem, decido julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) Condenar o Demandado a pagar à Demandante a quantia de € 121.785,88 (cento e vinte e um mil, setecentos eoitenta e cinco euros e oitenta e oito cêntimos);
b) Absolver o Demandado do pedido de pagamento dos juros moratórios formulado pela Demandante.
Fixo à causa o valor de € 132.881,38. A taxa de arbitragem é calculada nos termos das disposições regulamentaresaplicáveis.
Os encargos são suportados por Demandante e Demandado nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 29.º do Regulamento do CAAD, na proporção de 1/13 para a primeira e 12/13 para o segundo, respectivamente.
Registe, notifique e publique.
CAAD, 7 de Julho de 2023
O Árbitro
Aquilino Paulo da Silva Antunes
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