Jurisprudência Arbitral Administrativa


Processo nº 71/2022-A
Data da decisão: 2022-09-22  Relações júrídicas de emprego público 
Valor do pedido: € 30.000,01
Tema: Relações jurídicas de emprego público
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                                    DECISÃO ARBITRAL

 

I  - Relatório

 

A…. vieram intentar a presente acção arbitral contra o M…., pedindo o reconhecimento de direitos subjectivos econsequentemente a (i) constituir o Demandado no dever de praticar todos os actos jurídicos e a realizar todas as operações materiais necessárias para colocar a situação, de direito e de facto, em conformidade com o direito ereparação efectiva e integralmente reconhecidos, ou seja, o direito dos Demandantes a integrar a carreira especial de especialista de polícia científica, com plenos efeitos a Janeiro de 2020 e com as legais compensações; (ii) decretar sanção pecuniária compulsória ao Demandado, no valor diário de 66,50 €, por cada dia de atraso no cumprimentoefectivo e integral da decisão, à luz do n.º 2 do artigo 169.º do CPTA, conjugado com o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º109-A/2020, de 31 de Dezembro; (iii) condenar o Demandado em custas de parte.

 

Para tanto, designaram a acção como “declarativa de simples apreciação com vista ao reconhecimento de situação jurídica subjectiva” e alegaram, em resumo, que são trabalhadores do Demandado, mediante contratos de trabalho em funções públicas e pertencem todos à carreira subsistente de especialista auxiliar.

 

Todos reuniam as condições de facto e de direito para, em 1 de Janeiro de 2020, transitarem para a carreira de Especialista de Polícia Científica. Porém, não foram incluídos na lista final dos transitados para essa carreira, apesar de se encontrarem em exercício de funções há pelo menos um ano a contar da data de vigência do Decreto-Lei n.º 138/2019,de 13 de Setembro, por não serem

 

 

detentores de grau académico (licenciatura ou grau superior) exigido pelo n.º 1 do artigo 94.º do mesmo diploma.

 

O acto do Director Nacional da ... que homologou a lista de transição é arbitrário e não apenas discriminatório e lesivopara os Demandantes, relativamente a outros trabalhadores com funções de idêntica quantidade, natureza, qualidade e com idêntica ou menor antiguidade na carreira e na categoria.

 

O requisito das habilitações académicas não se coaduna com a lei e com o direito, pois a interpretação feita foi restritiva, ao contrário do que sucedeu com outros trabalhadores, pois os Demandantes possuem as habilitaçõesacadémicas exigidas para o posto de trabalho ou cargo.

 

Alegam de seguida, relativamente a cada Demandante, que se encontra na carreira de especialista auxiliar e que exercia há pelo menos um ano funções descritas no quadro 2 do anexo I ao Decreto- Lei n.º 138/2019, de 13 de Setembro,citam os requisitos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 95.º do mesmo diploma e alega que cumprem esses mesmos requisitos.

 

Alegam, depois, que vários outros trabalhadores que também não cumprem o requisito habilitacional ou o requisito funcional ou o requisito da pertença à carreira de especialista-adjunto transitaram para a nova carreira de Especialista dePolícia Científica.

 

Alegam ainda que à data do seu recrutamento para o grupo de pessoal de apoio à investigação criminal, possuíam orequisito habilitacional para o ingresso, previsto no n.º 4 do artigo 136.º do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 deNovembro, não podendo ser prejudicados, pois a licenciatura não era requisito de ingresso àquela data.

 

Além disso, alegam que os Demandantes foram tratados de modo diferente de outros profissionais em condições similares, sem justificação material bastante, mostrando-se violado o princípio da igualdade.

 

Invocam ainda a violação de vários princípios da actividade administrativa (artigos 3.º e 8.º a 10.º do CPA), bem comoa violação do artigo 115.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, da alínea

d) do n.º 2 e do n.º 5 do artigo 41.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho.

 

 

Juntaram documentos.

 

Regularmente citado, o Demandado M…. veio oferecer Contestação, defendendo-se por excepção e por impugnação erequerendo a apensação de acções. Igualmente juntou documentos.

 

Os Demandantes ofereceram Réplica, opondo-se à apensação de acções e pugnando pela improcedência da excepção invocada.

 

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A apensação de acções foi indeferida por despacho de 5 de Julho de 2022 do Senhor Presidente do CAAD.

 

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Foi proferido despacho arbitral convidando as partes a apresentarem alegações escritas, o que as mesmas fizeramatempadamente, tendo essencialmente reiterado as suas posições expressas nos articulados.

 

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O presente Tribunal é composto pelo árbitro singular signatário, o qual integra a lista de árbitros do CAAD em matéria administrativa, e foi constituído em 28 de Julho de 2022, data da notificação às partes da aceitação do encargo (artigo17.º do RCAAD).

 

 

 

II  - Saneamento

 

O Tribunal é competente, nos termos da alínea d) do n.º 2 e da alínea a) do n.º 2 da Portaria n.º 1120/2009, de 30 deSetembro.

 

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As partes gozam de personalidade e capacidade jurídica e judiciária, bem como de legitimidade ad causam, eencontram-se devidamente representadas por mandatários regularmente constituídos.

 

 

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Na Contestação, o Demandado invocou a excepção da caducidade do direito da acção, alegando, em suma, que osDemandantes pretendem verdadeiramente a anulação do despacho do Director Nacional da ... que homologou a lista de transição e a produção de novo despacho que reconheça aos Demandantes o direito a transitar para a carreira de Especialista de Polícia Científica. Mais alegou que os Demandantes não podem pretender eliminar os efeitos jurídicos do acto administrativo mediante uma acção de simples apreciação. E que, nos termos do n.º 2 do artigo 38.º do Códigode Processo nos Tribunais Administrativos, o efeito resultante da anulação do acto administrativo impugnável não pode ser obtido por outros meios processuais. Por este motivo, considera o Demandado que os Demandantes deveriam terintentado a acção impugnatória no prazo de três meses previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do mesmo Código, oque não sucedeu, ocorrendo uma excepção ditatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa [alínea k) do n.º 2 en.º 1 do artigo 89.º do Código citado].

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Atendendo a que a eventual procedência da excepção invocada obstará ao conhecimento do mérito da causa, importadela conhecer, antes de mais.

 

 

 

III  - Fundamentação

 

A.    Questão a decidir

 

A questão de decidir é, então, a de saber se o processo adequado à pretensão dos Demandantes é a acção de simples apreciação para reconhecimento de um direito ou, pelo contrário, se é acção de impugnação de acto anulável e, neste caso, se a acção foi atempadamente proposta, sendo que, apesar de o Demandado falar em “caducidade do direito de acção”, o que está em causa é a “intempestividade da prática de acto processual” como resulta da alínea k) do n.º 4 doartigo 89.º do CPTA, que o Demandado expressamente invoca.

 

 

B.    Apreciação da matéria de facto

 

a)     Factualidade assente

 

Na presente acção mostra-se assente a seguinte factualidade:

 

a)      Por despacho de 18 de Novembro de 2021 do Director Nacional da ... foi homologada a lista de pessoal transitado para a nova carreira de Especialista de Polícia Científica, o qual foi publicado na Internet da ... e naOrdem de Serviço da Directoria Nacional n.º 54/2021, em 22 de Novembro de 2021, e pelo Aviso n.º 23407/2021, publicado no Diário da República, 2.ª Série, n.º 244, de 20 de Dezembro;

 

b)     Os Demandantes não constam da lista referida na alínea anterior, tendo, pelo contrário, sido incluídos na lista de carreiras subsistentes, homologada pelo mesmo despacho, com fundamento do facto de não possuírem ashabilitações exigidas por Lei;

 

c)      Nenhum dos Demandantes é Licenciado.

 

d)     A última Demandante a ser notificada do despacho referido em a) – C… – foi-o no dia 22 de Dezembro de 2021;

 

e)      A presente acção foi intentada no dia 19 de Abril de 2022.

 

b)     Factualidade não assente

 

Não se provou outra factualidade com interesse para a decisão que se prefigura adequada.

 

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A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto assenta, quanto às alíneas a) e b) no documento junto sob o n.º 2 coma Contestação; quanto à alínea c), na sua admissão por acordo; e quanto à alínea d) na data de entrada da acção erespectivos documentos na plataforma de gestão documental do CAAD.

 

 

C.    Do Direito

O Decreto-Lei n.º 138/2019, de 13 de Setembro, veio, entre outros aspectos criar a nova carreira de Especialista dePolícia Científica, “ancorada nos conhecimentos técnicos e científicos necessários à interpretação de sinais, vestígios e provas recolhidas na realização da inspecção judiciária e à análise pericial”. A mesma carreira “tem natureza unicategorial e grau de complexidade três” (cfr. preâmbulo do diploma).

 

De acordo com a “tabela de graus de complexidade funcional” disponível em dgaep.gov.pt, o Grau 3 de complexidade funcional exige como habilitação a “Licenciatura ou grau académico superior a esta”.

 

Um dos requisitos gerais de recrutamento em qualquer carreira da ... é a posse das habilitações académicas exigidas para o posto de trabalho ou cargo [alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 138/2019, de 13 de Setembro].

 

O quadro 2 do Anexo I ao mesmo Decreto-Lei qualifica a carreira de Especialista de Polícia Científica como decomplexidade Grau 3, o que – de acordo com a citada informação disponível em dgaep.gov.pt – significa que exigehabilitação igual ou superior à Licenciatura.

 

O n.º 1 do artigo 94.º do mesmo diploma permite aos trabalhadores integrados em certas carreiras, incluindo a de especialista auxiliar, a possibilidade de transitar para a carreira de Especialista de Polícia Científica, nas seguintescondições: (i) cumprirem o requisito de ingresso na carreira de especialista de polícia científica previsto na alínea b) don.º 1 do artigo 44.º”; (ii) exercerem, “há pelo menos um ano, funções compreendidas nos conteúdos funcionais descritosno quadro 2 do anexo I ao presente decreto-lei; (iii) manifestarem “declaração de vontade nesse sentido”.

 

Por seu turno o n.º 2 do mesmo artigo 94.º permite que os trabalhadores da carreira de especialista adjunto transitem para a carreira de Especialista de Polícia Científica, observadas as seguintes condições: (i) há pelo menos um ano exercerem funções compreendidas nos conteúdos funcionais descritos no quadro 2 do Anexo I ao Decreto-Lei n.º138/2019, de 13 de Setembro; (ii) possuírem formação específica na área de criminalística e de recolha de vestígios nolocal do crime. De acordo com este preceito, não é, por conseguinte, necessário o cumprimento do requisitohabilitacional.

 

 

Nos termos do n.º 5 do artigo 96.º do mencionado Decreto-Lei n.º 138/2019, de 13 de Setembro “A transição para as carreiras [de investigação criminal, de especialista de polícia científica e de segurança] faz-se, por listas nominativas no prazo de 30 dias, contados da data de entrada em vigor do presente decreto-lei, notificadas a cada um dos respectivostrabalhadores e tornadas públicas por afixação no órgão ou serviço, bem como inserção na página electrónica da Intranetda ...”.

 

De acordo com o n.º 2 do artigo 158.º do Código de Procedimento Administrativo, “A falta de publicação do ato, quandolegalmente exigida, implica a sua ineficácia”.

 

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Provou-se que o acto homologatório em causa foi devidamente publicado e notificado individualmente a cada Demandante, pelo que o mesmo é eficaz, nos termos do citado n.º 2 do artigo 158.º do Código de ProcedimentoAdministrativo.

 

Entre a última notificação pessoal, ocorrida em 22 de Dezembro de 2021, que é posterior à divulgação na Intranet da ...,e a data da propositura da presente acção, em 19 de Abril de 2022, decorreram mais de três meses.

 

No caso dos autos, a aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 94.º, conjugado com o disposto no n.º  5  do  artigo  96.º, ambos  do  Decreto-Lei  n.º  138/2019,  de  13  de  Setembro,  dependia  da elaboração e homologação de listastransição, ou seja, da tomada de uma decisão que, “no exercício de poderes jurídico-administrativos, [visasse] produzir efeitos jurídicos externos” na situação individual e concreta de cada Demandante (cfr. artigo 148.º do Código do Procedimento Administrativo).

 

Não se afigura possível – em termos lógicos e jurídicos – a subsistência simultânea na Ordem Jurídica dos efeitosdecorrentes das listas de transição e de carreiras subsistentes, homologadas pelo Director Nacional da ..., e oreconhecimento do alegado direito dos Demandantes a integrarem a primeira dessas mesmas listas, sem a prática de umnovo acto que proceda a esse eventual aditamento, derrogando os efeitos do acto homologatório inicial.

 

 

Por este motivo, considera-se que os Demandantes deveriam ter intentado acção impugnatória, visando – naquela que é a sua perspectiva jurídica da causa – a impugnação do acto anulável. Para esse efeito, dispunham do prazo de três meses,consagrado na alínea b) do n.º 2 do artigo 58.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

 

Ora, tendo a presente acção sido intentada após o decurso do indicado prazo – isto é três meses e 27 dias depois da notificação pessoal realizada em último lugar – parece meridianamente claro que o direito que lhes assistia de impugnar o acto homologatório em causa se extinguiu por caducidade, sendo intempestiva a propositura da presente acção.

 

Nestes termos, impõe-se considerar procedente a excepção dilatória invocada pelo Demandado, por intempestividade daprática do acto processual [alínea k) do n.º 4 do artigo 89.º do CPTA].

 

Ora, a procedência da excepção dilatória em causa obsta a que este Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (primeira parte do n.º 3 do mesmo artigo 89.º), o que se decidirá a final.

 

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Fixa-se à presente causa o valor de € 30.000,01, nos termos das disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 31.º e dos n.ºs1 e 2 do artigo 34.º do CPTA e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável,bem como do artigo 29.º do Regulamento do CAAD.

 

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Os encargos da presente acção são suportados nos termos do n.º 5 do artigo 29.º do RCAAD.

 

 

 

IV  - Decisão

 

Nos termos que antecedem, decido:

 

 

a)      Julgar procedente, por provada, a excepção da intempestividade da prática do acto processual, nos termos da alínea k) do n.º 4 do artigo 89.º do CPTA, e absolver o Demandado da instância, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo;

 

b)     Fixar à presente causa o valor de € 30.000,01, nos termos das disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 31.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 34.º do CPTA e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável, bem como do artigo 29.º do Regulamento do CAAD;

 

c)      Os encargos da presente acção são suportados nos termos do n.º 5 do artigo 29.º do RCAAD.

 

 

 

Registe, notifique e publique.

 

CAAD, 22 de Setembro de 2022

 

 

 

O Árbitro,

 

 

 

                                                (Aquilino Paulo da Silva Antunes)