SUMÁRIO:
DECISÃO ARBITRAL
I – Enquadramento do Litígio;
A Demandante (A..., Lda.) veio intentar a presente acção arbitral contra a Demandada (Município ...), na qual pediu a condenação desta última ao pagamento do valor de 7.100,43€ acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos.
Como resulta da petição inicial, a causa de pedir é o contrato de prestação de serviços de produção de imagem gráfica para divulgação de eventos do Município e ainda de prestação de serviços de concepção de uma medalha comemorativa.
As Partes reconhecem que os serviços foram prestados pela Demandante em conformidade com o solicitado pela Demandada.
A Demandada não procede ao pagamento dos quantias devidas pela prestação dos serviços porquanto se encontra a correr processo criminal contra o Sr. Presidente da Câmara Municipal de ... que investiga matéria desse foro e que poderá, alegadamente e em abstrato, gerar a nulidade do contrato de ajuste directo celebrado entre as partes; e porque – relativamente às quantias devidas pela prestação de serviços de concepção de uma medalha comemorativa – foi preterido o procedimento legalmente exigido.
Assim, o objecto do litígio arbitral em questão cinge-se em saber se os negócios padecem de algum vício (nulidade ou anulabilidade) e eventuais consequências da eventual verificação de algum vício.
II – Saneamento e Questões Prévias;
O Tribunal Arbitral é competente e as partes gozam de legitimidade.
O valor da causa fixa-se em € 7.100,43 (sete mil, cem euros e quarenta e três cêntimos), correspondendo à soma dos montantes peticionados pela Demandante.
Não existem quaisquer excepções ou questões prévias de que importe conhecer e que impeçam o conhecimento do mérito da causa.
III – Dos factos Relevantes para Decisão da Causa;
Os factos que infra se enunciarão, para além de resultarem da documentação junta aos autos, foram tidos como assentes pelas Partes – sendo que a matéria factual não nos merece qualquer reserva.
Com relevo para a decisão da causa, o Tribunal Arbitral dá como provados os seguintes factos:
A) A Demandante, empresa que se dedica à actividade de Publicidade e Design, celebrou com a Demandada, em 18/03/2019, um contrato de ajuste directo para prestação de serviços de produção de imagem gráfica para divulgação de eventos, pelo valor de 18.600 € + Iva.
B) Os serviços foram descritos no Caderno de Encargos e na Proposta anexos ao contrato de ajuste directo e dele fazendo parte.
C) Foi convencionado que a execução dos serviços seria realizada desde a data da celebração do contrato até ao dia 31/03/2019.
D) Pela prestação dos serviços, a Demandante, foi emitindo facturas mensais que foi enviando para a Demandada.
E) Das facturas emitidas pela Demandante, a Demandada pagou as referentes aos meses de março, abril, junho agosto e setembro de 2019, não procedendo ao pagamento das referentes a outubro, novembro e dezembro de 2019.
F) Os serviços objecto do contrato de ajuste directo foram prestados pela Demandante em conformidade com o solicitado pela Demandada.
G) A Demandada reconhece a obrigação de pagar estes serviços, no montante total de 6.239,43 € (seis mil, duzentos e trinta e nove euros e quarenta e três cêntimos), não o fazendo apenas por correr processo criminal contra o Sr. Presidente da Câmara ... que investiga matéria desse foro e que poderá alegadamente e em abstracto, gerar a nulidade ou anulabilidade do contrato de ajuste directo celebrado com a Demandante;
H) À margem do contrato de ajuste directo, mas mediante solicitação da Demandada, a Demandante prestou os serviços referentes à concepção da “...”, tendo a mesma emitido a respectiva factura no valor de 861 € (oitocentos e sessenta e um euros).
I) A Demandada reconhece que o serviço foi prestado, não tendo procedido ao pagamento do mesmo por preterição do procedimento legalmente exigido.
IV – Do Direito;
Salvo melhor opinião e atendendo ao facto de não haver matéria de facto controvertida, a decisão de mérito da causa resumir-se-á ao enquadramento jurídico a aplicar, devendo este Tribunal apreciar essa mesma questão de acordo com o direito constituído, nos termos do artigo 26.º, n.º 1 do Regulamento.
IV.1. Da validade ou invalidade do contrato de prestação de serviços referentes à concepção da “...” e respectivas consequências;
Antes de mais, importa evidenciar que, com base nos factos assentes, estarmos perante a celebração de verdadeiros contratos, na medida em que foram assumidas obrigações sinalagmáticas, mediante um acordo de vontades que formou um vínculo jurídico bilateral.
Assim, em primeiro lugar, relativamente à validade do contrato cujo objecto foi a prestação de serviços de concepção de uma medalha comemorativa, alega a Demandada ter sido preterido o procedimento legal que deve anteceder a formação e conclusão do contrato, para a produção dos respectivos efeitos jurídicos. Acontece, porém, que a não observação desse procedimento não obsta à qualificação das relações entre a Demandante e a Demandada como verdadeiros negócios jurídicos, uma vez que, nos termos do artigo 95.º, n.ºs 1 e 2 do Código dos Contratos Públicos (em diante “CCP”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, estabelece-se expressamente a regra da liberdade de forma, determinando-se que os contratos celebrados por entidades públicas não têm necessariamente de ser reduzidos a forma escrita; além de que, o próprio conceito de contrato não pressupõe uma forma específica, como bem demonstra o artigo 280.º, n.º 1 do CCP, quando se refere aos contratos como “acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação”. Assim, e tendo em conta que o valor devido pela prestação de serviços de concepção da “...” se cifra na quantia de 861€ (cf. artigo 95.º, n.º 1, alínea a) do CCP), estamos perante um verdadeiro contrato celebrado entre as Partes, independentemente da preterição do procedimento que devia ser observado.
Por outro lado, relevante ainda neste contexto, é a realização deste contrato por uma entidade adjudicante. Ora, dúvidas não existem de que o Município de ..., enquanto autarquia local (cf. artigo 236.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (em diante “CRP”), é uma entidade adjudicante (cf. artigo 2.º, n.º 1, al. c) do CCP), encontrando-se, por isso, sujeita às regras procedimentais estabelecidas no CCP.
Ademais, estando em causa um contrato de aquisição de serviços, cujo objeto abrange prestações que estão submetidas à concorrência de mercado (cf. artigo 16.º, n.º 2, alínea e) do CCP), estão as partes sujeitas à observância dos princípios e normas do CPP, nomeadamente os procedimentos aí previstos e tipificados (cf. artigo 5.º, n.º 1, a contrario, do CCP). Assim, no caso em apreço, sendo o valor um dos critérios que determina o procedimento a observar (cf. artigo 18.º do CCP), tendo em conta o valor da prestação de serviços da concepção da “...” (861€), as Partes deveriam ter submetido o presente contrato ao procedimento de Ajuste Directo, isto é, um procedimento com convite à apresentação de proposta dirigido a um único operador económico (cf. artigo 112.º, n.º 2 do CCP) e que, em função do critério do valor do contrato a celebrar, permite a celebração de contratos de aquisição de bens ou de serviços até ao montante de € 20.000 (cf. artigo 20.º, n.º 1, alínea d) do CCP).
Ora, confrontando os documentos juntos ao processo instrutor e atentando nos factos invocados pelas Partes, verifica-se que no caso dos autos, quanto ao contrato de prestação de serviços de concepção de medalha comemorativa (e não quanto ao contrato de prestação de serviços de produção de imagem gráfica para divulgação de eventos), não foi observado qualquer procedimento previsto no Código dos Contratos Públicos, nomeadamente o ajuste directo, como aliás admite a Demandada (cf. Ponto 6 e 7 da Contestação) e não impugna a Demandante. É verdade que ao contrato de prestação de serviços de concepção da medalha comemorativa, celebrado entre as Partes, precedeu a escolha, por parte da Demandada enquanto entidade adjudicante, de um único operador económico, a Demandante. No entanto, esta escolha não foi precedida de qualquer convite, mas sim de uma interpelação directa, pela Demandada. O que não se aceita.
Assim, o contrato não observou quaisquer trâmites procedimentais previstos na lei para este efeito, estando em causa uma absoluta revelia de qualquer procedimento formal, particularmente grave, tendo em conta que, como a Demandada, enquanto entidade adjudicante, bem sabe ou deveria saber “[a]s normas de procedimento, para além de uma vertente ancilar ou de garantia de uma correcta decisão de fundo, têm também uma função própria: por um lado, uma função de tutela dos direitos subjectivos dos cidadãos na medida em que estabelecem parâmetros precisos de aferição jurisdicional da legalidade; e, por outro, uma função de controlo objectivo da Administração, ou seja, uma função pedagógica e disciplinadora do seu comportamento e de garantia da realização das suas atribuições constitucionais” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de Junho de 2007, processo n.º 01458/03, disponível em www.dgsi.pt).
E, nas palavras do Tribunal de Contas, e aplicável no caso dos autos “verdadeiramente não ocorreu procedimento de ajuste direto. Não houve observância de quaisquer regras procedimentais. Houve uma mera aquisição direta. (...) nem ajuste direto foi feito. Foi feita uma aquisição direta. Houve, pois, ausência absoluta de formalidades essenciais na formação do contrato” (cf. os §33 e §62 do Acórdão n.º 8/2015, de 30 de Junho, da 1.ª Secção, disponível em www.tcontas.pt).
Conclui-se, portanto, que o Município de ... procedeu à aquisição de serviços referentes à concepção da “...” sem observância do regime procedimental legalmente previsto no CCP, o que significa, indubitavelmente, a invalidade deste contrato.
Contudo, e em face dessa invalidade, há que analisar se à mesma se aplica o regime da nulidade ou da anulabilidade, ainda que os efeitos que daí decorrem sejam essencialmente idênticos.
Ora, nos termos do artigo 284.º, n.º 2 do CCP “[o]s contratos são nulos quando se verifique algum dos fundamentos previstos no presente Código, no artigo 161.º do Código do Procedimento Administrativo ou em lei especial (...)”. Assim, por remissão deste preceito, aplica-se o artigo 161.º do Código do Procedimento Administrativo (em diante “CPA”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro, que, no seu n.º 2, alínea l), prevê a nulidade dos contratos celebrados “(…) com preterição total do procedimento legalmente exigido”.
Com efeito, é nulo este contrato celebrado entre a Entidade Demandada e a Demandante , não produzindo quaisquer efeitos jurídicos, nos termos do artigo 162.º, n.º 1 do CPA, mesmo que não tenha sido pedida a declaração de nulidade do presente contrato, ou seja, pode este Tribunal Arbitral dela ter conhecimento independentemente de ter sido peticionada tal declaração, por forma a decidir sobre o pedido formulado pela Demandante nos presentes autos.
Com base na leitura deste último preceito, poderia concluir-se serem válidas as alegações da Demandada e, consequentemente, improcedente o pedido da Demandante, uma vez que esta última pretende que seja pago o valor dos serviços que prestou à Demandada, o que significaria, no fundo, que o contrato produziria os seus efeitos como se fosse válido, havendo lugar ao seu cumprimento.
No entanto, a verdade é que essa interpretação não seria correcta. O regime legal da nulidade, ao contrário do que parece resultar do artigo 162.º, n.º 1 do CPA, impõe o pagamento do preço fixado pelos serviços prestados pela Demandante, tendo em conta o preceituado no artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil, segundo o qual a declaração de nulidade (e a anulabilidade) de um negócio jurídico tem “efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”. Ou seja, sendo o contrato nulo e não produzindo os respectivos efeitos jurídicos, deve a declaração da sua nulidade colocar as Partes na situação em que estariam caso o contrato não tivesse sido celebrado, como se a relação contratual que lhe subjaz não tivesse existido.
Em face do exposto, conclui-se que, da aplicação do regime da nulidade, e tendo a Demandante cumprido as suas prestações, resulta a restituição dessas prestações, ou seja, a devolução, à contraparte (in casu, à Demandada) de tudo quanto tiver sido prestado ao abrigo do contrato. Da mesma forma que, a terem sido cumpridas as prestações por parte da Demandada (isto é, o pagamento do preço pela prestação de serviços), ser-lhe-iam igualmente restituídas – contudo, este último cenário não se verificou, sendo essa, aliás, a questão que se pretende resolver.
Todavia, e nos termos do artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil, não sendo a repetição ou restituição em espécie possível, impõe-se a reconstituição do valor correspondente às prestações realizadas, já que essa constitui a solução que, nesse caso, mais se adequa à finalidade daquele preceito, que é a reconstituição da situação actual hipotética das Partes. Dito de outra forma, nesse caso, só o pagamento do valor correspondente às prestações realizadas pela Demandante, não passíveis de repetição, a pode colocar na situação mais próxima possível daquela em que estaria se o contrato não se tivesse celebrado.
Assim, conclui-se que, embora o contrato de prestação de serviços de concepção da “...”, celebrado entre a Demandante e Demandada, seja nulo por preterição do procedimento pré-contratual legalmente exigido, uma vez que não é logicamente viável a restituição dos serviços prestados pela Demandante, cumpridora do contrato, impõe-se a restituição do valor que lhes corresponde, de forma a restabelecer a ordem jurídica.
Logo, pela aplicação do regime da nulidade previsto no artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil, deve este Tribunal Arbitral dar procedência ao pedido formulado pela Demandante, condenando a Demandada no pagamento do valor correspondente às prestações que ilegalmente recebeu.
Neste sentido, aliás, têm decidido os Tribunais administrativos em casos similares ao que aqui se discute. Desde logo, no Acórdão do Tribunal Central Administrativo, de 1 de Março de 2019, processo n.º 00856/14.0BECBR, disponível em www.dgsi.pt, onde se lê que “Apesar das partes não terem reduzido a escrito o contrato, subsiste uma relação contratual firmada, pelo que se impõe extrair as consequências jurídicas das regras que determinam o pagamento da quantia reclamada com base no pressuposto da invalidade do mesmo.
Em qualquer caso, a nulidade de verbalmente convencionado não implica a desresponsabilização da entidade pública.
Os serviços prestados ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, entretanto declarado nulo, não autoriza a ilação de que o mesmo equivalha a um nada, tal como se pura e simplesmente não tivesse acontecido, pelo que os serviços originariamente contratualizados, enquanto “Contrato de facto” terão de ser remunerados.
Não é exata a ideia de que, mercê da nulidade, tudo se passa como se o contrato não tivesse sido celebrado ou produzido quaisquer efeitos. Bem ao invés porque o contrato é algo que na realidade aconteceu, daí precisamente a sua repercussão no subsequente relacionamento jurídico das partes.
Tendo os serviços convencionados sido prestados, ao abrigo de um contrato entretanto declarado nulo, perante a inexistência de um contrato, a relação jurídica deverá ser equiparada a um “Contrato de facto”, cujos serviços terão de ser remunerados.” (cf. também os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte de 22 de Janeiro de 2016, processo n.º 00636/14.2BEVIS, de 12 de Junho de 2019, processo n.º 00126/12.8BEMDL, de 31 de Outubro de 2019, processo n.º 01818/11.4BEBRG, e de 15 de Novembro de 2019, processo n.º 00311/11.5BEMDL, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Logo, “Apurando-se a existência de relações contratuais entre as partes, baseadas na prestação de serviços da Autora à Ré, prolongados no tempo e não recusados por esta, na consequente emissão de facturas pela Autora pelos serviços prestados, na entrega das facturas à Ré para pagamento e na não devolução das facturas à Autora, está o ente público vinculado a pagar os serviços prestados (…)” (cf. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 2 de Abril de 2014, processo n.º 07541/11, disponível em www.dgsi.pt).
Por conseguinte, tendo a Demandante prestado serviços à Demandada, que esta solicitou e aceitou, devem esses serviços ser remunerados de acordo com o regime da nulidade, e não com base em qualquer outro instituto jurídico, nomeadamente no enriquecimento sem causa.
Neste contexto, importa esclarecer que, embora, neste caso, a esfera patrimonial do Município de ... saísse enriquecida, por este não ter efectuado o pagamento dos serviços que contratou, e, por sua vez, a da Demandante empobrecida, a verdade é que nem todo os requisitos do instituto do enriquecimento sem causa estariam verificados.
Desde logo, e como a própria designação indica, é necessário, para aplicar este instituto e os efeitos que lhes estão inerentes (isto é, a obrigação de “restituir aquilo com que injustamente se locupletou”, nos termos do artigo 473.º, n.º 1 do Código Civil), a não verificação de qualquer causa que justifique o enriquecimento.
Nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 3 de Junho de 2014, processo n.º 1775.13.2TBFUN.L1-7, disponível em www.dgsi.pt “São, assim, elementos do instituto em análise: o enriquecimento de um património e o correlativo empobrecimento de outro, decorrentes do mesmo facto, e, ainda, a ausência de causa justificativa para a concernente deslocação patrimonial por eles envolvida.
Decorre do referido regime que o enriquecimento sem causa se caracteriza pela inexistência de qualquer negócio ou facto justificativo da apropriação de valores cuja restituição é pedida e que tal apropriação seja obtida à custa de quem pede a restituição.”.
Ora, no caso sub judice, existiria uma causa para esse enriquecimento, que é precisamente o presente contrato em análise, ainda que nulo. Assim, havendo “causa justificativa” para o incremento patrimonial da Demandada, enriquecida, a figura do enriquecimento sem causa não se poderia aplicar.
Além do mais, também não seria aplicável em virtude da subsidiariedade que caracteriza este instituto, na medida em que “Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”. (cf. artigo 474º do Código Civil). Logo, aplicando-se no caso dos autos o regime da nulidade que, como vimos, permite a restituição do valor correspondente àquilo que foi prestado, à Demandante, não poderia esta invocar o instituto do enriquecimento sem causa.
Neste sentido decidiu o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, a 28 de Fevereiro de 2018, processo n.º 6/14.2BEFUN, disponível em www.dgsi.pt, onde se lê que “O regime da nulidade do contrato, em particular da regra de restituição de tudo o que tiver sido prestado, impede o recurso aos princípios do instituto do enriquecimento sem causa, em função do carácter subsidiário deste.” (cf. ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 17 de Dezembro de 2008, processo n.º 0301/08, e de 18 de Fevereiro de 2010, processo n.º 0379/07, bem como os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 20 de Fevereiro de 2014, processo n.º 07387/11, de 2 de Abril de 2014, processo n.º 07541/11, e ainda os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte de 17 de Abril de 2015, processo n.º 00949/11.5BEBRG, e de 1 de Julho de 2016, processo n.º 01231/11.3BEBRG, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Por outro lado, quanto à questão adicional levantada pela Demandada, para fundamentar a invalidade do contrato celebrado, debruça-se agora este Tribunal sobre a “Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso”, aprovada pela Lei n.º 8/2012, de 21 de Fevereiro (que aprovou as regras aplicáveis à assunção de compromissos e aos pagamentos em atraso das entidades públicas).
Dispõe o artigo 9.º, n.º 2 desse diploma que “[o]s agentes económicos que procedam ao fornecimento de bens ou serviços sem que o documento de compromisso, ordem de compra, nota de encomenda ou documento equivalente possua a clara identificação do emitente e o correspondente número de compromisso válido e sequencial, obtido nos termos do n.º 3 do artigo 5.º da presente lei, não poderão reclamar do Estado ou das entidades públicas envolvidas o respetivo pagamento ou quaisquer direitos ao ressarcimento, sob qualquer forma”.
Desta norma remete-se para o artigo 5.º, n.º 3, segundo o qual “[o]s sistemas de contabilidade de suporte à execução do orçamento emitem um número de compromisso válido e sequencial que é refletido na ordem de compra, nota de encomenda, ou documento equivalente, e sem o qual o contrato ou a obrigação subjacente em causa são, para todos os efeitos, nulos.”.
Ora, da interpretação literal destes preceitos resulta que, nenhum pagamento pode ser efectuado sem que o respetivo compromisso tenha sido assumido em conformidade com os procedimentos legalmente previstos e, consequentemente, que será nulo o contrato realizado sem esse compromisso. Estamos, portanto, perante uma nulidade atípica, que, em primeira análise, vedaria a restituição do “valor correspondente” a que se refere o artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil.
É precisamente isso que alega a Demandada no ponto 11 da sua Contestação, para fundamentar a nulidade do contrato celebrado entre as Partes (de prestação de serviços referentes à concepção da medalha comemorativa), além do artigo 162.º, n.º 1 do CPA.
Contudo, não pode este Tribunal Arbitral concordar com tal argumentação.
Embora, e como é evidente, concorde com a necessidade de se observarem as regras e procedimentos previstos na lei, bem como os demais requisitos legais necessários à validade e eficácia dos contratos – como seja a assunção do compromisso referido nos artigos 9.º, n.º 3 e 5.º, n.º 3 da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso - e considere, como já exposto, por inobservância do procedimento pré-contratual, nulo o contrato, a verdade é que, pela aplicação do regime da nulidade, a Demandante não pode deixar de ser paga pelos serviços prestados e solicitados pela Demandada.
Assim, apesar de se concordar com o que é estabelecido naqueles preceitos, a verdade é que o regime aí previsto não é um obstáculo decisivo à restituição do valor correspondente aos serviços prestados pela Demandante e, portanto, à procedência do pedido por ela formulado.
Por um lado, porque, na realidade, ao aplicar-se, no caso dos autos, o regime da nulidade, sendo a Demandada condenada no pagamento do valor correspondente aos serviços prestados pela Demandante, poderá aquela inscrever no seu orçamento o respectivo encargo e, consequentemente, efectuar o pagamento das dividas contraídas perante terceiros (nomeadamente, perante a Demandante), prosseguindo-se, dessa forma, as finalidades que o regime em apreço visa atingir.
Por outro lado, o regime aí previsto não foi pensado para casos como o que aqui se coloca, nem faria sentido que o tivesse sido, dado que a lesada (Demandante) ver-se-ia numa situação injusta e a Demandada furtar-se-ia à obrigação de efectuar o pagamento pelos serviços que recebeu.
Aliás, seria ainda mais injusto pelo facto de caber à Demandada, enquanto entidade adjudicante conhecedora das normas que lhe são aplicadas, a observância dos trâmites procedimentais necessários á válida e eficaz aquisição dos serviços solicitados.
Veja-se, neste sentido o Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 4 de Outubro de 2018, processo n.º 2151/09.5BEL.SB, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual “De outro modo, face à nulidade da relação contratual havida, outra posição que não aquela para que se propende, conduziria a um enriquecimento injustificado por parte da Ré, além de que se traduziria numa injustiça, como se a nulidade cometida fosse tratada como se o negócio jurídico em causa equivalesse a um nada.
Na verdade, tal permitiria que a Ré, uma vez afastada a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, não obstante a realização da prestação de serviços, pudesse furtar-se ao pagamento dos encargos que os mesmos representaram para a Autora da presente acção administrativa.”
Neste contexto, releva o entendimento da jurisprudência administrativa nesta questão, determinando que “(…) outra posição que não aquela para que se propende, conduziria a uma vantagem abusiva e injustificada por parte da Freguesia, além de que se traduziria numa desproporcionada violação do princípio da boa-fé, como se a «relação contratual de facto» resultante da nulidade verificada equivalesse a um nada.” (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 8 de Abril de 2016, processo n.º 02730/14.0BEPRT, disponível em www.dgsi.pt). No mesmo sentido, dispõe o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 10 de Novembro de 2016, processo n.º 0391/16, que “À luz do art. 289º do Código Civil, o beneficiário de um serviço já prestado – e não restituível – em execução de um contrato nulo deverá entregar à outra parte contratante o valor objectivo do serviço recebido, a calcular segundo o tarifário vigente.
VIII – Esta solução é alheia ao teor de quaisquer princípios administrativos, bem como às regras ligadas à autonomia dos municípios ou ao cabimento orçamental.
IX – A circunstância do serviço ter sido gratuito no passado não investe o seu actual beneficiário numa situação de confiança que lhe permitisse exigir gratuitidade após saber que o serviço era onerosamente prestado. (cf. Acórdãos de 7 de Dezembro de 2016, processo n.º 0688/16, de 4 de Maio de 2017, processos n.º 0443/16 e n.º 01209/16, de 1 de Junho de 2017, processo n.º 0401/16, e de 20 de Junho de 2017, processo n.º 0437/16, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Em face do exposto, considera este Tribunal Arbitral que o artigo 9.º, n.º 2 da “Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso” não constitui obstáculo ao pagamento do valor peticionado pela Demandante, devendo a Demandada ser condenada a pagar à Demandante o preço devido pelos serviços que lhe foram prestados para a concepção da “...”.
IV.2. Da validade ou invalidade do contrato de prestação de serviços de produção de imagem gráfica para divulgação de eventos da Demandada e respectivas consequências;
Quanto ao contrato relativo à prestação de serviços de produção de imagem gráfica para divulgação de eventos do Município, este foi reduzido a escrito (em conformidade com o artigo 94.º do CCP) e precedido do procedimento legalmente exigido. O procedimento escolhido pelas partes, estando em causa um contrato de aquisição de serviço, e com base no valor do mesmo (18.600€ (dezoito mil e seiscentos euros)), foi o Ajuste Directo (cf. artigo 20.º, n.º 1, al. d) e 27.º, n.º 3 do CCP).
Em termos formais, este contrato é válido, como se pode concluir por tudo o que aqui já foi referido, ainda que relativamente ao outro contrato.
Quanto à sua substância, refere a Demandada a possibilidade de o processo criminal que corre contra o seu Presidente da Câmara, gerar a nulidade ou anulabilidade do contrato de ajuste directo celebrado entre as Partes.
Ora, no que a esta questão diz respeito, importa referir, como aqui já foi mencionado, que o Município de ..., enquanto autarquia local (cf. artigo 236.º, n.º 1 da CRP), é uma pessoa colectiva de direito público e, como tal, detém personalidade jurídica, estando, por isso, em posição de ser titular de “situações jurídicas subjectivas” e, consequentemente, sujeito de imputação jurídica final, o que significa suportar a imputação dos efeitos jurídicos da actividade desenvolvida pelos seus órgãos.
Ademais, tendo personalidade jurídica, por conseguinte, tem personalidade judiciária, isto é, susceptibilidade de ser parte, de acordo com o artigo 11.º do Código de Processo Civil.
Por outro lado, de acordo com o artigo 250.º da CRP, os órgãos representativos do município são a Assembleia Municipal (órgão deliberativo) e a Câmara Municipal (órgão executivo), aos quais acresce, ainda, o Presidente da Câmara, enquanto órgão autónomo, que dispõe de competências próprias.
E, enquanto pessoa colectiva, o Município actua por intermédio dos seus órgãos. O órgão administrativo é, portanto, a estrutura organizativa através da qual a pessoa colectiva, actua e se relaciona com outros sujeitos. Ou seja, entre o órgão e a pessoa colectiva a que pertence, tal como entre o órgão e o respectivo titular, não existe uma relação de representação, mas antes uma relação orgânica de imputação. Tudo se passa, juridicamente, como se fosse a própria pessoa colectiva a agir directamente, sem intermediação da pessoa física.
Todavia, os respectivos órgãos administrativos, que também não existem fisicamente, por falta de personalidade jurídica não se apresentam como centros de imputação jurídica final, isto é, a imputação final da sua actuação efectiva-se na pessoa colectiva a que pertencem. Nesta medida, há uma dupla imputação, ou seja, “a ação (humana) dos titulares dos órgãos é imputada aos órgãos (imputação transitória) e, logicamente a seguir, à pessoa colectiva (imputação final)” (cf. PEDRO COSTA GONÇALVES, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, Coimbra: Edições Almedina, 2020, p. 569).
Aplicando este raciocínio ao caso em apreço, a Demandada desenvolve a sua actividade através dos seus órgãos, nomeadamente a Câmara Municipal e esta através do Presidente da Câmara. No entanto, embora actue através dos seus órgãos, a actuação é-lhe automaticamente imputada. Neste sentido, a actuação do Presidente da Câmara Municipal de ... (enquanto titular) imputa-se ao órgão “Presidente da Câmara” e, de seguida, ao Município.
Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Outubro de 1991, processo n.º 080776, disponível em www.dgsi.pt “Os efeitos de direito de qualquer intervenção do órgão, (Câmara Municipal), são directamente imputados à pessoa colectiva, (Município).” No mesmo sentido, os efeitos jurídicos de qualquer intervenção do órgão (Presidente da Câmara), são directamente imputados à pessoa colectiva (Município), tudo se passando como se tivesse sido esta a agir.
Nesta medida, é a Demandada quem realiza o contrato de prestação de serviços com a Demandante através do Presidente da Câmara. Da mesma forma, o acto alegadamente ilícito pelo qual está o Presidente a ser julgado no referido processo criminal, é imputado à Demandada, tudo se passando como se tivesse sido esta a praticá-lo. Existe, entre eles, uma relação orgânica, de imputação, e não de representação.
Assim, o acto ilícito pelo qual está a ser julgado o Presidente imputa-se automaticamente à Demandada, e efectivamente pode conduzir à nulidade ou anulabilidade do contrato de ajuste directo celebrado entre as Partes e, nessa medida, afectar a produção dos seus efeitos, podendo, no limite, comprometer o pagamento devido ao prestador de serviços. Contudo, e ainda que se equacione este cenário, por força do regime da nulidade/anulabilidade, previsto no artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil – que aqui já foi exposto -, dificilmente se poderá configurar uma situação em que ao prestador de serviços não seja devido o pagamento pelos serviços efectivamente prestados.
Os efeitos jurídicos dessa actuação, tal como os efeitos decorrentes da decisão do processo criminal, só afectam o contrato se o acto do Presidente da Câmara Municipal de ... foi determinante na celebração desse contrato e caso seja julgado, por sentença transitada em julgado, ilícito. Porém, ainda que assim se entenda, responsabilizando-se o Presidente da Câmara Municipal de ... criminalmente, de acordo com o artigo 272.º da CRP , e gerando-se a nulidade ou anulabilidade do contrato, a lógica que aqui se aplica é a mesma que se expôs relativamente ao contrato de prestação de serviços referentes à concepção da medalha comemorativa. Isto é, aplicando-se o regime da nulidade ou anulabilidade, produzem-se efeitos retroativos devendo ser restituído tudo aquilo que se prestou ou, não sendo possível a restituição em espécie – como não é, neste caso -, a restituição do valor correspondente.
Assim, ainda que, alegadamente e em abstrato, esse processo criminal possa gerar a invalidade do contrato, a Entidade Demandada não fica exonerada do pagamento das faturas relativas aos serviços produção de imagem gráfica prestados pela Demandante.
Claro está que, se o Presidente da Câmara estiver a ser investigado pela prática de crimes relacionados com a matéria da contratação pública, mas que não digam diretamente respeito ao contato aqui em causa, então dúvidas não restam de que tal investigação e os respectivos resultados em nada colidem com a validade e eficácia do contrato em análise, e que, por conseguinte, a Demandante não pode ser, de modo algum, penalizada por tais práticas do Presidente da Câmara.
Assim, conclui-se que a Demandada deve igualmente ser condenada a pagar à Demandante o preço devido pelos serviços que lhe foram prestados pela produção de imagem gráfica para divulgação de eventos.
Estando, pois, assente que, no caso dos autos, se verifica a celebração de dois contratos onerosos, um deles nulo por inobservância do procedimento legalmente exigido; outro, formalmente válido, mas passível de invalidade, consoante (1) a decisão do processo criminal que corre contra o Sr. Presidente da Câmara Municipal de ..., e (2) se o acto foi determinante na celebração do contrato; é entendimento deste Tribunal, em ambos os casos, condenar a Demandada no pagamento do preço reclamado pela Demandante pelos seus serviços.
Falta, no entanto, apurar o montante desse mesmo preço.
Ora, de acordo com o entendimento deste Tribunal Arbitral, o preço devido pelos serviços prestados pela Demandante à Demandada deve coincidir com os valores peticionados pela Demandante.
E isto, por dois motivos.
Por um lado, porque é o que decorre do regime da nulidade do contrato que aqui se aplica.
Por outro lado, a verdade é que, como já foi referido, os factos foram tidos como assentes pelas Partes, o que inclui, necessariamente, os valores reclamados pela Demandante. A Demandada não os contestou, limitando-se a expressar o enquadramento jurídico que considera dever ser-lhes dado, julgando, nesse sentido, que a lei apenas iria impor o pagamento de tais preços se os contratos fossem válidos.
No entanto, para além de, nos termos do artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, este Tribunal Arbitral não estar vinculado ao entendimento das Partes no que diz respeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de Direito, este considera que se impõe, in casu, a aplicação do regime da nulidade previsto no artigo 289.º do Código Civil, pelo que é procedente o pedido formulado pela Demandante, e condenada a Demandada ao pagamento dos valores reclamados pela Demandante.
Por fim, e tendo em conta que (1) os factos tidos como provados neste processo podem constituir (ou ter na sua origem) violações susceptíveis de originar responsabilidade financeira dos titulares dos órgãos administrativos envolvidos na celebração dos contratos; que (2) as autarquias locais fazem parte do âmbito subjectivo de jurisdição do Tribunal de Contas, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea c) da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (em diante “LOPTC”); e que (3) compete ao Tribunal de Contas “[j]ulgar a efectivação de responsabilidades financeiras de quem gere e utiliza dinheiros públicos” (cf. artigo 5.º, n.º 1, alínea e) da LOPTC), determina este Tribunal Arbitral dever dar-se conhecimento ao Tribunal de Contas desta Decisão Arbitral, por forma a permitir-lhe apurar eventuais responsabilidades financeiras e correspondentes sanções, nos termos do artigo 57.º e seguintes da LOPTC.
V – Decisão;
Em consequência, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar a acção totalmente procedente e, em consequência, condenar o Município de ... a pagar à Demandante as quantias por esta peticionadas, conforme abaixo se indica:
a.1) € 6.239,43 (seis mil, duzentos e trinta e nove euros e quarenta e três cêntimos), acrescido do valor dos juros de mora à taxa legalmente aplicável às transacções comerciais a contar desde a data de vencimento das respectivas facturas;
a.2) € 861 (oitocentos e sessenta e um euros), acrescido do valor dos juros de mora à taxa legalmente aplicável às transacções comerciais a contar desde a data da interpelação para pagamento ocorrida a 17/02/2020;
b) Determinar que, em consequência, as custas e encargos do processo ficam integralmente a cargo da Entidade Demandada (cf. artigo 29.º, n.º 6 do Regulamento); bem como
c) Determinar a remessa desta decisão ao Tribunal de Contas, para os efeitos tidos por convenientes.
Publique-se, após o expurgo dos elementos susceptíveis de permitir a identificação das Partes, conforme o disposto no artigo 5.º, n.º 3 do Regulamento.
Leiria, 29 de dezembro de 2020
O Árbitro
Duarte Silva Vieira