DECISÃO ARBITRAL
I. Das partes, do tribunal arbitral, do objeto e saneamento processual
A Demandante (“A”), A..., NIF..., portadora do Cartão de Cidadão n.º..., residente na Rua ..., ..., ...-... Lisboa,
apresentou petição inicial nos termos do artigo 10.º do Novo Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante, abreviadamente, designado por “Regulamento do CAAD”), contra
o Demandado (“B”), B..., I. P., com sede na ..., ..., ..., ... ...-... Lisboa, NIPC ... .
É Demandado, conforme a norma do n.º 2 do artigo 10.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) enquanto pessoa coletiva de direito público, o “C”.
A presente arbitragem em matéria administrativa relativa a relação jurídica de emprego público decorre junto do CAAD, na Avenida Duque de Loulé, n.º 72 A, 1050-091 Lisboa.
Não oferece qualquer hesitação a legitimidade do CAAD, enquanto centro de arbitragem institucionalizada em apelo ao Despacho n.º 5097/2009, de 27 de janeiro de 2009, publicado no Diário da República, 2.ª série – N.º 30 – 12 de fevereiro de 2009, nem a possibilidade de vinculação prévia à sua jurisdição, in casu, administrativa.
De acordo com a Portaria n.º 1120/2009, de 30 de setembro, e em conformidade com o disposto do artigo 187.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA, o Ministério da Justiça está vinculado à jurisdição deste Centro de Arbitragem relativa:
“a composição de litígios de valor igual ou inferior a 150 milhões de euros” e que, entre o mais, tenham por objeto “questões emergentes de relações jurídicas de emprego público, quando não estejam em causa direitos indisponíveis e quando não resultem de acidente de trabalho ou de doença profissional”.
Seja pelo valor da presente ação (€277,18), seja pelo objeto do litígio, a mesma integra-se de forma inequívoca no âmbito da referida vinculação, sendo este Tribunal competente para a decisão arbitral que foi constituído a 11-09-2019.
Quanto à sua composição (um/a Árbitro/a) encontra previsão no artigo 15.º, n.º 2 e, nos termos dos artigos 15.º, n.º 3, e 16.º, n.º 1 do Regulamento da Arbitragem , tendo a signatária sido designada, após aceitação escrita nos termos definidos no Código Deontológico.
Seguindo a orientação do direito constituído deve proferir decisão em consonância com os artigos 5.º, n.º 1, alínea f), e 26.º, n.º 1, do Regulamento da Arbitragem .
Logo no Despacho Arbitral proferido em 29-01-2019, o Tribunal explicitou que, nos termos do Regulamento CAAD – a submissão do litígio a tribunal constituído pressupõe a aceitação deste, bem como das demais normas que regulam a sua actividade (vide artigo 2.º, n.º 1).
Foi ainda esclarecido que da decisão arbitral proferida por um Tribunal constituído no âmbito do CAAD, cabem os mesmos recursos que caberiam da sentença proferida pelos Tribunais estaduais de primeira instância a menos que as partes tenham renunciado a esse Direito.
Afigurando-se que a renúncia à faculdade de recorrer só opera se exercida por ambas as partes ou pelas partes em litígio, decidiu-se que a decisão será recorrível se forem reunidos os demais pressupostos formais e substanciais necessários para admissão do recurso, nos termos do sobredito artigo 27º, n. º 2 do Regulamento do CAAD.
Decorrida a fase instrumental quanto à decisão a proferir e considerando o disposto no artigo 5.º sob a epígrafe «Princípios» do Regulamento CAAD, em particular, ao teor da alínea b) que refere “Autonomia do tribunal na condução do processo e na determinação das regras aplicáveis” e no artigo 30.º, n.º 3 da Lei da Arbitragem Voluntária (“LAV”) foi determinado que, quando não sejam definidas regras processuais aplicáveis à presente arbitragem, supletivamente, serão aplicadas os conceitos e regras decorrentes, em primeira linha, do CPTA e depois do CPC.
Foi ainda adiantado às partes que não se desprezou a discussão em torno da oficiosidade e da não oficiosidade do conhecimento em matéria da (in) competência do Tribunal, desde logo, na medida em que o artigo 18.º da LAV é omisso quando a uma solução directa, incluindo, o momento até ao qual tal incompetência pode ser invocada pelas partes ou decidida pelo Tribunal, o que daria abertura ao pensamento da não oficiosidade.
A instituição da arbitragem, voluntária assenta na autonomia privada: nela se funda a constituição e o funcionamento de órgãos a quem competem alguma das funções que a lei fundamental atribui aos tribunais (artigo 206.º do CRP).
Chegados aqui,
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Assume-se acuidade a suscetibilidade de modificação da convenção de arbitragem por acordo celebrado entre as partes (como corolário do princípio da autonomia) ao que aconchegará se preenchidos os requisitos temporais e de forma presentes no artigo 4.º, n.ºs 1 e 3 do artigo 4.º da LAV com propagação no artigo 9.º conciliada ainda com o vertido no artigo 5.º, nº, 1, c) e d), todos do Regulamento do CAAD, bem ainda com os princípios da utilidade do processado e do poder-dever do favor arbitrationis.
A competência deste Tribunal pressupõe a análise da arbitrabilidade objetiva, isto é, aquela que deve ser alocada pela convenção de arbitragem, demandando a existência desta de forma eficaz e válida entre as partes (aqui Demandante e Demandado) e a regular da constituição deste Tribunal Arbitral.
Nesta medida, a competência do Tribunal não pode/deve ficar distante da aplicabilidade da convenção da arbitragem, mais ainda, quando as partes atribuem a competência (e a medida desta) a um Tribunal Arbitral em função do valor .
A Demandante circunscreve o valor da causa numa dívida do Demandando de €277,18 (duzentos e setenta e sete euros e dezoito cêntimos), apresentando-se como a utilidade económica imediata do pedido.
II – Do objeto da presente ação e das posições das Partes
A Demandante, trabalhadora da carreira dos oficiais dos registos e do notariado com a categoria de Escriturário Superior e a exercer funções no C..., Conservatória do B..., I. P., pretende:
i. o reconhecimento do direito a juros de mora pelo atraso no pagamento das diferenças salariais mensais consequentes do atraso na sua colocação na categoria de escriturário superior;
ii. a condenação do Demandado no pagamento de juros de mora deste a data do vencimento de cada uma das prestações mensais devidas, cujo valor, em dezembro de 2013, se converteu em dívida de capital por força do n.º 1 do artigo 705.º do CC, e;
iii. condenação no pagamento da dívida de capital apurada e supra apontada mais juros de mora, vencidos e vincendos, até integral pagamento.
A referência ao n.º 1 do artigo 705.º do Código Civil no pedido foi nitidamente um lapso de escrita cometido pela Demandante , o qual se extrai aliás à repleção do que ela afirma nos artigos 56.º e 60.º da petição inicial, assumindo o Tribunal a sanação de tal lapso, considerando que a referência normativa efetivamente pretendida se reporta ao n.º 1 do artigo 785.º do Código Civil.
Os termos da citada formulação do pedido, que delimitam o objeto da presente ação, são bem reveladores de que a Demandante assume o seu direito ao recebimento dos referidos juros moratórios e de que considera, ao abrigo precisamente do n.º 1 do artigo 785.º do Código Civil, já lhe terem sido pagos esses juros que tem por devidos (€ 277,18) peticionando na presente ação o montante do capital que assim ficou por pagar, em resultado da imputação do cumprimento presumida nessa norma do Código Civil, acrescido dos juros de mora, à taxa anual de 4% dos juros legais, devidos desde a entrada da ação até efetivo e integral pagamento desse mesmo montante de capital.
Daí que aquele valor indicado na petição inicial para a presente causa – € 277,18 (duzentos e setenta e sete euros e dezoito cêntimos) – corresponda à soma do montante pecuniário da referida dívida de capital de que a Demandante alega ser credora no final de dezembro de 2013 (€ 226,61) com os respetivos juros de mora vencidos.
Mostra-se assim que o litígio em causa é arbitrável, estando em causa, uma questão que pretende promover a resolução de litígios emergentes de uma relação jurídica de emprego público.
Deve anotar-se que, nos artigos 112.º da contestação, o Demandado, sem contudo impugnar esses montantes, “reserva (...) o direito de se pronunciar sobre tal tabela nessa sede”, em sede de execução da presente Decisão Arbitral, sobre os referidos montantes pecuniários resultantes do cálculo dos juros de mora que a Demandante considera devidos e que apresenta no Anexo I à petição inicial.
Deve ainda anotar-se que o Tribunal verificou o referido cálculo dos juros de mora apresentado pela Demandante no Anexo I à petição inicial e por ela peticionado.
E, assim, pôde o Tribunal confirmar o acerto desse cálculo.
Dito isto, importa aqui sublinhar que a Demandante, no artigo 16.º da petição inicial, qualifica expressamente a presente ação como de impugnação do despacho, exarado em 16 de maio de 2019 pela Senhora Presidente do Conselho Diretivo do Demandado, exarado sobre o Relatório do Responsável pela Direção do Procedimento que sendo de “Concordo e indefiro como proposto”, absorveu e fez seus os fundamentos do dito Relatório.
Tal indeferimento, no qual, em síntese, pedira o reconhecimento do seu direito ao recebimento de juros de mora sobre cada uma das referidas prestações mensais devidas, contados desde a data de vencimento de cada uma delas, e o pagamento dos mesmos, tudo em termos similares ao pedido formulado na presente ação.
Notificado do teor da petição inicial, o Demandado, contestou a ação arbitral, defendendo-se por exceção, para tanto, arguindo a “exceção dilatória de Intempestividade da instauração da presente ação”, a “exceção de prescrição do direito ao pagamento de juros” e por impugnação, requerendo a este Tribunal a improcedência da “presente ação arbitral e absolvido o demandado dos pedidos, uma vez que não se verificam os pressupostos legais para a sua procedência.”
Termina o Demandado a sua contestação – tempestivamente apresentada em 27-07-2019 e juntando o processo administrativo – propugnando por que a presente ação seja julgada totalmente improcedente.
Em 30-08-2019, tempestivamente, portanto, a Demandante respondeu a estas exceções invocadas pelo Demandado, considerando-as improcedentes.
Sobre os meios de prova em Direito (cfr. art. 20.º, n.º 1 do Regulamento CAAD), a Demandante e Demandante não arrolaram testemunhas, tendo as partes apresentado apenas prova documental.
Pela Demandante foi apresentada a seguinte prova documental:
• Deliberação (extrato) n.º .../2013, de 29.11.2013 (Doc. n.º 1);
• Nota de Abonos e Descontos do Vencimento Mensal de Dezembro de 2013 (Doc. n.º 2);
• Nota de Abonos e Descontos do Vencimento Mensal de Março de 2015 (Doc. n.º 3);
• Petição inicial de ação administrativa intentada no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em 09.01.2016 (Doc. n.º 4);
• Requerimento datado de 10.12.2018, onde peticiona o pagamento dos juros de mora desde a data de produção dos efeitos da sua promoção a escriturário superior (Docs. n.ºs 5 e 6);
• Ofício n.º .../DRH/2019, de 14.01.2019 (Doc. n.º 7);
• Ofício n.º .../DRH-SAJPR, de 12.03.2019 (Docs. n.ºs 8 e 9);
• Ofício n.º .../DRH-SAJPR, de 17.05.2019 (Doc. n.º 10);
• Relatório do responsável pela direção do procedimento e respetivo despacho de indeferimento da pretensão formulada (Doc. n.º 11).
Pelo Demandado foi apresentado a seguinte prova documental:
• Deliberação (extrato) n.º .../2013, de 29.11.2013 (Doc. n.º 1);
• Aviso (extrato) n.º .../2013, de 30.01.2013 (Doc. n.º 2);
• Informação PC n.º .../2013-SAJPR-PR, que contém a lista dos trabalhadores que reuniram os requisitos necessários à promoção à categoria de escriturário superior durante o ano de 2010 (Doc. n.º 3).
Findos estes articulados, conclusos os presentes autos à signatária, foram as partes notificadas em 29-01-2020 para, caso tivessem interesse e vislumbrassem utilidade, juntarem:
a) compromisso arbitral – subscrito por Demandante e pelo Demandado – que, especificamente, atribua competência ao CAAD para apreciação deste litígio, devidamente assinada, em formato original, e produzindo os seus efeitos na data do primeiro pedido de constituição deste tribunal arbitral;
b) (novos) documentos, eventuais correções e esclarecimentos de questões suscitadas nas peças processuais.
Este Tribunal Arbitral notificou as partes da faculdade de recurso ao mecanismo de agilização processual a dispensa da realização da audiência de prova, bem como a valoração de qualquer outra prova que não a documental existente ou aquela que for junta no prazo indicado, propondo, ainda, a dispensa da audiência de julgamento e de alegações finais, o que fez, ao abrigo do artigo 26.º, n.º 2 do Regulamento CAAD.
No Despacho Inicial foi notificado ainda às partes que, ultrapassado o prazo de 30 (trinta) dias concedido para o efeito, iria, ao abrigo o artigo 5.º, alínea c) e f) do Regulamento CAAD proferir decisão no processo arbitral.
A este despacho foi respondido pelo Demandado a 02-03-2020, no qual foi junto compromisso arbitral e comprovativo de notificação à contraparte.
Dispõe o artigo 25.º do Novo Regulamento de Arbitragem Administrativa, a decisão arbitral “contém uma descrição concisa da base factual, probatória e jurídica que a fundamenta.”
Cumpre, pois, apreciar e decidir a presente ação arbitral.
A – Da Fundamentação de Facto:
A.1 – Factos Provados:
Do confronto dos articulados submetidos pelas partes, resultam como provados e essenciais à decisão a prolatar os seguintes factos:
1) A Demandante é oficial da carreira dos oficiais de registos e do notariado, com a Categoria de Escriturário Superior, em regime de contrato de trabalho em funções publicas por tempo indeterminado, a exercer funções no C..., conservatória do B..., I.P. (demandada) -
2) Ingressou no quadro da Ex-Direção dos Registos e Notariado, por via de nomeação provisória na categoria de escriturária do Cartório Notarial do ..., ficando posicionada no 1.º escalão, índice 150;
3) Pela Deliberação (extrato) n.° .../2013 do Conselho Diretivo da Demandante, datada de 29 de novembro de 2013 e publicada em Diário da República, 2ª Série, n.° 245, de 18 de dezembro de 2013, foi sancionada a promoção à categoria de escriturário superior, com efeitos a 29/10/2010, tendo sido posicionada no 1° escalão, índice 190.
4) Em dezembro de 2013 e março de 2015, veio a Demandada a pagar à Demandante, a título de retroativos, não tendo feito qualquer pagamento a título de juros de mora.
5) A Demandante apresentou aos serviços da Demandada, em 10 de dezembro de 2018, um requerimento, no qual, peticionava a correção do processamento dos valores remuneratórios e o pagamento de juros sobre as quantias processadas.
6) Respondendo ao pedido da Demandante, a Demandada, “mediante o ofício n.º .../DRH/2019, de 14/01/2019, foram prestadas a informações solicitadas, esclarecendo-se, por um lado, que já tinham sido pagos os valores das diferenças remuneratórias relativas aos emolumentos pessoais comuns, desde 29/10/2010 a 31/12/2013 tendo por referência o índice 190, escalão I”.
7) Depois do ofício n.º .../DRH/2019, a 12/03/2019, a Demandante foi notificada da proposta de decisão desfavorável (Ofício nº .../DRH-SAJPR) e para o exercício do direito à audição prévia.
8) Nesta sequência, em 17/05/2019, foi o Signatário da Demandante notificado da decisão final de indeferimento do requerimento (Ofício nº.../DRH-SAJPR), datado de 11/12/2018, decisão exarada pela Senhora Presidente do Conselho Diretivo da Demandada (16/05/2019), de onde consta, do Relatório do Responsável pela Direção do Procedimento (PA n.º.../2018) e que consta dos documentos juntos pela Demandante (cfr. Doc. n.º 11).
9) O objeto do litígio não contende com incumprimento de pagamento de quantias remuneratórias, mas da obrigação do pagamento de juros de mora.
A.2 - Factos não provados:
1) O momento temporal em que a Demandante tomou conhecimento da Deliberação (extrato) n.° .../2013 do Conselho Diretivo da Demandante, datada de 29 de novembro de 2013.
2) A data e meio de entrada do requerimento alegadamente apresentada pela Demandante a 20/01/2014.
A.3 – Fundamentação da matéria de facto dada como provada e não provada:
B – Questão prévia a decidir
i. “Da Exceção Dilatória de Intempestividade da Instauração da Presente Ação”
A posição das partes quanto à exceção em causa encontra-se bastante solidificada nos autos, quer a posição do Demandado, quer a posição da Demandada, para o qual se remete e dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
Previamente ao conhecimento imediato da exceção arguida, ao que apenas iremos reportar o essencial dos fundamentos das partes, faça-se o enquadramento daquela exceção.
Nos termos do artigo 89.º n.º 2 e n.º 4, alínea k) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), a intempestividade da prática do ato processual ou intempestividade da instauração da ação administrativa constitui uma exceção dilatória (nominada), sendo assim, barreira ao conhecimento do mérito da causa pelo Tribunal e levando à absolvição da instância.
O prazo fixado para a impugnação de um ato administrativo vem regulado no artigos 58.º e 59.º do CPTA, resultando daquelas normas, os Interessados dispõem de 3 meses para a impugnação de atos administrativos anuláveis, só não estando sujeitos a prazo a impugnação de atos nulos, sendo a nulidade invocável a todo o tempo por qualquer interessado e podendo ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer tribunal (artigo 58.º n.º 1, 1.ª parte do CPTA).
Em face de exceção (dilatória) de intempestividade da prática do ato processual, o Juiz da causa deve conhecer da tempestividade (ou não) da instauração da ação e, mesmo, conhecer dela ainda que as partes não a invoquem
O CPTA, quando não se trate da impugnação de atos administrativos, nomeadamente na disciplina do Titulo II, Capitulo I do CPTA (artigos 37.º e seguintes), não designa um prazo para a interposição, uma vez que, no caso das situações previstas nas alíneas a) a m) do artigo 37.º, “a ação administrativa pode ser proposta a todo o tempo.”
Para o que está aqui em causa, afirmar da (in)tempestividade da instauração da ação administrativa, está em causa verificar se estamos em presença de ação impugnatória, sujeita aos prazos do artigo 58.º do CPTA, ou não impugnatória, sujeita à disciplina dos artigos 37.º e seguintes.
E, a adequação da forma de processo retira-se em função da pretensão deduzida em juízo pela Demandante, assim como da causa de pedir. Ela sendo, o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido e corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido.
Pois então, a distinção do CPTA, entre as ações impugnatórias e não impugnatórias, assenta em saber se o litígio remete para o exercício de poderes de autoridade por parte da Administração.
Continuando e passado o enquadramento inicial, fazendo a confrontação da posição das partes, a Demandante apresentou “pedido de anulação de ato administrativo, proferido no âmbito da relação jurídica de emprego publico, que liga as partes, e de condenação do Demandado (…)”, para que “reconhecendo o direito da Demandada a juros de mora pelo atraso no pagamento das diferenças salariais mensais consequentes do atraso na sua colocação na categoria de escriturário superior, condene o Demandado no pagamento de juros de mora (…)”.
Mas vejamos, no essencial, as posições das partes.
No entendimento do Demandado, “deve julgar-se procedente a aduzida exceção dilatória de intempestividade do ato processual, em concreto, da propositura da presente ação, nos termos dos do disposto no art.º n os 2 e 4, al. k) do art.º 89º do CPTA, com a consequente absolvição do R. B..., I.P. da instância”
Para tanto, argumenta o Demandado: “resulta evidente da p.i. que os pedidos formulados envolveram a prática de um ato administrativo pela Administração Pública que, no caso, se consubstancia na deliberação tomada pelo Conselho Diretivo em 29/11/2013, regularmente publicitada através da Deliberação (extrato) n.º .../2013, in Diário da República 2. a série, n.º 245, de 18/12/2013.”
Continua, “Ora, o ato administrativo que poderia (não o tendo, contudo, feito) ter determinado juntamente com a aprovação da sua promoção e do seu posicionamento no índice 190, com produção de efeitos a 29/10/2010 — o pagamento dos juros de mora agora peticionados, foi proferido em 2013.”
Terminando a exposição do seguinte modo: “Pelo que, e nesta conformidade, se o aludido ato administrativo violava a lei, o mesmo poderia (e deveria!) ter sido, oportunamente, impugnado pela demandante nos termos legalmente previstos — cfr. art.º 58.º n.º 1, al. b) do CPTA.”.
Por seu lado, a Demandante aduz que “Antes de mais, cumpre registar que a Demandante não foi notificada da «forma como foi dada execução a deliberação do Conselho Diretivo do B..., IP de 29.12.2013»”
No corpo da sua exposição, cita jurisprudência “constante e pacifica que as notas de abonos ou verbetes de vencimento não são meio idóneo de notificação do acto de processamento que Ihes está subjacente”, de modo que, aponta a nota de abonos e descontos não constituem meio válido de notificação do ato administrativo, não sendo oponível à Demandante.
Prossegue com a argumentação da tempestividade do requerimento, com o pedido formulado em 10 de dezembro de 2018 de pagamento dos juros de mora sobre as quantias processadas, junto aos autos como documento n.º 5 e 6 da petição inicial, assim como da presente ação.
Defende a sua posição, “estando aqui em causa o estrito cumprimento da lei por parte da Administração, por um lado, se atrasou mais de três anos nesse cumprimento e, por outro, até agora não cumpriu cabalmente, estando-se pois perante uma situação em que «esta em causa o reconhecimento de uma situação jurídica subjectiva directamente decorrente de normas jurídico-administrativas (art.º 37.°, n.º 2, al. a) do CPTA) e a condenação da Administração ao cumprimento de deveres de prestar que directamente decorrem de normas jurídico-administrativas» o pedido constante do dito requerimento não está sujeito a prazo visto que, enquanto persistir a ilegalidade e os seus efeitos lesivos bem como a constância da relação jurídico-laboral entre as partes, a todo o tempo pode ser pedida a sua correção — cfr., neste sentido e entre muitos outros, Acórdão do TCA Sul de 12/03/2015, proc. n.° 10888/14.”
Concluindo, “Não havia lugar a prolação de acto administrativo constitutivo, mas apenas a prática de actos e operações materiais de aplicação de disposições legais ou, segundo a doutrina mais abalizada, a «realização de simples actuações ou actos reais».”
Compulsada a petição inicial, contestação e documentos juntos pelas partes,
subjaz que a Demandante havia peticionado o reconhecimento do direito ao pagamento dos juros à Demandante, tendo para o efeito, por meio de comunicação eletrónica, dado entrada de requerimento (em 10/12/2018), indeferido pelos serviços da Demandada.
Como já atestamos, o CPTA evidencia diferenças entre ações impugnatórias e impugnatórias. Para aquelas, o seu objeto “a impugnação de um ato administrativo tem por objeto a anulação ou a declaração de nulidade desse ato” – artigo 50.º CPTA.
Sucede que, mesmo em ações não impugnatórias, o artigo 38.º do CPTA, permite, a título incidental, conhecer da ilegalidade de um ato administrativo que já não possa ser impugnado.
No vertente caso estamos em presença de uma relação jurídica de emprego público, concretizada num feixe de direitos e deveres das partes definidos na Lei e não perante a impugnação de um ato administrativo (Deliberação (extrato) n.º .../2013, de 29 de novembro de 2013, do conselho diretivo do Demandado, publicada no Diário da República, 2.ª série – N.º 245 – 18 de dezembro de 2013), que, na verdade, é omissa quanto aos juros moratórios peticionados pela Demandante.
Estando, por isso em causa, o reconhecimento de situações jurídicas subjetivas diretamente decorrentes de normas jurídico-administrativas (artigo 37º, n.º 1, alínea f) do CPTA) e a condenação da Administração ao cumprimento de deveres de prestar que diretamente decorram de normas jurídico-administrativas e não envolvam a emissão de um ato administrativo impugnável, ou que tenham sido constituídos por atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo,
A isto acresce que podem ter por objeto o pagamento de uma quantia, a entrega de uma coisa ou a prestação de um facto(artigo 37.º, n.º 1, alínea j) do CPTA).
Na verdade, a posição marcada pela Demandante toma como ponto de partida o procedimento administrativo desencadeado por si, do requerimento apresentado em 10/12/2018, da proposta de decisão e decisão exarada pela Senhora Presidente do Conselho Diretivo da Demandada e dos respetivos fundamentos.
O desacordo da Demandante não reside na Deliberação (extrato) n.º .../2013, de 29 de novembro de 2013, do conselho diretivo do Demandado e seu conteúdo, está, pois, segundo o que retira do articulado e documentos anexos, no reconhecimento do direito ao pagamento de juros moratórios.
Neste ponto temos de acompanhar a Demandante, como ainda iremos abordar sobre a natureza dos juros, o direito ao pagamento de juros moratórios desta, ou, a obrigação de pagamento dos juros moratórios da Demandada, a existir, emana da Lei, no caso, do Código Civil e dos artigos 804.º e 806.º.
Atente-se novamente à Deliberação (extrato) n.º .../2013, com o seguinte conteúdo: “Por deliberação do Conselho Diretivo, de 29 de novembro de 2013, foi sancionada a promoção à categoria de escriturário superior, com efeitos a partir da data indicada, dos escriturários constantes do quadro abaixo.”, com interesse aos autos, a Demandante, promovida ao índice 190, escalão 1, com efeitos a partir de 29-10-2010.
Observe-se, com efeito, a Deliberação (extrato) n.º .../2013, bem presente para ambas as partes, incidiu, somente na promoção de categoria e a data de efeito da promoção, sendo, no restante, totalmente omissa sobre a questão objeto do presente litígio, os juros moratórios devidos desde a data de produção de efeito da promoção, até à Deliberação do Conselho Diretivo do Demandado.
Pelo exposto, em razão dos argumentos citados, adere-se à posição da Demandante, improcedendo totalmente a invocada “Exceção Dilatória de Intempestividade da Instauração da Presente Ação”, integrando o pedido da Demandante nos fundamentos bastantes para a ação administrativa prevista no artigo 37.º do CPTA, passível de ser proposta a todo o tempo.
C – Do mérito do pedido:
C.1 - Do Direito ao Juros de Mora
Importante para enquadrar o pedido da Demandada é aquilatar o sentido e alcance dos juros de mora. No Código Civil, artigos 804.º e 808.º, constitui-se em mora o devedor que falte, culposamente, no pagamento pontual de uma obrigação, incorrendo na obrigação de reparar os danos causados ao credor. Nas obrigações pecuniárias, a reparação destes danos, verifica-se pelo pagamento de juros, a contar do dia da constituição em mora (artigo 806.º do CC).
Antes de afiançar se são (ou não) devidos juros de mora pela Demandada, deixamos já claro o sentido da Lei 3/2010, de 27 de abril, que estabelece a obrigatoriedade de pagamento de juros de mora pelo Estado pelo atraso no cumprimento de qualquer obrigação pecuniária e dispõe pelo seguinte: “o Estado e demais entidade públicas (…) estão obrigados ao pagamento de juros moratórios pelo atraso no cumprimento de qualquer obrigação pecuniária, independentemente da sua fonte”. Aquela disposição estabelece ainda, na falta de disposição a aplicar taxa diversa, “aplica-se a taxa de juro referida no n.º 2 do artigo 806.º do Código Civil”, ou seja, a taxa de juro legal.
Ora, do que vem exposto, o Estado, se na posição do lado de devedor de uma obrigação, encontra-se vinculado ao pagamento de juros pela não pagamento pontual e culposo de uma obrigação pecuniária.
Deixa-se já indiciado, a concluir-se a final pela obrigação de pagamento de juros de mora, desde a data que a Demandante adquiriu o direito de acesso à categoria superior, até à data de publicação em Diário da República, estará a Demandada obrigada ao pagamento dos juros moratórios, vencidos e vincendos, desde a data de vencimento de cada uma das quantias processadas e pagas a titulo de retroativos. O que iremos agora cuidar de explorar:
Do cotejo do disposto na norma aplicável ao caso em apreço, o Decreto-Lei n.º 131/91, de 2 de abril, no seu preambulo reflete-se o seguinte: “Durante o ano de 1990 foi alterado o estatuto remuneratório deste pessoal (conservadores, notários e oficiais de registo) no tocante a esta segunda componente (componente variável do estatuto remuneratório), impondo-se, numa perspetiva de coerência interna, alterar a outra componente – a que ora se referencia às escalas indiciárias -, respeitando a data em que aquele outra iniciou a sua produção de efeitos, por forma a haver um tratamento unitário no que tange à fixação do seu vencimento.”
No corpo do diploma já citado, quanto à matéria da presente decisão arbitral, relaciona-se o n.º 3 e 4.º do artigo 6.º, desenvolvendo-se com a seguinte redação:
3 - O acesso a escriturário superior fica condicionado à permanência de, pelo menos, 10 anos na categoria anterior e a classificação de serviço não inferior a Bom, segundo a ordem de graduação estabelecida pelo Conselho Técnico dos Registos e Notariado.
4 – O acesso a que se refere o número anterior produz efeitos independentemente de quaisquer formalidades, exceto a publicação em Diário da República, e retroage à data em que o funcionário adquiriu direito à categoria superior.
Enquadrados nas disposições aplicáveis, o momento determina invocar os argumentos das partes quanto ao tema.
A Demandante esteia o seu direito a juros nas seguintes premissas: (1) “primeiro, o acto de atribuição da categoria de Escriturário Superior é um acto de acertamento declarativo” e (2) “segundo, a lei declara expressa e claramente que o direito de acesso a escriturário superior produz efeitos independentemente de quaisquer formalidades, excepto publicação no Diário da República, e retroage à data em que a funcionário adquiriu direito à categoria superior.”
Se, com efeito, sobre a primeira premissa, expendendo considerações sobre a diferença entre atos constitutivos e não constitutivos (ou de acertamento declarativo), subleva a doutrina de Marcello Caetano, concluindo, nas palavras dessa doutrina:
“A este juízo de existência das situações, necessário para que se desencadeiem certos efeitos legais, chama a doutrina italiana accertamento, convindo a generalidade dos autores em que não têm caracter constitutivo, mas tão-só declarativo (sublinhado e negrito nossos).”
Resumindo a Demandante nos seguintes termos:
“Que o acto de publicação no Diário da República da passagem da Demandante a categoria de escriturário superior tem a natureza de mero acto de acertamento declarativo, logo, não constitutivo, resulta directamente do disposto no supratranscrito n.° 4 do art.° 6° do DL n.° 131/91, quando determina que «O acesso» [sujeito da oração] «retroage a data em que o funcionário adquiriu direito a categoria superior».”
Já no que se refere à segunda premissa, recorde-se, o acesso à categoria superior retroage à data em que a funcionário adquiriu direito à categoria superior, “no vertente caso, o que se passou foi que a Administração só três anos e dois meses depois da data de 29/10/2010 em que se havia constituído na esfera jurídica da Demandante o direito a promoção para a categoria de Escriturário Superior é que acertou esse direito, mas sem que tivesse tirado todos os feitos da retroactividade legalmente imposta, visto não ter liquidado e pago qualquer quantia a título de juros de mora.”
E, continua, “ora, ao reconstituir a situação que existiria se não fosse aquele atraso no acertamento do direito a promoção, a Administração estava adstrita não só no dever de corrigir a falta de pagamento das diferenças remuneratórias, «mas também a falta do sua tempestividade» o que deveria ter sido feito por via do pagamento de juros de mora.”
Seguindo com a referência a jurisprudência, da qual citamos o essencial: “«se a situação a reconstituir (...) envolvia o pagamento de certos abonos devidos ex ante, a reconstituição deve corrigir não só a falta desse pagamento, mas também a falta da sua tempestividade», tal como ficou assente no Acórdão do STA de 15/05/2003, proc. n.° 038575” – o que por economia de esforços remetemos para os artigos 51.º a 54.º do articulado da Demandante.
E, rematando, “reafirma-se que o B..., IP, ao não reconstituir a situação em causa de modo a não deixar rastro, violou o direito da Requerente a atempada promoção e, designadamente, a norma que se extrai das disposições conjugadas dos art.°s. 804 n.°s 1, e 2, 805, n.° 2, alíneas a) e b), e 806.°, n.°s 1 e 2, do Código Civil.”
Por seu turno, a Demandada, na contestação, dilui a sua posição, dimanando que “E, a verdade é que - ao invés do que dá a entender a demandante nos artigos 40.º e 41.º da p.i. - foi, efetivamente. proferido um ato constitutivo do direito à promoção, o qual não decorreu, automaticamente, do eventual preenchimento dos requisitos previstos no n.º 3 do art.º 6º do citado DL. N.º 131/91, na medida em que, para que o direito à promoção nascesse, efetivamente, na esfera jurídica da trabalhadora, tornou se obrigatório existir um ato administrativo que o determinasse.”
Prossegue, na mesma linha, nos artigos 79.º e 80.º da contestação, que aqui se convoca: “Ato este que, in casu, foi precedido de variadas circunstâncias que só permitiram a sua publicação em Diário da República (e, portanto, o início de produção dos seus efeitos) em 18/12/2013. Na verdade, importa atentar que o demandado só não procedeu à publicação da promoção daqueles trabalhadores à categoria de escriturário superior em Diário da República em 2010, porque, naturalmente, tal publicação necessitava de ser precedida de um ato administrativo que reconhecesse - após proceder ao levantamento do concreto percurso profissional de vários escriturários, de entre os quais a demandante, e aferir se a sua situação se subsumia nos requisitos legalmente estabelecidos (maxime, a avaliação de desempenho e o tempo de serviço mínimo exigido) — o direito dos escriturários a tal promoção.”
A Demandada alega ainda as circunstancias excecionais ocorridas nos anos de 2011 e seguintes, durante o lapso temporal, foi proferido o Despacho n.º 15248/2010, de 06/10/2010, pelo Ministro das Finanças em funções à data e aprovada a Lei n.º 554/2010, de 31/12 (LOE para 2011), chamando-se, porque relevante à discussão, o artigo 24.º n.º 4 daquele diploma, através dos quais se estabeleceram proibições que suscitaram fortes dúvidas ao demandado quanto à legalidade da sua conduta, caso viesse a reconhecer o direito dos referidos escriturários à promoção a escriturário superior.
Presentes as alegações das partes, cumpre, então, apreciar e decidir.
Como assinalamos, proclama o Decreto-Lei n.º 131/91, de 2 de abril, o acesso à categoria de escriturário superior depende de verificadas duas (2) condições:
(1) a permanência de, pelo menos, 10 anos na categoria anterior; e
(2) a classificação não inferior a Bom; o acesso à categoria superior produz efeitos imediatamente (após verificadas aquelas condições) e independentemente de outras formalidades, à exceção da Publicação em Diário da República e retroage à data em que o funcionário adquiriu condições para tal.
Impõe-se, diante do texto das normas aqui em crise, resolver a equação do n.º 3 e 4 daquele artigo e interpretar-lhes o sentido. Para tanto, recorremos aos princípios gerais do artigo 9.º do Código Civil. Dispõe este artigo pelo seguinte: 1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
O processo interpretativo recorre aos elementos literais ou gramatical (letra da lei) e aos elementos lógicos (espírito ou ratio legis). Nos segundos elementos, apontamos (1) o elemento sistemático (a unidade do sistema jurídico), (2) o elemento histórico (os precedentes normativos, trabalhos preparatórios) e (3) o elemento teleológico (fim ou objectivo que a norma visa realizar, qual foi a sua razão de ser - ratio legis).
Atentemos ao n.º 3 e 4 do artigo 6.º do Decreto-Lei 131/91, de 2 de abril. O acesso à categoria de escriturário superior é condicionado pela verificação dos dois requisitos lá mencionados, assim como, pela publicação em Diário da República. Continua, após a publicação, o acesso à categoria superior retroage à data em que se verificou o direito a aceder à categoria superior.
Por conseguinte, os n.os 3 e 4 do artigo 6.º desdobram-se em 3 momentos distintos:
1º verificação dos dois requisitos - permanência de, pelo menos, 10 anos na categoria anterior e a classificação não inferior a Bom;
2º publicação em Diário da República;
3º retroação do acesso à categoria de escriturário superior à data em que o destinatário adquiriu aquele direito.
O afastamento das posições da Demandante e Demandada, assenta, precisamente, no terceiro momento e no significado da parte final do n.º 4: “(o acesso à categoria de escriturário superior) retroage à data em que o funcionário adquiriu direito à categoria superior.”
Está assente nos autos, pela Deliberação (extrato) n.º .../2013, de 29 de novembro de 2013, do conselho diretivo do Demandado, publicada no Diário da República, 2.ª série – N.º 245 – 18 de dezembro de 2013, a Demandante, A..., adquiriu o direito à categoria superior em 29 de outubro de 2010, concomitantemente, os efeitos, designadamente os remuneratórios, retroagem àquela data.
Assim sendo, qual o valor a atribuir ao efeito retroativo atribuído pela n.º 4?
Será que ao pagamento dos acertos remuneratórios, com respeito ao acesso à categoria superior e efeitos retroativos reportados à data de 29-10-2010, deveriam ter refletido juros moratórios desde a data de vencimento de cada um dos acertos remuneratórios?
Tentemos, assim, reconstruir o percurso legislativo na formulação do Decreto-Lei n.º 131/91.
Vejamos, o Decreto-Lei n.º 131/91 refere que o acesso à categoria superior não produz efeitos até ao ato de publicação em Diário da República. Não obstante, depois da publicação oficial, manda aqueloutro preceito que (todos) os efeitos de acesso à categoria superior se produzam desde a data em que o funcionário reuniu todas as condições (29/10/2010).
Ora, consequentemente, se os efeitos se reportam a 29/10/2010, os efeitos remuneratórios, ou melhor as diferenças salariais do acesso a uma posição remuneratória superior pela categoria de escriturário superior, reportam-se à data de vencimento de cada uma das datas de vencimento das prestações salariais da Demandante.
Para melhor respaldar esta interpretação, voltamos à composição do preâmbulo do Decreto-Lei 131/91, do qual nos servimos novamente e reproduzimos para o que nos interessa: “respeitando a data em que aquele outra (vencimento base) iniciou a sua produção de efeitos, por forma a haver um tratamento unitário no que tange à fixação do seu vencimento” (sublinhado e negrito nossos).
Na alteração legislativa introduzida pelo Decreto-Lei n.º 131/91, alterou-se a componente do vencimento base, sendo a clara interpretação do Legislador salvaguardar a data em que o efeito no vencimento dos funcionários iniciou a sua produção.
O que quererá dizer que, reportando-se os efeitos a 29/10/2010, sobre todas os diferenças remuneratórias devidas desde a respetiva data de vencimento e pagas à Demandada sob a forma de retroativos em dezembro de 2013 e março de 2015, incorreu a Demandada em mora.
Consonante com o evidenciado, a interpretação da Demandada (cfr. artigos 95.º e seguintes da Contestação), segundo o qual o direito à promoção à categoria de escriturário superior, sem prejuízo de retroagir à data em que se mostrem reunidos os requisitos para tal, só produz efeitos com a publicação em Diário da República, inferindo dali que “nessa medida, é evidente que, antes da referida publicação — que é condição de eficácia da promoção a escriturário superior — o demandado não era devedor de qualquer quantia à trabalhadora”, não procede.
Sendo, neste ponto, de acolher a pretensão da Demandante quanto ao direito a receber juros moratórios desde a data de vencimento de cada uma daquelas diferenças remuneratórias.
O que é certo é que a promoção é automática, carecendo apenas da publicação, emergindo na esfera jurídica da Demandada o direito à remuneração conducente com a promoção
C.2 – Da Prescrição dos Juros de Mora
A propósito da prescrição dos juros de mora as posições da Demandada e da Demandada estão bem vincadas nos autos e são dissidentes.
A Demandante expõe o mérito da sua posição, pedindo a final, que “reconhecendo o direito da Demandante a juros de mora pelo atraso no pagamento das diferenças salariais mensais consequentes do atraso na sua colocação na categoria de escriturário superior, condene o Demandado no pagamento de juros de mora desde a data do vencimento de cada uma das prestações mensais devidas, cujo valor, em Dezembro de 2013 (…)”
Para tanto, explica que nos atos de processamento das diferenças salariais devidas à Demandante pelo acesso à categoria de escriturário superior não foi liquidada qualquer quantia a título de juros.
Tal direito brotou pois, “no vertente caso, o que se passou foi que a Administração só três anos e dois meses depois da data de 29/10/2010 em que se havia constituído na esfera jurídica da Demandante o direito a promoção para a categoria de Escriturário Superior é que acertou esse direito, mas sem que tivesse tirado todos os feitos da retroactividade legalmente imposta, visto não ter liquidado e pago qualquer quantia a título de juros de mora.”
E, para a decisão do presente litígio, vem a Demandante afirmar o seguinte: “ora, ao reconstituir a situação que existiria se não fosse aquele atraso no acertamento do direito a promoção, a Administração estava adstrita não só no dever de corrigir a falta de pagamento das diferenças remuneratórias, «mas também a falta do sua tempestividade» o que deveria ter sido feito por via do pagamento de juros de mora.”
Termina a Demandante, citando prolixa jurisprudência dos Tribunais Superiores, no seguinte sentido: “«se a situação a reconstituir (...) envolvia o pagamento de certos abonos devidos ex ante, a reconstituição deve corrigir não só a falta desse pagamento, mas também a falta da sua tempestividade»”
Ao passo que a Demandada invoca a exceção perentória de prescrição do direito ao pagamento de juros moratórios (artigos 23.º e seguintes da Contestação), extintiva do direito a que a Demandante se arroga, alegando, sumariamente, estar sujeitos ao regime geral de prescrição do Código Civil, designadamente os artigos 310.º, alínea d) e n.º 1 do artigo 306.º, ambas do Código Civil. Neste ponto, por força dos citados artigos, os juros prescrevem no prazo de 5 anos, contados da data que o direito possa ser exercido.
O momento definidor para a contagem deste prazo, “sempre se dirá que o previsto nesta norma só poderá significar que o dito prazo de prescrição se iniciou a partir do momento em que a demandante pôde exigir o pagamento das diferenças remuneratórias devidas pela sua promoção.”
O que de acordo com a Demandada, “no limite, tal momento não poderia deixar de corresponder à data em que a deliberação da entidade demandada se tornou plenamente eficaz (nos termos da qual foi autorizada a sua promoção e o seu posicionamento no índice 190, com efeitos a 29/10/2010, mas não terá sido determinado o pagamento dos juros em questão), ou seja, em dezembro de 2013.”
Aqui, acompanhamos a Demandante, todavia, acrescentamos alguns elementos com relevo à decisão final.
Pois bem, antes de analisar mais aprofundadamente a solução alcançada, importa qualificar estes juros. A Demandada subordina a regulação destes juros ao regime geral da prescrição ínsito no Código Civil, porém, s.m.o., claudica esta pretensão.
Importa procurar no ordenamento jurídico português a existência de algum normativo com aplicação ao caso vertente e que ofereça solução mais adequada à qualificação dos juros.
Comecemos pela Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), introduzida pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, aplicável à relação jurídica existente entre a Demandante e Demandada por força do artigo 9.º da Lei 35/2014, que sujeita à LGTFP “os vínculos de emprego público e os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho constituídos ou celebrados antes da sua entrada em vigor, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações totalmente anteriores àquele momento.”
A LGTFP não tem nenhuma disposição diretamente aplicável sobre o tema, ao contrário do verificado no anterior Regime e Regulamento do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro (entretanto revogada pela LGTFP) que previa o seguinte: “1 - Todos os créditos resultantes do contrato e da sua violação ou cessação, pertencentes à entidade empregadora pública ou ao trabalhador, extinguem-se por prescrição, decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato.”
Ainda não sendo bem o assunto aqui em juízo, confrontado o regime do Código do Trabalho, denota-se a prevalência de um prazo especial para a prescrição dos créditos laborais emergentes de contrato de trabalho, assinalado no artigo 337.º. O n.º 1 deste preceito assegura que “o crédito de empregador ou de trabalhador emergente de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação prescreve decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.”
Por este preceito estabelece-se um prazo especial para a prescrição de créditos emergentes do contrato de trabalho, diferente do prazo de prescrição geral dos artigos 300.º e seguintes do Código Civil. A razão deste preceito é prevenir a dificuldade do trabalhador, durante a vigência do contrato de trabalho, na dependência do empregador, acionar e exercer os seus direitos sobre o Empregador.
A noção de “créditos emergentes do contrato de trabalho” é ampla, abrangendo aqueles que emergem directamente do contrato de trabalho ou os que resultem da sua violação ou cessação. Aliás, é suficientemente ampla para englobar os juros de mora relativos a créditos laborais, constituindo, deste modo, um desvio ao regime geral ao estabelecido no art.º 310.º, alínea d) do CC .
Será que podemos aplicar as considerações atrás expendidas ao presente litígio?
A reposta terá de ser afirmativa. A LGTFP é omissa no que concerne a uma situação análoga ao artigo 337.º do Código de Trabalho ou à do antigo artigo 245.º Regime e Regulamento do Contrato de Trabalho em Funções Públicas. Não obstante a “omissão”, a LGTFP tem uma clausula geral de remissão para o Código do Trabalho e respetiva legislação complementar, às relações de vínculo publico, comportando exceções, não se mostrando este tema uma delas.
De modo que, os apontamentos atrás tecidos, no entendimento deste Tribunal, deverão ser aplicados ao presente caso, devendo, como tal, os juros ser qualificados como créditos laborais, sujeitos não à prescrição dos artigos 300.º e seguintes do Código Civil, como aventa a Demandada, mas sim ao regime do Artigo 337.º do Código do Trabalho, aplicado por força da remissão do artigo 4.º n.º 1 da LGTFP.
C.3 – Sobre a imputação dos juros
Resta, por fim, dar resposta ao ponto IV. (Do pedido) da petição inicial, sobre o qual a Demandante anota o seguinte: “Verificando-se que o que foi pago pelo B..., IP, a Demandante em Dezembro de 2013, como consta no Doc. n.º 2, não chegou para pagar tudo o que era devido - divida de capital e divida de juros -, «a prestação que não chegue para cobrir tudo o que é devido presume-se feita por conta, sucessivamente, (...) dos juros e do capital» (n.° 1 do art.° 785° do Código Civil).”
A este propósito remata com o seguinte: “Pelo que, convertendo-se a dívida de juros em dívida de capital, se encontra em dívida desde dezembro de 2013 o valor de € 226,61 a título de capital, o qual se encontra a vencer juros de mora desde então e até cabal pagamento.”
Já quanto a este tópico, mereceu esta resposta da Demandada:” Por fim - e sem conceder - cabe referir, relativamente à tabela de Excel junta como Anexo I à p.i. que, não sendo esta a sede própria para proceder aos cálculos dos juros de mora peticionados pela demandante (já que ainda atuamos em sede meramente declarativa), em caso de procedência da ação, tal apuramento terá sempre de ser efetuado em sede de execução da decisão arbitral que vier a ser proferida.”
E em face daquela resposta, concluiu: “Pelo que — por mero dever de defesa — o demandando reserva, desde já, o direito de se pronunciar sobre tal tabela nessa sede.”
Ainda que se conceda na pretensão do Demandado remeter o apuramento do quantum de juros para sede de execução da decisão arbitral, devemos pronunciar-nos sobre a imputação dos valores recebidos pela Demandante em 2013 e 2015 feita nos termos do artigo 785.º do Código Civil.
Julgamos, em conformidade com o decidido sobre as questões anteriores, proceder a imputação do Demandado dos valores pagos, primeiro a juros e, só depois, a capital, isto de acordo com o artigo 785.º do Código Civil.
D – Da Decisão Arbitral
À luz dos fundamentos acima expostos, decide este Tribunal, julgar a presente ação arbitral procedente e, em consequência:
1. reconhecer o direito da demandante ao recebimento de juros de mora pelo atraso no pagamento das diferenças salariais mensais consequentes do atraso na sua colocação na categoria de escriturário superior;
2. condenar o demandado no pagamento de juros de mora à demandante desde a data de vencimento de cada uma das prestações mensais devidas, cujo valor, em dezembro de 2013, se converteu em dívida de capital por força do artigo 785.º do Código Civil;
3. condenar o demandado no pagamento da dívida de capital apurada (€277,18), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, até integral pagamento.
4. condenar o demandado a realizar todas as operações materiais destinadas a efetivar o reconhecimento do direito da demandante.
E – Da notificação e publicidade
Notifiquem-se as partes e promova-se a publicitação da decisão arbitra no site do CAAD, nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 3 do Novo Regulamento de Arbitragem Administrativa .
Lisboa, 8 de maio de 2020
O/A Árbitra
Maria Angelina Ferreira Teixeira