DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
A – Das partes, do Tribunal Arbitral e do saneamento processual
1. A..., contribuinte n.º..., residente na Rua ..., ..., ..., ...-... ..., especialista a exercer funções na Unidade de Telecomunicações e Informática da B..., demandou o C..., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., ...-... Lisboa, junto do Centro de Arbitragem Administrativa («CAAD»).
O Demandante apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em 12 de junho de 2019.
O Demandado foi citado em 28 de junho de 2019 e apresentou a sua contestação em 20 de agosto de 2019.
Em 6 de setembro de 2019 foi constituído o presente Tribunal Arbitral, tendo as Partes sido notificadas desse facto por via eletrónica, nessa mesma data. Este Tribunal é composto por um Árbitro, nos termos do artigo 15.º, n.º 2, do Novo Regulamento de Arbitragem Administrativa do CAAD, disponível em www.caad.org.pt - «NRAA»).
A vinculação do Demandado ao CAAD resulta do disposto no artigo 187.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos («CPTA»), conjugado com o disposto no artigo 1.º, alínea d), da Portaria n.º 1120/2009, de 30 de setembro.
A vinculação do Demandado abrange «litígios de valor igual ou inferior a 150 milhões de euros» e que, entre o mais, tenham por objeto «questões emergentes de relações jurídicas de emprego público, quando não estejam em causa direitos indisponíveis e quando não resultem de acidente de trabalho ou de doença profissional».
Assim, as Partes são legítimas uma vez que são parte na relação material controvertida, mas ainda porque:
a) O objeto da pretensão do Demandante enquadra-se no âmbito da vinculação do Demandante à jurisdição do CAAD;
b) O valor da presente ação (€30.000,01)
Não tendo as partes renunciado ao recurso da decisão arbitral, tendo, aliás, o Demandado expressamente manifestado a intenção de não renunciar a eventual impugnação, da mesma cabe «os mesmos recursos que caberiam da sentença proferida pelos tribunais de 1.ª instância (cfr. artigo 27.º, n.º 2, do NRAA).
Inexistem nulidades.
B – Do objeto do processo
Com interesse para a questão, o Demandante alega, em síntese, e oferecendo cinco documentos como prova, a seguinte factualidade:
«6. Através do Despacho n.º .../2018-.../DN, datado de 08-11- 2018, o Exmo. Diretor Nacional Adjunto da B... (B...), determinou a mobilidade intercarreiras de vários trabalhadores da B..., não tendo sido consideradas as situações dos trabalhadores na carreira de especialista “…dado que foi apresentada proposta autónoma a Sua Excelência, a C..., no sentido de transição de todos os especialistas, para a carreira de especialista superior...” – documento n.º 1.
7. Através do Despacho n.º .../2019 – .../DN, datado de 01-02- 2019, determinou-se a mobilidade intercarreiras de vários trabalhadores providos na carreira de especialista determinando-se “Em relação ao especialista A..., por não ser titular de licenciatura, não é determinada nesta fase a sua mobilidade intercarreiras, sendo a situação oportunamente revista em sede do futuro estatuto de pessoal” – documento n.º 2.
8. Em 28-02-2019, o Demandante reclamou de tal decisão, invocando o artigo 133.º, n.º 4, do Decreto Lei n.º 275- A/2000, de 9/11 – documento n.º 3.
9. Sobre tal reclamação recaiu parecer jurídico, sobre o qual a Exma. Diretora da Unidade de Recursos Humanos e o Exmo. Diretor Nacional Adjunto da B... apuseram o seu despacho de concordância, o que foi notificado ao Demandante em 27-03- 2019 – documento n.º 4.
10. O Demandante é titular do Bacharelato em Eletrónica e Telecomunicações – documento n.º 5.
11. E, em 31-12-2017, contava com uma antiguidade de 7 anos, 8 meses e 18 dias, estando provido na carreira de Especialista – documentos n.ºs 4 e 5.»
Termina o seu pedido requerendo a declaração da «invalidade» do despacho impugnado, e a condenação do Demandado a integrá-lo no regime de mobilidade intercarreiras. Invoca, para tanto, que:
«12. Nos termos do artigo 93.º, n.ºs 3 e 4, da LGTFP:
3 - A mobilidade intercarreiras ou categorias opera-se para o exercício de funções não inerentes à categoria de que o trabalhador é titular e inerentes:
a) A categoria superior ou inferior da mesma carreira; ou
b) A carreira de grau de complexidade funcional igual, superior ou inferior ao da carreira em que se encontra integrado ou ao da categoria de que é titular.
4 - A mobilidade intercarreiras ou categorias depende da titularidade de habilitação adequada do trabalhador e não pode modificar substancialmente a sua posição.
13. A “habilitação adequada” é a que é definida na lei para cada carreira. E,
14. Nos termos do artigo 133.º, n.º 4, do Decreto lei n.º 275- A/2000, de 9/11, no que diz respeito à carreira de especialista superior “O ingresso na carreira de especialista superior faz-se de entre indivíduos licenciados, aprovados com estágio, possuidores de carta de condução de veículos ligeiros, bem como de entre especialistas com, pela menos, sete anos de serviço na carreira, habilitados com curso superior que não confira o grau de licenciatura, independentemente da realização de estágio, aprovados em ação de formação especifica”. Assim,
15. É “habilitação adequada” para ingresso na carreira de Especialista Superior, a licenciatura ou, estando-se provido na carreira de Especialista, curso superior que não confira o grau de licenciatura, desde que cumpridos mais de sete anos de serviço.
16. Trata-se, sublinha-se de requisitos habilitacionais – dos requisitos habilitacionais legalmente exigidos para ingressar na aludida carreira. Por isso,
17. Não tem cabimento a fundamentação artificiosa, aduzida no parecer que fundamentou a resposta à reclamação, segundo a qual tal norma apenas diz respeito a ingresso no âmbito de concurso. De facto,
18. O requisito habilitacional é o critério que define o grau de complexidade de cada carreira, sendo o concurso, tal como a mobilidade apenas um dos veículos de a ela aceder.
19. Dito de outra forma, não é o modo ou o procedimento prévio à vinculação que determina o requisito habilitacional necessário ao provimento. De onde,
20. O despacho em apreço, na parte em que excluiu o Demandante violou, por desaplicação, o disposto nos artigos 93.º, n.º 4 da LGTFP e 133.º, n.º 4, do Decreto lei n.º 275-A/2000, de 9/11.»
O Demandado, na sua contestação, aceitou os factos vertidos nos pontos acabados de transcrever, «impugnando expressamente os demais factos da PI, bem como as conclusões e ilações que o Demandante retira dos mesmos, e ainda as alegações de direito e pedidos finais, com exceção dos artigos em que se limita a transcrever preceitos legais» (artigo 7.º da contestação).
Com interesse, argumenta o seguinte:
«18.º
O Demandante não representa a razão porque não beneficiou do inscrito no Despacho n.º º .../2019-.../DN, de 1 de fevereiro de 2019, isto é, porque não foi objeto da mobilidade intercarreiras para a carreira de especialista superior levada a cabo pela B... .
19.º
No tocante à mobilidade intercarreiras rege (subsidiariamente) a LTFP, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, designadamente o preceituado no art.º 93.º, que se passa a citar:
“Artigo 93.º
Modalidades de mobilidade
1 - A mobilidade reveste as modalidades de mobilidade na categoria e de mobilidade intercarreiras ou categorias.
2 - A mobilidade na categoria opera-se para o exercício de funções inerentes à categoria de que o trabalhador é titular, na mesma atividade ou em diferente atividade para que detenha habilitação adequada.
3 - A mobilidade intercarreiras ou categorias opera-se para o exercício de funções não inerentes à categoria de que o trabalhador é titular e inerentes:
a) A categoria superior ou inferior da mesma carreira; ou
b) A carreira de grau de complexidade funcional igual, superior ou inferior ao da carreira em que se encontra integrado ou ao da categoria de que é titular.
4 - A mobilidade intercarreiras ou categorias depende da titularidade de habilitação adequada do trabalhador e não pode modificar substancialmente a sua posição.
20.º
No que ao caso concerne, interessa perceber o alcance do consignado no n. º 4 do art. º 93. º da LTFP, no pressuposto de que os demais requisitos legais se encontram preenchidos.
Ou seja,
21.
O que é que se deve entender pela expressão "habilitação adequada" inserta naquela norma.
22.º
O bacharelato em "Eletrónica e Telecomunicações" de que o Demandante é titular deve - na sua ótica - ser tido como "habilitação adequada", preenchendo, assim, o requisito determinado no n.º 4 do art.º 93.º da LTFP.
23.º
Para o Demandante, o bacharelato - não conferindo o grau de licenciatura - "substitui a necessidade de ser habilitado com um curso superior que confira o grau de licenciatura (...)".
Discrepa-se do argumentado, porquanto,
24.º
Para a dilucidação da questão em debate urge proceder a uma hermenêutica sistemática, com apelo ao elemento histórico.
Vejamos,
25.º
A anterior lei orgânica da B... aprovada pelo Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro, elucida-nos no seu art.º 72.º que a B... tem um quadro único de pessoal nos seguintes termos:
1 - O pessoal da B... está integrado num quadro único com a composição constante do mapa I anexo ao presente diploma.
2 - Integram o corpo especial da B... os seguintes grupos de pessoal e categorias funcionais:
a) Pessoal dirigente e de chefia;
b) Assessor de investigação criminal;
c) inspetor-coordenador;
d) inspetor;
e) Subinspetor;
f) Agente;
g) Agente motorista;
h) Especialista superior de polícia;
i) Especialista de polícia;
j) Especialista-adjunto de polícia;
l) Especialista auxiliar de polícia;
m) Técnico de polícia;
n) Pessoal de segurança
3 - A dotação de pessoal dos departamentos será fixada pelo diretor-geral."
26.º
Por sua vez, o n. º 7 do art. º 131. º do mesmo diploma esclarece que "O ingresso na categoria de especialista superior de polícia de nível O faz-se de entre indivíduos habilitados com o grau de licenciatura adequada".
27.º
O n.º 7 do art.º 132.ºdo Decreto-Lei n.º 295-A/90, de 21 de setembro, determina que "A admissão na categoria de especialista de polícia de nível O faz-se de entre candidatos habilitados com o grau de bacharel ou equiparado em área adequada".
28.º
A lei orgânica da B... aprovada pelo Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro, face à definição dos grupos de pessoal e carreiras contida no art.º 62.º (supra citado), diz-nos no seu art.º 133.º, sob a epígrafe "Especialista superior":
“1 - A carreira de especialista superior compreende nove escalões.
2 - Têm acesso ao escalão 9 os especialistas superiores do escalão 8 com três anos de permanência no escalão classificados de Muito bom e mediante realização de concurso de provas públicas, que consiste na apreciação e discussão:
a) Do currículo profissional do candidato;
b) De um trabalho versando um tema que estabeleça uma clara e nítida correlação com a função.
3 - Têm acesso ao escalão 6 os especialistas superiores do escalão 5 com três anos de permanência no escalão classificados de Bom com distinção e mediante procedimento interno de seleção, que consiste na apreciação do currículo profissional.
4 - O ingresso na carreira de especialista superior faz-se de entre indivíduos licenciados, aprovados em estágio, possuidores de carta de condução de veículos ligeiros, bem como de entre especialistas com, pelo menos, sete anos de serviço na carreira, habilitados com curso superior que não confira o grau de licenciatura, independentemente de realização de estágio, aprovados em ação de formação específica.
5 - Para os efeitos do disposto no número anterior, são fixadas, em relação aos lugares a prover, as seguintes percentagens:
a) Indivíduos habilitados com o grau de licenciatura - 75%;
b) Especialistas - 25%.
6 - Se, decorrido um concurso, o número de candidatos aprovados não preencher as percentagens fixadas no número anterior, os lugares sobrantes são distribuídos pelos outros candidatos aprovados.”
29.º
Do cotejo entre o Decreto-Lei n.º 295-A/2000 [rectius: Decreto-Lei n.º 295-A/90], de 21 de setembro e o Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro, retira-se que, entre o mais, desapareceu a categoria de especialista de polícia.
30.º
O art. º 164. º do Decreto-Lei n. º 275-A/2000, de 9 de novembro, estabelece o regime de transição de pessoal de apoio à investigação criminal nos seguintes termos:
“1 - Os especialistas superiores de polícia, os especialistas de polícia, os especialistas-adjuntos de polícia, os especialistas auxiliares de polícia, os chefes de turno e os seguranças transitam, respetivamente, para especialistas superiores, especialistas, especialistas-adjuntos, especialistas auxiliares e seguranças, de acordo com o mapa constante do anexo VI ao presente diploma, do qual faz parte integrante.
2 - É extinta a categoria de técnico de polícia, transitando o pessoal que a integra para a carreira de especialista auxiliar, de acordo com o mapa constante do anexo VI ao presente diploma.
3 - O tempo de serviço prestado na categoria e escalão atualmente detidos, ainda que em categoria extinta ou objeto de reclassificação, conta como globalmente prestado na carreira e escalão de transição.
4 - O disposto no número anterior é aplicável aos casos em que a integração nas novas carreiras se tenha verificado, por concurso ou outro instrumento de mobilidade, em data anterior à da entrada em vigor do presente diploma.”
31.º
Esta incursão histórica sobre os grupos de pessoal e carreiras da B..., mais concretamente em matéria de pessoal de apoio à investigação criminal permite perceber que o requisito para ingressar na carreira de especialista superior é a titularidade do grau académico de licenciado.
32.º
Com efeito, o Decreto-Lei n. º 76/2006, de 24 de março, [rectius: Decreto-Lei n.º 74/2006, de 24 de março] veio estabelecer os graus e diplomas do ensino superior, consignando que só constituem graus académicos a licenciatura, o mestrado e o doutoramento.
33.º
Por outras palavras, o bacharelato deixou de ser um grau académico.
34.º
Todavia, e retomando as preocupações que seguramente terão acompanhado o pensamento do legislador do Decreto-Lei n. º 275-A/2000, de 9 de novembro, procurou-se não tornar estanque o evoluir da carreira dos especialistas, permitindo-lhes que, dentro de um certo circunstancialismo, pudessem ingressar à carreira de especialista superior.
35.º
Com esse propósito o n. º 4, in fine, do art. º 133. º da atual lei orgânica da B..., veio consentir que os especialistas com, pelo menos, sete anos de serviço na carreira, habilitados com curso superior que não confira o grau de licenciatura, independentemente de realização de estágio, aprovados em ação de formação específica pudessem ingressar na carreira de especialista superior.
36.º
A reforçar a peculiaridade do ingresso dos especialistas a á [sic] carreira de especialistas superiores os n. ºs 5 e 6 daquele normativo fixam quotas para o preenchimento de vagas, sendo certo que estes últimos são contemplados com o triplo.
37. º
Recorda-se que, quando a lei se refere ao ingresso numa carreira, é sempre pressuposto que a mesma só se faça por via de procedimento concursal.
38. º
A reforçar a ideia de que o ingresso à carreira de especialista superior àqueles que não são titulares de uma licenciatura é feita de uma forma jugulada, atente-se à redação do próprio preceito.
39.º
Com efeito, em vez do normativo em causa afirmar que "4 - O ingresso na carreira de especialista superior faz-se de entre individuas licenciados, aprovados em estágio, possuidores de carta de condução de veiculas ligeiros e de entre especialistas com, pelo menos, sete anos de serviço na carreira, habilitados com curso superior que não confira o grau de licenciatura, independentemente de realização de estágio, aprovados em ação de formação específica", expressamente se diz que "4- O ingresso na carreira de especialista superior faz-se de entre indivíduos licenciados, aprovados em estágio, possuidores de carta de condução de veículos ligeiros, bem como de entre especialistas com, pelo menos, sete anos de serviço na carreira, habilitados com curso superior que não confira o grau de licenciatura, independentemente de realização de estágio, aprovados em ação de formação específica".
40.º
Estando em causa uma mobilidade intercarreiras e dando cumprimento ao imposto no n. º 4 do art. º 93. º da L TFP que aqui se recorda: "4 - A mobilidade intercarreiras ou categorias depende da titularidade de habilitação adequada do trabalhador e não pode modificar substancialmente a sua posição.", bem andou a B... ao não atender ao pedido formulado pelo Demandante no sentido de beneficiar de tal mobilidade, como se retira dos Docs. n. ºs 2, 3 e 4.
41.º
Em face de todo o exposto, é imperioso concluir que o ato impugnado respeitou o acervo jurídico vigente, e aplicável à hipótese dos autos, inexistindo qualquer vício que inquine a sua validade.»
C – Da tramitação processual
Pelo Despacho n.º 1, proferido em 10 de setembro de 2019, estipulou-se o seguinte:
«Na sequência da apresentação da petição inicial e da contestação, e uma vez constituído o Tribunal Arbitral, cumpre emitir o despacho previsto no artigo 18.º do Novo Regulamento de Arbitragem Administrativa (“NRAA”, disponível em www.caad.org.pt).
Compulsados os autos, verifica-se que o Tribunal é competente, que as partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas. Verifica-se também que inexistem requerimentos de produção de prova, designadamente testemunhal, assim como quaisquer exceções ou nulidades processuais de que cumpra conhecer.
Assim, entende o Tribunal que os ulteriores termos do processo arbitral, em obediência às exigências decorrentes do princípio da celeridade e flexibilidade processual, expressamente consagrado na alínea c), do n.º 1, do artigo 5.º do NRAA, se devem basear na prova documental já produzida, bem como nos restantes elementos juntos ao processo, com dispensa de realização da audiência de julgamento. Nesse sentido, determino a notificação das Partes para, querendo, emitirem pronúncia quanto a esta tramitação dos autos.
Face ao disposto no artigo 18.º, n.º 3, do NRAA, convido ainda a Partes a pronunciarem-se acerca da pertinência da realização de uma tentativa de conciliação.»
Notificadas as Partes para se pronunciarem, respondeu o Demandante, indicando não se opor à dispensa da realização da tentativa de conciliação.
Em 10 de janeiro de 2020, foi proferido Despacho Arbitral determinando a notificação das Partes para se pronunciarem sobre questão nova de direito potencialmente relevante para a decisão dos autos, nos seguintes termos (integrando a retificação constante de despacho proferido em 14 de janeiro de 2020):
«Na sequência da apresentação da petição inicial e da contestação, e uma vez constituído o Tribunal Arbitral, foi proferido o despacho previsto no artigo 18.º do Novo Regulamento de Arbitragem Administrativa (“NRAA”, disponível em www.caad.org.pt), determinando-se a competência do tribunal, e a personalidade, capacidade, legitimidade e regular representação das partes, bem como a inexistência de requerimentos de ulterior produção de prova ou de exceções ou nulidades processuais.
Determinou-se, ainda, a tramitação simplificada do processo, com base nos elementos juntos aos autos, e a dispensa de realização da audiência.
Notificadas as partes para emitirem pronúncia, apenas se manifestou o demandante, indicando anuir na dispensa da audiência.
Não obstante a tramitação processual assim estipulada, a qual não foi objeto de oposição pelas partes, entendo não ser de proferir imediatamente o competente saneador-sentença. Com efeito, compulsada a questão controvertida nos autos – que se traduz, em síntese, em saber se o facto de o demandante não ser titular de licenciatura constitui fundamento legítimo de recusa de pedido de mobilidade intercarreiras, entre a carreira de especialista e a carreira de especialista superior do quadro da B...– verifica-se que o quadro normativo aplicável sofreu modificações legislativas posteriores à apresentação da petição inicial e da contestação, e à própria constituição do tribunal arbitral.
Na verdade, poucos dias depois de ter sido proferido o despacho supra mencionado, foi publicado o Decreto-Lei n.º 138/2019, de 13 de setembro, que estabelece o estatuto profissional do pessoal da B..., bem como o regime das carreiras especiais de investigação criminal.
Com potencial relevância direta para os presentes autos, destaca-se a disciplina subjacente aos seguintes preceitos:
- a existência de três carreiras especiais na B... (a carreira de investigação criminal, e duas carreiras especiais de apoio à investigação criminal, a de especialista de polícia científica e a de segurança), nos termos do artigo 3.º, n.ºs 2 e 3;
- a carreira de especialista de polícia científica é unicategorial e de grau de complexidade 3, nos termos do artigo 36.º, n.º 2;
- a transição para a carreira de especialista de polícia científica está sujeita à observância dos requisitos previstos no n.º 1, do artigo 94.º, a saber, os requisitos de ingresso previstos na alínea b), do n.º 1, do artigo 44.º, e o exercício, há pelo menos um ano, de funções compreendidas nos conteúdos funcionais descritos no quadro 2 do anexo I ao referido Decreto-Lei, desde que o trabalhador observe o procedimento previsto na parte final desse preceito;
- os trabalhadores da carreira de especialista que não transitem para a carreira de especialista de polícia científica mantêm-se nessa carreira, que se extinguirá quando vagar, nos termos do n.º 3 do artigo 94.º;
- por força do disposto no artigo 105.º, n.º 1, é revogado o artigo 133.º do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro
- este novo regime jurídico entrou em vigor em 1 de janeiro de 2020, nos termos do artigo 106.º.
Sem prejuízo de eventuais questões que se possam suscitar a propósito da problemática da sucessão de leis administrativas no tempo, é evidente que a publicação e entrada em vigor deste novo regime jurídico deve ser considerada na apreciação da questão controvertida nos autos.
Por isso, deve ser aberta a possibilidade de as partes se pronunciarem, sucessivamente, sobre esta nova questão de direito suscetível de vir a integrar a base da decisão, atento o conteúdo essencial do princípio do contraditório e a proibição de prolação de decisões-surpresa resultantes do disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea d), do NRAA e do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, verificando-se questão nova ao nível do direito, o princípio do contraditório exige que, antes de proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão de todos os fundamentos de direito em que ela possa vir a assentar, garantindo o efetivo direito das mesmas a intervirem, ao longo de todo o processo, para influenciarem, em todos os elementos que se prendam com o objeto da causa, dando assim integral cumprimento ao direito a um processo equitativo, dimensão essencial do acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva (cfr. artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa).
Como se disse no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de fevereiro de 2015, proferido no âmbito do processo 0373/14 (disponível em www.dgsi.pt), o princípio do contraditório
«(…) é um princípio basilar do processo, que hoje ultrapassou a conceção clássica, que estava associada ao exercício do direito de resposta, assumindo-se hoje como uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o processo, conferindo às partes a possibilidade de influírem em todos os elementos que se liguem ao objeto da causa.
[…] Segundo este princípio, o juiz não deve decidir qualquer questão, de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, pois só assim se assegura a participação efetiva das partes no desenvolvimento do litígio e na busca da justiça da decisão.»
Em resposta, o Demandante, juntando vários documentos, salientou a junção de «comprovativo de frequência de Curso de Mestrado no ...», indicando manterem-se «as condições que [o] levou a intentar a presente ação».
Já o Demandado, sustentou, em síntese, o seguinte: em primeiro lugar, a inaplicabilidade do novo regime jurídico, nos termos do princípio tempus regit actum, valendo o mesmo apenas para o futuro; em segundo lugar, em face da disciplina constante dos artigos 94,º, n.º 1, 44.º e 36.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 138/2019, de 13 de setembro, a transição para a nova carreira, unicategorial, de especialista de polícia científica, depende da titularidade de licenciatura; em terceiro lugar, que o Demandante não requereu a sua integração na carreira de especialista de polícia científica no prazo de 10 dias contados da data de entrada em vigor do novo Estatuto. De tudo conclui que «a situação do Demandante não encontra a resposta por ele pretendida no Estatuto Profissional da B..., aprovado pelo Decreto-Lei n.º .../2019, de 13 de setembro», mantendo-se, portanto, na sua atual carreira que subsiste nos termos previstos pelo artigo 97.º, daquele mesmo diploma.
II – Fundamentação
A – De facto
Com relevância para a decisão a proferir, consideram-se provados os seguintes factos:
A. O Demandante encontra-se provido em lugar do grupo de pessoal de apoio à investigação criminal da B..., na carreira de especialista (provado por acordo);
B. Em 31-12-2017, o Demandante contava com uma antiguidade de sete anos, oito meses e dezoito dias (provado por acordo);
C. O Demandante é titular do Bacharelato em Eletrónica e Telecomunicações (provado por acordo e pelo documento junto com a P.I. sob o n.º 5);
D. Pelo Despacho n.º .../2018-.../DN, de 8 de novembro de 2018, proferido pelo Diretor-Nacional-Adjunto da B..., foi determinada a mobilidade intercarreiras de vários trabalhadores daquele corpo policial, tendo-se sustado então a consideração da situação dos trabalhadores integrados na carreira de especialista «dado que foi apresentada proposta autónoma a Sua Excelência, a C..., no sentido da transição de todos os especialistas, para a carreira de especialista superior» (provado por acordo e pelo documento junto com a P.I. sob o n.º 1);
E. Pelo Despacho n.º .../2019-.../DN, de 1 de fevereiro de 2019, determinou-se a mobilidade intercarreiras de vários trabalhadores providos na carreira de especialista, mas não a do Demandante pelo facto de não ser titular de licenciatura, «sendo a situação oportunamente revista em sede do futuro estatuto de pessoal» (provado por acordo e pelo documento junto com a P.I. sob o n.º 2);
F. O Demandante impugnou este despacho, invocando que, em face do disposto no artigo 133.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro (Lei Orgânica da B...), e a respetiva antiguidade, tal «substitui a necessidade de ser habilitado com um curso superior que confira o grau de licenciatura», para efeitos de mobilidade intercarreiras da carreira de especialista para a carreira de especialista superior (provado por acordo e pelo documento junto com a P.I. sob o n.º 3);
G. Na sequência do Parecer proferido pela URHRP/... /..., de 18 de março de 2019, foi proferido Despacho pelo Diretor Nacional Adjunto (despacho ora controvertido) nos termos do qual a disciplina constante do artigo 133.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro, releva apenas em sede de procedimento concursal, isto é, para situações de ingresso na carreira por via de concurso, não sendo tal disciplina cotejável para casos de mobilidade intercarreiras, subsistindo, portanto, a falta de licenciatura do Demandante como fundamento subjacente à decisão de não ser determinada a respetiva mobilidade (provado por acordo e pelo documento junto com a P.I. sob o n.º 5);
Não obstante o Demandado impugnar, expressamente, os demais factos não aceites por acordo (artigo 7.º da contestação), inexistem quaisquer factos controvertidos, subsistindo apenas controvérsia quanto à solução que, de Direito, se deve oferecer à lide.
B – De direito
Nos presentes autos, discute-se a questão de saber se, embora o Demandante seja titular de Bacharelato, encontrando-se provido na categoria de Especialista, pode beneficiar de mobilidade intercarreiras para a carreira de Especialista Superior, uma vez que, à data da prolação do despacho impugnado, o mesmo preenchia o pressuposto previsto na parte final do n.º 3, do artigo 133.º da Lei Orgânica da B..., aprovada pelo Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro de 2000. Nos termos desse preceito, e relativamente ao ingresso, pela via concursal, na carreira de Especialista Superior do grupo de pessoal de apoio à investigação criminal, estabelecia-se que o mesmo era feito «de entre indivíduos licenciados, aprovados em estágio, possuidores de carta de condução de veículos ligeiros, bem como de entre especialistas com, pelo menos, sete anos de serviço na carreira, habilitados com curso superior que não confira o grau de licenciatura, independentemente de realização de estágio, aprovados em ação de formação específica».
Este regime jurídico foi, contudo, objeto de revogação com a publicação do Decreto-Lei n.º 138/2019, de 13 de setembro, que estabelece o estatuto profissional do pessoal da B..., bem como o regime das carreiras especiais de investigação criminal, maxime por via do disposto no seu artigo 105.º, n.º 1, que determinou a revogação de todas as disposições do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro cuja vigência não fosse expressamente salvaguardada.
O objeto dos autos contende com as seguintes subquestões: (i) pode beneficiar do regime de mobilidade intercarreiras o trabalhador que, não detendo embora a habilitação específica possui categoria e tempo não função adequados nos termos previstos para as regras respeitantes ao ingresso por via de concurso? (ii) a eventual sucessão, no tempo, de regimes jurídicos distintos quanto ao direito aplicável produz efeitos na determinação da disciplina normativa que deve ser aplicada ao presente caso?
Impõe-se começar pela questão da extinção do grau de bacharel, e seu reflexo ao nível da estrutura de pessoal da B..., bem como a evolução que o regime jurídico da carreira de Especialista sofreu no seio dessa mesma estrutura.
À luz do regime jurídico em vigor à data da instauração do procedimento arbitral, os grupos de pessoal e carreiras da B... encontravam-se previstos no artigo 62.º do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro. Com relevância para os autos, no respetivo n.º 5 previam-se, respetivamente, nas alíneas a), e b), as carreiras de “Especialista superior” e “Especialista”, integradas no grupo de pessoal de apoio à investigação criminal. O ingresso nessas carreiras era regido pelo disposto nos artigos 133.º, n.º 4, e 134.º, n.º 4 do referido Decreto-Lei n.º 275-A/2000. Vejamos a redação desses preceitos:
Artigo 133.º
Especialista superior
4 — O ingresso na carreira de especialista superior faz-se de entre indivíduos licenciados, aprovados em estágio, possuidores de carta de condução de veículos ligeiros, bem como de entre especialistas com, pelo menos, sete anos de serviço na carreira, habilitados com curso superior que não confira o grau de licenciatura, independentemente de realização de estágio, aprovados em ação de formação específica.
Artigo 134.º
Especialista
1 — (…)
2 — (…)
a) (…)
b) (…)
3 — (…)
4 — O ingresso na carreira de especialista faz-se de entre indivíduos habilitados com curso superior que não confira o grau de licenciatura, aprovados em estágio, possuidores de carta de condução de veículos ligeiros, bem como de entre especialistas-adjuntos e especialistas auxiliares com, pelo menos, 7 e 15 anos de serviço na carreira, e em ambos os casos possuidores das adequadas habilitações para ingresso na correspondente carreira, independentemente de estágio, aprovados em ação de formação específica.
5 — (…)
6 — (…)
O ingresso na carreira de Especialista podia ser feito por duas vias: pela titularidade do grau de licenciatura, por um lado, ou, no caso de Especialistas, a titularidade de curso superior que não confira o grau de licenciatura, aprovados em ação de formação específica, com antiguidade mínima de sete anos na carreira. Estas duas vias, no entanto, não eram encaradas pelo regime jurídico num plano de igualdade ou equiparação. Com efeito, e de acordo com o previsto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 133.º,
5 — Para os efeitos do disposto no número anterior, são fixadas, em relação aos lugares a prover, as seguintes percentagens:
a) Indivíduos habilitados com curso superior que não confira o grau de licenciatura — 75%;
b) Especialistas-adjuntos e auxiliares — 25%.
6 — Se, decorrido um concurso, o número de candidatos aprovados não preencher as percentagens fixadas no número anterior, os lugares sobrantes são distribuídos pelos outros candidatos.
O legislador privilegiava, portanto, no ingresso na carreira de Especialista superior, os indivíduos habilitados com licenciatura, destinando a esses 75% dos lugares a prover. No entanto, e de modo a permitir a progressão profissional dos funcionários integrados na carreira de Especialista, reservou a essa categoria de trabalhadores, desde que detentores de antiguidade mínima de sete anos e devidamente aprovados em ação de formação específica, 25% das vagas em concursos de ingresso nessa mencionada carreira, percentagem que, na prática, poderia vir a ser superior ou inferior caso se verificasse o circunstancialismo previsto no n.º 6 do artigo 133.º.
Como bem explica o Demandado, este desenho normativo é facilmente compreendido à luz do novo regime jurídico dos graus e diplomas do ensino superior, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 74/2006, de 24 de março, reconhecendo como graus académicos unicamente os de licenciado, mestre e doutor, na sequência da alteração à Lei de Bases do Ensino Superior introduzida pela Lei n.º 49/2005, de 30 de agosto.
Este artigo 133.º chegou a ver a sua vigência interrompida, tendo sido revogado pelo artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 121/2008, de 11 de julho, mas reposto em vigor pouco tempo depois pelo artigo 18.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento de Estado de 2009).
A aprovação do novo regime e catálogo dos graus do ensino superior tornou evidente a obsolescência da Lei Orgânica da B..., que continuava a prever carreiras cujo ingresso se encontrava primacial ou subsidiariamente dirigido a indivíduos habilitados com curso superior que não conferia o grau de licenciatura. Tal situação normativa vem apenas a ser solucionada com o quadro legal recém-entrado em vigor, constante do Decreto-Lei n.º 138/2019, de 13 de setembro.
O Demandante peticiona a aplicação, em sede de mobilidade intercarreiras, da previsão contida na segunda parte do n.º 4 do artigo 134.º do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, sustentando que o preenchimento daqueles requisitos (antiguidade e aprovação em formação específica) devem relevar em sede de mobilidade, permitindo, portanto, que a mesma possa ser deferida não apenas nos casos em que o trabalhador detém habilitação legalmente exigida mas, também, quando vigora, como sucede in casu, regime específico que prevê o ingresso na carreira de indivíduos que, embora não detentores de licenciatura, integram carreira para a qual se prevê a titularidade de grau não conducente a licenciatura, bem como antiguidade mínima na mesma de sete anos.
Vejamos se a sua pretensão merece proceder.
A mobilidade intercarreiras
De acordo com o disposto na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho («LGTFP»), a mobilidade intercarreiras opera-se para o exercício de funções não inerentes à categoria de que o trabalhador é titular, e inerentes a carreira de grau de complexidade funcional igual, superior ou inferior ao da carreira em que se encontra integrado (cfr. artigo 93.º, n.º 3 da LGTFP). Tal mobilidade depende, nos termos do disposto no n.º 4 do mesmo preceito, «da titularidade de habilitação adequada do trabalhador».
Como salientam Paulo Veiga e Moura e Cátia Arrimar,
«[n]a mobilidade intercarreiras, o trabalhador passa a exercer funções diferentes das que correspondem ao conteúdo funcional da categoria e carreira em que está provido, pelo que se está perante uma mobilidade funcional vertical, em que o trabalhador é chamado a executar funções que não se integram nem são afins nem funcionalmente ligadas às da sua carreira e categoria, antes se tratando de funções que são próprias de uma carreira diferente, que faz apelo a um grau de complexidade funcional igual ou diferente» (cfr. Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, Coimbra: Coimbra Editora, p. 349).
O regime anterior, constante da Lei n.º 12-A/2008 de 27 de fevereiro (estabelece os regimes de vinculação, de carreiras e remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas – «LVCR») previa, igualmente, no seu artigo 60.º, n.º 4, a titularidade de habilitação adequada do trabalhador como requisito da mobilidade intercarreiras.
Já o recrutamento para o exercício de funções públicas por tempo indeterminando, dependente de procedimento concursal, embora prevendo como requisito a titularidade do título habilitacional correspondente ao grau de complexidade funcional da carreira e categoria caracterizadoras do posto de trabalho (cfr. artigo 36.º, n.º 1 da LGTFP), admitia, excecionalmente, a possibilidade de candidatura de que, não sendo titular da habilitação exigida, considere dispor da formação e/ou experiência profissionais necessárias e suficientes para a substituição daquela habilitação. Idêntico regime resultava do artigo 51.º da LVCR. Nenhum dos diplomas, no entanto, salvaguarda possibilidade semelhante para as situações de mobilidade intercarreiras. Pelo contrário, tanto o artigo 60.º, n.º 4, da LVCR, entretanto revogada, como o artigo 93.º, n.º 4, da LGTFP, estipulam, taxativamente, que a mobilidade intercarreiras depende da titularidade da habilitação académica adequada, sem que qualquer alternativa, ainda que a título excecional, possa reger situações de mobilidade intercarreiras de trabalhadores que não possuem tal habilitação.
Em Parecer de 4 de junho de 2019 (disponível em https://www.ccdr-n.pt/sites/default/files/ficheiros_ccdrn/administracaolocal/da_mobilidade_intercarreiras_e_da_titularidade_da_habilitacao_adequada.pdf), a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-Norte), questionada sobre a “viabilidade de mobilidade intercarreiras de Assistente técnica (bacharel) para Técnica Superior”, entendeu também que o disposto no artigo 34.º, n.º 2, da LTFP, não é aplicável às situações de mobilidade:
«(…) [E]m matéria de mobilidade, a LTFP não permite a substituição da habilitação exigida pela formação e/ou experiência profissional na carreira para a qual se celebra acordo de mobilidade.»
Também o Demandado entende não ser prescindível, em sede de mobilidade intercarreiras, da titularidade de habilitação adequada, conforme resulta expressamente do disposto no artigo 93.º, n.º 4, da LGTFP. Concorda-se com esta interpretação.
O regime previsto no artigo 133.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 275-A/2000
Ao limitar a possibilidade dos Especialistas acederem à carreira de Especialista superior pela via do ingresso, de acordo com a disciplina estabelecida na segunda parte do n.º 4 do artigo 133.º do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, o legislador entendeu tutelar o interesse subjacente ao acesso à carreira superior por parte de titulares do grau de bacharelato, relacionado com a progressão e desenvolvimento profissional desses trabalhadores, apenas nas situações de ingresso, na sequência de procedimento concursal. A ausência de disciplina similar para os casos de mobilidade – que se verifica não só no regime específico da Lei Orgânica da B..., mas também no regime geral, ao não estipular, para esses casos, cláusula excecional que prevê, precisamente, a propósito do ingresso – revela que não se está perante uma lacuna legislativa. O legislador não quis disciplinar, para as situações de mobilidade, designadamente intercarreiras, a possibilidade de tal modificação ocorrer ainda que o trabalhador não detenha o requisito habilitacional aplicável à carreira em questão.
Sendo esta a solução resultante da disciplina legal, cabe perguntar se a mesma é passível de censura. Nesta sede, apurado que está o regime legal, poderia eventualmente suscitar-se o problema de saber se a assimetria na disciplina legal da mobilidade intercarreiras, face à disciplina aplicável em sede de ingresso na carreira de Especialista superior, traduzida no facto de naquela não se admitir a possibilidade de mudança a Especialistas titulares de bacharelato, com antiguidade mínima de sete anos na carreira e aprovados em formação específica, ao invés do que sucede, a título residual, para os casos de ingresso naquela primeira carreira, sendo reservadas 25% das vagas para tais situações, bule com exigências constitucionais ao nível do princípio da igualdade, designadamente da proibição do arbítrio.
Embora seja legítimo questionar-se se a disciplina legal, ao tutelar, ainda que residualmente, a situação dos trabalhadores Especialistas que preencham aqueles requisitos especificados na segunda parte do n.º 4, do artigo 133.º do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, nos casos de ingresso na carreira de Especialista superior, se mostra coerente ao racional ao não proceder a semelhante previsão para as situações de mobilidade intercarreiras, é importante começar por salientar que do princípio constitucional da igualdade, presente no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição, não decorre a obrigação de que todas as escolhas do legislador sejam racionais e coerentes ou, sequer, que correspondem à melhor solução. A tutela constitucional garante proteção contra situações de “não direito” (isto é, direito – legislação – inconstitucional) mas não é oponível aos casos de “mau direito”. Como disse o Tribunal Constituição no seu Acórdão n.º 546/2011,
«[O] n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os atos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de sistemas legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003 – que o carácter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjetivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, “racionais”. O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do “merecimento” – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou a igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face à ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por desrazoabilidade, as escolhas do legislador. Fora destas circunstâncias, e, nomeadamente, sempre que estiver em causa a simples verificação de uma menor “racionalidade” ou congruência interna de um sistema legal, que contudo se não repercuta no trato diverso – e desrazoavlmente diverso, no sentido acima exposto – de posições jurídico-subjetivas, não pode o Tribunal Constitucional emitir juízos de inconstitucionalidade. Nem através do princípio da igualdade (artigo 13.º) nem através do princípio mais vasto do Estado de direito, do qual em última análise decorre a ideia de igualdade perante a lei e através da lei (artigo 2.º), pode a Constituição garantir que sejam sempre “racionais” ou “congruentes” as escolhas do legislador. No entanto, o que os dois princípios claramente proíbem é que subsistam na ordem jurídica regimes legais que impliquem, para as pessoas, diversidades de tratamento não fundados em motivos razoáveis.»
Por outro lado, importa salientar que a Constituição proíbe as discriminações negativas atentatórias da dignidade da pessoa humana, bem como as diferenças de tratamento arbitrárias. Como salientou o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 39/88,
«O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º.
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.»
Desde logo, é importante referir que a mobilidade visa a tutela do interesse público da Administração, buscando fundamento em razões de eficiência dos serviços ou da economia para o erário público. Como salientam Paulo Veiga e Moura e Cátia Arrimar, «nunca se poderá constituir uma situação de mobilidade apenas em resultado de um interesse meramente pessoal do trabalhador público» (cfr. ob. cit., p. 347). Deste modo, o acesso à mobilidade por parte do trabalhador não constitui um instrumento jurídico de modificação do vínculo contratual orientado para a tutela do direito à carreira do mesmo. Trata-se, na verdade, de um instrumento ao dispor da Administração para gestão dos seus recursos humanos, como resulta expressamente do artigo 92.º, n.º 1 da LGTP. De acordo com este preceito, «[q]uando haja conveniência para o interesse público, designadamente quando a economia, a eficácia e a eficiência dos órgãos ou serviços o imponham, os trabalhadores podem ser sujeitos a mobilidade».
Assim, tutelando embora o regime do ingresso na carreira de Especialista superior as situações dos Especialistas titulares de bacharelato, atendendo, assim, às dificuldades resultantes da extinção daquele grau académico para os trabalhadores que, integrados no quadro da B..., almejassem legitimamente a mudança de carreira, nenhuma incoerência se pode apontar ao facto de inexistir possibilidade semelhante nos casos de mobilidade. Constituindo esta um instrumento gestionário ao serviço do interesse público e das necessidades administrativas, nada há censurar, no plano constitucional, ao facto de no mesmo não se acautelar aquela possibilidade, tanto mais que a mobilidade é, por definição, uma vicissitude modificativa da relação jurídica de emprego público de cariz temporário. E, mesmo nos casos em que lei admite a consolidação da mobilidade intercarreiras, tal hipótese restringe-se à mudança entre carreiras do mesmo grau de complexidade funcional, solução coerente com o requisito atinente à titularidade do grau habilitacional como pressuposto da modificação da relação jurídica.
Aliás, prevendo a Constituição da República Portuguesa que o acesso ao emprego público se deve efetuar, em regra, por concurso (cfr. artigo 47.º, n.º 2), é compreensível que o legislador tenha estipulado a titularidade de habilitação adequada como requisito imprescindível para os casos de mobilidade intercarreiras ou categorias. Só assim se previne que acedam a carreiras mais complexas os trabalhadores que não detenham habilitação superior adequada, garantindo transparência e, sobretudo, a observância das exigências constitucionais de igualdade no acesso à função pública. Diferente solução é que poderia, na verdade, suscitar interrogações quanto à validade jusconstitucional do respetivo regime jurídico.
O regime de que o Demandante se pretende beneficiar é, na verdade, um regime excecional, que teve por objetivo a tutela transitória de situações que, por via da extinção do bacharelato, se viram estancados na carreira. Sinal inequívoco dessa excecionalidade é o facto de se prever apenas 25% das vagas em concurso de ingresso, tratando-se, portanto, como lhe chama o Demandado, de um «acesso jugulado» de Especialistas à carreira de Especialista superior.
Que essa tutela constituía, efetivamente, um regime jurídico destinado a gerir o impacto que a extinção do bacharelato produziu ao nível dos anseios de progressão entre carreiras por parte dos Especialistas, titulares de bacharelato, com vigência temporalmente limitada, ainda que de duração relativamente prolongada no tempo, demonstra-o o regime jurídico recém-entrado em vigor, que deixou de contemplar, precisamente, a possibilidade de ingresso na nova carreira especial de especialista de apoio à investigação criminal, a titulares de bacharelato.
O regime jurídico decorrente do Decreto-Lei n.º 138/2019, de 13 de setembro
Como se deu conta no despacho proferido em 9 de janeiro de 2020, em 13 de setembro de 2019, já depois de intentado o procedimento arbitral e de constituído este Tribunal Arbitral, foi publicado o Decreto-Lei n.º 138/2019, que estabelece o estatuto profissional do pessoal da B..., bem como o regime das carreiras especiais de investigação criminal. De acordo com o disposto no artigo 106.º, esse regime jurídico entrou em vigor no passado dia 1 de janeiro. Em face do preâmbulo do mencionado diploma, visou-se,
«[d]uas décadas volvidas desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro, (…) adequar as conceções e a arquitetura das soluções então adotadas aos mais recentes princípios e normas a observar em matéria de criação e desenvolvimento das funções desempenhadas pelos profissionais que trabalham na B..., incluindo as carreiras especiais. Considerando a especificidade das funções desempenhadas pelos profissionais que trabalham na B..., cabe rever o quadro normativo de forma a implementar uma visão gestionária mais moderna.»
E, mais adiante,
«(…) o presente decreto-lei procede à revisão global das carreiras especiais da B... . Para tal, cria três carreiras especiais, a carreira de investigação criminal, a carreira de especialista de polícia científica e a carreira de segurança. (…) [P]rocede-se primordialmente à atualização dos conteúdos funcionais compatíveis com as atuais exigências e funções atribuídas a cada grupo de trabalhadores no cumprimento da missão e prossecução das atribuições da B... (…).
Quanto à carreira de especialista de polícia científica, diz-se o seguinte:
«A nova carreira de especialista de polícia científica, ancorada nos conhecimentos técnicos e científicos necessários à interpretação dos sinais, vestígios e provas recolhidas na realização da inspeção judiciária e à análise pericial, tem natureza unicategorial e grau de complexidade três, valorizando-se profissionalmente uma atividade que embora instrumental, é essencial à própria investigação criminal.»
Assim, o quadro da B... integra agora três carreiras especiais: a carreira de investigação criminal, e duas carreiras especiais de apoio à investigação criminal, a de especialista de polícia científica e a de segurança, nos termos previstos no artigo 3.º, n.ºs 2 e 3. A carreira de especialista de polícia científica é unicategorial e de grau de complexidade 3, nos termos do artigo 36.º, n.º 2. A transição para a carreira de especialista de polícia científica está sujeita à observância dos requisitos previstos no n.º 1, do artigo 94.º, a saber: os requisitos de ingresso previstos na alínea b), do n.º 1, do artigo 44.º, e o exercício, há pelo menos um ano, de funções compreendidas nos conteúdos funcionais descritos no quadro 2 do anexo I ao referido Decreto-Lei, desde que o trabalhador observe o procedimento previsto na parte final desse preceito. Na mencionada alínea b), do n.º 1, do artigo 44.º prevê-se, como requisito geral de recrutamento em qualquer carreira da B..., a detenção das habilitações académicas exigidas para o posto de trabalho ou cargo.
Deste modo, o novo regime das carreiras da B..., e a respetiva aplicabilidade ao Demandante para efeitos da sua eventual transição para a nova carreira de especialista de polícia científica, impõe, igualmente, a titularidade de licenciatura, atento o grau de complexidade legalmente adstrito à carreira (cfr. artigos 36.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 138/2019, de 13 de setembro, e 86.º, n.º 1, alínea c) da LGTFP).
Refira-se que, na resposta apresentada ao Despacho proferido em 10 de janeiro de 2020, o Demandante optou por apenas conceder relevo à junção do comprovativo de frequência do Curso de Mestrado no ..., aludindo ainda às «condições de acesso de Mestrado». Tal não confere qualquer amparo à sua pretensão. Nem a demonstração de efetiva frequência de tal curso de mestrado constitui demonstração suficiente da titularidade de grau de licenciatura – persistindo, portanto, a omissão da prova deste requisito essencial à procedência da pretensão do Demandante –, nem aquelas condições indicam que apenas titulares desse grau ou equivalente podem, efetivamente, frequentar e concluir o mencionado curso. Com efeito, e como resulta inequivocamente do Documento 3, para além de titulares do grau de licenciado ou equivalente legal, podem ainda frequentar o curso de «Mestrado em Engenharia de Informática e de Computadores» (saliente-se que o Demandante não frequentou este curso e sim o de Mestrado em Engenharia Eletrónica e Telecomunicações, obtendo neste o respetivo «Curso de Especialização»), os «detentores de um grau de bacharel na área de engenharia de eletrónica e telecomunicações e de computadores conferido pelo ... e de currículo científico ou profissional, que seja reconhecido como atestando capacidade para realização deste ciclo de estudos pelo conselho científico», bem como «os detentores de um currículo escolar, científico ou profissional, que seja reconhecido como atestando capacidade para realização deste ciclo de estudos pelo conselho científico». Persiste, portanto, a não demonstração da titularidade do grau de licenciatura, não sendo nenhum destes documentos apto a suprir aquela demonstração.
Os trabalhadores da carreira de especialista que não transitem para a carreira de especialista de polícia científica mantêm-se nessa carreira, que se extinguirá quando vagar, nos termos do n.º 3 do artigo 94.º. E, por força disposto no artigo 105.º, n.º 1, é revogado o artigo 133.º do Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro, preceito que previa precisamente a possibilidade de, preenchidos certos pressupostos, trabalhadores especialistas habilitados com o bacharelato acederem à carreira de Especialista superior.
Assim, nem à luz do regime jurídico vigente à data da instauração do procedimento arbitral e da constituição da lide, nem à luz do regime jurídico atualmente em vigor, se vislumbra qualquer fundamento legal de que o Demandante se possa prevalecer na sua pretensão de alcançar a mudança da carreira de Especialista para a carreira de Especialista superior (ou, no regime atual, de especialista de polícia científica).
Deste modo, ainda que se entendesse ser de mobilizar, para a resolução da questão dos autos – numa estrita de lógica de esgotar todas as possibilidades teóricas de enquadramento normativo do litígio a fim de determinar o regime jurídico eventualmente mais favorável à pretensão do trabalhador – o novo Estatuto Profissional da B..., tal revelar-se-ia inepto a satisfazer a pretensão do Demandante.
Resta assinalar, por fim, que, em face do despacho proferido pelo Diretor-Nacional-Adjunto da B... em 8 de novembro de 2018, problema distinto se poderia enunciar, a propósito do eventual exercício, pelo Demandante, «de funções correspondentes a carreira de grau de complexidade superior». Um tal circunstancialismo poderia eventualmente relevar à luz do princípio constitucional da igualdade, declinado na injunção de que a trabalho igual deve corresponder salário igual. Uma tal hipótese, no entanto, não se localiza no âmbito do objeto dos presentes autos os quais – recorde-se – se limitam a indagar da legalidade do despacho que rejeitou conceder a mobilidade intercarreiras ao Demandado pelo facto de não ser titular de licenciatura.
III – Decisão
Face ao exposto, julgo improcedente o pedido formulado pelo Demandante para que seja julgada a invalidade do Despacho que rejeitou autorizar-lhe a mobilidade para a carreira de Especialista superior.
Fixa-se o valor da causa, para efeitos de encargos processuais, no montante de €30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo), sendo a taxa de arbitragem a calcular nos termos regulamentares.
Os encargos devem ser suportados pelo Demandante e Demandado, em partes iguais, nos termos do disposto no artigo 29.º, n.º 5 do NRAA.
Registe e notifique.
Lisboa, 2 de março de 2020
A Árbitro
Teresa Violante