DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
A…, Demandante, identificada nos Autos, instaurou neste Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem (CAAD) a presente ação contra a Junta de Freguesia B… (JF-B…), Demandada, pessoa coletiva de direito público, devidamente identificada nos Autos, e deduziu os seguintes pedidos:
i) rever o mapa de pessoal e aditar um posto de trabalho na carreira de técnico superior, por tempo indeterminado;
ii) ser a demandada condenada a celebrar contrato de trabalho por tempo indeterminado com a demandante, na carreira e categoria de técnica superior e na 2.ª posição remuneratória da carreira de técnico superior.
Depois do Tribunal Arbitral constituído, as partes foram notificadas da intenção do tribunal de decidir o processo com base na prova documental junta, de renunciar à audiência ouvidas as partes, nos termos e para os efeitos do n.º 3 do artigo 18.º e do artigo 24.º, do Regulamento do CAAD, remetendo-se a fase de saneamento para a fase final do julgamento, consubstanciada esta numa decisão única e final, nos termos do n.º 4 do artigo 18.º do citado Regulamento.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.
O processo não padece de vícios que o invalidem, não há nulidades, exceções ou qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
A Demandada não contestou nem realizou qualquer resposta junto do presente Tribunal Arbitral, não obstante ter formalmente aceite a constituição do mesmo para a presente lide, conforme consta do processo. Considerando o artigo 23.º, n.º 3, do Regulamento CAAD-A, tal não obsta ao prosseguimento do presente processo.
II. Factos provados
Em face da inexistência de defesa ou falta de produção de prova pela Demandada, o presente julgamento far-se-á segundo o princípio da livre apreciação de prova e da autonomia do tribunal na condução do processo, nos termos do n.º 3 do artigo 23.º, do Regulamento do CAAD-A.
Com relevância para a apreciação do pedido neste litígio estão assentes os factos alegados na petição inicial, e contidos concretamente nos pontos 1., 2., 4., 5., 8., por falta de oposição pelos Demandados.
Repetindo aqui apenas o essencial, considera-se provado que:
a) A Demandante celebrou um contrato de formação em posto de trabalho com a Junta de Freguesia B…, no âmbito do Programa Estágios Profissionais na Administração Local (PEPAL), ao abrigo do DL n.º 94/2006, de 29 de maio e da Portaria n.º 1211/2006, de 13 de novembro, na redação atual;
b) O referido Contrato teve a duração de 12 meses, com início a 25 de agosto de 2008;
c) O vínculo contratual assumido pelas Partes, nos termos da Cláusula 1.ª, ponto 2, “não gera nem titula quaisquer relações de trabalho subordinado.”;
d) O exercício de funções, definido na Cláusula 3.ª do supracita Contrato, corresponde a um estágio profissional, sujeito a avaliação, remunerado através de uma “bolsa de formação”, no valor de 852€/mês;
e) Nos termos do referido Contrato, a Demandante estava sujeito aos mesmos deveres previstos para os trabalhadores que exercem funções públicas na Administração Local (à data, o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo DL n.º 24/84, de 16 de janeiro[1]);
f) A Demandante celebrou um contrato de trabalho temporário a termo certo renovável com a empresa C…, conforme documentação anexa pela Demandante (identificado como Doc. 2), por um período de 12 meses, com início a 01.01.2013, renovável, nos termos legais aplicáveis;
g) O contrato de trabalho referido na alínea anterior designava como local de trabalho a “Freguesia B…, ou em qualquer outro local indicado pelo utilizador [a mesma freguesia], desde que situado no mesmo concelho ou em concelhios limítrofes” (Doc. 2, primeira página);
h) Nos termos do sobredito contrato de trabalho celebrado pela Demandante, a categoria celebrada no foi a de “auxiliar administrativo” e a atividade contratada o “desempenho de funções de secretaria, contabilidade e arquivo”;
i) No mesmo documento, constata-se que a Demandante celebrou contrato de utilização de trabalho temporário, com a empresa C…, em “serviço determinado precisamente definido e não duradouro, motivado pelo facto de não ser possível a atualização de concurso público para contratação de colaboradores para o quadro de pessoal”, motivado e enquadrado no âmbito de “execução de tarefa ocasional ou serviço determinado precisamente definido e não duradouro, do n.º 2 do artigo 140.º do código do trabalho, aplicável por força do vertido no n.º 1 do art. 175.º do mesmo diploma legal” (idem Doc. 2, p. 1);
j) Pela denúncia do contrato de trabalho temporário comunicada pela Demandada à empresa C…, com data de cessação do contrato “a partir do próximo dia 1 de abril de 2017” (identificado como Doc. 3), pressupõe-se igualmente o término do exercício de funções da Demandante no local da Demandada, e, ainda, que a Demandante exerceu funções na Demandada entre 01.01.2013 e 31.03.2017;
l) Faz-se fé igualmente em todos os factos relativos às partes quanto aos termos formais do processo, designadamente citações e notificações;
IV. Aplicação do direito
a) Introdução
A questão essencial a decidir neste processo é, nos termos dos elementos fácticos aduzidos e relativos às Partes e respetivos enquadramentos jurídicos, é saber se a Demandante possui o direito de vinculação (labora)l de emprego público, por tempo indeterminado relativamente à Demandada, após sucessivos exercícios de funções numa mesma entidade pública, não obstante a título jurídico diferenciado, a saber:
- Entre 25.08.2008 e 24.08.2009: A título de um contrato de formação em posto de trabalho (PEPAL);
- Entre 2009 e 2012: alegadamente, a título de contrato de prestação de serviços (sem elementos comprovativos no processo);
- Entre 01-01-2013 e 31.03.2017: a título de contrato de trabalho temporário a termo certo renovável.
A Demandante sustenta que todo este período lhe fundamenta o direito a celebrar contrato de trabalho por tempo indeterminado com a Demandada, “na carreira e categoria de técnica superior e na 2.ª posição remuneratória da carreira de técnico superior”, nos termos da Lei Geral do Trabalho em Funções, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, doravante LTFP, particularmente o seu artigo 4.º, e que, assim, “estão reunidos todos os requisitos de um verdadeiro contrato em funções públicas e que deve o seu vínculo contratual precário ser revisto e celebrado contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, por se tratar de um posto de trabalho permanente” (ponto 11, da p.i.).
Vejamos.
B) Análise
O Programa Estágios Profissionais na Administração Pública é regido pelo Decreto-Lei n.º 18/2010, de 19 de março, na redação atual, que estabelece o regime do Programa de Estágios Profissionais na Administração Pública e revoga o Decreto-Lei n.º 326/99, de 18 de Agosto, o primeiro a instituir este programa de estágios, não obstante, por força do artigo 2.º, n.º 3, continue a aplicar-se Decreto-Lei N.º 94/2006, de 29 de maio, que adaptou o Programa Estágios Profissionais na Administração Pública à Administração Pública local, denominado de PEPAL.[2]
Os estágios profissionais na administração local, tal como em outra administração pública (central, regional) são um instrumento de “integração temporária de recursos qualificados e dotados da formação profissional adequada” para exercerem funções no setor público. Além do mais, são também uma “forma de contribuir para a inserção dos jovens na vida ativa, complementando uma qualificação preexistente através de uma formação prática a decorrer no âmbito dos serviços públicos”, especialmente “vocacionado para o exercício de funções correspondentes às carreiras técnica superior, técnica e técnico-profissional do regime geral da função pública”, conforme se pode ler no preâmbulo do citado Decreto-Lei n.º 94/2006, de 29 de maio.
A admissão aos sobreditos estágios profissionais exige um procedimento concursal, de candidatura, e de recrutamento e seleção dos candidatos (v. artigo 5.º, idem), cuja aprovação permite a celebração de um “contrato de estágio”, que não é qualificado como um vínculo jurídico laboral, tanto no direito público como no direito privado, pois tratam-se de sem relação jurídica de subordinação jurídica, pelo menos formal, ainda que remunerada por uma “bolsa de estágio”, sem pagamento de contribuição para a segurança social.
Ademais, ainda nos termos do direito aplicável, em linha com a natureza contratual das relações jurídicas entre o estagiário e a entidade acolhedora, e o respetivo processo legal, por força do quadro constitucional aplicável (v. artigo 47.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), a frequência ou conclusão do estágio com avaliação positiva não tem como efeito a constituição de uma relação jurídica de emprego público ou qualquer outro tipo de vinculação com o Estado (a contrario, artigo 6.º, n.º 1, do DL 94/2006, de 29 de maio).
Aliás, o regime instituidor no qual se funda o PEPAL é claro neste domínio: “Embora a conclusão do estágio não tenha como efeito a constituição de uma relação jurídica de emprego com a entidade em que aquele decorreu, o presente decreto-lei prevê uma série de benefícios para os estagiários que tenham sido avaliados com uma classificação de, pelo menos, 14 valores” (Preâmbulo do DL n.º 18/2010, de 19 de março).
Com efeito, os estagiários que tenham obtido aproveitamento com avaliação não inferior a 14 valores podem, no âmbito dos procedimentos concursais a que se candidatem, publicitados pela entidade promotora onde realizaram o estágio e para ocupação de posto de trabalho da carreira de técnico superior cujas características funcionais se identifiquem com a atividade desenvolvida durante o estágio, optar pela aplicação dos métodos de seleção previstos no n.º 2 do artigo 53.º da Lei n.º 12- A/2008, de 27 de fevereiro, sendo essa opção manifestada por escrito aquando da apresentação da candidatura a tais procedimentos (artigo , n.º 2, do DL .
No que toca especificamente ao emprego público, quanto muito o estágio profissional pode ser utilizado como um método de seleção, nos termos do n.º 4 do artigo 36.º, da LTFP, mas possui caráter facultativo e tem de estar previsto na lei.
Com efeito, a título subordinado, e mediante remuneração, o vínculo de emprego público só pode revestir as seguintes modalidades: contrato de trabalho em funções públicas; nomeação; e comissão de serviço (artigo 6.º, n.os 2 e 3, LTFP). O contrato de estágio está excluído como modalidade contratual de vínculo ao emprego público.
No que respeita aos contratos de prestação de serviços, tal modalidade contratual, como se viu, também não produz, nem implica, uma vinculação de emprego público, sendo somente uma modalidade contratual do trabalho em funções públicas, nos termos dos artigos 6.º, n.º 1, 10.º e 32.º, da LTFP.
Aliás, o artigo 10.º, no seu n.º 3, é claro ao cominar com a nulidade “os contratos de prestação de serviço para o exercício de funções públicas em que exista subordinação jurídica, não podendo os mesmos dar origem à constituição de um vínculo de emprego público”, sem prejuízo da “produção plena dos seus efeitos durante o tempo em que tenham estado em execução, sem prejuízo da responsabilidade civil, financeira e disciplinar em que incorre o seu responsável.” (n.º 4, idem).
Outrossim, a única ligação prevista entre o contrato de prestação de serviços e a constituição de uma relação de vínculo de emprego público é dada pelo n.º 4 do artigo 32.º da LTFP, feita através, nomeada e obrigatoriamente, de procedimento concursal:
“A verificação, através de relatório de auditoria efetuada pela IGF em articulação com a Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP), da vigência de contratos de prestação de serviço para execução de trabalho subordinado equivale ao reconhecimento pelo órgão ou serviço da necessidade de ocupação de um posto de trabalho com recurso à constituição de um vínculo de emprego público por tempo indeterminado ou a termo, conforme caracterização resultante daquela auditoria, determinando:
a) A alteração do mapa de pessoal do órgão ou serviço, por forma a prever aquele posto de trabalho;
b) A publicitação de procedimento concursal para constituição de vínculo de emprego público, nos termos previstos na presente lei.”
Na verdade, este é o normativo que fundamenta o atual PREVPAP, o programa de regularização extraordinária dos vínculos precários na Administração Pública, pelo qual trabalhadores da Administração Central e do Setor Empresarial do Estado podem regularizar o seu vínculo laboral com o Estado, criado pela Lei do Orçamento do Estado para 2017 (no artigo 25.º), no âmbito de uma estratégia política de combate à precariedade na Administração governamental, definida no artigo 19.º da Lei n.º 7 -A/2016, de 30 de março.
Porém, tanto a transição de um contrato de prestação de serviços, quanto o PREVPAP, nos termos do artigo 47.º, n.º 2, da CRP, exigem procedimento concursal respetivo para o posto de trabalho, desde que previsto no devido mapa de pessoal.
Mais, qualquer dirigente de entidade pública, incluindo a Administração local (i.e., os dirigentes das juntas de freguesia), por força do n.º 2 do artigo 1.º, que manda aplicar o Decreto-Lei n.º 326/99, de 18 de Agosto (i.e., o seu sucessor, Decreto-Lei n.º 18/2010, de 19 de março) “Em tudo o que não estiver especificamente previsto no presente decreto-lei”, está sujeito a (i) responsabilidade financeira pela violação de normas legais ou regulamentares relativas à admissão de pessoal, nos termos dos artigos 59.º, n.º 4 e 65.º, n.º 1, alínea l), da Lei n.º 98/97, de 26 de agosto, na redação atual (Lei da Organização e Funcionamento do Tribunal de Contas); (ii) responsabilidade disciplinar (artigos 10.º, n.º 4, 63.º, n.º 1, e 188.º, n.º 1, em especial, alíneas c) e d), LTFP); (iii) responsabilidade penal (artigo 11.º, 16.º e 26.º, do Código do Processo Penal) ; (iv) e responsabilidade civil (artigo 8.º, da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, na redação atual, que aprova o regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado E Pessoas Coletivas de Direito Público).
Pelo mesmo sobredito excurso, tampouco a lei não permite a constituição de vínculo de emprego público por via de um contrato privado de trabalho temporário, a termo certo renovável, como a Demandante celebrou com a supramencionada empresa privada de recursos humanos, independentemente da sua duração, e antiguidade da trabalhadora no local e exercício de funções para a mesma entidade empregadora, ainda que pública.
Por último, refira-se que a aplicação do artigo 12.º do Código do Trabalho (“Presunção de contrato de trabalho”) encontra-se, precisamente, excluída pelo n.º 1 do artigo 4.º da LTFP, complementada pelos artigos 6.º e seguintes, da mesma lei, ou seja, a matéria relativa às modalidades de vínculo e prestação de trabalho para o exercício de funções públicas estão legalmente previstas (Parte I, Título II, da LTFP), pelo que, nos termos do n.º 1 do artigo 4.º da LTFP não se aplica a sobredita presunção contratual típica do direito privado laboral ou comum.
V. Decisão
Em face do exposto, o tribunal decide julgar totalmente improcedente o pedido da Demandante enunciado na sua p.i., nas respetivas alíneas a) e b).
Fixa-se o valor do processo em € 30 000,01 (trinta mil e um euros), por aplicação do n.º 2 do artigo 34.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável ex vi artigo 29.º do Regulamento de Arbitragem do CAAD.
Notifique-se,
Lisboa, 16 de abril de 2018.
O Árbitro,
Nuno Cunha Rolo
[1] Revogado, a partir da entrada em vigor do RCTFP, pela Lei n.º 58/2008, de 09.09.2008.
[2] Regulamentado pela Portaria n.º 1211/2006, de 13 de novembro (R-PEPAL) e Portaria n.º 286/2008 - de 11 de abril.