Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 347/2022-T
Data da decisão: 2023-06-14  IRS  
Valor do pedido: € 50.605,32
Tema: Presunção de rendimentos de capitais de valores postos por sociedades comerciais ao dispor dos sócios
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Sumário:

I - A tributação em IRS dos sócios das sociedades comerciais, por rendimentos da categoria E, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, alínea h), exige que tenham sido efetivamente disponibilizados a esses sócios, por entregas em suas contas bancárias ou modo equivalente ou em lançamentos a seu favor nas contas adequadas da contabilidade da empresa, determinados benefícios, não podendo presumir-se a existência destes rendimentos de capitais por a contabilidade revelar a existência de movimentos por esclarecer, em contas de terceiros.

II - O beneficiário de uma presunção legal fica dispensado de provar o facto a que ela conduz, mas não fica dispensado de provar o facto base da presunção; consequentemente, a tributação em sede de IRS baseada na presunção de que determinados lançamentos em contas de terceiros que contém movimentos a esclarecer, ainda que oriundos das contas de caixa e bancos, constituem lucros ou adiantamento de lucros (artigo 6.º, n.º 4 do CIRS), impõe à AT o ónus de provar o facto base da presunção, isto é, que tais lançamentos são feitos em conta corrente do sócio, e que tais contas de movimentos a regularizar são efetivamente do sócio e que não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Nuno Maldonado Sousa, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 12-06-2022, decide no processo identificado, nos seguintes termos:

 

  1. Relatório

A… PUBLICIDADE, UNIPESSOAL, LDA., titular do número de identificação de pessoa coletiva …, com sede na Rua …, …, … …, doravante designada como “Requerente”, requereu a constituição de tribunal arbitral ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, e nos termos do artigo 5.º, n.º 2, do artigo 6.º. n.º 1 e do artigo 10.º, n.º 1, al. a) do regime jurídico da arbitragem em matéria tributária constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”). O seu pedido tem como objetivo a pronúncia arbitral sobre a legalidade da liquidação de retenções na fonte de IRS n.º 2022 …, de 14-01-2022, com o valor a pagar de 50.605,32 €. A Requerente pediu também o reconhecimento do seu direito ao reembolso do imposto que considera ter sido indevidamente pago, acrescido dos juros indemnizatórios.

É Requerida nestes autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante designada apenas por “AT” ou por “Requerida”.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi feito em 01-06-2022 e aceite pelo Presidente do CAAD em 02-06-2022; foi notificado à Requerida em 08-06-2022.

O árbitro identificado e signatário manifestou a aceitação das suas funções no prazo legal. Em 25-07-2022 as partes foram notificadas da designação do árbitro e não manifestaram intenção de a recusar, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. Em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 12-08-2022. Em 20-01-2023 e em 12-04-2022, foram proferidos por este Tribunal despachos de prorrogação do prazo para a decisão, por sucessivos períodos de dois meses.

A Requerida apresentou resposta em 30-09-2022, que concluiu afirmando que o pedido do Requerente deve ser julgado improcedente, mantendo-se na ordem jurídica os ato tributários impugnados. Foi nessa altura junto pela Requerida e foi devidamente incorporado nos autos, o processo administrativo digitalizado (“PA”), composto por dois ficheiros pdf com o total de 92 páginas[1].

Em 20-01-2023 foi realizada a reunião do Tribunal Arbitral com as partes e foi ouvida a testemunha arrolada pela Requerente. Não foram apresentadas alegações pela Requerente ou pela Requerida, apesar de terem sido convidadas a fazê-lo, na aludida reunião. Note-se que a apresentação de alegações é um direito das partes, pelo que o seu não uso não tem, em si, qualquer consequência.

 

  1. Saneamento

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, em subordinação com as normas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT e é competente. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10º, n.º 1, alínea a), do já referido regime.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo regime e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades pelo que cumpre decidi-lo.

 

  1. Fundamentação – matéria de facto
    1. Factos provados

Com relevância para esta decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. Em 2018 a contabilidade da Requerente passou a ser assegurada pelo Contabilista Certificado Dr. B… (NIF …) (PPA, doc. 2).
  2. Ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2020… foi efetuada inspeção tributária à Requerente, com âmbito geral relativamente ao ano de 2018 (PA: p. 3 e p. 7).
  3. A Requerente iniciou a sua atividade de “apoio às artes de espetáculo” em 26-09-1990, está enquadrada no regime normal de IVA trimestral desde 01-01-2012 e não tem declarações, nem de IVA nem de rendimentos modelo 22 e IES em falta e não tem dívidas fiscais. (PA: p. 7)
  4. Quando foi realizada a inspeção tributária, C… era o único sócio, que detinha a totalidade do capital social de 100.000,00 € e era o único gerente da Requerente. (PA: p. 3 e p. 7)
  5.  No exercício de 2018 a Requerente declarou um lucro tributável de 48.891,87 €, resultante das rúbricas que constam do quadro seguinte:

DEMONSTRAÇÃO DE RESULTADOS

2018

Vendas e serviços prestados

439.765,60

Fornecimentos e serviços externos

268.730,19

Gastos com pessoal

58.601,40

Outras imparidades

19.852,20

Outros rendimentos e ganhos

7.434,76

Outros gastos e perdas

4.016,19

Gastos/reversões de depreciação e de amortização

66.529,17

Imposto sobre o rendimento do período

11.492,55

Resultado líquido do período

17.978,66

A acrescer Q07 da DR mod. 22

38.087,15

A deduzir Q07 da DR mod. 22

7.173,94

LUCRO TRIBUTÁVEL

48.891,87

 

  1. No RIT[2], para além de tudo o mais que dele consta, pode ler-se: ( PA: p. 9)

III  Descrição dos factos e fundamentos das correcções meramente aritméticas

111. I Análise de Nota de Lançamento (Documento interno n.º 43 do diário 3) — Registos contabilísticos, implicações fiscais e proposta de correção:

Em anexo 4, apresenta-se cópia do documento interno n.º 43 do diário 3, datado de 2013-02-31, que suporta diversos registos contabilísticos a débito e a crédito das contas nele mencionadas.

Entre outros registos, o S.P. registou a crédito das contas de caixa (111), depósitos à ordem (12101 e 12102), depósitos a prazo (13101) e clientes (211xxxxxx), os montantes de 12.835,83 €,  8.944,33 €, 10.000,00 € e 123.192,24 €, respetivamente, por contrapartida da conta 28104.

 

Esta conta 28104 foi criada na contabilidade do S.P. com designação "Regularização de saldos exercícios anteriores".

 

Trata-se de uma subconta da subconta 281-Gastos a reconhecer, que por sua vez é uma subconta da conta SNC 28-Diferimentos, que compreende os gastos e os rendimentos que devam ser reconhecidos nos períodos seguintes, isto é, destina-se a evidenciar as quantias respeitantes a despesas e pagamentos, que, à data de relato, antecedem o momento de uso ou consumo de recursos.

 

Pois, as empresas, no desenvolver da sua atividade, fracionam a sua atuação em períodos contabilísticos, para determinação no final de cada um deles do seu resultado e da sua posição financeira. A segmentação da vida das empresas em períodos contabilísticos suporta a existência de alguns pressupostos, nomeadamente o regime do acréscimo ou periodização económica (§22 da Estrutura Conceptual do SNC), Os efeitos das transações e de outros acontecimentos são reconhecidos quando eles ocorram (e não quando caixa ou equivalentes de caixa sejam recebidos ou pagos) sendo registados contabilisticamente e relatados nas demonstrações financeiras dos períodos com os quais se relacionem As Demonstrações Financeiras são elaboradas numa base do acréscimo à qual se opõe uma base de caixa, A base de acréscimo assenta no pressuposto de que as transações e outros acontecimentos são reconhecidos nos períodos a que respeitam, independentemente do seu pagamento ou recebimento.

 

A subconta 281 -Gastos a reconhecer compreende principalmente os dispêndios já efetuados, mas cujo gasto ou parte do gasto deva ser reconhecido nos períodos seguintes (gastos diferidos). A quota-parte dos diferimentos incluídos nesta conta que for atribuída a cada período irá afetar diretamente a respetiva conta de gastos (Classe 6). Esta subconta poderá ter outras desagregações conforme seja necessário, designadamente para registar os gastos de reparação e conservação que não aumentem o período de vida útil nem o valor dos investimentos. mas cuja reparação ou gasto de conservação deva ser imputada a vários períodos.

Debita-se por contrapartida de uma conta de terceiros no momento do reconhecimento da operação e credita-se nos períodos em que deve ser reconhecido a gasto, por contrapartida da conta da Classe 6, em obediência à periodização económica.

Os gastos a reconhecer. na subconta 281, correspondem a pagamentos  efetuados ou débitos efetuados por terceiros relativos a gastos de períodos subsequentes. Por exemplo, a renda do més de janeiro de uma loja que é debitada em dezembro do ano anterior.

 

Não serve a conta SNC "28" para registar factos passados relativos a recebimentos elou pagamentos que se demonstram ter ocorrido anteriormente.

 

Verificada a falta de registo de um qualquer recebimento, cujo valor foi efetivamente creditado em conta de depósitos ordem do s.p., deve ser corrigido através do registo a crédito do cliente (21X) e a débito da conta de depósitos à ordem (12X) e não, como o s.p. fez, creditando indevidamente a conta 28104.

 

Sendo que, o ativo continua na empresa, quer esteja na conta SNC 21 ou na conta SNC 12, não se tratando de um qualquer diferimento registado na conta SNC 28, como fez o s.p.

 

Notificado pessoalmente. em 2021-10-21, para justificar os registos atrás mencionados, nas subcontas das contas SNC 11, 12, 13 e 21, por contrapartida de subconta da conta SNC 28, veio o s.p. através do seu sócio gerente apresentar a respetiva justificação (anexo 5), que se resume de seguida:

• A regularização efetuada na conta CAIXA. no montante de 12.835,83 €  corresponde precisamente ao valor da conta CAIXA do més 14/2014, ano em que ocorreu ação inspetiva. e que já nessa data existia;

• As regularizações nas subcontas de depósitos à ordem 12101 e 12102 respeitam a reconciliação bancária no 1.º caso e a regularização de saldo inexistente no 2.º caso, porque a conta já estava encerrada desde março de 2017;

• A regularização de 10.000,00 € da subconta 13101 respeita a regularização de conta inexistente, uma vez que o depósito a prazo, no montante de 11.000.00 € que detinha no banco Santander em janeiro de 2016 foi transferido para a conta da depósitos á ordem em fevereiro 2016.

Os saldos das contas de clientes, alvos de regularização, foram exaustivamente mencionados na resposta à notificação e justificadas as regularizações por inexistência de dívida, devido a falta de registo dos respetivos recibos de quitação.

 

Em suma, o S.P. refere e tenta demonstrar que os registos efetuados serviram para repor "os verdadeiros saldos das contas", aquando da mudança do responsável pela contabilidade, alegando que os balancetes, até 31 de dezembro de 2017, não refletiam a realidade da empresa.

 

Ora,

A falta de registo a crédito de um qualquer cliente (conta SNC 21) teria como contrapartida o débito de igual montante na conta de caixa (SNC 11) ou de depósitos à ordem (SNC 12); Assim, se globalmente creditou as subcontas da conta SNC 21 em 123.192,24 €, então os valores desses recebimentos também não foram refletidos nas subcontas das contas SNC 11 ou 12, isto é. estas contas deveriam refletir a respetiva contrapartida a débito;

 

Tendo como suporte aquele documento interno, também efetuou. por contrapartida da conta 28104, outros registos noutras contas a receber e a pagar:

• Debitou a conta 221X em 3.122,19 €;                      

• Creditou a conta 231X em 2.121,58 €;

• Creditou a conta 241X em 6.733,03 €;

• Debitou a conta 24 IX em 3.029.82 €;

• Debitou a conta 242X em 530,95 €;

• Debitou a conta 2437 em 2.176,19 €;

• Creditou a conta 2451 em 911,80 €;       

• Creditou a conta 27X em 4.645.67 €;

• Debitou a conta 27X em 3.713.38 €.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

Tal como já referido anteriormente, a contrapartida destes registos contabilísticos deveria ser uma conta da classe 1 — Meios financeiros líquidos, ou seja, a fonte de recebimento ou de pagamento, isto é, caixa ou depósitos à ordem.

 

Apos estas regularizações de saldos de contas a receber e a pagar as contas de meios financeiros líquidos deveriam refletir aquelas regularizações com um incremento de 137.604,32 e um abatimento de 12,572, 53, conforme se demonstra no quadro seguinte, apurando-se um incremento liquido de 125.071,39 €, obtido pela diferença daqueles valores:

 

Conta

débito

crédito

211_clientes

0,00

123.192,24

221-Fornecedores

3.122,19

0,00

231-Remunerações a pagar

0,00

2.121,58

241-IRC

3.029,82

6.733,03

242-Retenções na fonte de IRS

530,95

0,00

2437-IVA a recuperar

2.176,19

0,00

2451-TSU

0,00

911,80

27-Outras contas a receber e a pagar

3.713,38

4.645,67

Subtotal contas a receber e a pagar

12.572,53

137.604,32

11-caixa

0,00

12.835,83

12-Depósitos à Ordem

0,00

8.944,33

13- Depósitos a prazo

0,00

10.000,00

subtotal meios financeiras líquidos

 

31.780,16

Total

12572,53

169.384,48

 

156.811,95

 

Porém. em vez de debitar as contas dos meios financeiros líquidos, por valores, segundo o S.P., já pagos e/ou recebidos em exercícios anteriores, veio creditar aquelas contas em mais 31.780, 16 €, resultando que o S.P., através dos registos efetuados na contabilidade em janeiro de 2018, suportados pelo documento interno n.º 43 do diário 3, cuja cópia se anexa, consubstancia uma retirada de dinheiro da sociedade, no montante de 156.311,95 € que o S.P. por contrapartida da já atrás referida conta 28104, conta esta que é uma conta de deferimentos (gastos a reconhecer). não sendo o caso.

 

Trata-se assim de uma forma contabilística para consolidar em definitivo a efetiva retirada de capitais próprios da sociedade, na data das registos contabilísticos, de valores que ascendem a 156.811,95 €.

 

Sendo a retirada, por parte do único sócio e gerente da saciedade, legitima. uma vez que a sociedade possui resultados transitados de anos anteriores, a mesma consubstancia uma distribuição de lucros e está sujeita a retenção na fonte de IRS. conforme estipula a alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS.

 

Assim, em face do previsto na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º e alínea c) do artigo 71.º, ambos do CIRS, o S.P. estava obrigado a fazer a retenção na fonte de IRS, sobre aquela retirada de capitais próprios / distribuição de lucros, a título definitivo e liberatório, à taxa de 28%.

 

Nos termos do n.º 3 do artigo 98.º do CIRS. as quantias deveriam ter sido retidas pela empresa e que, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 101.º do CRS, deveriam ter sido entregues até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas, o que não foi efetuado,

 

Assim encontra-se em falta a retenção na fonte de IRS no montante de 43.907,35 €, que resulta da aplicação da taxa de 28% sobre o valor efetivamente retirado de 156.811,95 €.

 

  1. No anexo 4 do RIT, que é a nota de lançamento com número de diário 43, para além do que mais consta no Relatório, podem ver-se o cabeçalho seguinte[3]:

Conta  | Descrição        | Débito | Crédito | Rubrica | C Custo | Percentagem | Cod Fluxo

 

  1. No anexo 4 do RIT, que é a nota de lançamento com número de diário 43, para além do que mais consta no Relatório, podem ver-se os seguinte lançamentos, que se descrevem de forma sintética[4]:
  • 172 lançamentos com a descrição “REG VALORES ANTERIO” uns a débito e outros a crédito;
  • As colunas “Rubrica”, C Custo”, “Percentagem” e “Cod Fluxo” não contêm qualquer dado.
  • Os saldos de  abertura ou “transporte são de:
    • A débito 1 227 052.27;
    • A crédito 1 542 26438.
  • Os saldos de encerramento são de:
    • A débito 2 278 546.64;
    • A crédito 2 278 946.54.

 

  1. No anexo 4 do RIT, que é a nota de lançamento com número de diário 43, para além do que mais consta no Relatório, pode ver-se a seguinte menção manuscrita:

Declaro, para os devidos efeitos, que as regularizações efetuadas neste registo contabilístico, que visam corrigir as irregularidades dos saldos contabilísticos, detetados no balancete de junho de fecho ano 2017 / abertura ano 2018, foram com o meu conhecimento e consentimento.

A gerência

(assinatura e carimbo)

  1. Com data de 11-11-2021 a AT enviou ao Requerente projeto do Relatório de Inspeção Tributária e notificou-a para exercer o direito de audição no prazo de 15 dias (PA: p. 44).
  2. O Requerente não exerceu o direito de audição (PA: p. 46 e pp. 59-60).
  3. Com data de 14-12-2021 a AT enviou à Requerente o Relatório de inspeção Tributária, nos termos que constavam da proposta datada de 11-11-2021 (PA: p. 90)
  4. Em 14-01-2022 foi emitida pela Requerida e enviada à Requerente “demonstração de liquidação de retenções na fonte de IR” no montante de 43.907,35 € e “demonstração de liquidação de juros compensatórios do período de 21-02-2018 a 13-12-2021, no valor de 6.597,97 €, no total de 50.605,22 €, com data-limite de pagamento em 03-03-2022. (PPA: doc. 1).
  5. Em 02-03-2022 a Requerente pagou a quantia de 50.605,32 € à AT (junção de docs. da Requerente em 08-06-2022: doc. 4).

 

  1. Seleção da matéria de facto e fundamentação da decisão correspondente

Ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Os factos dados como provados resultaram da apreciação da prova documental e testemunhal produzida nos presentes autos, o que foi feito com base na regras da experiência, da normalidade e da racionalidade, em conformidade com o previsto no artigo 16.º, alínea e) do RJAT, bem como no artigo 607.º, n.º 5 do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, das quais resulta que o julgador apreciará livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. A prova documental encontra-se identificada relativamente a cada facto, junto ao seu relacionamento.

 

  1. Fundamentação – matéria de direito
    1. A posição das partes e o objeto do litígio
      1. A posição da Requerente

A Requerente sustenta que pretendeu, no exercício de 2018, por ter tido conhecimento de saldos desconformes na sua contabilidade por ocasião de inspeção tributária ao exercício de 2014, levada a cabo em 2017, por fim a uma situação que considerou irregular e que, “o procedimento utilizado para correção da contabilidade, consistiu na “regularização de saldos de exercícios anteriores” das contas de caixa, bancos, clientes e ativos fixos tangíveis para uma conta de terceiros – gastos a reconhecer – 28104”. Como as contas SNC de origem e de destino se situam no ativo da empresa, não houve qualquer reflexo em contas do passivo, ou sintetizando, “tratou-se de espelhar contabilisticamente a realidade da empresa, regularizando situações passadas, ocorridas em exercícios anteriores a 2014, algumas das quais ocorridas seguramente ao longo de dezenas de anos.”. Conclui afirmando que “Pelo acerto contabilístico realizado em 2018 não ocorreu a saída de quaisquer valores da sociedade.” Em termos práticos, na visão da Requerente, os acertos contabilísticos realizados em 2018 não provocaram a saída de quaisquer valores da sociedade, visto que, a conta de caixa, bancária, clientes e ativos fixos tangíveis não foi debitada, passando somente para a conta 28104. Este acerto teve como objetivo, em suma, o acerto dos saldos da contabilidade para o valor existente na realidade nas contas de caixa, bancária, clientes e de ativos fixos tangíveis. Completa o seu raciocínio afirmando que “Pela regularização contabilística, realizada em 2018, não ocorreu qualquer distribuição de lucros aos sócios da Requerente”. Em abono da sua posição afirma que só por ocasião da inspeção tributária ocorrida em 2017 tomou conhecimento das irregularidades em causa e que, logo em 2018 nomeou novo Contabilista Certificado e iniciou a reorganização da documentação e reformulação das demonstrações financeiras.

Como fundamento da sua impugnação aponta à AT a violação do princípio do inquisitório  e da descoberta da verdade material (29.º PPA), cuja atuação, na sua tese, para descoberta da verdade, deve levá-la a inquirir o que for necessário até ao possível “devendo tomar oficiosamente as iniciativas para alcançar tal objetivo” (33.º PPA). Assenta esta sua conclusão na circunstância de lhe ter sido apenas feito um único pedido de elementos e esclarecimentos, e que, com base nisso, a AT “presumiu a realidade conforme lhe pareceu melhor” e “não fez qualquer diligência no sentido de apurar a realidade dos factos ou sequer de investigar o que lhe havia sido indicado pela Requerente.”  (35.º a 38.º do PPA).

Ainda como fundamento da sua conclusão da ilegalidade da atuação da AT a Requerente imputa-lhe a violação das regras do ónus da prova, previstas no artigo 74.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (“LGT”) de onde resulta, na sua interpretação deste dispositivo, que para a AT considerar que as saídas de verbas das contas da Requerente tiveram como destinatário o sócio da Requerente e que tiveram “a natureza de adiantamentos por conta de lucros”, cabia-lhe prová-lo, o que não fez.

A Requerente invoca ainda a seu favor o benefício na dúvida da existência de facto tributário, como estipula a norma do artigo 100.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), e a ilegalidade da presunção da distribuição de lucros, que está fora do quadro jurídico aplicável, apenas elegível em situações de avaliação indireta,  que não têm verificação nestes autos, nem nele vêm referidas (60.º a 67.º).

A Requerente considera também que a AT não fundamenta, quer de facto, quer de direito, as presunções que faz de (a) “Em 2018 houve retiradas de dinheiro das contas da Requerente”; (b) “As mencionadas retiradas de dinheiro resultaram da regularização contabilística realizada de acerto de saldos”; (c) “As saídas de verbas tiveram como destinatário o sócio da Requerente”.

A Requerente afirma também que a falta de correspondência das conclusões do RIT com a verdade, por não ter efetivamente existido qualquer fluxo financeiro da Requerente para o seu sócio e que as falhas que reconhece existirem, mas cuja origem desconhece, nas contas de registo das suas disponibilidades, não têm forçosamente as razões que a AT sustenta e que os extratos bancários e contabilísticos onde nascem as divergências, são anteriores a 2014.

 

  1. A posição da Requerida

A Requerida fundamenta a sua liquidação situando os factos tributários em 2018, porque resultam da nota de lançamento interno n.º 43 do diário 3 de 31-01-2018 e da sua análise “resultou a deteção de distribuição de lucros não tributados em sede de IRS”, concluindo  que “Trata-se assim de uma forma contabilística para consolidar em definitivo a efetiva retirada de capitais próprios da sociedade na data dos registos contabilísticos de valores que ascendem a 156.811,95 €” (artigo 3.) e que sobre essa distribuição de lucros incide IRS, na categoria de rendimento de capitais (categoria E), previsto no art.º 5.º n.º 2, al. h), conjugado com o art.º 7º nºs 1 e 3, al. a), subal. 2), ambos do CIRS” (artigo 4. da R-AT[5]). A imputação do imposto assim gerado à Requerente é feita através do mecanismo da substituição tributária da Requerente, enquanto substituto, por não ter cumprido com “a obrigação de efetuar a respetiva retenção na fonte mediante a aplicação da taxa liberatória de 28%, nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º 71.º, conjugado com o nº 3 do art.º 98º e a al. a) do n.º 2 do art.º 101.º, todos do referido código, no valor de 43.907,35€ (156.811,95€ x 28%).” (artigo 4. Da R-AT). Afirma também, em abono da sua posição que o Requerente foi notificado do projeto de RIT, que continha a proposta das correções que vieram, mais tarde, a transformar-se em liquidação e, tendo tido oportunidade para isso, nada disse (artigo 6. da R-AT). Fundamenta a liquidação de juros compensatórios no valor de 6.697,97 € (liquidação nº 2022 …), na norma do “artigo 35º da LGT conjugado com o artigo 91º do CIRS”.

 

  1. Objeto do litígio

É objeto do litígio a determinação dos requisitos necessários para que o substituto, sujeito passivo de IRC, possa ser tributado pela existência de diferenças na sua contabilidade que podem ser identificadas com fluxos financeiros a favor do seu sócio único e gerente único e determinar se esses requisitos foram apurados pela AT no RIT e se dele constam devidamente fundamentados, numa perspetiva de facto e de direito. Em caso de se anular a liquidação de imposto sobre o rendimento, é ainda objeto do litígio o pagamento de juros indemnizatórios à Requerente.

 

  1. Apreciação jurídica

Na sua apreciação o Tribunal deve privilegiar os vícios arguidos que gerem a nulidade ou a inexistência e, não se verificando nenhuma destas invalidades do facto tributário, deve analisar prioritariamente os alegados vícios que, verificando-se e conduzindo à procedência,  confiram ao Requerente mais estável e eficaz tutela dos seus interesses, o que significa, em regra, apreciar o vício que seja causado por erro da AT, proporcionando a eventual aplicação de juros e que tenha por base a violação da lei, impedindo a renovação do ato com diferente causa de pedir.

Entre os vícios elencados pela Requerente afigura-se ao Tribunal que, a verificar-se, confere-lhe maior estabilidade e compensação a violação de lei consubstanciada na violação das regras do ónus da prova, previstas no artigo 74.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (“LGT”), na interpretação deste dispositivo feita pela AT, que considera que a existência de saída de quantitativos das contas de caixa e de bancos para conta do ativo que congrega movimentos a regularizar, sem que haja efetivamente fluxos financeiros para o sócio da Requerente, é indício suficiente para acionar a presunção de rendimento do sócio, com a natureza de adiantamentos por conta de lucros.

As normas de incidência invocadas constam do artigo 5.º, n.º 2, alínea h) e 71.º, n.º 1, alínea a) do CIRS,  que tinham a seguinte redação:

Artigo 5.º - Rendimentos da categoria E

1 - Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.

2 - Os frutos e vantagens económicas referidos no número anterior compreendem, designadamente:

(…)

h) Os lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º;

(…)

 

Artigo 71.º - Taxas liberatórias

 

 

​1 - Estão sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória de 28 %:

a) Os rendimentos de capitais obtidos em território português, por residentes ou não residentes, pagos por ou através de entidades que aqui tenham sede, direção efetiva ou estabelecimento estável a que deva imputar-se o pagamento e que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada;

(…)

 

Para acionar estas normas são necessárias uma de duas situações: (i) ou existiu efetiva entrega ou colocação à disposição do sócio que é sujeito passivo, de fluxos financeiros oriundos da empresa, ou (ii) que a lei contenha presunção que a AT identifique, que prove o enquadramento do sujeito passivo na previsão da norma presuntiva e que este não cumpra o ónus, agora seu, de provar não ter recebido pela presumida razão, os rendimentos que se lhe pretendem imputar.

A distribuição do ónus da prova e disciplina das presunções no direito tributário está sujeita ao regime que consta dos artigos 73.º e 74.º da LGT e acompanha até o regime geral do direito português; quem afirma determinado facto tem o ónus de o provar (74.º-1) e as presunções admitem sempre prova em contrário (73.º).

No caso dos autos a AT aponta a realização de movimentos em determinadas contas da contabilidade da Requerente, que são provadas pela própria contabilidade, mas nenhum desses movimentos revela que tenha havido rendimentos de capitais para a Requerente, sob a forma de lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros. Dito de outro modo, a norma de incidência existe, mas a previsão normativa constituída pela colocação de lucros ou adiantamentos por conta de lucros, não é por qualquer forma provada. A simples movimentação das contas de caixa e de bancos para contas de regularização, também do ativo, não têm a característica de por à disposição do Requerente quaisquer lucros ou adiantamentos de lucros. Essa prova competia à AT.

Há, pois, que concluir que a liquidação é ilegal, havendo que anular o ato praticado. A isso não obsta o facto de a Requerente ter sido notificada do projeto de decisão e não ter exercido o seu direito de audição; este é um direito seu e o seu não uso não tem qualquer cominação no caso concreto.

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Note-se que esta decisão vai em linha com a jurisprudência conhecida sobre o tema, mesmo para as situações – que não é o caso dos autos por não ter sido expressamente invocada no RIT – de ter sido utilizada a presunção que consta da norma do artigo 6.º, n.º 4 do CIRS. Se bem se interpreta a jurisprudência de que seguidamente se dá conta, a imputação dos rendimentos da categoria E aos sujeitos passivos, depende sempre da colocação de meios financeiros ao dispor destes ou, pelo menos, do seu lançamento em contas correntes desses sócios na contabilidade das empresas. Caberá ao contribuinte, nesta última situação, o ónus de provar que esses direitos não são oriundos de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, depois de a AT ter provado o lançamento em tal conta corrente a seu favor.

Aliás, a jurisprudência trazida aos autos pela AT não tem paralelo com o caso dos autos, em que não se afirma, nem prova, que o sócio-gerente foi efetivo beneficiário do saldo revelado na contabilidade, mas inexistente nas contas de caixa e bancos.

Na invocada decisão tirada em tribunal arbitral formado no CAAD em 28-07-2017, no âmbito do processo nº 3/2017-T[6], o valor do saldo em «caixa», de EUR 719.544,49, foi regularizado contabilisticamente em 2012, por contrapartida das contas #55 (Reservas), #56 (Resultados Transitados) e #2788102 (Outros devedores e credores), porque “verificada a desconformidade das contas” com o que a Requerente considerava “a realidade factual” (F dos factos assentes), que “por manifesta negligência, os serviços de contabilidade, externos à Empresa, não haviam registado, nos exercícios anteriores, as distribuições de lucros verificadas desde a constituição da sociedade.» (M dos factos assentes). Neste caso estamos perante situação em que “o tribunal dá como provada a retirada de valores, não especificados, pelos sócios – rectius, pelos dois sócios que também são gerentes. Tais valores deveriam ter sido sujeitos a tributação em IRS, por retenção na fonte, por referência a cada um dos exercícios em que ocorreram as retiradas. A Requerente não procedeu às retenções na fonte, nem, consequentemente, ao pagamento do imposto devido nos cofres do Estado”. Ora, este circunstancialismo – a deliberação de distribuição de lucros e o efetivo recebimento pelos sócios das correspondentes quantias, levou o Tribunal Arbitral Coletivo a considerar que a liquidação não padecia de ilegalidade.

Também na decisão de 08-07-2019, no processo 117/2019-T[7], tomada em Tribunal Arbitral organizado no âmbito do CAAD, a situação configurava-se de modo diferente pois a sociedade disponibilizou quantias aos sócios, a título de mútuos, e ao longo dos vários anos, transferiu o montante total de € 1.064.000,00, através da sua conta de "Depósitos à Ordem" para a esfera dos sócios, como uma "dívida" dos sócios à sociedade, apenas documentada por "contratos de mútuo" e "recibos de mútuo.". Quer dizer, a sociedade efetuou pagamentos (na aceção contabilística do termo) aos sócios, classificando essas transferências de meios monetários como “financiamentos”, que não reuniam as características jurídicas dessas prestações. Concluindo, encontravam-se reunidos os elementos necessários, para afirmar que a colocação à disposição dos sócios das importâncias que a sociedade detinha em "Depósitos à Ordem" se referia a distribuição de lucros ou adiantamentos por conta de lucros, não podendo de forma alguma ser caracterizada como empréstimos/mútuos ou rendimentos do trabalho. Havia que concluir que o SP fez sair da sociedade a favor dos sócios, os seus resultados, evitando a tributação dos mesmos, quer ao nível da sociedade, quer dos sócios.

Também a decisão do Tribunal Arbitral Singular[8] em 21-05-2021, retrata situação relativamente próxima da anteriormente referida, em que existiram efetivas entregas de fluxos financeiros, sob a capa de financiamentos, o que não se identifica com a situação dos autos.

Na jurisprudência dos Tribunais Centrais Administrativos podem ver-se diversos acórdãos nesta área; todos eles assentam num pressuposto comum: a concessão ao sócio de benefício e é esse benefício que constitui “a base de incidência deste tributo [e que] abrange todo o aumento do poder aquisitivo do contribuinte, incluindo nela, de um modo geral, as receitas irregulares e ganhos fortuitos, os quais também devem ser considerados manifestações de capacidade contributiva.”[9]. No acórdão do TCAS de 27-03-2014 [Joaquim Condesso], no processo n.º 07384/14, houve recebimento de valores não escriturados em escritura de compra e venda de imóveis, com simulação de preço. No acórdão do TCAS de 22-02-2011 [José Correia], no processo 04487/11, verificaram-se depósitos na conta pessoal do gerente, que eram proveito dos negócios sociais. No acórdão do TCAS de 11-01-2011, [José Correia], no processo n.º 04357/10, foi celebrado contrato promessa de venda de bens do sócio à sociedade, com pagamento de parte do preço sem que, anos mais tarde, tenha sido celebrado o contrato prometido e foram também celebrados contratos de mútuo do acionista com a sociedade que embora originassem efetivo fluxo financeiro não estava suportado documentalmente, como também não estava o seu reembolso, embora contabilizado. No acórdão do TCAS de 24-04-2007 [Casimiro Gonçalves], no processo nº 01429/06 existiram  montantes efetivamente recebidos pelos impugnantes a título de “ajudas de custo” e de “empréstimos”, que não revestiam a natureza correspondente à qualificação que lhes foi atribuída.

Confirmando a mesma ideia de necessidade de efetivo enriquecimento do sócio mas decidindo em seu favor, veja-se o acórdão do TCAS de 15-07-2008 [Lucas Martins], no processo n.º 02371/08, que confirmou a decisão da 1.ª instância que absolveu os impugnantes por considerar que a presunção legal consagrada no citado n.º 4 do artigo 7.º do CIRS restringe-se aos casos em que são feitos lançamentos nas contas correntes dos sócios, o que não tinha ocorrido, pelo que a administração tributária não beneficia dessa presunção legal e nessa medida teria de recolher elementos suficientes que comprovassem que aquela quantia havia sido distribuída pelos sócios, de forma a fundamentar a sua atuação. Esta parece ser a orientação jurisprudencial que o TCAS segue desde o acórdão de 10-12-2003 [Gomes Correia], no processo 00592/03, onde sumariou:

I)- Se o legislador elaborou uma norma específica para o efeito tal não pode deixar de ser entendido no sentido de não pretender que a presunção se faça por qualquer meio de prova, sendo certo que as presunções não são meios de prova, mas meios lógicos ou mentais ou afirmações formadas em regras de experiência, o que aliás resulta do próprio texto do artigo 349º do Código Civil).

 

II)- Assim, só os lançamentos feitos em conta de sócio (e que não se prova que respeitem a alegados mútuos) se presumem, face ao disposto no nº 4 do art. 7º do CIRS, feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros.[10]

 

III)- A Administração Fiscal não tem qualquer suporte legal para o efeito quando haja valores que não constam da escrita da sociedade como atribuídos aos sócios de um qualquer modo até porque e o que ocorre nos autos é que aqueles valores não constam da escrita da sociedade de todo, desconhecendo-se o caminho que levaram e a presunção de adiantamentos de lucros só poderia actuar se existisse lançamento em conta- corrente do impugnante e escriturada na sociedade.

 

IV)- Tal situação permite a presunção de rendimentos obtidos e não declarados em sede de IRC, mas já não autoriza, nos termos do art° 6° e 7° do CIRS que se presuma terem os respectivos valores sido atribuídos aos administradores.

 

Embora a jurisprudência citada pela AT não se identifique exatamente com o caso dos autos, não deixa por isso de trazer importantes conclusões, relativamente à prática de fazer transitar sucessivamente saldos de caixa de existência duvidosa, para evitar a tributação de pagamentos feitos aos sócios e não revelados, e no processo n.º 3/2017-T, esclarece de forma clara, desmistificando a questão da periodização do imposto que:

Aliás, importa acrescentar que repugnaria à própria axiologia da tributação que a obrigação de pagar imposto sobre uma capacidade contributiva gerada pela apropriação pelos sócios gerentes das disponibilidades de caixa da Requerente pudesse ser afastada por uma ‘fórmula’ tão ‘básica’ quanto a da omissão, ao longo de anos bastantes para a caducidade do direito a liquidar, de lançamentos na conta Caixa correspondentes aos atos de apropriação, seguida de uma ou mais regularizações contabilísticas retroativas, feitas em data já para lá do período de exercício do direito a liquidar. E ainda repugnaria mais se essa ‘fórmula’ que se revelasse apta a evadir a tributação fizesse recurso a atas em que falsamente se faz constar a realização, em certos dias e em certas horas de anos já abrangidos pela caducidade do direito a liquidar, de reuniões da Assembleia Geral “com dispensa de formalidades prévias”, nas quais são deliberadas distribuições de resultados desses anos.

 

Também com sentido doutrinário, o acórdão tirado no processo 117/2019-T de 08-07-2019, deixa claro que a qualificação dos negócios jurídicos, para efeitos de enquadramento tributário, não depende do título que o contribuinte utilize, afirmando:

O facto de ter sido dada a aparência de mútuos aos atos que manifestam a vontade social de colocar as quantias na disponibilidade dos sócios, não afasta o enquadramento da situação na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, pois no direito tributário vigora uma regra de aplicação generalizada que «a qualificação do negócio jurídico efectuada pelas partes, mesmo em documento autêntico, não vincula a administração tributária» (artigo 36.º, n.º- 4, da LGT).

 

Por isso, o que releva no âmbito das normas de incidência tributária, por força dos princípios da igualdade e da tributação com base na da capacidade contributiva, é a substância económica do facto tributário, como se refere explicitamente e com vocação para aplicação generalizada no n.º 3 do artigo 11.º da LGT.

(…)

Estes atos, independentemente da designação que lhe foi dada, são os únicos que se provou terem sido praticados pela sociedade disponibilizando aos sócios essas quantias, e configuram objetivamente a colocação de adiantamentos de lucros à disposição dos sócios referidos, pelo que têm enquadramento na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRC, inclusivamente por força da presunção que o n.º 4 do artigo 6.º do CIRS associa ao lançamento contabilístico.

 

 

Por seu turno o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 27-03-2014 [Joaquim Condesso], no processo n.º 07384/14, esclarece lucidamente a natureza do ato tributário a que se refere a norma de incidência do artigo 5.º, n.º 1 do CIRS, sumariando:

1. O acto tributário tem sempre na sua base uma situação de facto concreta, a qual se encontra prevista abstracta e tipicamente na lei fiscal como geradora do direito ao imposto. Essa situação factual e concreta define-se como facto tributário, o qual só existe desde que se verifiquem todos os pressupostos legalmente previstos para tal. As normas tributárias que contemplam o facto tributário são as relativas à incidência real, as quais definem os seus elementos objectivos. Só com a prática do facto tributário nasce a obrigação de imposto. A existência do facto tributário constitui, pois, uma condição “sine qua non” da fixação da matéria tributável e da liquidação efectuada.[11]

2. Na construção do conceito de rendimento tributário o C.I.R.S. adopta a concepção de rendimento-acréscimo, segundo a qual a base de incidência deste tributo abrange todo o aumento do poder aquisitivo do contribuinte, incluindo nela, de um modo geral, as receitas irregulares e ganhos fortuitos, os quais também devem ser considerados manifestações de capacidade contributiva.

3. As normas de incidência dos tributos bem como as que concedem isenções ou exclusões de tributação, devem ser interpretadas nos seus exactos termos, sem o recurso à analogia, tornando prevalente a certeza e a segurança na sua aplicação.

4. A definição de rendimentos de capitais, introduzida pela Lei 30-G/2000, de 29/12, no artº.5, nº.1, do C.I.R.S., traduz e incorpora uma regra de incidência tão ampla que é capaz de englobar qualquer situação, envolvente de valores mobiliários, que não seja tributada noutra das categorias de rendimentos em que opera o I.R.S.

5. O artº.5, nº.2, al.h), do C.I.R.S., sistematicamente inserido na categoria de incrementos patrimoniais (normas de incidência real), consagra como rendimentos de capitais sujeitos a incidência de I.R.S. os lucros, incluindo o adiantamento por conta de lucros, colocados à disposição dos respectivos associados. Esta tributação em I.R.S. passou a fazer-se através de uma técnica de englobamento parcial dos lucros distribuídos nos termos do artº.40-A, nº.1, do C.I.R.S., assim tentando o legislador ultrapassar o problema da dupla tributação dos lucros distribuídos, tanto em sede de I.R.C, como de I.R.S.

6. O montante de proveito de uma sociedade directamente depositado na conta bancária pessoal de um seu gerente, que o não fez relevar na sociedade, tem de se entender que o foi a título de adiantamento por conta de lucros e que constitui um rendimento deste, a tributar em sede de I.R.S., categoria E, como rendimento de capitais.

 

Já o acórdão do TCAS de 15-07-2008 [Lucas Martins], no processo n.º 02371/08, recorta de forma clara a extensão da presunção de rendimento de capitais inserta no CIRS, sumariando:

1.As presunções não são meios de prova, mas meios lógicos ou mentais ou afirmações formadas em regras de experiência, como, aliás, resulta do texto da lei (artº 349º do Código Civil).

2-A presunção legal contemplada, no n.º4, do art.º 7, do CIRS, só opera a favor da AT quando esta constata, que as contas correntes, dos sócios, contêm lançamentos contabilísticos de montantes a seu favor,[12] e os sócios não demonstraram que se trata, de uma situação enquadrável, em mútuos, em prestação de trabalho ou no exercício de cargos sociais.

 

 

Complementarmente o acórdão do TCAN de 27-11-2014 [Mário Rebelo], esclarece a repartição do ónus da prova no funcionamento da presunção de rendimento e sumariou:

1. Quem tem a seu favor uma presunção judicial, escusa de provar o facto a que ela conduz (art. 350º/1 do Código Civil).

2. O beneficiário de uma presunção legal fica dispensado de provar o facto a que ela conduz, mas não de provar o facto base da presunção.

3. E só depois de provado o facto base, a lei associa um outro, que embora desconhecido, se dá como assente em consequência da prova do primeiro.[13]

4. Pelo facto de o impugnante no processo de impugnação judicial surgir processualmente numa posição em que alega vícios de um acto tributário, não suporta um encargo de prova relativa a factos que não tinha de provar no procedimento tributário.

5. A tributação em sede de IRS baseada na presunção de que os lançamentos efectuados na conta corrente do sócio são feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros (n.º 4 do art. 6º CIRS), onera a ATA com o ónus de provar o facto base da presunção, isto é, que tais lançamentos são feitos em conta corrente do sócio e não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.

 

  1. O pedido de juros indemnizatórios.

No seu PPA a Requerente peticiona o pagamento de juros indemnizatórios, calculados sobre o imposto que pagou indevidamente.

Na apreciação da matéria de facto assentou-se já que na origem da liquidação esteve a criação pela Requerente de contas contabilísticas para acumular movimentos inexplicados das contas de caixa e bancos (facto F), designadamente a conta "Regularização de saldos exercícios anteriores". Complementarmente, em I, assentou-se a declaração do sócio-gerente da existência de irregularidades no registo contabilístico (facto I) e foram justamente essas irregularidades que fundamentaram, ainda que erradamente, a liquidação que deu lugar ao pagamento, potencialmente gerador de juros indemnizatórios.

O direito a juros indemnizatórios pelos sujeitos passivos que tenham satisfeito impostos indevidos que lhe tenham sido liquidados, está previsto no artigo 43.º, n.º1, da LGT, para as situações em que o erro que levou à liquidação indevida se deveu a erro imputável aos serviços.

Neste caso concreto, para decisão desta questão importa considerar que a Requerente é uma sociedade comercial que, nos termos do artigo 123.º, n.º 1 do CIRC, é obrigada a dispor de contabilidade organizada, devendo essa contabilidade, nos termos do n.º 2 do citado artigo, obedecer a determinados requisitos, entre eles a atualidade dos seus dados que não pode ser superior a 90 dias (n.º 3 do citado artigo).  Numa expressão sintética a contabilidade deve refletir todas as operações efetuadas pelo sujeito passivo, espelhar a exata situação patrimonial e dar a conhecer as variações patrimoniais e o resultado efetivamente obtido, com dilação que não pode exceder os 90 dias (artigo 17.º,  n.º 3 do CIRC).

Destas regras básicas de organização contabilística, congregadas com o princípio da veracidade da declaração do contribuinte, constante do artigo 75º da LGT, resulta que nos casos em que a declaração do contribuinte estiver em conformidade com os elementos constantes na sua contabilidade e esta se mostrar organizada nos termos da lei e não se verificarem erros, inexatidões, ou outros indícios fundados de que ela não corresponde à realidade, presume-se que a matéria tributável declarada é a real.

Ora, como é sabido, não foi exatamente esta a situação que constatámos nestes autos. A verdade é que tivesse havido registos exatos, em vez de “contas de movimentos a regularizar”, com conexão direta com as contas que espelham as disponibilidades,  o raciocínio da AT seria provavelmente outro, podendo trabalhar sobre dados seguros, ao invés de se atrever em caminhos menos convencionais.

É certo que já se reconheceu que a AT errou na aplicação do direito, mas essa aplicação foi feita sobre uma situação contabilística incorreta da exclusiva responsabilidade da Requerente, o mesmo é dizer que se os pressupostos em que a AT assentou a sua decisão de fazer a liquidação não têm a devida correção, não se lhe pode imputar a título de culpa o seu raciocínio. É, pois, de concluir que  não houve erro imputável aos Serviços da AT, que fizeram o trabalho possível, sobre uma contabilidade confessamente irregular.

É claro que esta falta de imputação a título de erro dos Serviços não contagia o direito à devolução dos tributos indevidamente pagos, que são decorrentes da obrigação reconstitutiva prevista no artigo 100.º, n.º 1 da LGT.

 

  1. Decisão

Pelos fundamentos invocados este Tribunal decide:

  1. Julgar procedente o pedido principal e decretar a anulação da liquidação impugnada;
  2. Condenar a AT na restituição à Requerente do imposto que lhe foi liquidado e respetivos juros que suportou, no quantitativo de 50.605,32 €;
  3.  Absolver a Requerida do pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente.
  4. Condenar a Requerida e a Requerente no pagamento das custas, nos termos que constam no capítulo próprio.

 

  1. Valor do processo

Nos termos do artigo 3.º, n.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e cumprindo com a previsão do  artigo 306.º, n.º 2 do CPC e do artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicáveis ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) e alínea e) do RJAT, fixa-se ao processo o valor de 50.605,32 €.

 

  1. Custas

O valor da taxa de arbitragem é fixado em 2 142,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e fica a cargo da Requerente na proporção de 4,86 % e  da Requerida na proporção de 95,14 %.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 14 de junho de 2023

 

O árbitro

 

 

 

(Nuno Maldonado Sousa)



[1] Quando se referencia determinada página do PA, indica-se a numeração que consta no leitor do ficheiro.

[2] Nesta peça utiliza-se o acrónimo RIT para designar o Relatório de Inspeção Tributária.

[3] A qualidade do documento não permite a sua edição nem tão-pouco a sua cópia legível, para o transportar para esta peça. Como a peça é pública, ainda que anonimizada, tenta-se trazer a esta decisão os seus fundamentos, onde haverá sempre que caracterizar devidamente os fundamentos do próprio ato tributário.

[4] Veja-se a nota anterior, também aqui inteiramente aplicável.

[5] Nesta peça utiliza-se a abreviatura “R-AT” para designar o articulado de resposta da AT.

[6] Presidido por José Baeta de Queiroz

[7] Presidido por Jorge Lopes de Sousa

[8] De Álvaro Caneira

[9] Veja-se o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 27-03-2014 [Joaquim Condesso], no processo n.º 07384/14.

[10] O sublinhado é da autoria do signatário desta decisão.

[11] O sublinhado é da autoria do signatário desta decisão.

[12] O sublinhado é da autoria do signatário desta decisão.

[13] Também aqui O sublinhado é da autoria do signatário desta decisão.