Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 689/2022-T
Data da decisão: 2023-07-28  IMT  
Valor do pedido: € 62.041,53
Tema: IMT – Isenção prevista no artigo 270.º n.º 2 do CIRE – Caso julgado
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SUMÁRIO:

I. O caso julgado exerce duas funções: uma função positiva, que se manifesta através da autoridade do caso julgado, que visa impor os efeitos da decisão transitada, e uma função negativa, que se manifesta através da exceção do caso julgado, que impede que uma causa já julgada seja novamente apreciada pelo tribunal.

II. A exceção do caso julgado exige identidade de sujeitos, de pedidos e de causa de pedir em ambas as ações.

III. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade do pedido quando em ambas as ações se pretende o mesmo efeito jurídico; há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico – simples ou complexo.

Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, Ricardo Rodrigues Pereira
Gustavo Gramaxo Rozeira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

A..., LDA., com o número de identificação fiscal... e com sede na Rua ..., n.º..., ...‐..., Lisboa (doravante, “Requerente”) vem, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e n.ºs 1 e 2 do artigo 10.o, ambos do Decreto‐Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAMT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112‐A/2011, de 22 Março, requerer a V. Exa. a CONSTITUIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL  para se pronunciar sobre a (i)legalidade da decisão de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa n.º ...2022..., com referência aos actos tributários de liquidação de Imposto Municipal sobre a Transmissão Onerosa do Imóvel (“IMT”) n.ºs ... e ..., referentes ao ano 2021, emitidos pela Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, “AT”), no montante total de € 62.041,53, que a seguir se identificam:

  • Liquidação de IMT n.º ..., emitida em 13-08-2021, a que corresponde o DUC..., no valor de € 52.862,83, relativo à aquisição do terreno para construção, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Gaia, sob o artigo matricial U-... .
  • Liquidação de IMT n.º ..., emitida em 09-09-2021, a que corresponde o DUC..., no valor de € 9.178,70, relativo à aquisição da fração autónoma C, destinada a habitação, do prédio inscrito na matriz predial urbana da União de freguesias de ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia, sob o artigo matricial U-...C (correspondente ao antigo artigo U-...-C da extinta freguesia de...).

É Requerida a AT.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 18 de novembro de 2022.

A Requerente não procedeu à nomeação de arbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 11 de Janeiro de 2023, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O TAC encontra-se, desde 30 de janeiro de 2023, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

Notificada para o efeito, a Requerida, apresentou a sua resposta a 3 de março de 2023, defendendo-se por exceção e por impugnação.

Por despacho de 26 de abril de 2023, o TAC proferiu o seguinte despacho:

“Notifique-se o Requerente para se pronunciar sobre a matéria de exceção suscitada pela Requerida.

Notifiquem-se, ainda, ambas as partes da intenção de o Tribunal Arbitral dispensar a reunião prevista, bem como da dispensa de produção de alegações, conforme previsto no art. 18.º do RJAT, por desnecessidade, para se pronunciarem, querendo.”

Nem a Requerente, nem a Requerida se pronunciaram sobre o mencionado despacho, tendo o processo prosseguido para a prolação da sentença.

 

  1. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS

II.1      Posição da Requerente

 

A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:

  1. A Requerente é uma sociedade cujo objecto social inclui a prestação de serviços de consultoria para a aquisição e gestão de carteiras de crédito ou quaisquer direitos reais, bem como a aquisição e gestão de carteiras de crédito, da titularidade de instituições de crédito.
  2. Nos termos dos Estatutos da Sociedade, a Requerente, dedica‐se ainda «à compra e venda de imóveis, incluindo a revenda dos adquiridos para esse fim, à gestão e administração de bens imóveis pertencentes à sociedade ou a terceiros, ao arrendamento e a outras formas de exploração de bens imóveis», entre outras atividades.
  3. Neste contexto, a Requerente, durante os anos 2012 e 2013, adquiriu os imóveis que se descrevem infra no âmbito dos processos de insolvência que aqui também se identificam (cf. Documento 3):

 

  1. As mencionadas operações de aquisição beneficiaram, à data, de isenção de IMT. No que respeita ao Imposto do Selo, cumpre referir que as aquisições dos imóveis foram, também, isentas deste imposto.
  2. Assim, as aquisições em análise beneficiaram da isenção (provisória ou condicionada) de IMT prevista no artigo 7.º do Código deste imposto, i.e. isenção pela aquisição de prédios para revenda – cf. Documento 2.
  3. Contudo, nos termos que melhor se expendem infra, verificou‐se, entretanto, a caducidade da isenção de IMT aplicada (i.e. artigo 7.o do Código deste imposto).
  4. Pelo que, nos dias 13 de Agosto de 2021 e 9 de Setembro de 2021, foram emitidas, pela AT, as liquidações de IMT associadas àquelas operações de aquisição de imóveis, no montante total de € 62.041,53 – cf. Documento 2 –, as quais foram integral e atempadamente pagas pela aqui Requerente – cf. Documento 4.
  5. Porém, nos termos que se demonstram infra, entende a Requerente que os mencionados actos de liquidação de IMT – objecto do presente Pedido de Pronúncia Arbitral – são ilegais, porque emitidos pela AT com base em manifesto erro na interpretação e aplicação in casu das regras de Direito aplicáveis.
  6. De facto, as operações de aquisição de imóveis em análise deveriam ter beneficiado da isenção de IMT prevista no n.o 2 do artigo 270.º do CIRE, uma isenção definitiva – e não da isenção de IMT estabelecida no artigo 7.o do Código deste imposto. E, como tal, nunca estas operações deveriam ter gerado qualquer liquidação de IMT.
  7. Com efeito, a liquidação com o n.º ... foi emitida na sequência de um alerta que surgiu no Portal das Finanças da Requerente. E, muito embora a Requerente soubesse que o imóvel em apreço havia sido adquirido no âmbito de um processo de insolvência (facto que também não era desconhecido da AT), solicitou a liquidação de IMT para ulteriormente a contestar em sede própria.
  8. Se assim não o fizesse, o antedito alerta evoluiria para uma dívida à AT, o que causaria inúmeros transtornos à ora Requerente.
  9. Ademais, a liquidação com o n.º ... foi emitida no âmbito de um projecto de liquidação espoletado pelo Serviço de Finanças de Lisboa ... que, mesmo sabendo que o imóvel em concreto tinha sido adquirido no âmbito de um processo de insolvência, manteve a sua posição (no sentido de considerar ter sido aplicado o benefício ínsito no artigo 7.º do Código do IMT pelo que, tendo caducado o prazo de que dispunha a Requerente para revender o imóvel, haveria lugar ao pagamento do correspondente imposto).
  10. Complementarmente, será sempre de se ter em consideração que, na medida em que os actos tributários de liquidação de IMT objecto do presente Pedido de Pronúncia Arbitral foram emitidos pela AT, dever‐se‐á concluir, naturalmente, que o erro na emissão dos referidos actos é imputável a esta entidade.
  11. Contudo, à data da realização das operações em análise, defendia a AT – em sentido contrário à jurisprudência e à doutrina – que aquela isenção de IMT consagrada no CIRE tinha um âmbito de aplicação deveras limitado, podendo a mesma ser aplicada única e exclusivamente nas situações em que estivesse em causa a aquisição da “universalidade dos bens”.
  12. Este entendimento da AT – hoje definitivamente revogado, porque ilegal – gerou inúmeras correcções (ilegais) na esfera dos sujeitos passivos e, de resto, influenciou o enquadramento conferido a inúmeras operações de aquisição de imóveis então realizadas – como as operações aqui em análise.
  13. Com efeito, e sem prejuízo de melhor exposição infra, as liquidações sub judice nunca deveriam ter sido emitidas uma vez que a ora Requerente reunia, de forma inequívoca, os requisitos para beneficiar da isenção.
  14. Por entender, a Requerente, que os actos tributários de liquidação de IMT em análise padecem de manifesto erro nos pressupostos de facto e de direito, devendo ser declarados ilegais, a Requerente formulou um Pedido de Revisão Oficiosa junto do Serviço de Finanças Lisboa‐... que, na sequência do mesmo emitiu, no dia 9 de Agosto de 2022, um despacho de indeferimento com referência àquele – cf. Documento 1.
  15. Alegou a AT, na decisão de indeferimento, que “[i]nfere‐se do pedido, a intenção subjacente do Requerente numa “cumulação aparente” de isenções, no sentido da tributação de um determinado facto gerador de imposto, ser impedida sucessivamente por força da aplicação de duas isenções distintas, i.e., após a perda de uma primeira isenção, (e pertinente será ter presente que a isenção prevista no artigo 7.o está legalmente delimitada a sua vigência, sujeita assim a uma condição resolutiva, caso não haja alienação do prédio no prazo de três anos a contar da data da sua aquisição), ainda assim seria admissível a aplicação de um outro benefício”.
  16. Continua a AT, afirmando que “[s]endo este [o artigo 10.o, n.º 1 do Código do IMT] um comando normativo vinculativo aliás para as duas isenções sub judice, verificando‐se os pressupostos das mesmas, antes mesmo do nascimento da obrigação tributária (aquisição dos imóveis), o direito subjetivo à isenção requerida, prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, teria necessariamente que estar constituído no momento do nascimento da obrigação tributária (o que não logrou a acontecer no caso vertente uma vez que a Requerente não carreou para o procedimento de liquidação de IMT que necessariamente antecedeu as adjudicações dos imóveis, quaisquer requerimentos nesse sentido, sendo essa conforme acima se discorre uma incumbência que lhe assistia)”.
  17. Acrescenta a AT que “[t]endo em alternativa o Requerente optado, conforme o fez, no momento que antecedeu o ato translativo dos bens, por invocar e assim beneficiar de um isenção fundamentada em sentido diverso, nos termos do art. 7.º do CIMT (o que efetivamente sucedeu), por forma a impedir a tributação, está como que a renunciar (tacitamente) ao direito da isenção que em contraponto, ora vem requer em sede de pedido de revisão, e cuja aplicação fica assim afastada, por falta de objeto”.
  18. Ademais, afirma a AT que “[f]ace a uma factualidade, que em tese até poderia ser enquadrável em ambas as previsões normativas das isenções aqui dirimidas, não há que se admitir porém que se possa verificar qualquer tipo de aplicação cumulativa ou até sucessiva de benefícios fiscais, nem tal decorre ex lege, pelo que o usufruto de uma isenção no momento que ocorre a obrigação tributária, e que de facto o Requerente beneficiou, traduz‐se assim na verificação de um facto impeditivo da tributação e invalida (por inutilidade) a aplicação de uma outra isenção”.
  19. E conclui a AT que “o direito subjetivo ao benefício fiscal requerido, que em abstrato poderia ver constituído, pereceu à data do ato translativo do imóvel, tanto mais que o Requerente, nem sequer o fez valer em tempo oportuno, perante a entidade competente para o seu reconhecimento, no caso a Administração Tributária”.
  20. Curiosamente, o mesmo Serviço de Finanças que emitiu a liquidação n.º ... cuja legalidade se sindica nesta sede, proferiu recentemente um despacho (que ora se junta sob a designação de Documento 5) em sentido completamente divergente com o entendimento da AT supra citado.
  21. Em causa estava um imóvel que, à semelhança dos imóveis aqui em apreço, havia sido adquirido no âmbito de um processo de insolvência, muito embora a isenção vertida na liquidação de IMT tenha sido a que consta do artigo 7.º do Código deste imposto.
  22. Notificada a Requerente para exercer o seu direito de audição, esta deu nota de que havia adquirido o imóvel no âmbito de um processo de insolvência, pelo que não se estaria perante qualquer caducidade de isenção, já que a isenção aplicável à situação concreta seria a isenção permanente vertida no artigo 270.º do CIRE.
  23. O Serviço de Finanças de Lisboa ... que, em tempos – no tocante a uma das liquidações que ora se sindicam – tinha entendido que haveria lugar à liquidação de IMT por alegada caducidade da isenção de IMT (artigo 7.º do Código do IMT), veio nesta situação particular que ora se relata proferir o seguinte entendimento:
  24. «A questão que agora se coloca é a seguinte: existe algum princípio que impeça a cumulação de benefícios fiscais distintos ou o seu reconhecimento/atribuição em momentos sucessivos da vida de um imposto ou mesmo a “convolação” de isenções? A resposta à questão é negativa – não existe princípio aplicável que vede em relação a uma determinada situação de facto, a aplicabilidade de diversos benefícios fiscais “concorrentes” entre si. A “convolação” de isenções é, até, admitida por parte da AT na doutrina administrativa – Circular 18, de 11/10/1995 da Direção de Serviços dos Impostos do Selo e das Transmissões do Património – do seguinte modo: “[a] convolação da isenção é requerível em qualquer altura, mantendo‐se em pleno vigor os restantes condicionalismos e procedimentos evidenciados naquela circular 16/88”; [...]
  25. Importa agora determinar se as isenções resultam direta e imediatamente da lei e, por isso, não pressupõem qualquer ato de reconhecimento – artigo 5.º, n.º 1 do EBF. A isenção vertida no artigo 270.º, n.º 2 do CIRE reveste uma natureza automática, não se exigindo, por isso, qualquer ato de reconhecimento. Paralelamente, estamos perante benefício cujo direito é verificado à data de ocorrência do pressuposto, o que exige, que o prédio tenha, designadamente, sido adquirido no âmbito do plano de insolvência ou no âmbito da liquidação da massa insolvente».
  26. E, em face do exposto, conclui que deve ser deferida a pretensão da Requerente «em virtude de ter direito à isenção de IMT ao abrigo do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE».
  27. De facto, e nos termos melhor expendidos infra, resulta evidente que os actos tributários de liquidação de IMT em análise padecem de manifesto erro nos pressupostos de facto e de direito, por erro dos serviços.
  28. Pelo que, não podendo a Requerente concordar com aquele entendimento da AT e (logo) com os actos tributários de liquidação de IMT sub judice, vem apresentar o presente pedido face a esses actos, requerendo a sua anulação e o reembolso do imposto em causa.

 

 

II.2      Posição da Requerida

 

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

            POR EXCEÇÃO

  1. Dispõe o n.º 2 do art.º 24.º do RJAT que, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação preclude o direito de, com os mesmos fundamentos, reclamar, impugnar, requerer a revisão ou a promoção da revisão oficiosa, ou suscitar pronúncia arbitral sobre os atos objeto desses pedidos ou sobre os consequentes atos de liquidação.
  2. Como já ante referido, através da interposição do presente ppa, a Requerente vem, ao abrigo do artigo 10.º do RJAT, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, tendo por objeto a decisão de indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa n.º ...2022..., apresentado contra os atos tributários de liquidação de IMT, relativos ao ano de 2021, no valor total de € 62.041,53.
  3. Porém, já a 26-09-2021, a ora Requerente viera também, ao abrigo do artigo 10.o do RJAT, requerer a constituição do Tribunal Arbitral, tendo por objeto imediato os mesmos atos de liquidação de IMT, no valor total de € 62.041,53, tendo sido instaurado processo arbitral com o n.o 613/2021-T CAAD, no âmbito do qual, de acordo com o que ante se expôs, foi proferida decisão de total improcedência do pedido, tendo tal aresto transitado em julgado a 03-05-2022.
  4. No caso em apreço verifica-se que sobre a mesma matéria e liquidações correu nesse Centro de Arbitragem o pedido de pronúncia arbitral, com o no 613/2021-T, cuja decisão transitou em julgado, e agora correm os presentes autos, com o no 689/2022-T, propostos pela ora Requerente contra a aqui Requerida.
  5. De acordo com o já adiantado anteriormente, no âmbito do processo n.o 613/2021-T, a causa de pedir e objeto da lide redunda na ilegalidade dos atos de liquidação de IMT, ante melhor identificados, referentes ao ano de 2021 e o pedido formulado é o da anulação dos atos de liquidação de IMT,
  6. Sendo que, no âmbito do presente processo a causa de pedir e objeto imediato é a ilegalidade da decisão de indeferimento da Revisão Oficiosa n.º ...2022..., tendo como objeto mediato a ilegalidade dos atos de liquidação de IMT, consubstanciando-se o pedido na anulação do ato que decidiu a Revisão Oficiosa, bem como a respetiva anulação dos correspetivos atos de liquidação de IMT,
  7. Como resulta cristalino do confronto dos dois ppas, as ações em apreço são idênticas, tendo iguais sujeitos, mesmo pedido e causa de pedir, sendo de sobremaneira manifesto que a pretensão material subjacente num e noutro processo é exatamente a mesma: a anulação das liquidações de IMT, referentes ao ano de 2021.
  8. Verificando-se, pois, a identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, in casu, relativamente ao CAAD 613/2021-T, o qual já foi objeto de decisão, transitada em julgado.

POR IMPUGNAÇÃO

  1. Deverão considerar-se impugnados os factos alegados pela Requerente que se encontrem em oposição com a presente defesa, considerada no seu conjunto, nos termos do disposto no n.º 2 do art.o 574.º do Código do Processo Civil - CPC, ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do art.o 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária - RJAT.

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

O processo não enferma de nulidades.

  1. Fundamentação

IV.1.    Matéria de facto

 

Factos dados como provados

Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:

 

  1. A Requerente é uma sociedade cujo objeto social inclui a prestação de serviços de consultoria para a aquisição e gestão de carteiras de crédito ou quaisquer direitos reais, bem como a aquisição e gestão de carteiras de crédito, da titularidade de instituições de crédito.
  2. Nos termos dos Estatutos da Sociedade, a Requerente, dedica-se ainda «à compra e venda de imóveis, incluindo a revenda dos adquiridos para esse fim, à gestão e administração de bens imóveis pertencentes à sociedade ou a terceiros, ao arrendamento e a outras formas de exploração de bens imóveis», entre outras atividades.
  3. A Requerente, no âmbito da sua atividade, adquiriu:
    1. Em 20-12-2012, a fração autónoma U-...-C, destinada a habitação, do prédio inscrito na matriz predial urbana da União de freguesias de ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia (correspondente ao antigo artigo U-...-C da extinta freguesia de ...), no âmbito de processo de insolvência n.o .../12....TYVNG, em que era insolvente a sociedade “B..., Lda.”
    2. Em 13-06-2013, o imóvel U..., constituído por terreno para construção, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Gaia, no âmbito de processo de insolvência n.º .../11...TYVNG.
  4. Relativamente ao prédio inscrito na matriz sob o art.º ...-C, a Requerente apresentou, em 14-12-2012, junto do SF de Lisboa ..., a declaração Modelo 1, com o Registo n.º 2012/..., tendo declarado que o imóvel se destinava a revenda e, em 31-05-2013, entregou junto do SF de Lisboa ..., a declaração Modelo 1, com o Registo n.º 2013/..., declarando que o imóvel se destinava a revenda, tal como consta do teor da escritura de compra e venda, beneficiando, assim, em ambas as aquisições, da isenção de IMT prevista no n.º 1 do artigo 7.º do CIMT, a qual está condicionada à sua efetiva venda no prazo de 3 anos.
  5. Passados três anos, a Requerente não logrou vender os referidos imóveis, pelo que, por força do disposto no nº 5 do artigo 11o do CIMT, caducaram a isenções usufruídas.
  6. Perante tal fato, a Requerente solicitou, a 09-08-2021, a liquidação do respetivo IMT, gerando para o efeito novas declarações Modelo 1: n.º 2021/... e 2021/..., respetivamente.
  7. Nessa decorrência, foram emitidas as seguintes liquidações pelos Serviços de Finanças de Lisboa ... e Lisboa ..., respetivamente:
    1. Liquidação de IMT n.º..., emitida em 09-09-2021, no valor global de € 9.178,70 (€ 7.488,88 de imposto e € 1.689,82 de juros compensatórios), referente ao DUC..., relativa à aquisição da fração autónoma C, destinada a habitação, do prédio inscrito na matriz predial urbana da União de freguesias de ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia, sob o artigo matricial U-... (correspondente ao antigo artigo U-...-C da extinta freguesia de ...).
    2. Liquidação de IMT n.º ... (2021), emitida em 13-08-2021, no valor global de € 52.862,83 (€ 43.940,00 de imposto e € 8.922,83 de juros compensatórios), referente ao DUC..., relativa à aquisição do terreno para construção, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de..., concelho de Vila Nova de Gaia, sob o artigo matricial U-... .
  8. Tais liquidações de IMT/atos tributários em apreço foram pagos pela Requerente.
  9. Porém, não se conformando com as liquidações de IMT ante expostas, a Requerente apresentou, a 26-09-2021, um pedido de pronúncia do Tribunal Arbitral (ao qual foi atribuído o n.º 613/2021-T CAAD) diretamente contra os referidos atos de liquidação do IMT, emitidos em 2021, onde alega, em suma, que as operações de aquisição, aqui em apreço, deveriam ter beneficiado da isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, uma isenção definitiva – e não da isenção de IMT estabelecida no artigo 7.º do Código do IMT, e em consequência esta operação não deveria ter gerado qualquer liquidação de IMT.
  10. Por decisão de 23-02-2022, proferida no âmbito daquele processo arbitral, e analisado de mérito o pedido da Requerente, foi o mesmo julgado totalmente improcedente.
  11. A ora Requerente não interpôs recurso da referida decisão, tendo a mesma transitado em julgado em 03-05-2022.
  12. A 26-05-2022, a Requerente apresentou contra os atos de liquidação de IMT em causa, um pedido de revisão oficiosa, instaurado com o n.º ...2022..., onde requer igualmente a anulação das liquidações de IMT, por vício de violação de lei, lançando mão dos mesmos argumentos invocados em sede de processo arbitral apresentado a 26-09-2021.
  13. Por despacho datado de 05-08-2022, o Chefe de Divisão da Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), foi o pedido de revisão oficiosa indeferido.
  14. Disso se dando conta à ora Requerente, através de notificação eletrónica “Via CTT”, a 28-08- 2022.
  15. A 18-11-2022, discordando do indeferimento ante exposto, veio a Requerente, apresentar o presente pedido de pronúncia do Tribunal Arbitral.

Factos dados como não provados

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária, e em factos não questionados pelas partes.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

IV. 2. Matéria de Direito

 

O caso julgado consiste num efeito jurídico-processual que se forma após a decisão do Tribunal deixar de ser suscetível de recurso ordinário ou de reclamação (artigo 628.º do CPC). Através da formação do caso julgado (material) a decisão do Tribunal sobre o mérito da relação controvertida consolida-se na ordem jurídica, tornando-se imodificável, irrepetível e obrigatória dentro e fora do processo (artigo 619.º do CPC).

Por conseguinte, nos casos em que exista a possibilidade de repetição do julgamento de uma causa anterior e de reprodução ou contradição do que foi decidido (artigo 580.º, n.ºs 1 e 2 do CPC), o Tribunal deve julgar procedente a exceção dilatória de caso julgado e abster-se de emitir uma pronúncia quanto ao mérito (artigos 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea i), ambos do CPC).

Nos termos do artigo 581.º do CPC, esta possibilidade de contradição entre decisões verifica-se “quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir” (n.º 1), havendo “identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica” (n.º 2), verificando-se “identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico” (n.º 3) e ocorrendo “identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico” (n.º 4).

Portanto, para que opere a exceção de caso julgado é necessário, cumulativamente, que nos processos em questão intervenham as mesmas partes, sob a mesma qualidade jurídica, com pretensões de obter o mesmo efeito jurídico com base no mesmo facto jurídico.

Tendo isto presente, cabe por fim analisar se entre o presente processo e a decisão arbitral proferida em 13 de Janeiro de 2020, no âmbito do processo n.º 613/2021-T, se verifica a tríplice identidade exigida por força do disposto no artigo 581.º do CPC.

Ora, nos dois processos as partes são as mesmas, encontrando-se em idêntica posição de Requerente e Requerida. Nos dois processos a Requerente visa como fim último (objecto mediato) a anulação dos mesmos atos de liquidação de IMT ao abrigo do artigo 7.º do CIMT, pelo que o efeito jurídico pretendido é o mesmo. E ambos os processos assentam na mesma causa de pedir, já que os pedidos arbitrais da Requerente têm como fundamento jurídico de que beneficiam da isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE.

Verificam-se, portanto, os pressupostos da exceção de caso julgado.

Conforme sublinha Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex-Edições Jurídicas, p. 578:

“[o] caso julgado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão, isto é, a conclusão extraída dos seus fundamentos (art. 659.°, n.º 2, “in fine” [atual artigo 607.º, n.º 3 do CPC], e 713.° n.º 2 [atual artigo 663.º, n.º 2 do CPC]), que pode ser, por exemplo, a condenação ou absolvição do réu ou o deferimento ou indeferimento da providência solicitada. Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respetivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos.

Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respetivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”.

Portanto, o caso julgado repercute os seus efeitos sobre os factos objecto da decisão no âmbito do processo n.º 613/2021-T.

Nem a decisão proferida no âmbito do processo n.º 613/2021-T se pode por isso representar em si mesma como um “facto novo” para estes efeitos; estão em causa as mesmas anulações e os mesmos exatos fundamentos.

Pelo exposto, julga-se verificada a exceção dilatória de caso julgado invocada pela Requerida, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e importa a absolvição da Requerida da instância, conforme resulta dos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea i), todos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

  1. DECISÃO

 

Em face do exposto, julga este Tribunal Arbitral verificada a exceção dilatória de caso julgado e, em consequência, decide absolver a Requerida da instância e condenar a Requerente nas custas do processo.

  1. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 62.041,53, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

  1. Custas

 

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 2.448,00, a pagar pela Requerente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 28 de Julho de 2023.

 

Os Árbitros,

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins – com voto de vencido)

 

(Ricardo Rodrigues Pereira)


(Gustavo Gramaxo Rozeira)

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

(Por Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 

A exceção de caso julgado constitui uma exceção dilatória, que se traduz num pressuposto processual negativo cuja função consiste em impedir o prosseguimento do processo com o objetivo de evitar que o tribunal se veja na contingência de proferir decisão de mérito que contrarie ou repita uma outra, anterior e definitiva.

O caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele e, por isso, não pode ser alterado em qualquer ação nova que porventura se proponha sobre o mesmo objeto, entre as mesmas partes e com fundamento na mesma causa de pedir.

Analisada a pretensão da Demandante no âmbito do processo n.º 613/2021-T, em nosso entender não há coincidência entre pedido e causa de pedir:

  1. No processo n.º 613/2021-T, pede a anulação das liquidações de IMT, porquanto beneficiam da isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, sem a ter requerido, mas que, no seu entender, não obstaria o facto de, aquando da declaração de tais aquisições, ter invocado a aplicabilidade da isenção prevista no artigo 7.º do CIMT (prédios para revenda), cujo condicionalismo não preencheu no prazo legal.
  2. No presente processo pede a anulação das liquidações de IMT, porquanto beneficiam da isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 270.º do CIRE, uma vez tendo requerido as mesmas ao abrigo do pedido de revisão oficiosa, que foi indeferido expressamente e que deu lugar à presente impugnação.

Na verdade, a Requerente apenas usou o meio procedimental que o Tribunal Arbitral no processo n.º 613/2021-T sugeriu. Senão vejamos o seguinte trecho da decisão (com a qual concordamos integralmente, diga-se desde já):

“Ora, a Requerente nunca declarou à AT que tais aquisições estavam abrangidas pelo artº 270º, n.º 2 do CIRE, nunca substituiu ou tentou substituir a declaração inicial (na qual invocou a aplicabilidade da isenção prevista no artº 7ª do CIMT) por outra em que invocasse a aplicabilidade desta outra isenção.

Se a sua pretensão tivesse sido negada, teria, então, a possibilidade de a tentar fazer valer judicialmente pelo meio processual adequado. Mas não o fez. Aliás, como dado provado, foi a Requerente quem “provocou” as liquidações que ora impugna.

Assim sendo, as liquidações impugnadas não podem ser havidas por ilegais, uma vez que a Requerida mais não fez que aplicar a lei aos factos declarados pelo sujeito passivo (os que tinha obrigação legal de conhecer), o qual violou – com prejuízo para si próprio, é certo – o dever de colaboração que sobre ele impendia (art. 59º, nº 4 da LGT). E o processo de impugnação é, no essencial, um contencioso de mera anulação, dirigido à aferição da legalidade de um ato tributário nas circunstâncias em que foi praticado.

Em mero obiter dictum, sempre se acrescentará que a Requerente ainda estará em tempo para, através de meio procedimental próprio, pedir a revisão das liquidações que ora impugna.”(sublinhado nosso)

            Ora, não havendo identidade de pedido e causa de pedir, este processo seria apenas uma consequência de um passo procedimental que devia ter tido lugar e não teve na altura e que foi tomado pela Requerente, pelo que é nosso entender que não há caso julgado. Se assim fosse, o efeito preclusivo do caso julgado determinaria a inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida definida em anterior decisão definitiva, motivo pelo qual não se verificaria a exceção dilatória do caso julgado, pelo que improcederia a referida pretensão. No entanto a decisão do acórdão é diferente, daí produzir o presente voto de vencido.

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.