Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 236/2016-T
Data da decisão: 2017-03-02  Selo  
Valor do pedido: € 2.985,00
Tema: IS - Renúncia a tornas – união de facto - artigos 1º, nº 1, e 6º, alínea e) do Código do Imposto do Selo - alteração de causa de pedir.
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Decisão Arbitral

 

 

Requerente – A…

Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira

 

I – Relatório

 

1. No dia 21 de Abril de 2016, A…, com o com o NIF…, residente na…, Lugar da …, …-… …, Vila Franca de Xira, veio, nos termos do artigo 99º do CPPT, ex vi alínea c) do nº 2 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, requerer a constituição de Tribunal Arbitral singular visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de Imposto do Selo, verba 2.1.[1], com o número … no montante de € 2.985,00. Com o Pedido juntou, para além da procuração, 13 documentos, completados por cópias entregues dias depois.

2. No Pedido de pronúncia arbitral, o Requerente optou por não designar árbitro tendo sido por decisão do Presidente do Conselho Deontológico, nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, designada como árbitro único a signatária, que aceitou o cargo no prazo legalmente estipulado.

3. O tribunal arbitral ficou constituído em 4 de Julho de 2016.

4. A Administração Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida) enviou, em 23 de Setembro de 2016, a sua Resposta e o processo administrativo (PA).

5. Foi proferido despacho arbitral designando o dia 14 de Novembro de 2016 para realização da reunião do artigo 18º do RJAT, seguida de inquirição das testemunhas indicadas pelo Requerente.

6. Em 18 de Novembro de 2016 realizou-se a reunião do artigo 18º do RJAT tendo-se procedido à inquirição de testemunhas. O tribunal convidou o Requerente a aperfeiçoar o Pedido tendo em conta a excepção suscitada, apresentando em simultâneo as alegações, seguindo-se o decurso de prazo para apresentação pela Recorrida, e indicou o dia 3 de Janeiro de 2017 como data de emissão de decisão arbitral.

7. Apenas o Requerente apresentou, em 30 de Novembro de 2016, alegações, e, em 19 de Dezembro de 2016, veio requerer que o tribunal tenha em conta que o Administrador de Insolvência no Processo .../16.BTBVXF procedeu, entretanto, à resolução do acto de divisão de coisa comum que deu origem ao acto tributário objecto do presente processo, e, por isso, considere como causa de pedir principal a inexistência de facto tributário.

8. Por despacho arbitral, a Requerida foi notificada para se pronunciar, prorrogando-se o prazo para decisão por mais dois meses e fixando a data de decisão para 3 de Março de 2017. A Requerida não emitiu posição.    

 

9. O Pedido de Pronúncia

O Requerente sustenta, em síntese (da nossa responsabilidade):

-          O acto de liquidação teve origem na escritura pública de divisão de coisa comum, lavrada em 15 de Abril de 2015, pela qual lhe foi adjudicada metade do prédio inscrito sob o artigo … da matriz predial urbana da União das Freguesias de … e … cuja titularidade mantinha, anteriormente, em compropriedade com B… .

-          Na escritura referida no número anterior foi atribuído ao imóvel o valor de € 59.700,00, pelo que o quinhão de cada um dos outorgantes corresponde a € 29.850,00, o que daria ao requerente uma vantagem neste valor (€ 29.850,00) originadora de tornas, mas a outorgante B… prescindiu do respectivo pagamento.

-          Comunicada a divisão de coisa comum a AT veio a liquidar imposto do Selo (verba 1.2. da TGIS) sobre tal renúncia a tornas fazendo recair a taxa de 10% sobre o valor objecto de renúncia, o que resultou num imposto no montante de € 2.985,00.

-          O Requerente e B… vivem em união de facto, partilha de leito, mesa e habitação, desde 2004 e particularmente, desde 2006 até à presente data, residem na mesma morada -…, …, …-… …, situação confirmada por atestado de residência da freguesia de … e … e declaração sob compromisso de honra dos envolvidos, que apresentam morada comum.

-          É que, apesar da divisão de coisa comum, o Requerente e B… mantém-se em união de facto, como atestado por indicação em documentos posteriores à escritura e juntos aos autos com o Pedido.

-          Os outorgantes na escritura mantém na base de dados da AT o mesmo domicílio fiscal em…, …, …, assim como as suas declarações de IRS entre 2011 e 2014, apresentadas conjuntamente, referem a sua situação como unidos de factos.

-          A AT entendeu que a renúncia a tornas constitui um facto tributário sujeito a tributação nos termos do art 1º do Código do Imposto do Selo e aplicação da verba 2.1 da TGIS, por se tratar de uma renúncia abdicativa, verdadeira transmissão gratuita, sem ter em conta o disposto na alínea e) do artigo 6º do CIS que isenta do imposto as transmissões gratuitas ocorridas entre, designadamente, unidos de facto.

-          No caso do Requerente, beneficiário da renúncia a tornas, deve aplicar-se a isenção prevista no artigo 6º, e) do CIS, já que se mantém a união de facto entre os outorgantes.

-          Não pode a situação do Requerente confundir-se com o caso objecto de informação vinculativa da AT constante de documento junto com o Pedido já que aí houve dissolução do casamento por divórcio com cessação da vida em comum, enquanto neste caso a transmissão ocorreu entre unidos de facto, estando a renúncia a tornas ao abrigo da referida alínea e) do artigo 6º do CIS. 

-          Pelo que deve o Pedido ser considerado procedente, declarando-se ilegal a liquidação e determinando-se a respectiva anulação e restituição dos valores entretanto eventualmente exigidos coercivamente.

 

10. A Resposta

A Requerida responde, em síntese (da nossa responsabilidade):

-          No presente pedido de pronúncia arbitral é impugnado o acto de liquidação de imposto do Selo (TGIS) com base na renúncia a tornas, de que o Requerente foi beneficiário nos termos da Escritura de Coisa Comum, por B…, referente a prédio de que eram comproprietários.

-          O Requerente alega que vivia com B… em união de facto desde 2004 e particularmente, desde 2006, residindo na mesma morada, correspondente ao imóvel objecto de divisão e que apesar de a renúncia a tornas em divisão de coisa comum configurar uma transmissão gratuita, sujeita à Verba 1.2 da TGIS, a transmissão, por ter ocorrido entre unidos de facto, beneficia da isenção prevista na al. e) do art. 6º do Código de Imposto do selo (CIS) mas importa ter presente que o mesmo Requerente apresentou, em 09.12.2015, reclamação graciosa da liquidação de 22.01.2016, ora impugnada, limitando-se a afirmar a tempestividade do presente Pedido por referência à data da notificação do despacho de indeferimento daquela reclamação graciosa, sem fazer qualquer referência à respectiva decisão, e delimitando expressamente o objecto do presente pedido de pronúncia, à «liquidação de Imposto do Selo, Verba 28.1 – Doação – com o nº…, com um valor final a pagar de € 2.985,00», sem formular, a final, qualquer pedido tendente à anulação do que em sede de reclamação foi decidido e pedindo apenas a declaração de ilegalidade da liquidação impugnada.

-          Deste modo, o pedido de pronuncia arbitral afronta o entendimento, da doutrina e da jurisprudência arbitral, de que “o objecto imediato do processo impugnatório é, em regra, o ato de segundo grau, que aprecia a legalidade do ato de liquidação, ato aquele que, se o confirma, tem de ser anulado, para se obter a declaração de ilegalidade do ato de liquidação.”

-          Por outro lado, a situação fáctica exposta na reclamação apresentada em 15.04.2015 – e que esteve na base do seu indeferimento e consequente manutenção do acto de liquidação impugnado – não coincide com os factos articulados na petição arbitral.

-          Na reclamação o ora Requerente afirma que viveu em regime de união de facto com a sua companheira B…, que “Na vigência da união de facto, o reclamante e a companheira adquiriram o imóvel…” e que “Cessada a união de facto, acordaram os membros dessa união em atribuir ao reclamante, em exclusivo, a propriedade de tal imóvel, por via da escritura de divisão de coisa comum,

-          Ou seja, declara inequivocamente, na reclamação, que a união de facto tinha cessado à data da escritura, assim como o reafirma no requerimento de audição prévia apresentado no dia 15.01.2016 ao declarar “Mais alegaram que, cessada a união de facto, acordaram os membros dessa união em atribuir ao reclamante, em exclusivo a propriedade de tal imóvel, por via da escritura de divisão de coisa comum”. 

-          Tal declaração está ainda em consonância com o teor da Escritura de Coisa Divisão de Coisa Comum outorgada em 15.04.2015, em que o Primeiro Outorgante, o aqui Requerente, declarou “Que continua a destinar o imóvel a sua habitação própria e permanente”, nada tendo declarado, por seu turno, a Segunda Outorgante.

-          A declaração de cessação da união de facto configura uma confissão na definição do art. 352º do Código Civil (CC), como o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a outra parte, sendo que a confissão tem força probatória plena nos presentes autos arbitrais contra o confitente, por força do disposto nº1, do art. 355º, conjugado com o nº 3, in fine, do art. 355º, ambos do CC.  

-          Nessa medida, o despacho de indeferimento da reclamação não podia ter deixado de considerar que em 15.04.2015, data da Escritura Divisão de Coisa Comum - o facto tributário para efeitos da verba 1.2 da TGIS, nos termos do art. 5º do CIS -, a união de facto tinha cessado, pelo que o indeferimento da reclamação graciosa, com a manutenção do acto de liquidação de imposto do selo, assentou nos pressupostos objectivos da sujeição a imposto do selo da renúncia às tornas e encontra-se devidamente fundamentado ao concluir pela legalidade da liquidação reclamada.

-          As transmissões gratuitas estão sujeitas a Imposto do Selo (nº1, do art. 1º do Código do IS) sendo que o nº 3 do mesmo artigo, designadamente, a al g), dispõe que para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral são consideradas transmissões gratuitas, a aquisição derivada de invalidade, distrate, renúncia ou desistência, resolução, ou revogação da doação entre vivos com ou sem reserva de usufruto, salvo nos casos previstos nos artigos 970º e 1765º do Código Civil, e que o imposto é devido pelos respectivos beneficiários (art. 2º, nº2, al b) do CIS).

-          No caso dos autos, a renúncia a tornas traduziu-se numa perda patrimonial na esfera jurídica da renunciante B…, porque sem qualquer contrapartida correspondente ao acréscimo na esfera jurídico-patrimonial do beneficiário daquela ora Requerente; o direito da titular renunciante, simplesmente extinto através de declaração unilateral não receptícia, constituiu uma renúncia abdicatória, que, atendendo à substancia económica e à natureza gratuita que reveste, consubstancia uma transmissão gratuita prevista no art. 1º, nº 3, al g) do CIS, e à verba 1.2 da TGIS, tal como se decidiu no despacho que indeferiu a reclamação graciosa da liquidação impugnada.

-          A liquidação impugnada nos autos é legal, devendo ser mantida, improcedendo o Pedido.

 

11. Produção de prova testemunhal, junção de novos documentos e alegações

Foram ouvidas as testemunhas apresentadas pelo Requerente – B…, apresentada como companheira, o filho desta, e ainda um vizinho.

 

Na sequência da reunião em que se procedeu à inquirição de testemunhas, o Requerente, correspondendo ao convite feito pelo tribunal, solicitou, nas alegações escritas, pedido de aperfeiçoamento do Pedido inicial e juntou três documentos destinados a clarificar afirmações feitas por testemunhas.

 

11.1. Aperfeiçoamento do Pedido

Esclarecendo que o Pedido de apreciação arbitral engloba não apenas a liquidação mas o indeferimento da reclamação graciosa, cuja ilegalidade pretende também ver apreciada, requer a alteração do texto final do seu pedido para abranger expressamente a declaração de “ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa”.

 

11.2. Alegações do Requerente

Alegando propriamente, diz, em síntese:

-          O Requerente e B…, sua companheira, sofreram neste processo de falta de acompanhamento jurídico tendo sido prejudicados pelo apoio gratuito de pessoa amiga que induziu o Requerente a fazer afirmações erradas e que o prejudicaram;

-          O Requerente e companheira vivem em união de facto há mais de dez anos e por razões de dívidas da B… procederam à divisão do prédio urbano onde o casal tem a morada de família, medida que não prejudicava os credores daquela atendendo ao elevado valor dos financiamentos garantidos por hipoteca, e se configurava como única forma de manterem a casa de habitação, dado o valor elevado das rendas;

-          Ao reclamar da liquidação o Requerente invocou – tal como aquando da audiência prévia - a cessação de união de facto porque assim foi (mal) aconselhado mas não pretendeu fazer uma confissão de cessação de união de facto.

-          Tal confissão seria uma declaração viciada por erro, vício de vontade superável por prova testemunhal, que nos autos confirmou a permanência da união de facto entre Requerente a sua companheira após a divisão do imóvel. E não sendo na liquidação efectuada pela Requerida indicada a separação do casal não havia fundamento para emissão da liquidação.

-          Para além da prova testemunhal, a união de facto encontra-se comprovada por documentos autênticos, caso de declarações emitidas em 20.4.2016 pela Junta de Freguesia de … e …, de acordo com o disposto na Lei nº 7/2011, de 11 de Maio. 

-          Sendo que o Requerente e sua companheira B… mantém o mesmo domicílio fiscal.

-          No acto de divisão de coisa comum – com atribuição ao imóvel do valor de € 59.700,00 caberia a cada comproprietário o quinhão de € 29.850,00, mas sendo adjudicada ao Requerente da metade de B…, esta renunciou a tornas.

-          Face à renúncia, a AT liquidou imposto do selo de € 2.985,00, aplicando a verba 1.2 da TGIS, mas, tratando-se de transmissão gratuita entre pessoas que se mantém unidos de facto usufrui da isenção prevista na alínea e) do artigo 6º do Código do imposto do Selo, tal como nas doações a filhos ou netos.

 

11. 3. Documentos juntos com as alegações

Frisando o tempo escasso para reunião dos documentos, o Requerente juntou, com as alegações, certidão do Registo Predial e caderneta predial do imóvel em causa, e um mapa, emitido em 31.10.2016, pelo Banco … das responsabilidades de crédito do Requerente e de B…  .

Realça nos referidos documentos que:

-          Foram efectuados três empréstimos com garantia hipotecária do imóvel objecto de divisão no valor de € 97.500,00, € 5.500,00 e € 29.130,00;

-          Os empréstimos em dívida tinham no final de 2016 os valores de € 86.333,00, € 4.554,00 e € 26.442,00, respectivamente;

-          O VPT do imóvel é de € 59.700,00;

-          Aquando da divisão de coisa comum, a companheira do Requerente manteve-se como mutuária e responsável financeira, porque não arranjaram quem a substituísse nesse papel;

-          O valor do passivo garantido pelo imóvel é manifestamente superior a este, significando que a divisão do prédio não o beneficiou em termos líquidos já que o imóvel vale menos que 90 mil euros e está hipotecado por quantia superior a 116 mil euros.

 

12. Requerimento de alargamento do Pedido

 

Em 19 de Dezembro de 2016, o Requerente veio expor que, já posteriormente à apresentação das alegações, recebeu uma comunicação datada de 29 de Novembro de 2016, em que o Administrador de Insolvência no processo em que é insolvente B…, informa que procedeu, nos termos dos artigos 120° e ss. do CIRE, à resolução da divisão de coisa comum causa da liquidação de Imposto do Selo objecto de apreciação nos autos.

Conclui que, dada a resolução do negócio jurídico de divisão de coisa comum, ficam sem qualquer efeito jurídico a transmissão de metade indivisa do imóvel e as respectivas declarações negociais tomadas no âmbito do negócio já resolvido, não havendo necessidade de conhecer sobre o direito a tornas pela adjudicatária e a renúncia ao respectivo recebimento. Diz que, independentemente da apreciação de mérito que sobre tal decisão se possa efectuar, verifica-se a anulação ex tunc de todo o negócio e dos actos consequentes e de execução relativos a tal divisão de coisa comum. E que, como decorre do artigo 126° do CIRE que a resolução produziu a plenitude dos seus efeitos com a respectiva notificação aos outorgantes, a renúncia e o facto tributário passaram a inexistir.

Junta cópia das notificações enviadas, ao Requerente e a B…, pelo Administrador de insolvência.

 

13. Objecto do pedido

A apreciação de legalidade requerida com o Pedido de constituição de tribunal arbitral tem como objecto o acto de liquidação de Imposto do Selo praticado pela administração tributária, ao abrigo do disposto nos artigos 2º e 6º do CIS e verba 1.2.da Tabela Geral do Imposto do Selo, relativamente a uma situação em que o Requerente outorgou uma escritura de divisão de coisa comum com a ex-comproprietária de um imóvel, onde ambos habitavam, renunciando esta ao pagamento de tornas devidas pela atribuição ao Requerente da exclusiva titularidade do imóvel. Essa decisão implica avaliar se continuou a existir uma relação de união de facto com a autora da renúncia das tornas e, a confirmar-se tal situação, se a mesma confere direito à isenção de imposto do selo invocada pelo Requerente.

 

Mas há duas questões prévias a decidir:

- Viabilidade de apreciação do Pedido de apreciação arbitral atendendo à sua relação com o indeferimento da reclamação graciosa, apesar do pedido de aperfeiçoamento deduzido com as alegações;

- Se é possível atender ao requerido em 19 de Dezembro de 2016, quanto à invocação de “inexistência de facto tributário”. 

 

14. Saneamento

O presente tribunal arbitral singular é materialmente competente, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

O processo não padece de qualquer nulidade.

 

Mesmo tendo em conta o pedido de aperfeiçoamento do Pedido inicial, mantém-se dúvidas sobre a questão do objecto da acção cuja solução se reflectirá na decisão quanto à tempestividade do Pedido. A apreciação dessa questão será efectuada após a fixação da factualidade.

Decidindo:

 

II Fundamentação

 

15. Factos provados

a)      Em 15 de Abril de 2015 entre o Requerente, como primeiro outorgante, e B…, como segunda outorgante, foi realizada uma escritura pública de “divisão de coisa comum” do prédio urbano … da União de freguesias de … e …, pondo termo à compropriedade do referido imóvel, a que atribuíram o valor de € 59.700,00, adjudicando ao primeiro outorgante a totalidade do prédio e naquele valor, ficando o mesmo de pagar tornas à segunda outorgante pelo valor que levou a mais, de € 29.850,00. No acto, a segunda outorgante declarou prescindir das tornas a que tinha direito. E o primeiro outorgante declarou que continuava a destinar o imóvel a sua habitação própria e permanente. (Documento nº 2 junto com o Pedido).

b)      A AT, considerando que a renúncia às tornas devidas ao Requerente configura uma transmissão gratuita sujeita a imposto do Selo, abrangida pela Verba 1.2. da Tabela Geral do Imposto do Selo, veio a efectuar, em 10 de Agosto de 2015, uma liquidação e de Imposto do Selo no montante de € 2.985,00, dando origem a nota de cobrança de 19 de Setembro de 2015, a pagar até 31 de Outubro de 2015 (PA, fls. 4 e 5).

c)      Em 23 de Novembro de 2015, o Requerente apresentou reclamação graciosa da liquidação referida na alínea anterior, que foi instaurada com nº de processo …2015…, expondo que efectuara com B… uma escritura de divisão do coisa comum - o prédio que haviam adquirido na constância da união de facto entretanto cessada - tendo sido decidido atribuir em exclusivo ao reclamante a propriedade do imóvel que, à data, se encontrava onerado por uma dívida garantida por hipoteca de € 88.497,42, da responsabilidade de ambos os devedores mas que o Requerente assumiu integralmente. Diz: «Em consonância, as partes deram por compensadas as tornas que seriam devidas pela ex comproprietária, mas por impropriedade da escritura esta menciona que B… prescindiu de tornas. Assim, não existiu qualquer liberalidade mas uma transferência de responsabilidade. Contudo, ainda que se tratasse de uma doação, haveria que ter em conta a isenção subjectiva consagrada na alínea e) do artigo 6º do Código do Imposto do Selo, relativa a transmissões gratuitas entre membros de uma união de facto». «No fundo, o que a divisão de coisa comum configura, com a atribuição ao reclamante da propriedade exclusiva do imóvel, é uma transmissão gratuita de metade alíquota da ex companheira, transmissão que sempre beneficiaria da mencionada isenção subjectiva», pelo que requeria a anulação da liquidação e reconhecimento da isenção. (PA, fls. 3 e v.).(sublinhados nossos)

d)      Foi elaborado projecto de decisão de indeferimento, onde se analisou o argumento do reclamante de que se verificava uma impropriedade na escritura quando dizia que a comproprietária prescindira das tornas porque o que houve foi uma compensação entre o activo a receber e a metade que lhe competia no passivo. Na informação base do projecto confirmava-se que o reclamante comunicara o recebimento de tornas (participação nº…) e analisava-se o teor da escritura realçando que aí se concluíra: «De conformidade com a supra identificada escritura, a divisão incidiu sobre o prédio urbano inscrito na matriz predial da União das Freguesias do … e … sob o artigo…, o qual, à data do facto (data da celebração da escritura) detinha o valor patrimonial tributário de € 59.700,00, determinado de acordo com as regras do Código do Imposto Municipal sobre os Imóveis e foi atribuído integralmente ao reclamante. Igualmente consta daquela escritura que sobre o imóvel incidem três hipotecas a favor do Banco C…, SA [aqui a informação refere que “o valor das mesmas não foi mencionado nem comprovado como deveria (salvo melhor opinião”)]. Refere ainda, que consta na mesma escritura que para o efeito, os partilhantes atribuíram ao imóvel o valor de € 59.700,00 pelo que o primeiro (aqui reclamante) “leva a mais em relação ao seu direito o valor de vinte e nove mil oitocentos e cinquenta euros, que tem de pagar de tornas à segunda outorgante”, declarando a segunda “que prescinde das tornas a que tinha direito”».

e)      Tendo em conta que “não consta daquela escritura menção à divisão/atribuição ou alteração de responsabilidade do passivo que onera o prédio objecto da divisão”, conclui-se na informação referida na alínea anterior, tendo em conta o disposto nos artigos 1º, 2º, 3º e 5º no Código do Imposto do Selo e a não comprovação dos factos alegados, que era de indeferir a reclamação, confirmando a liquidação nº…de 10 de Agosto de 2015. A informação foi objecto de despacho concordante do chefe do serviço de finanças, em 21 de Dezembro de 2015, que mandou notificar o reclamante do projecto de decisão para efeitos de audição prévia (fls. 6 e 7 do PA).

f)       Em resposta a notificação para audição prévia, efectuada pelo ofício nº…, de 21/12/2015, recebida a 23/12/2015, o Requerente respondeu através de documento, enviado a 24 de Janeiro de 2016 (cuja apresentação foi considerada intempestiva), onde dizia, designadamente: «o reclamante alegou que viveu em regime de união de facto com a sua companheira B… e que na vigência da união de facto (…) adquiriram o imóvel identificado na escritura aludida, de divisão de coisa comum” e “Mais alegaram que, cessada a união de facto, acordaram os membros dessa união em atribuir ao reclamante, em exclusivo a propriedade de tal imóvel, por via da escritura de divisão de coisa comum». (PA, fls. 11).

g)      O projecto inicial de indeferimento da reclamação graciosa foi convertido em definitivo e objecto de despacho em 19 de Janeiro de 2016, sendo notificado através de ofício nº… de 21 de Janeiro de 2016, do Serviço de Finanças de Vila Franca de Xira…, e recebido pelo Requerente em 22 de Janeiro de 2016 (PA, fls. 14 e 15).

h)      O Requerente e B… viveram em união de facto pelo menos até à divisão de propriedade do imóvel, residindo na mesma morada -…, …, …-… … .

i)       Após a escritura de divisão de propriedade, quer o Requerente quer B… mantiveram o respectivo domicílio fiscal na morada do prédio objecto de adjudicação ao Requerente (Docs 10 e 11 juntos pelo Requerente com o Pedido).

j)       Quer o Requerente quer B… exibiram documentos, datados de 19 e 20 de Abril de 2016, passados pela Junta de Freguesia de … e … no sentido de que habitam no prédio em causa e vivem em comunhão de mesa e habitação há mais de dez anos (Docs 3 a 5 juntos com o Pedido).

k)      O Requerente e B… juntaram assento de nascimento e declarações de compromisso de honra datadas de 21 de Abril de 2016, declarando que, sendo solteiro e divorciada, respectivamente, vivem em união de facto desde 2004 até à presente data (documentos juntos como anexo ao doc. nº 3 junto com Pedido).

l)       O prédio objecto de divisão está onerado por três hipotecas voluntárias a favor do Banco C…, SA, para garantia de empréstimos em que são sujeitos passivos A… e B…- duas das hipotecas foram apresentadas em 20 de Novembro de 2006, e referem-se a um capital de € 97.5000 e € 5.500,00 (garantia de € 133.575,00 e € 7.535,00, respectivamente) e a terceira apresentada em 29 de Setembro de 2011, a um capital de € 29.130,00, garantindo valor máximo de € 39.908,10 (certidão registo predial, apresentada com alegações do Requerente). 

m)   Em 31 de Outubro de 2016, constava da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco … que A… é responsável por vários produtos financeiros, face a diversos bancos, verificando-se que face ao Banco C…, SA, é para além de montantes derivados de cartões de crédito e descobertos em depósitos à ordem, devedor como 1º mutuário de empréstimos designados como um “empréstimo à habitação” (por mais de 30 anos); créditos ao consumo (um por mais de trinta anos e outro por mais de 8 a 9 anos) e outro designado como “outros créditos” por mais de 30 anos (Documentos juntos com as alegações do Requerente).

n)      Em 31 de Outubro de 2016, constava da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco … que B… é responsável por vários produtos financeiros, face a diversos bancos, verificando-se que perante o Banco C…, SA, é ainda, para além de montantes derivados de cartões de crédito, responsável por “empréstimo à habitação” (por mais de 30 anos); créditos ao consumo (um por mais de trinta anos e outro por mais de 8 a 9 anos) e outro designado como “outros créditos” por mais de 30 anos (Documentos juntos com as alegações do Requerente).

o)      Em 21 de Abril de 2016 foi apresentado o presente Pedido de pronúncia arbitral.

p)      Em 1 de Junho de 2015 o Requerente solicitou à Segurança Social apoio judiciário para consulta (doc. nº 6 junto com o Pedido).

q)      Por despacho de 20 de Maio de 2016 da Segurança Social foi concedido apoio na forma de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo (doc. junto em 09/06/2016).

r)       O Administrador de Insolvência no processo .../16.8TBVXF, em que foi decretada a insolvência de B…, enviou comunicações à Insolvente e ao Requerente de que havia procedido, nos termos e para os efeitos do artigo 120º do CIRE, “à resolução da divisão de coisa comum celebrada no dia 23 de Abril de 2015 pela AP … na Conservatória dos registos Predial, Comercial e automóveis da … com referência ao prédio nº …/2006… a favor de A…” , sendo, a partir daquela data, apreendido ½ do indiviso ao processo de insolvência para satisfação dos credores.

 

16. Factos não provados

A prova produzida não foi suficiente para que se considere provado que a divisão de coisa comum foi efectuada entre pessoas que na altura da escritura de partilha se mantinham em união de facto.

 

17. Fundamentação dos factos provados

A fixação da factualidade teve por base as peças juntas pela Requerente (Pedido de pronúncia arbitral, documentos juntos com o Pedido, alegações) e Requerida (Resposta, Processo administrativo junto aos autos, alegações) assim como os depoimentos prestados pelas testemunhas apresentadas pelo Requerente tendo em conta, que duas das testemunhas têm especial ligação ao Requerente que deriva da invocada união de facto (a própria companheira e o filho desta).

Os factos provados mostram-se suficientes para decisão do processo.

 

18. Aplicação do direito

18.1. O Pedido e os factos provados a enquadrar juridicamente

Resulta da factualidade provada que o Requerente, reclamou da liquidação de imposto do Selo efectuada pela AT, fazendo as seguintes afirmações que configuram pressupostos relevantes:

-          A divisão de coisa comum verificou-se numa situação em que existia um passivo de € 88.497,42 pelo que a afirmação, feita com impropriedade na escritura, de prescindir de tornas deveria ter sido entendida como ocorrendo uma compensação

-          Tratando-se de uma divisão de coisa comum de unidos de facto a transmissão gratuita de metade da alíquota sempre estaria abrangida pela isenção prevista no CIS.

 

Mas a afirmação destes factos coexistia com a declaração de que a divisão de coisa comum com adjudicação ao Requerente do imóvel detido em compropriedade com B…, tivera como causa a cessação da situação de união de facto entre os comproprietários. Explicação mantida firmemente no texto de audição prévia entregue (embora fora de prazo) no processo de reclamação graciosa e constante dos presentes autos.

 

Apenas posteriormente, no Pedido de apreciação arbitral, o Requerente veio sustentar que, desde há dez anos, viveu e vive em união de facto com a anterior comproprietária do imóvel que lhe foi adjudicado por divisão de coisa comum. E que, apesar de nessa adjudicação a outra comproprietária ter prescindido do pagamento de tornas que lhe eram devidas, no valor de vinte e nove mil oitocentos e cinquenta euros de tornas, a situação não está sujeita ao imposto de selo exigível nas transmissões gratuitas por, neste caso, se tratar de uma transmissão entre unidos de facto. O depoimento das testemunhas nos presentes autos visou confirmar essa situação. B…, identificou-se como a companheira do Requerente e justificou a realização da escritura de divisão de coisa comum, com atribuição da propriedade da casa morada de família exclusivamente ao seu companheiro, não por cessação da união de facto entre ambos mas pela existência de várias penhoras sobre o seu vencimento, pretendendo com aquele acto de divisão/adjudicação evitar que o prédio fosse atingido por medidas destinadas a obter a cobrança das dívidas. Informou que, actualmente, se encontrava em insolvência.

 

Em resposta à questão colocada pelo tribunal sobre se existia empréstimo para compra da casa disse que sim e que continuava a pagar prestações. Da análise dos documentos entregues posteriormente, com as alegações, parece resultar, da coincidência de registos na certidão de registo predial e na Central de Responsabilidades de Crédito (Banco…), que, para além de empréstimos em nome individual, B… foi, e continua a ser, responsável por hipotecas incidentes sobre imóvel, garantia de empréstimos obtidos para habitação ou na altura da aquisição da mesma (não sendo porém esclarecida a identificação do prédio).

 

O Requerente defende nas alegações finais que apenas invocou a cessação da relação de união de facto com B… por ter sido mal aconselhado (diz mesmo que, apesar de ter assinado a reclamação graciosa e a resposta em audição prévia, nunca se apercebeu da argumentação utilizada), garantindo agora (na linha da argumentação do Pedido de apreciação arbitral) que isso não corresponde à realidade e tem continuado após a divisão do prédio urbano a viver com a B… na mesma casa e mantido a mesma relação de casal. Afirma que a divisão do imóvel foi feita para evitar eventuais efeitos da insolvência de  B…, embora sem prejuízo para os credores que, em qualquer caso não veriam satisfeitos os seus créditos devido à grandeza dos empréstimos garantidos por hipoteca. Considera que a permanência da união de facto se encontra devidamente comprovada nos autos e que as suas anteriores declarações sobre a cessação da união de facto devem ser consideradas sem valor jurídico. Sustenta mesmo que, tendo estas afirmações sido proferidas após a escritura de divisão de coisa comum, não havia fundamento para emissão da liquidação pela AT.

 

Ou seja a argumentação do Requerente foi, sucessivamente, a seguinte:

-          Na reclamação graciosa, a causa da divisão de coisa comum foi a cessação da união de facto com a comproprietária; a escritura contém uma imprecisão porque não houve qualquer doação porque o Requerente assumiu todos os encargos com o imóvel, e, ainda que tivesse havido renúncia gratuita a tornas por parte da outra comproprietária, ex-companheira, esta estaria isenta de imposto de selo devido à (anterior) união de facto.

-          Face ao indeferimento da reclamação graciosa (que nem apreciou a questão da união de facto mas apenas a existência de acto gratuito ou não, através da análise da divisão de responsabilidade do passivo), abandonou completamente a argumentação de que o passivo assumido compensava qualquer benefício com a aquisição de propriedade, passando, no Pedido de pronúncia arbitral, a sustentar que a união de facto não cessara, antes continuara.

-          Aquando da audição de testemunhas – em 18 de Novembro de 2016 - a comproprietária, alienante da parte comum, veio declarar que a divisão de coisa comum teve como causa a tentativa de evitar os efeitos de um processo de insolvência que a envolvesse.

-           Nas alegações, enviadas ao CAAD em 28 de Novembro de 2016, realça que inicialmente foi mal defendido, insistindo no facto de sempre ter mantido a situação de união de facto com a comproprietária outorgante da divisão de imóvel pelo que a renúncia a tornas, sendo embora uma transmissão gratuita, está isenta de imposto do selo.

-          Já depois das alegações invoca inexistência de facto tributário com base em comunicação, datada de 29 de Novembro de 2016, da resolução pelo administrador de insolvência de uma divisão de prédio ocorrida em 23 de Abril de 2015.

 

18.2. Apreciação das questões prévias 

18.2.1. Possibilidade de invocação de nova causa de pedir inexistência de facto tributário” 

Começando pela análise da segunda questão prévia, surgida com o requerimento de 19 de Dezembro de 2016, que se prende com os efeitos pretendidos pelo Requerente quanto à comunicação do Administrador de Insolvência: apesar da escassez de dados sobre a situação alvo da comunicação do Administrador de Insolvência (que identifica a resolução de uma divisão de coisa comum celebrada no dia 23 de Abril de 2015 pela AP … na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e Automóveis da … com referência a um prédio identificado com o nº /2006…), parece coincidir com a situação que deu origem ao acto tributário objecto do Pedido de apreciação (divisão de imóvel outorgada no dia 15 de Abril de 2015 no cartório Notarial de …, de um prédio descrito na … Conservatória de Vila Franca de Xira sob o nº da dita freguesia, inscrito na matriz predial nº … da União de Freguesias de … e …(cf. certidão predial, documento junto com alegações).  

 

De realçar que este tribunal não conhece a situação subsequente à comunicação do Administrador, se a mesma foi executada ou se foi, por exemplo, objecto de oposição pelos interessados (cf. artigos 120º a 126º do CIRE). Mas a questão fundamental a decidir é se é possível nesta fase atender à pretendida alteração da causa de pedir.

 

Com efeito, enquanto no Pedido inicial se pretende a declaração de anulação da liquidação por violação das normas do Código do Imposto do Selo, agora pretende-se que devido a alteração de circunstâncias - por efeito da resolução de contrato de divisão de coisa comum - inexiste o facto tributário originador da liquidação. Ou seja, e como realçado no Requerimento de 19 de Dezembro, é invocada agora uma diferente causa de pedir, indicada como principal, com base em “facto superveniente e alheio à vontade do impugnante”, que fez desaparecer o anterior acto da ordem jurídica.

 

Quanto à alteração da instância por alteração da causa de pedir em contencioso administrativo, dever-se-á ter em linha de conta, designadamente, os artigos 63º a 65º, 70º, 86º, 87º e 91º do CPTA. Em regra, o Autor não pode, segundo a actual redacção do antigo n.º 5 do art.º 91.º do referido Código (conferida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02 de Outubro) invocar em alegações finais (quando tenham lugar) novos fundamentos do pedido, ainda que de conhecimento superveniente.

 

Assim, apenas no caso de alteração da factualidade pela emissão de novos actos administrativos no âmbito do procedimento anulatórios, sanatórios ou revogatórios dos actos inicialmente impugnados podem ser invocados outros fundamentos do pedido após o termo da fase dos articulados e nos termos dos artigos 63.º a 65.º, 70.º ou 86º.

 

De acordo com o artigo 86.º do CPTA (que é semelhante, nos nºs 1 e 2, ao art.º 588.º do CPC) é possível a apresentação de articulado para a invocação de factos constitutivos, modificativos ou extintivos supervenientes, mas “a actual redacção restringe tal possibilidade até à fase do «encerramento da discussão» (quando antes era até à fase das alegações)”[2].

 

Articulando o disposto neste art.º 86.º com o determinado nos artigos 63.º e 64º do CPTA, conclui-se que, no caso de invocação de factos constitutivos, modificativos e extintivos supervenientes, haverá primeiro que considerar o campo de acção do art.º 64.º e só na medida em que o facto superveniente extravasar este, pode recorrer-se ao art.º 86.º do CPTA.

 

Assim, se forem invocados factos relativos à anulação administrativa, à sanação ou à revogação do acto inicialmente impugnado e a invocação da existência de uma nova regulação feita por um novo acto, com base na alegação da reincidência das mesmas “ilegalidades”, vale o determinado no art.º 64.º, n.ºs 1, 2, 3, 5 e 6 do CPTA, podendo o prazo para a correspondente invocação em juízo, correspondente ao da «impugnação» desse novo acto, ocorrer até ao trânsito em julgado da decisão que julgou extinta a instância (art.º 64.º, n.º 4). Quando os factos constitutivos, modificativos e extintivos supervenientes não se reconduzem às realidades cobertas pelo art.º 64.º, ou quando se pretenda invocar invalidades diversas, é que terá de recorrer-se ao art.º 86.º [3]. Nesses casos, a invocação passa a ter-se que fazer em 10 dias após o conhecimento das superveniências e tem de ocorrer até ao encerramento da discussão em 1ª instância. Há que ter ainda em conta quanto à possibilidade de modificação objectiva da instância o disposto no artigo 87.º, nº 5[4] (coincidente com o determinado no art.º 590.º, n.º 6, do CPC).

 

Tudo visto, conclui-se que no caso dos autos a alteração da causa de pedir, provocada não por um acto administrativo praticado no procedimento mas decorrente de acto praticado no âmbito de um processo de insolvência submetido a legislação e meios de controlo judicial alheios à esfera administrativa, não pode ser aceite como pretendido pelo Requerente.

 

Nem, ainda que soçobre o actual Pedido, a negação da ampliação pretendida prejudica os meios de defesa do Requerente face ao acto de liquidação em causa, já que, a configurar-se uma situação como a descrita no requerimento de 19 de Dezembro de 2016, e a serem válidos os argumentos aduzidos sobre os respectivos efeitos, sempre poderá recorrer aos meios processuais disponíveis para fazer valer a sua posição. 

 

18.2.2. Efeitos da relação entre Pedido de apreciação arbitral e indeferimento da reclamação graciosa

Como visto supra, a Requerida identificou na sua Resposta, como primeira questão, o facto de o Requerente ter invocado a tempestividade do Pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de imposto do Selo, por referência à data da notificação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada em 09.12.2015 mas não ter feito qualquer referência à decisão da referida reclamação, delimitando expressamente o objecto do pedido à «liquidação de Imposto do Selo por doação», desconhecendo a doutrina e jurisprudência arbitral que defende que “o objecto imediato do processo impugnatório é, em regra, o ato de segundo grau que aprecia a legalidade do ato de liquidação, ato aquele que, se o confirma, tem de ser anulado, para se obter a declaração de ilegalidade do ato de liquidação.”

 

A Requerida conclui que face à situação fáctica exposta na reclamação apresentada em 23.11.2015, não coincidente com os factos articulados na petição arbitral, o despacho de indeferimento da reclamação é legal porque não se podia ter deixado de considerar que em 15.04.2015, data da escritura Divisão de Coisa Comum e do facto tributário para efeitos da verba 1.2 da TGIS, de acordo com o art. 5º do CIS, a união de facto tinha cessado e que, tendo em conta os pressupostos objectivos da sujeição da renúncia a tornas a imposto do selo, impunha-se a manutenção do acto de liquidação de imposto do selo.

 

Apesar das dúvidas manifestadas logo na reunião do artigo 18º do RJAT, o tribunal deu ao Requerente a oportunidade de esclarecer o Pedido através de requerimento de aperfeiçoamento, e foram ouvidas as testemunhas indicadas no Pedido inicial. A Requerente veio aperfeiçoar o Pedido nos termos já descritos, embora defendendo que a AT não tirara nenhuma conclusão quanto à existência de qualquer excepção.

 

Vejamos:

Desde logo o tribunal considera bastante inusitada a alteração de argumentação e dificilmente explicável a mudança de posição acerca da existência ou não de união de facto, sendo irrelevante a argumentação de deficiência técnica na defesa com alheamento do interessado. Nem as razões apresentadas para o Reclamante ter desconhecido a argumentação utilizada aparentam credibilidade, nem – sendo certo que o desconhecimento do direito não aproveita aos destinatários da lei (artigo 6º do Cód. Civil) – se pode invocar um erro por incompetência da defesa como causa justificativa da alteração radical de argumentação jurídica e da apresentação dos factos (que têm que ser os apresentados pelo próprio Requerente à sua defesa). 

 

Com efeito, verifica-se que a decisão da reclamação graciosa não tratou expressamente a questão – objecto do presente Pedido como causa de ilegalidade - da incidência de Imposto do Selo sobre a situação agora apresentada de renúncia a compensação efectuada entre pessoas alegadamente em união de facto (no caso ex unidos de facto). A decisão de indeferimento preocupou-se com a análise dos indícios sobre a gratuitidade, saber se esta se confirmava ou infirmava, partindo do princípio de que não se verificava qualquer isenção subjectiva (o que não é de admirar porque o Requerente afirmara que cessara a união de facto…). Parece que a Requerida terá visado comprovar a declaração na escritura de que estando o prédio onerado por uma dívida garantida por hipoteca de € 88.497,42, da responsabilidade de ambos os devedores, o Requerente a assumia integralmente. Diz-se na decisão da reclamação: “Não consta daquela escritura qualquer menção à divisão/atribuição ou alteração de responsabilidade do passivo que onera o prédio objecto da divisão”.

 

Curiosamente, acabou por ser o Requerente que veio explicar no Pedido inicial, citando uma Informação Vinculativa da Administração Tributária, que a isenção não se aplicava aos ex unidos de facto, caso diferente do seu que, na versão do mesmo Pedido, mantém essa situação há dez anos.

 

Ainda que este tribunal reafirme o entendimento, defendido em outros casos pela subscritora da presente decisão, de que “(…) o objecto real da impugnação é o acto de liquidação e não o acto que decidiu a reclamação, pelo que são os vícios daquela e não deste despacho que estão verdadeiramente em crise(…)” e que “(…) a impugnação não está, por isso, limitada pelos fundamentos invocados na reclamação graciosa, podendo ter como fundamento qualquer ilegalidade do acto tributário.(…)” (cf. Ac. do STA de 18 de Maio de 2011, proc. n.º 0156/11), não pode, no presente caso, deixar de se considerar relevante que entre o acto impugnado e o Pedido de apreciação arbitral em apreciação (sendo que o decurso de tempo ocorrido só possibilita o presente pedido porque houve um procedimento administrativo que levou a uma decisão de indeferimento) se tenha alterado completamente a descrição da situação de facto objecto de incidência tributária.   

 

Com efeito, verifica-se que a apreciação da legalidade do acto tributário pretendida não invoca apenas fundamentos novos de ilegalidade mas uma situação de facto diferente da que foi sujeita a apreciação pela Requerida no processo de reclamação graciosa, já que nesta se defendia a aplicação da isenção de IS prevista na alínea e) do no artigo 6º do Código do Imposto do Selo a pessoas que haviam cessado a união de facto e no Pedido de apreciação arbitral invoca-se a aplicação da mesma norma mas a uma situação que se mantém como união de facto.

 

Ou seja, a decisão de indeferimento da reclamação analisou a primeira parte da reclamação (onde se defendia que a renúncia a tornas ocorrida não constituía transmissão gratuita) e, ao concluir que essa renúncia configurava uma transmissão gratuita, nem apreciou a segunda parte (onde se defendia que a isenção de IS abrangia pessoas que tinham vivido em união de facto na prática de actos verificados por causa da cessação dessa mesma situação).

O Pedido inicial conclui que «está-se perante transmissão gratuita, na modalidade de renúncia a tornas, sujeita à Verba 1.2. da TGIS, mas dela isenta, por força da alínea e) do artigo 6º do CIS” (art. 43º do Pedido) e que “a renúncia a tornas ocorrida em 15 de Abril de 2015 configura assim uma transmissão sujeita, mas isenta ao abrigo do disposto da alínea e) do artigo do CIS, pelo que a liquidação impugnada viola tal normativo, não podendo deixar de ser anulada, com as devidas consequências». E como, simultaneamente, o Requerente concorda com a posição da AT sobre a renúncia a tornas constituir jurídico-tributariamente uma transmissão gratuita (artigos 36º a 38), inclusivamente nos casos de dissolução de matrimónio ou união de facto (arts. 39º a 42º), negando é que no caso destes autos se esteja perante a dissolução de um matrimónio ou de uma união de facto, pode dizer-se que o Requerente não discorda antes concorda totalmente com a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, atentos os pressupostos, fornecidos por si próprio, em que a mesma decisão assentou.

 

Tendo em atenção a matéria exposta, torna-se insustentável, cremos, a aceitação do presente Pedido, apresentado em 21 de Abril de 2016, de apreciação da legalidade do acto de liquidação datado de 10 de Agosto de 2015.

 

É que torna-se difícil aplicar neste caso a doutrina (restritiva quanto à aceitação da excepção por intempestividade) a que temos aderido por nos parecer conforme com os princípios da tutela jurisdicional efetiva (artigo 268.º, n.º 4 da Constituição),  antiformalista, "pro actione" [5] e "in dubio pro favoritate instanciae", consagrados designadamente  no artigo 7.º do CPTA, porque, aqui, verifica-se que o Requerente utilizou o seu direito à defesa na reclamação graciosa invocando uma situação de facto e uma argumentação jurídica distintas, mesmo opostas, às que agora pretende fazer valer.

 

Atenta esta factualidade, o presente tribunal considera não se encontrar legitimado o entendimento de que o prazo para pedir apreciação de pedido arbitral nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 10º do RJAT ficou suspenso durante o período em que a primeira tentativa de defesa do Requerente foi objecto de apreciação no processo administrativo. 

 

De acordo com o art.º 10º do RJAT, o pedido de pronúncia arbitral tem que ser apresentado no prazo de 90 dias, contados a partir dos factos previstos nos nºs 1 e 2 do art.º 102º do CPPT, ou seja, do “termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte” imposto ou, no caso de ter sido interposta reclamação graciosa, da respectiva notificação de indeferimento.

 

Como vimos, no presente caso o Requerente não afronta a correcção da decisão de indeferimento da reclamação tomada com base nos dados fornecidos por si enquanto reclamante, pelo que o objecto do pedido é a ilegalidade da liquidação notificada ao contribuinte para pagamento até 31 de Outubro de 2015, sem que o respectivo prazo de impugnação tenha sido suspenso pela reclamação.

 

Verifica-se pois que em 21 de Abril de 2016, data em que foi apresentado o Pedido de constituição do tribunal arbitral, o prazo previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 10º do RJAT estava manifestamente esgotado, tendo como consequência a caducidade do direito à acção.

 

Confrontado com essa situação, que constitui excepção de conhecimento oficioso, o tribunal decide não conhecer do Pedido e absolver a Requerida [6].

 

19. Decisão

Com os fundamentos expostos, o tribunal arbitral decide:

a)      Absolver a Requerida do Pedido, não procedendo à apreciação da legalidade do acto de liquidação de Imposto do Selo com o número … no montante de € 2.985,00, nem (na formulação do pedido de aperfeiçoamento) do indeferimento da reclamação.

b)      Condenar o Requerente em custas.

 

20. Valor do processo

De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 315.º do CPC, na alínea a) do n.º1 do artigo 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 2.985,00 (dois mil, novecentos e oitenta e cinco escudos).

 

21. Custas

Para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 12º e no n.º 4 do artigo 22.º do RJAT e do n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 612,00 (seiscentos e doze euros) nos termos da Tabela I anexa ao dito Regulamento, a cargo do Requerente (tendo-se em consideração o apoio judiciário concedido).

 

Lisboa, 2 de Março de 2017.

 

A Árbitro

 

 

(Maria Manuela Roseiro)

 



[1] O Pedido refere a verba 28.1. mas é claramente lapso.

[2] Cf. Sofia David, in As modificações da instância e a convolação processual no Código de Processo nos Tribunais Administrativos revisto, Notas, 2016, cf. http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/fich-pdf/etaf_cpta/modificacao-instancia-sdavid-dez-2016-primo.pdf.

[3] Cf. Sofia David, ibidem.

[4] O nº 5 do artigo 87º dispõe que “As alterações à matéria de facto alegada não podem implicar convolação do objeto do processo para relação jurídica diversa da controvertida, devendo conformar-se com os limites traçados pelo pedido e pela causa de pedir, se forem introduzidas pelo autor, e pelos limites impostos pelo artigo 83.º, quando o sejam pelo demandado”. 

[5]Cf. “O princípio pro actione é um corolário normativo ou uma concretização do princípio constitucional do acesso efectivo à justiça (administrativa), que aponta para uma interpretação e aplicação das normas processuais no sentido de favorecer o acesso ao tribunal ou de evitar as situações de denegação de justiça, designadamente por excesso de formalismo.”(Ac. do STA de 29/01/2014, in proc. 01233/13, Relatora Fernanda Maçãs).

[6] É controversa a qualificação da absolvição como dilatória (da instância) ou peremptória (do pedido). Neste último sentido, cf. decisão arbitral no processo nº 792/2014-T e jurisprudência aí citada. No sentido de a impugnação judicial no CPPT, tal como no CPTA, constituir, de forma diferente do que acontece no processo civil, excepção dilatória, veja-se posição de Jorge Lopes de Sousa, in CPPT anotado, áreas Editora, 6ª edição, 2011, II vol. pp. 164 e 165 citando em sentido diverso Acórdão do STA de 27/05/2009, proc. 76/09. Para além de tudo, há que ter em conta a nova redacção dos artigos 88º e 89º do CPTA (na anterior redacção do art. 88º a caducidade do direito a acção obstava ao prosseguimento da acção (absolvição de instância ou do pedido?) mas actualmente o artigo 89º do CPTA inclui na enumeração de exemplos de excepção dilatória as intempestividade de acto processual (que o comentário citado atrás considera incluir a caducidade do direito a acção).