Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 223/2023-T
Data da decisão: 2023-11-10  IRC  
Valor do pedido: € 294.758,50
Tema: IRC. Gestão de Resíduos de Embalagens. Marca. Royalties. Benefícios Fiscais.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

  1. A contribuinte Sociedade A..., S.A., NIPC ..., doravante “a Requerente”, apresentou, no dia 29 de Março de 2023, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  2. A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade da decisão de indeferimento proferida no âmbito do procedimento de Reclamação Graciosa n.º ...2022.., e mediatamente sobre a ilegalidade do objecto dessa reclamação graciosa, a liquidação adicional de IRC n.º 2021... relativa ao exercício de 2017 (€ 260.526,09), e correspondentes juros compensatórios e acerto de contas n.º 2021... (€ 34.232,41), no montante total de € 294.758,50, pedindo a anulação dessa liquidação adicional e o reembolso desse montante, acrescido de juros indemnizatórios.
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
  4. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
  5. As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.
  6. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 6 de Junho de 2023; foi-o regularmente, e é materialmente competente.
  7. Por Despacho de 8 de Junho de 2023, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.
  8. A AT apresentou a sua Resposta em 12 de Julho de 2023, juntamente com o Processo Administrativo.
  9. Por Despacho de 18 de Julho de 2023, dispensou-se a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, notificando-se as partes para a apresentação de alegações e designando-se o dia 6 de Dezembro de 2023 para efeito de prolação e comunicação da decisão arbitral.
  10. A Requerente apresentou alegações em 12 de Setembro de 2023.
  11. A Requerida apresentou alegações em 13 de Setembro de 2023.
  12. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.
  13. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
  14. O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade anónima, sem fins lucrativos, cuja missão consiste em organizar e gerir a retoma e valorização dos resíduos de embalagens, através do Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagens (“SIGRE”).
  2. São accionistas da Requerente a B..., SGPS, S.A (com 54,44%), a C..., SGPS, S. A., e a D... (cada um com 20,08%), e ainda alguns accionistas com 5,4% do capital social, como a F..., o G... e 12 Câmaras Municipais.
  3. A Requerente beneficiou, por tempo determinado (de 1 de Janeiro de 2017 até 31 de Dezembro de 2021), de uma licença para gestão de um SIGRE (Despacho n.º 14202-E/2016, publicado no DR, 2.ª série, n.º 227, 25/11/2016), ou seja, para desenvolver uma actividade de gestão das embalagens e dos resíduos de embalagens no contexto da aplicação do Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de Dezembro e da Directiva nº 94/62/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Dezembro (com as alterações dos Regulamentos (“CE”) n.ºs 1882/2003, de 29 de Setembro e 219/2009, de 11 de Março, e das Directivas n.ºs 2004/12/CE, de 11 de Fevereiro, 2005/20/CE, de 9 de Março, 2013/2/UE, de 7 de Fevereiro, e 2015/720/UE, de 29 de Abril).
  4. A marca “...” está devidamente registada a favor da sociedade de direito alemão “H...”. Essa titular dos direitos sobre a referida marca autorizou a sociedade de direito belga “I... Europe S.P.R.L.” a gerir os direitos de utilização da marca, nomeadamente o licenciamento, em seu nome e por sua conta, dos direitos sobre a Marca “E...” a entidades que sejam sócias da “I...” e que desenvolvam a actividade de gestão de sistemas de embalagens e resíduos de embalagens.
  5. A Requerente é membro da “I...”, e por isso a sua principal actividade é a de organizar a implementação eficiente de sistemas nacionais de recolha e recuperação adequados, especialmente no que concerne a embalagens domésticas, dispensando, desta forma, as empresas industriais e comerciais da sua obrigação individual de retomar as embalagens de venda usadas, obrigação que resulta do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de Dezembro.
  6. Assim, a marca “E...”, colocada numa embalagem, visa essencialmente atestar que, por essa embalagem, uma contribuição financeira foi paga a uma entidade nacional de recuperação de embalagens – implicando que as empresas embaladoras e importadoras de produtos embalados que aderem ao SIGRE gerido pela Requerente transferem, para esta, a responsabilidade pela reciclagem e valorização dos resíduos das embalagens que anualmente colocam no mercado e que declaram à Requerente, em contrapartida do pagamento do designado “Valor ...”.
  7. Relativamente ao ano de 2017, considerando que os seus resultados tinham sido reinvestidos ou utilizados para a realização dos fins que lhe eram legalmente atribuídos, preservando assim a sua natureza não-lucrativa, a Requerente entregou, a 18 de maio de 2018, a correspondente Declaração periódica de rendimentos Modelo 22 de IRC (n.º ...-2018-...), no âmbito da qual procedeu à inscrição do valor de € 6.503.263,75 no Campo 333 do Quadro 9, respeitante ao apuramento da matéria colectável, a título de matéria colectável isenta, tendo inscrito o mesmo valor no Campo 307 do Quadro 032 do Anexo D, a título de rendimentos isentos ao abrigo do artigo 53.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais.
  8. Nesse mesmo ano de 2017, ao contrário do procedimento adoptado nos anos anteriores, a Requerente passou a separar contabilisticamente o “Valor de Compliance”, que permaneceu na rubrica referente às prestações de serviços, do “Valor da Marca”, que anteriormente aparecia igualmente na rubrica de prestações de serviços e passou a ser contabilizado como “Outros Rendimentos Operacionais” – desligando contabilisticamente a remuneração do serviço prestado pela Requerente do valor cobrado aos aderentes pela utilização da marca “E...”, com o intuito de permitir à Requerente cobrar, a empresas que não fossem suas clientes, somente o “Valor da Marca”.
  9. Em 2019, ao abrigo da ordem de serviço n.º OI2019..., a Requerente foi objecto de uma acção inspectiva externa, de âmbito parcial, em sede de IRC e de IVA, relativamente ao exercício de 2017, da qual resultou a liquidação adicional de IRC ora impugnada.
  10. No âmbito da inspecção, a Requerente foi notificada, no dia 13 Setembro de 2021, para o exercício do direito de audição prévia sobre o Projeto de RIT, no qual a AT propunha uma correcção técnica à matéria colectável do regime geral da Requerente, em sede do IRC, no valor de € 1.240.600,49, correspondente à parte do valor incluído nas contribuições financeiras cobradas pela Requerente aos seus aderentes, no âmbito da gestão integrada de resíduos de embalagens, e pela utilização da marca “E...”, com base no facto de o montante em questão não se encontrar abrangido pela isenção de IRC prevista no art. 53.º do EBF, qualificando-o como rendimento de capitais, nomeadamente “royalties”, de acordo com a Categoria E prevista no CIRS (entendendo que a Requerente se faz remunerar pela cessão temporária do direito de utilização da marca, na acepção do art. 5.º, 1, m) do CIRS, tratando-se de rendimentos passivos e não de rendimentos imputáveis a actividades geradoras de rendimentos empresariais e profissionais).
  11. A Requerente declarara um montante total de € 6.529.589,78 de lucro tributável, composto de € 26.326,03 de regime geral e de € 6.503.263,75 de regime de isenção. Das correcções efectuadas no âmbito da Inspecção Tributária resultou que o montante total de € 6.529.589,78 de lucro tributável passou a entender-se ser composto de € 1.266.926,52 de regime geral e de € 5.262.663,26 de regime de isenção.
  12. A Requerente exerceu o direito de audição prévia no dia 28 de Setembro de 2021, invocando o “poder de atracção” da Categoria B, nos termos do art. 3º, 2, b) do CIRS.
  13. No dia 28 de outubro de 2021, a Requerente foi notificada do RIT final, no qual a correcção inicialmente proposta se materializou no acto tributário de liquidação adicional de IRC, acrescido de juros compensatórios.
  14. A Requerente deduziu, no dia 24 de Março de 2022, Reclamação Graciosa (autuada com o n.º ...2022...) sobre a referida liquidação adicional, ao abrigo do disposto nos arts. 10.º, 1, c) e 70.º do CPPT.
  15. A 5 de novembro de 2022, a Requerente foi solicitada a exercer o direito de audição prévia relativamente ao projecto de decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, mas optou por não o exercer.
  16. A 29 de Dezembro de 2022 a Requerente foi notificada do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, de 15 de Dezembro de 2022.
  17. Em 29 de Março de 2023 a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

II. B. Matéria de facto não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, nada ficou por provar.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

  1. Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, e nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo.
  2. Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).
  3. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  4. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  5. Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

III. Sobre o Mérito da Causa

 

III. A. Posição da Requerente no Pedido de Pronúncia

 

  1. A Requerente faz notar que a sua natureza de sociedade não-lucrativa decorre directamente da lei, e especificamente do Regime Unificado dos Fluxos Específicos de Resíduos, quando no art. 11º, 6 do Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de Dezembro, se estabelece que “Os resultados líquidos positivos da entidade gestora devem ser obrigatoriamente reinvestidos ou utilizados na sua atividade, em reservas para operações futuras, sendo expressamente vedada a distribuição de resultados, dividendos ou lucros pelos seus membros, acionistas, sócios ou associados.
  2. E que é em função dessa natureza que é estabelecido um benefício fiscal, no art. 53º do EBF: “Ficam isentas de IRC, excepto quanto aos rendimentos de capitais, tal como são definidos para efeitos de IRS, as entidades gestoras de sistemas integrados de gestão de fluxos específicos de resíduos, devidamente licenciadas nos termos legais, durante todo o período correspondente ao licenciamento, relativamente aos resultados que, durante esse período, sejam reinvestidos ou utilizados para a realização dos fins que lhes sejam legalmente atribuídos.
  3. Daí que, para a Requerente, não faça sentido a alegação da AT, de que o valor de utilização da marca “E...” configura um rendimento de capital (royalty), enquadrável na Categoria E do CIRS, constituindo um puro rendimento passivo pela cessão temporária do direito de utilização da marca, e não a contrapartida de actividades da Requerente geradoras de rendimentos empresariais e profissionais, devendo, assim, na perspectiva da AT, esta componente do rendimento auferido pela Requerente ser sujeita a tributação à taxa nominal de 21% (nos termos do art. 87.º, 1 do CIRC).
  4. A Requerente sustenta que, não obstante o seu escopo não-lucrativo, incorre em despesas que têm que ser cobertas, e que por isso encara o “Valor...” como uma espécie de contribuição financeira cobrada aos aderentes da Requerente, que deve ser revista todos os anos, de forma a acompanhar a evolução anual das despesas estimadas – sem nunca perder de vista que se trata somente da cobertura de custos, razão pela qual o “Valor...” pago pelos aderentes é calculado em função do peso, da quantidade e do material de que são feitas as embalagens dos produtos colocados no mercado, e declarados nas Declarações Anuais entregues à Requerente.
  5. Por isso, antes de 2017 o “Valor...” cobrado pela Requerente era integralmente reconhecido na rubrica referente às prestações de serviços – e só posteriormente se procedeu a uma separação contabilística entre a componente do “Valor de Compliance” (correspondendo à remuneração do serviço prestado pela Requerente não relacionado com a utilização da marca E...) e a componente do “Valor da Marca” (valor cobrado aos aderentes, e eventualmente também a não-aderentes, pela utilização da marca E...).
  6. E é em 2017, admite a Requerente, que se separou contabilisticamente o “Valor de Compliance”, que permaneceu na rubrica referente às prestações de serviços, do “Valor da Marca”, que passou a ser contabilizado como “Outros Rendimentos Operacionais”, ao invés de ser incluído na rubrica referente às prestações de serviços juntamente com o “Valor...”, como sucedia nos anos anteriores.
  7. Na explicação da Requerente, essa modificação contabilística ficou a dever-se principalmente a um novo ambiente de concorrência, resultante do licenciamento de uma segunda entidade nacional para gestão de um SIGRE – e subsidiariamente do facto de, com a entrada em vigor de um Novo Regime Unificado dos Fluxos de Resíduos (“UNILEX”, Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de Dezembro) ter deixado de ser obrigatória a marcação das embalagens primárias ou de venda.
  8. Essa modificação teve o intuito assumido de vir a permitir que empresas que não fossem clientes da Requerente pudessem, ainda assim, continuar a utilizar o símbolo “E...”, habilitando a Requerente a cobrar a essas entidades somente o “Valor da Marca”, porquanto, não sendo suas clientes, elas não usufruiriam dos seus serviços.
  9. Contudo, assevera a Requerente, em 2017 nunca chegou a verificar-se qualquer cobrança a não-clientes pela utilização da marca “E...”, continuando a cobrança pela utilização da marca a estar sempre associada à prestação de serviços de gestão de resíduos de embalagens.
  10. A Requerente esclarece ainda que, em 2018, se abandonou essa tentativa de separação contabilística, desaparecendo a contabilização do “Valor da Marca” e subsistindo somente o “Valor de Compliance”, ainda que um valor actualizado e reajustado à evolução das despesas com a actividade da Requerente.
  11. E, regressando a 2017, a Requerente insiste que a autonomização contabilística, não obstante ser susceptível de gerar algumas dúvidas quanto à qualificação dos rendimentos decorrentes da cessão do direito de uso da marca, na verdade nada significou, nunca deixando de fazer parte integrante, e ser indissociável, do “Valor...” cobrado aos aderentes, o qual tinha e tem, como finalidade única e exclusiva, o financiamento da atividade prosseguida pela Requerente.
  12. E admite que, se se tivessem registado, no ano de 2017, situações de cobrança, a determinadas entidades, do valor da cessão do direito de uso do símbolo “E...”, desligado do “Valor de Compliance”, em situações em que clientes não aderentes do SIGRE gerido pela Requerente quisessem, ainda assim, usar a marca, então esses montantes teriam a natureza de royalties e não fariam parte integrante do “Valor...” cobrado, porquanto, não sendo clientes, aquelas entidades não usufruiriam dos serviços prestados pela Requerente.
  13. Mas a Requerente insiste que essa situação pura e simplesmente não ocorreu, ou seja, que em 2017 não houve utilizadores da marca “E...” que não fossem também aderentes do SIGRE gerido por ela, e que portanto só houve rendimentos imputáveis a actividades geradoras de rendimentos empresariais e profissionais, que devem, assim, ser tratados como rendimentos da categoria B (art. 3.º, 2, b) do CIRS), ainda que conceptualmente possam configurar-se como rendimentos da categoria E – dado o “poder de atracção” da categoria B.
  14. Recorda a Requerente que, em 2017, no que respeita à componente do “Valor...” cobrado pela Requerente, e respeitante ao “Valor do Compliance”, o seu enquadramento enquanto rendimento inserido na Categoria B, e, por conseguinte, abrangido pela isenção consagrada no art. 53.º do EBF, não suscita dúvidas.
  15. Mas admite que, no que respeita à componente do “Valor...” cobrado pela Requerente, e respeitante ao “Valor da Marca”, ela reveste a natureza de rendimento da Categoria E, estando excluída, por princípio, do âmbito da isenção subjectiva consagrada no art. 53.º do EBF.
  16. A Requerente, todavia, sustenta que essa solução de princípio é afastada pelo “poder de atracção” da Categoria B, consagrado no art. 3º, 2, b) do CIRS, quando nesta norma se estabelece que se consideram rendimentos empresariais e profissionais, inseridos na Categoria B, “os rendimentos de capitais imputáveis a atividades geradoras de rendimentos empresariais e profissionais”.
  17. Daí entender a Requerente que é decisivo determinar-se se a componente da contribuição financeira cobrada pela cessão temporária do direito de utilização da marca “E...”, não obstante ser uma genuína “royalty” (Categoria E), pode, em virtude da aplicação da alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º do Código do IRS, ser atraída para a Categoria B.
  18. Ora, volta a sustentar a Requerente, as “royalties” aqui em causa consubstanciam um rendimento auferido pela Requerente no âmbito da prossecução da actividade licenciada de gestão de um SIGRE, sendo, portanto, imputáveis à actividade geradora de rendimentos empresariais e profissionais, encontrando assim enquadramento na Categoria B do CIRS, por força do referido “poder de atracção”.
  19. E a Requerente faz notar que o art. 53º do EBF remete para o CIRS a definição do que sejam “rendimentos de capital”, para efeitos da exclusão daqueles da isenção de IRC.
  20. A Requerente insiste que nunca sucedeu o “Valor da Marca” ser facturado pela Requerente aos aderentes do SIGRE separadamente do “Valor de Compliance”, mas que, mesmo se isso tivesse sucedido, não se subverteria a intrínseca relação do “Valor da Marca” com o financiamento da actividade exercida pela Requerente – até porque, conjectura a Requerente, tais rendimentos não seriam auferidos caso a actividade em questão não fosse exercida.
  21. E reitera que nunca sucedeu o “Valor da Marca” ser facturado pela Requerente a não-aderentes do SIGRE, não obstante se ter encarado essa possibilidade durante o ano de 2017. Mas que, mesmo que tivesse acontecido, ainda assim haveria que considerar que o direito à utilização da marca em causa nasce da licença para a gestão de um SIGRE, sendo o referido direito, portanto, indissociável do exercício da actividade, a ponto de o consumidor poder inferir, da observação da marca numa determinada embalagem, que uma contribuição financeira foi paga, pelo produtor do bem embalado, a uma entidade nacional de recuperação de embalagens que prestou serviços de recolha, transporte, armazenamento, triagem e preparação dos resíduos de embalagens, para efeitos de encaminhamento para reciclagem.
  22. A Requerente convoca até a definição constante do art. 4º-G, 11 do Decreto-Lei n.º 64/2016, de 11 de Outubro, que exclui da definição de “rendimento passivo” as “royalties” que sejam resultantes de uma actividade exercida.
  23. A Requerente esclarece que não tem o intuito de “esvaziar a Categoria E”, admitindo a existência de rendimentos de capital, como juros resultantes de financiamentos em participações societárias, que não deverão ser abrangidos pela isenção do art. 53º do EBF, resistindo ao “poder de atracção” da Categoria B.
  24. Alega ainda que a tributação do “Valor...”, tal como resultou da liquidação adicional impugnada, poderia comprometer a capacidade de financiamento da actividade desenvolvida pela Requerente, colocando em causa o equilíbrio financeiro visado na revisão anual daquele valor, que conduziu até à decisão de deixar de cobrar, a partir de 2017, pela utilização do símbolo E....
  25. A Requerente sublinha a necessidade de se atender à substância económica dos factos tributários, lembrando que os benefícios fiscais assentam na ideia de que outros interesses públicos extrafiscais se sobrepõem aos interesses puramente tributários – sendo sua convicção de que há um interesse público proeminente, que é o da preservação da actividade de gestão de SIGRE, isentando de IRC todas as situações de reinvestimento de receitas, ou de aplicação em fins legalmente atribuídos a gestores devidamente licenciados.
  26. Dada a excepcionalidade dos benefícios fiscais, em caso de dúvida de interpretações, deve ser preferida aquela que dê prevalência ao interesse extrafiscal, sustenta a Requerente.
  27. A Requerente defende ainda a aplicabilidade ao caso, mesmo que em termos subsidiários, do nº 7 do art. 53º do CIRC, que manda deduzir gastos comprovadamente relacionados com a realização de finalidades ambientais.
  28. Ou seja, no entender da Requerente, mesmo na hipótese de não-aplicação da isenção do art. 53º do EBF, restaria ainda a isenção do art. 53º, 7 do CIRC – uma isenção que visa evitar que certas entidades sejam confrontadas com o pagamento de IRC nos períodos de tributação em que obtenham resultados negativos, na medida em que, apesar dos resultados globais serem negativos, a eventual desconsideração destes gastos no âmbito do apuramento do IRC colocaria estas entidades numa situação de lucro tributável.
  29. A Requerente alega que, uma vez que não desenvolve qualquer actividade para além da gestão de retoma e valorização dos resíduos de embalagens, todos os gastos por ela suportados são gastos comprovadamente relacionados com a realização de fins de natureza ambiental, e estes excedem largamente os alegados resultados sujeitos a IRC e não isentos, quer a actividade isenta apure resultado negativo, quer positivo.
  30. Sustenta a Requerente, por isso, que, na entrega da sua declaração de rendimentos, deveria ter levado imediatamente em conta a dupla isenção, uma a resultante do “poder de atracção” da Categoria B, outra a decorrente da letra e do espírito dos n.os 1 e 7 do art. 53.º do CIRC.
  31. E termina pedindo a anulação da liquidação adicional e do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, o reembolso do IRC liquidado em excesso (e correspondentes juros compensatórios), acompanhado de juros indemnizatórios a favor da Requerente.

 

III. B. Posição da Requerente em Alegações

 

  1. Em alegações, a Requerente retoma as posições expressas do seu Pedido de Pronúncia, mantendo, em síntese, que a interpretação do art. 53.º do EBF deve admitir a isenção dos “royalties” em causa, porquanto, ainda que conceptualmente enquadrados na Categoria E, tais rendimentos consubstanciam, à semelhança do “Valor de Compliance”, resultados da Requerente reinvestidos, ou utilizados, para a realização dos fins prosseguidos na gestão do SIGRE, os quais representam a razão de ser da Requerente, decorrendo de uma actividade licenciada, notoriamente alicerçada nos mais altos interesses públicos ambientais, constitucionalmente protegidos, o que justificaria a preeminência do mesmo valor extrafiscal que alicerça o benefício fiscal aplicável.

 

III. C. Posição da Requerida na Resposta

 

  1. Na sua resposta, a Requerida começa por sintetizar que o que está em causa é determinar-se se os ganhos contabilizados pela Requerente a título de “royalties” podem beneficiar da isenção consagrada no art. 53.º do EBF.
  2. Lembra a Requerida que os benefícios fiscais são excepções à tributação-regra, ditadas pela ocasional preeminência de interesses públicos extrafiscais, avaliada pela liberdade de conformação do legislador – formas excepcionais de desagravamento fiscal, ou despesa fiscal, encaradas internacionalmente como auxílios de Estado, com relevância concorrencial. E lembra que, por essas e outras razões, são legalmente insusceptíveis de integração analógica (arts. 10.º do EBF, 11.º, 4 da LGT), devendo, antes, ser objecto de interpretação estrita ou declarativa.
  3. Por essa razão, a Requerida opõe-se às sugestões da Requerente de que, também nestes domínios, se deveria recorrer ao princípio da prevalência da substância sobre a forma, ou se poderia proceder a interpretações teleológicas das normas que estabelecem benefícios fiscais.
  4. Por outro lado, sendo a Requerente uma sociedade comercial, entende a Requerida que o apuramento da matéria tributável na Declaração Modelo 22, referente aos rendimentos sujeitos, deveria ter sido efectuado de acordo com as regras da Secção II do Capítulo III do CIRC, e não de acordo com as da Secção III do mesmo Capítulo – como sucedeu porque se partiu do princípio de que a Requerente é uma entidade sem fins lucrativos.
  5. Assim sendo, o apuramento do imposto foi efectuado pelo rendimento global, que consiste na soma algébrica dos rendimentos líquidos das várias categorias determinadas nos termos do IRS, incluindo os incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito – o que implica já terem sido considerados os gastos específicos imputáveis directamente a cada tipo de rendimentos (deduções específicas), bem como já terem sido deduzidos a esse rendimento, nos termos do art. 53º, 7 do CIRC, os gastos especificamente ligados à obtenção dos rendimentos não sujeitos ou isentos de IRC.
  6. Concluindo a Requerida que não podem subsistir dúvidas de que, quando o art. 53.º do EBF e o art. 53.º do CIRC remetem para o CIRS, tal remissão respeita ao enquadramento no tipo de categoria de rendimento, e não ao apuramento do imposto.
  7. E que, por isso, tudo se centra no enquadramento dos rendimentos, não se justificando considerações laterais que se afastem desse ponto crucial: o seu enquadramento contabilístico e normativo, como rendimentos empresariais (Categoria B – art. 3º, 1, c) do CIRS) ou como rendimentos de capitais (Categoria E – art. 5º, 2, m) do CIRS), os primeiros isentos, os segundos não-isentos, nos termos do art. 53º do EBF.
  8. Ora, sublinha a Requerida, a contabilização do valor da marca deixa inequívoco que ela é encarada, pela própria Requerente, como um rendimento de capitais da Categoria E – e que, portanto, em princípio essa caracterização exclui a isenção do art. 53º do EBF, o que permite inferir que foi correcta a sua consideração pelos SIT, como rendimento (passivo) de “royalties”, para apuramento da matéria colectável.
  9. E a Requerida retoma a argumentação do RIT, sustentando que a interpretação que pretende estender a isenção à generalidade dos rendimentos viola o previsto na letra do art. 53.º do EBF, visto que esta norma concede uma isenção de base limitada, ao excluir expressamente da isenção os rendimentos de categoria E, vedando – por não ser susceptível de interpretação analógica – a concessão da isenção à generalidade dos rendimentos por via de uma “atracção da categoria B” que acabaria por esvaziar a categoria E.
  10. E acrescenta a Requerida que esta solução se impõe, independentemente de o sujeito passivo ter sido tributado pelo lucro, ou ter sido tributado pelo rendimento global – pois, mais uma vez, tudo se centra no enquadramento dos rendimentos a que, nos termos do art. 53º do EBF, a lei concede, ou não concede, isenção de IRC.
  11. Não descortinando qualquer vício no acto de liquidação, segue-se que a Requerida não reconhece, à Requerente, qualquer direito a juros indemnizatórios.

 

III.D. Posição da Requerida em Alegações

 

  1. Em alegações, a Requerida volta a insistir na necessidade de centrar o litígio no essencial: saber se os ganhos contabilizados pela Requerente a título de royalties podem beneficiar da isenção consagrada no art. 53.º do EBF.
  2. E a insistir na necessidade de o intérprete do EBF ser tão rigoroso como o legislador, no momento da formulação dos benefícios fiscais, se impõe a si próprio ser.
  3. Lembra que a caracterização dos rendimentos em causa como rendimentos de capitais incluídos na categoria E do CIRS, e excluídos, em princípio, da isenção do art. 53º do EBF, nem sequer é controvertida – configurados como contrapartida da simples cedência da utilização de uma marca, independentemente da relação directa com qualquer actividade desenvolvida pela Requerente, ou de qualquer serviço prestado por ela àquele a quem ela cede a utilização da marca.
  4. Concluindo, de novo, que a isenção prevista no art. 53º do EBF se aplica à Requerente exclusivamente em função da actividade que ela desenvolve, preenchidos alguns requisitos; lembrando que a mesma norma expressamente exclui rendimentos de capital.

 

IV. Fundamentação da decisão

 

IV.A. O mérito da causa.

 

Estamos agora em condições de nos pronunciarmos sobre o mérito da causa.

Trata-se, neste processo, de saber se os ganhos contabilizados pela Requerente a título de royalties podem beneficiar da isenção consagrada no art. 53.º do EBF.

Sem dúvida que a Requerente beneficia, na sua actividade de base, da isenção de IRC estabelecida naquela norma, na condição de não distribuir lucros – expressamente excluídos os rendimentos de capitais.

O problema surge com a possibilidade de cobrar o valor da marca a entidades não-aderentes do SIGRE gerido por ela, Sociedade A.... (“A...”); ou seja, com a possibilidade de autonomizar as receitas obtidas por uma utilização da marca que seja desligada da utilização dos serviços da A..., deixando a marca de atestar essa utilização dos serviços da A... .

Aberta essa possibilidade, e previamente à sua efectivação, e até independentemente dela, os rendimentos a obter, ou já obtidos, passam, desde logo, a constituir puras royalties, puros rendimentos de capital, paralelos, mas distintos, dos rendimentos gerados pela prestação dos serviços da A... .

A Requerente reconhece que, aberta a possibilidade de se gerarem rendimentos que já não são contrapartida de qualquer actividade de base prestada por ela, se abre uma cisão na natureza (tipologia) das receitas que obtém, e que deve existir uma cobertura contabilística adequada para a coexistência dessas duas ordens de rendimentos.

Isso passou a suceder a partir do início de 2017, abandonando-se então a contabilização em rubrica única das receitas geradas pela utilização da marca, que assentava no pressuposto de que, não estando a sua utilização disponível para entidades não-aderentes do SIGRE gerido pela A..., a marca se limitava a atestar ao público essa adesão, correspondendo à informação de que os serviços prestados pela A... estavam a ser efectivamente utilizados pelo titular da embalagem, e que o destino da embalagem seria o seu processamento através do referido SIGRE.

Com a perda do exclusivo de gestão de um SIGRE no espaço nacional, a Requerente entendeu, em 2017, que não deveria privar do uso da marca “E...” aqueles que optassem por migrar para um SIGRE diferente daquele que ela gere, e essa, na confissão da Requerente, terá sido a motivação principal para subdividir os rendimentos gerados pela utilização da marca em rendimentos empresariais e rendimentos de capitais – na prática, compensando, com as royalties, a perda de receitas empresariais que resultaria eventualmente da migração de clientes para os novos SIGREs (isto sem perdermos de vista uma segunda razão para uma potencial perda de receitas, a entrada em vigor do UNILEX, que aboliu a obrigatoriedade de marcação das embalagens primárias ou de venda).

A Requerente agiu contabilisticamente como devia, procedendo a uma rigorosa separação entre rendimentos empresariais (categoria B para efeitos de IRS) e rendimentos de capitais (categoria E para efeitos de IRS), permitindo a consideração autónoma de cada uma das parcelas, em termos primeiro contabilísticos, e depois tributários.

O facto, que a Requerente alega e a Requerida não contestou, de não ter ocorrido, nesse ano de 2017, qualquer cobrança do valor da marca a entidades não-aderentes do SIGRE gerido pela A..., não altera as consequências tributárias da contabilização separada.

E isto porque, ao admitir a consideração autónoma de um “Valor da Marca” separado de qualquer contrapartida, torna-se inevitável concluir que, mesmo quanto aos aderentes do SIGRE gerido pela A..., uma parte do valor que lhes foi cobrado foi-o já a título de royalty, no sentido de que, sendo um valor devido contratualmente pelas entidades aderentes nesse período, teria continuado a ser cobrado delas se, no mesmo período, elas tivessem deixado de ser aderentes, mormente por aderirem a um SIGRE alternativo.

Ou seja, impõe-se a conclusão de que, na contratação que ligou a A... aos aderentes do SIGRE que geria, a autonomização da parcela “Valor da Marca” assumiu transparentemente, e de imediato, a natureza de um rendimento de capital que vinculava ambas as partes, e continuaria a vincular no caso de, prescindindo as contrapartes dos serviços da A..., estas continuassem, não obstante, interessadas em beneficiar do uso da marca.

Por outras palavras ainda, a partir do momento em que o “Valor de Compliance” e o “Valor da Marca” foram separados, contratual e contabilisticamente, torna-se irrelevante saber se houve, ou não, no período considerado, não-aderentes do SIGRE a pagar o “Valor da Marca”, e só ele – porque é manifesto que todos os aderentes do SIGRE passaram a pagar o referido “Valor da Marca”, com a sua natureza jurídica e contabilística própria, mesmo que não se tenham apercebido disso, porque porventura o somatório dessas duas componentes, o “Valor...”, não se alterou.

Visto da perspectiva da Requerente, dir-se-á que, com a segregação daqueles dois valores, a marca passou a ser encarada, em substância pelo menos, como um activo intangível identificado separadamente, cuja cedência passou a gerar rendimentos próprios, fossem eles cobrados a aderentes ou a não-aderentes do SIGRE – e rendimentos que, não sendo auferidos pelo autor ou titular originário da marca, são, para todos os efeitos, rendimentos de capitais.

Não são, ao contrário do que alega a Requerente, rendimentos imputáveis à sua actividade geradora de rendimentos empresariais e profissionais, porque manifestamente foram concebidos para serem cobrados a entidades que não fossem ainda, ou deixassem de ser, clientes do SIGRE gerido pela Requerente, e isso sem solução de continuidade – no sentido preciso de não ser necessário prevê-los ex novo para novos aderentes que já utilizassem a marca antes da adesão, e não seria necessário renegociá-los, ou recalculá-los, para ex-aderentes que, não obstante o afastamento, pretendessem manter o uso da marca.

Em suma, no período em causa a Requerente passou a encarar a cedência do uso da marca como um gerador de royalties.

Mas não como um gerador meramente potencial, antes como um gerador actual, cobrando essas royalties, não a candidatos ou a recém-chegados, mas aos próprios clientes do SIGRE que gere: daí que, nesse período, tenha surgido na conta 7814-Royalties, o valor de €1.246.600,49 – um valor que, portanto, foi cobrado, confessadamente, pelo uso da marca, e não como contrapartida dos serviços prestados, porque essa outra contrapartida foi avaliada e registada separadamente, em sede de rendimentos empresariais.

O "poder de atracção" do art. 3º, 2, b) do CIRS não serve para converter puros rendimentos de categoria E em rendimentos de categoria B, em especial quando a separação de rendimentos foi propositada e visou um objectivo muito claro, que foi o de recuperar, através de rendimentos de capitais, possíveis – e previsíveis – perdas de receitas empresariais resultantes da concorrência com outros SIGREs.

Em bom rigor, a Requerente não estava obrigada a autonomizar contabilisticamente o “Valor da Marca” dentro do agregado do “Valor...” que cobrara em anos anteriores.

Se o fez, destacando o rendimento da marca, ainda que esta continuasse eventualmente a ser parte do seu goodwill gerado internamente, é porque o identificou, valorizou e reconheceu separadamente, pretendendo explorá-lo em paralelo, mas com inteira separação, das actividades de gestão do SIGRE – abarcando, nessa dupla cobrança, aqueles que já eram aderentes do SIGRE no período em causa.

Essa autonomização contabilística, voluntária e espontânea, aponta no sentido oposto ao da “atracção pela categoria B”, e é basicamente incompatível com uma tal “atracção” (a menos que quiséssemos admitir que a Requerente e as contrapartes estariam dispostas a ficcionar uma espécie de “contrapartida empresarial extra-SIGRE” para toda e qualquer utilização da marca, como modo de ocultar a sua natureza de “rendimento passivo”, uma hipótese que não consideraremos).

Não será necessário enfatizarmos muito o respeito pelas convenções e escolhas contabilísticas que preside ao regime do CIRC (arts. 17º e 123º do CIRC, por exemplo) para podermos sublinhar que as escolhas contabilísticas da Requerente não devem ser desconsideradas, nem subalternizadas, em favor de uma indiferenciação argumentativa como fundamento da solução tributária correcta[1].

O facto, alegado pela Requerente, de que essa prática contabilística se terá encerrado no final de 2017, regressando presumivelmente a uma cobrança unitária (não-discriminada) do “Valor...”, não somente é irrelevante para o que se passou em 2017, como não corresponde a dados posteriores que, sendo públicos e estando disponíveis, autorizam conclusões diferentes.

Por exemplo, num site da Requerente pode ler-se, na sua página inicial:

A A... informa que celebrará contratos de licença de utilização da marca E...®, sem qualquer custo associado em condições que não comprometam o carácter distintivo da dita marca, com embaladores, importadores e fornecedores de embalagens de serviço que não transfiram a sua responsabilidade pela gestão de embalagens e de resíduos de embalagens para a A... e manifestem legítimo interesse na sua utilização. Para mais esclarecimentos contactar clientes@...

(site: https://www... , consultado em 8/11/2023)

Isso significa que a Requerente continua a considerar separadamente o “Valor da Marca”, tanto que continua a disponibilizar a utilização da marca, agora de forma (aparentemente) gratuita, a quem manifeste “um interesse legítimo na sua utilização”, e não somente aos aderentes do SIGRE que ela gere.

Logo, a decisão de isolar os rendimentos da marca face aos rendimentos empresariais da Requerente, tomada para 2017, perdura, e continua a confirmar essa segregação jurídica e contabilística, formulada em termos, e com finalidades, que impedem qualquer fusão entre ambos – e impedem, certamente, que os rendimentos de capitais consigam ser atraídos pelos rendimentos empresariais a ponto de afastarem a excepção à isenção que é expressamente consagrada no art. 53.º do EBF.

Finalmente, quanto à alegação de que seria subsidiariamente aplicável a isenção do art. 53º, 7 do CIRC, afigura-se meramente conjectural, visto que se reporta a uma liquidação que podia ter ocorrido mas não ocorreu, invocando uma possibilidade normativa que a Requerente não invocou quando declarou os seus rendimentos, e que, mesmo que tivesse sido invocada, não conduziria a um resultado necessário ou automático, pois faltaria ainda a prova de que os gastos em que a Requerente tivesse incorrido eram “comprovadamente relacionados com a realização dos fins de natureza […] ambiental […] prosseguidos por essas pessoas coletivas ou entidades”, nos termos do nº 7 do referido art. 53º do CIRC – sendo que não é uma evidência, ao contrário do que a Requerente alega, que toda a sua actividade esteja comprovadamente relacionada com a realização de fins de natureza ambiental.

Acresce que, como fez notar a Requerida, na medida em que o apuramento do IRC foi, no caso, efectuado pelo rendimento global, que consiste na soma algébrica dos rendimentos líquidos das várias categorias determinadas nos termos do IRS, incluindo os incrementos patrimoniais obtidos a título gratuito, nesse cômputo já foram necessariamente considerados os gastos específicos imputáveis directamente a cada tipo de rendimentos (deduções específicas), bem como já foram deduzidos a esse rendimento, nos termos do art. 53º, 7 do CIRC, os gastos especificamente ligados à obtenção dos rendimentos não-sujeitos a imposto, ou isentos de IRC. Pelo que não pode afastar-se a conclusão de que o resultado não teria sido diferente, se se tivesse tentado aplicar, no final da liquidação, essa isenção do art. 53º, 7 do CIRC.

Em todo o caso, o decisivo é que essa consideração alegadamente supletiva extravasa da fundamentação contemporânea do acto, e ambas as partes no presente litígio concordam que não é legítimo lançar-se mão, ou levar-se em consideração, fundamentação superveniente e extemporânea (art. 39º do PPA, e arts. 34 e 35 da Resposta da AT).

Improcedendo o pedido principal de anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, e de anulação da liquidação adicional contra a qual a reclamação foi interposta, improcede o pedido de reembolso do que foi pago (a título de imposto e de juros compensatórios), e improcede o pedido de pagamento, à Requerente, de juros indemnizatórios.

 

IV.B. – Questões prejudicadas.

 

Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, pela ordem disposta pelo art. 124º do CPPT, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608º do CPC, ex vi art. 29º, 1, c) e e) do RJAT.

 

V. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Manter na ordem jurídica a liquidação adicional impugnada e a decisão de indeferimento da reclamação graciosa;
  3. Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.

 

VII. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 294.758,50 (duzentos e noventa e quatro mil, setecentos e cinquenta e oito euros e cinquenta cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, 1, a), do RJAT e art.º 3.º, 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VIII. Custas

 

Custas no montante de € 5.202,00 (cinco mil, duzentos e dois euros) a cargo da Requerente (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 10 de Novembro de 2023

 

Os Árbitros

 

 

Fernando Araújo (relator, por vencimento)

 

 

 

Luís Baptista

 

 

Magda Feliciano (vencida, junta declaração de voto)

 

Voto Vencido

Entendo não puder subscrever a posição que fez vencimento, no que respeita à requalificação dos rendimentos cobrados pela Requerente aos aderentes do SIGRE, como “Royalties”, no ano 2017.

Na verdade, partindo do princípio da veracidade da Declaração de IRC apresentada pela Requerente e das regras do ónus da prova aplicáveis, no caso concreto, considera-se provado nos autos que a Requerente não cobrou qualquer valor a título de royalties a entidades não aderentes do SIGRE e não provado que a Requerente obteve aqueles rendimentos das entidades aderentes do SIGRE pela simples cedência da marca, em 2017.

Conquanto, constituem factos assentes e não contestados que, em 2017, os rendimentos declarados pela Requerente respeitam a pagamentos de entidades aderentes ao SIGRE, entende-se que tais rendimentos, incluindo os que respeitam ao valor da marca, não seriam obtidos sem a prestação do serviço de gestão de embalagens e resíduos.

Em consequência, não obstante contabilisticamente a Requerente tenha passado a distinguir os rendimentos em função do valor da marca e do valor de compliance, do ponto de vista do direito fiscal tendo tais rendimentos sido cobrados unicamente a entidades aderentes do SIGRE em relação com a actividade de gestão desenvolvida pela Requerente, entende-se que tais rendimentos estão ligados a essa actividade e assim são rendimentos empresariais, por força do princípio da atracção da categoria B (artigo 3.º, n.º 2 b) do Código do IRS).

Pelas razões sumariamente elencadas teria concluído pela procedência do pedido arbitral.

É o que se me oferece dizer.

Razões pelas quais voto vencida.

 

Magda Feliciano

 



[1] J. L. Saldanha Sanches (2007), Manual de Direito Fiscal, 3.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, pp. 367-379; Rui Duarte Morais (2009), Apontamentos ao IRC, Coimbra, Almedina, pp. 62 segs.; Clotilde Celorico Palma (2011), “Algumas Considerações sobre as Relações entre a Contabilidade e a Fiscalidade”, Estudos em Memória do Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, Vol. IV, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 628 segs.; Manuel Henrique de Freitas Pereira (2011), “Relações entre Contabilidade e Fiscalidade – Breve Revisitação a Propósito da Adaptação do Código do IRC às Normas Internacionais de Contabilidade”, Estudos em Memória do Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, Vol. IV, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 953 segs.; Filipe de Vasconcelos Fernandes (2018), “O Balanço Fiscal como Tatbestand na Tributação do Lucro Empresarial”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, 10, 3/4, pp. 130 segs..