Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 779/2023-T
Data da decisão: 2024-03-31  IMT  
Valor do pedido: € 40.401,81
Tema: IMT – aquisição para revenda; caducidade da isenção pelo prazo ou alteração da natureza; ilegalidade de fundamentação a posteriori.
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Sumário:

I – A fundamentação da liquidação assenta na caducidade da isenção de IMT por não ter revendido a fração imobiliária no prazo de três anos; mas, nessa data tal fração já não existe, porque integrada noutra contígua, via alteração prévia da propriedade horizontal, e que pagou o IMT devido.

II – Os argumentos novos trazidos pela AT na resposta (contestação) e no indeferimento da reclamação graciosa não podem ser tidos em conta, por força do princípio da proibição da fundamentação a posteriori.

 

DECISÃO ARBITRAL

O Árbitro singular Tomás Cantista Tavares, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decide o seguinte:

 

I – Relatório

1. A..., SA, nipc..., com sede na com sede em ..., ..., ...-... ..., veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade de indeferimento da Reclamação Graciosa nº: ...2023..., pelo Ofício n.º ..., de 27-07-2023, apresentada contra a Liquidação do Adicional ao Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, (“IMT”) n.º ... de 2022 e DUC nº ..., para pagamento de IMT e juros no valor total de €40.401,81.

 

O requerente alega, em síntese, que a liquidação adicional de IMT é ilegal, por inexistência da fração em causa (C) à data da liquidação do imposto, por se ter integrado, entretanto, noutra fração (B), via alteração da propriedade horizontal, à qual já havia sido liquidado o IMT correspondente: e ocorreria violação da substância sobre a forma e duplicação de imposto.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro singular do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

4. O Tribunal Arbitral singular ficou constituído em 11 de janeiro de 2024.

5. A Requerida apresentou a resposta, por exceção e impugnação, e juntou o processo administrativo.

Alega, em síntese: ineptidão da petição inicial, porque ininteligível e erro na formulação do pedido; a isenção de IMT caducou, não por falta de revenda em 3 anos, mas por alteração do destino e por obras de alteração significativas, o que permite a liquidação da fração B, antes da sua extinção, nos termos do art. 18.º, n.º 3, do CIMT.

 

6. A Requerente foi notificada para se pronunciar sobre a exceção, o que o fez em 27 de fevereiro de 2024.

7. Por Despacho desse mesmo dia, foi dispensada a reunião do art. 18.º do RJAT, por desnecessária, como foram dispensadas as alegações finais, porque o processo já contém todas as questões a decidir, enunciadas de forma clara e exaustiva pelas partes.

8. O tribunal arbitral foi regularmente constituído. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). O processo não enferma de nulidades.

 

II – Decisão

A. Matéria de facto

A.1. Factos dados como provados.

a) Em 20/10/2015, a requerente adquiriu, por hasta pública, 30 frações imobiliárias na Rua ... a ..., Rua ..., ... a ... em Lisboa; entre elas encontravam-se as frações B e C, destinadas a comércio.

b) Esta aquisição beneficiou de isenção de IMT, nos termos do art. 7.º, n.º 1, do CIMT – aquisição para revenda, no prazo de 3 anos.

c) Em 30/9/2016, o requerente efetua contrato de alteração da propriedade horizontal, em que a fração C foi eliminada, por integração na fração B, com nova área, permilagem e valor atribuído. E continuam a destinar-se ao comércio.

d) Na sequência do referido contrato, a Fração «C» foi eliminada, deixando de existir uma caderneta predial urbana relativamente àquela Fração, passando a respetiva área a ser integrada numa única Caderneta a relativa à Fração B

e) Em 2018, após os 3 anos sem efetuar a revenda, a requerente solicitou o pagamento do IMT devido, por caducidade da isenção – e pagou o IMT relativo à fração B, no valor de 2.765,15€

f) A AT procedeu depois a liquidação de IMT e juros em relação à fração C, no valor de 40.401,81€, com base na seguinte fundamentação

Artigo Urbano: ... Fração: C Freguesia: ... Destino do bem: Comércio Valor Declarado: € 536.593,45 Verificou-se que o imóvel supra identificado foi adquirido por escritura de compra e venda n.º 20-A/63, outorgada no Cartório Notarial de B... em 2015-10-20, não foi revendido no prazo de três anos, pelo que caducou o direito à isenção face ao estipulado no n.º 5 do artigo 11.º do CIMT. Vai servir de base à liquidação o valor declarado, nos termos da regra 16.ª do n.º 4 do artigo 12.º, conjugado com o artigo 18.º ambos do CIMT, ao qual vai ser aplicada a taxa de 6,5% nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 17.º do CIMT. Demonstração da liquidação de IMT: Matéria coletável: € 536.593,45 x 6,5% = € 34.878,57 Coleta = € 34.878,57 Imposto pago = € 0,00 Imposto a pagar = € 34.878,57 São devidos juros compensatórios, ao abrigo do artigo 35.º da Lei Geral Tributária, sobre o valor do imposto em falta, desde 2018-11-20. Juros Compensatórios = € 5.523,24 Cálculo dos Juros Compensatórios: € 34.878,57 x 1.445 (20-11-2018 a 03-11-2022) x 4% / 365

g) Inconformada, a requerente deduziu reclamação graciosa, a qual foi indeferida, de forma expressa, com base, em síntese, no seguinte.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

E mais à frente, precisa: a isenção não caducou pela mera alteração da propriedade horizontal, mas porque houve obras que alteraram o estatuto das frações e das suas divisões internas, passando a ser uma unidade – e na modelo 1 entregue em set 2016, indica-se que o imóvel foi modificado e alterado.

h) perante o indeferimento da reclamação Graciosa, a requerente intentou a presente ação arbitral, com pedido com argumentação com base nos factos e preceitos do CIMT

i) no pedido da sua PI sustenta a sua pretensão na violação direta do xxx do CIMI e inconstitucionalidade por violação do art. 8.º da CRP

j) Em 3/11/2022, a requerente pagou a liquidação de IMT e juros em causa, no valor de 40.401,81€.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Os factos pertinentes para o julgamento são escolhidos em função da sua relevância jurídica (art. 596.º do CPC). Assim, da prova documental e do PA retiram-se os factos provados acima elencados, que são os relevantes para a causa da causa.

 

B. Do Direito

Matéria de Exceção

Antes da apreciação do mérito da causa, importa analisar a questão prévia suscitada, relativo à alegada ineptidão da petição inicial, por desconformidade do pedido, em si mesmo (sustenta violação do IMI sem indicar preceito, quando se estamos em presença de IMT e com base no art. 8.º do CRP que nunca é invocado no processo) e perante a conjugação com a sua fundamentação ao longo do articulado do requerimento inicial.

Trata-se, porém, de mero lapso de escrita do requerente, que não tem quaisquer efeitos materiais. É evidente e óbvio que se trata de mero lapso; não dificulta a compreensão da posição e argumentos do requerente, como a requerida os analisa, com total compreensão; não cria qualquer dúvida sobre qual é afinal a retórica do requerente, pois trata-se de erro manifesto; logo, a sua argumentação e pedidos são totalmente claros e inteligíveis; nem é necessário solicitar ao requerente que possa suprir as irregularidades, perante a sua resposta à exceção e clareza de que se tratou de erro involuntário, que não confunde a outra parte nem o tribunal sobre a sua argumentação de facto e de direito.

E assim, decide-se pela improcedência da exceção suscitada pela requerida – e importa agora analisar os temas materiais do presente processo.

 

Matéria da impugnação

O art. 7.º do CIMT contém uma isenção de imposto, sujeita a várias condições: no momento inicial, estão isentos de IMT, os prédios adquiridos para revenda adquiridos por sujeitos com esse estatuto. Foi isso o que aconteceu nos autos – e é aceite pelas partes: em 10/2015, a requerente adquiriu várias frações (e a B e a C), com isenção de IMT, porque os destinava a revenda.

Em geral, essa isenção fica sem efeito, por alguma das seguintes vicissitudes: a) não revenda no prazo de 3 anos; b) ser dado destino diferente dentro desse prazo (por deixar de se destinar a revenda, em termos subjetivos [intenção do sujeito] ou objetivos [alteração substancial do imóvel]; c) ou se foram revendidos novamente para revenda (art. 11.º, n.º 5, do CIMT).

Excluindo a situação da al. c), que não é aplicável nos autos, a verdade é que os dois outros casos desembocam em situações factuais e jurídicas muito diversas, a saber:

Por um lado, ao nível da data da cessação da isenção – e exigibilidade do imposto (e juros compensatórios): num caso, ocorre, de forma automática e concludente, no final dos 3 anos; no outro, aquando da alteração do destino, por auto declaração do sujeito passivo ou inspeção pela AT, de forma mais contenciosa, mas aferida por elementos externos que corporizem essa alteação de destino.

Por outro lado, na definição da taxa de imposto e valor de base da matéria tributável (art. 18.º do CIMT): assim, se ocorrer a caducidade da isenção, pela passagem do tempo (não revenda nos três anos), a taxa e o valor a considerar são os vigentes à data da liquidação (10/2018); ao invés, se ocorrer a alteração do destino (alteração da natureza dos bens), o imposto será liquidado com base nas taxas e valores vigentes à data da transmissão (10/2015).

Estas situações são, pois, diversas – e uma não pode ser reconduzida à outra, ainda que os valores dos imóveis e a taxa de imposto seja o mesmo, em ambos os momentos temporais.

 

Ora, a fundamentação subjacente à liquidação indica, de forma clara, que se reporta ao imóvel C, porque não foi revendido no prazo de três anos, pelo que caducou o direito à isenção face ao estipulado no n.º 5, do art. 11.º do CIMT. E os juros compensatórios são calculados a partir dessa data.

E, consequentemente, o objeto do processo fica marcado por esta fundamentação, nos termos do art. 77.º da LGT: e daí a argumentação do requerente: indica que a fração C já não existe em 2018, porque integrada na fração B, à qual a AT já liquidou o imposto de selo, por caducidade da isenção. E o facto tributário apura-se à data de 2018, e aí já não existe a fração C (art. 18.º, n.º 2, do CIMT)

 

Perante isso, o indeferimento da reclamação graciosa e a resposta da ATA neste processo arbitral vão modificar a fundamentação subjacente: dizem, no fundo, que a liquidação se deve ao facto de ter ocorrido a alteração do destino do imóvel, algures com a integração na fração B e perante as grandes obras subjacentes (e a modelo 1 comprová-lo-ia, e efetuou-se em set 2016), e que ocorreu a caducidade no final do terceiro ano, já não pelo decurso do prazo, mas por causa da alteração do destino, que se verificou em 2016/2017; mas que foi apenas liquidado em 2018, porque, materialmente as duas situações são substituíveis, porque se reportam ao mesmo preceito (art. 11.º, n.º 5, do CIMT), porque a taxa e valores de base são iguais (que com passagem do prazo, quer com alteração do destino anterior) e a linguagem legal é aberta para acolher as duas situações de forma unificada.

Mas a requerida não tem razão, por dois motivos.

Primeiro: como se referiu, as duas situações de caducidade da isenção (passagem de três anos sem revenda ou alteração do destino) são diversas e não podem ser unificadas, em termos factuais, jurídicos e normativos. Se alguém altera o destino e revende no prazo de três anos – não tem evidentemente direito à isenção de IMT. A lógica da isenção é a de não onerar o custo da construção (porque o IMT tende a ser repercutido), mas apenas circunscrita aos operadores que compram para revender e que não acrescentam qualquer valor na cadeia – se querem ficar com os imóveis ou se alteram substancialmente o destino, então caduca a isenção, independentemente do prazo em que os tenham detido. E, como se viu, as diferenças são de monta, em relação ao momento temporal do facto tributário, descrito no art. 18.º, n.º 2 e 3, do CIMT.

Segundo: é jurisprudência assente e uniforme nos tribunais superiores, que a AT não pode efetuar qualquer fundamentação a posteriori, totalmente aplicável também na arbitragem tributária (por ser ainda e também um contencioso de anulação de liquidações de imposto). Veja-se, por exemplo, o Ac. STA de 28/10/2020, proc. 2887/13.8BEPRT (e muitos outros poderiam ser elencados), cujo sumário reza assim: “I - No contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial previsto no art. 99.º e segs. do CPPT, o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do ato sindicado em face da fundamentação contextual integrante do próprio ato, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori. II - Assim, não pode a AT, em sede de recurso jurisdicional, pretender que se aprecie a legalidade da correção que esteve na base da liquidação impugnada à luz de outros fundamentos senão aqueles que constam da declaração fundamentadora que oportunamente externou”.

Volvendo ao caso, o Tribunal não tem de analisar os argumentos posteriores elencados pela AT, inseridos na resposta e no indeferimento da reclamação graciosa. Que, se alguma coisa revela, é a ilegalidade da liquidação de IMT, por erro e insuficiência dos factos e do direito subjacentes à liquidação de imposto, em vício de fundamentação e violação de lei.

Assim, a liquidação sustenta-se apenas no facto de terem passados três anos, sem a revenda da fração C. E o querente tem razão, na argumentação esgrimida: por erro ou incongruência nos factos (ficam sem se saber se é por alteração do destino); porque a fração C já não existe em 2018 – e o requerente pagou o IMT relativo à fração B (que integra também a dita fração C); e pode haver, por isso, um risco de duplicação do imposto com a liquidação impugnada; e finalmente porque, perante a fundamentação da AT, o facto tributário conecta-se com a data da liquidação (10/2018) e nessa data a fração C já não existe em termos materiais e jurídicos, nos termos do art. 18.º, n.º 2, do CIMT.

Perante todo o exposto, anula-se totalmente a liquidação impugnada de IMT e juros.

 

Em 3/11/2022, o requerente efetuou o pagamento da liquidação impugnada e solicita agora que lhe são devidos juros indemnizatórios. E tem razão, por verificação dos requisitos do art. 43.º da LGT: determina-se em meio judicial (arbitragem tributária) que o requerente efetuou pagamento superior ao devido, dada a anulação da liquidação; e que houve um erro imputável aos serviços ao procederem a uma liquidação de imposto que é afinal ilegal, não com base em vício formal, mas em termos materiais, por errada apreciação dos factos e aplicação do direito – cfr. por todos Ac. TCA Norte de 12/1/2023, proc. 02408/16.0BEPRT.

 

III – Decisão

Termos em que se decide julgar:

a) Procedente o pedido arbitral e declarar a ilegalidade e anular o ato de liquidação Adicional ao Imposto Municipal Sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, (“IMT”) n.º ... de 2022 e DUC nº ..., para pagamento de IMT e juros no valor total de €40.401,81

b) Condenar a Autoridade Tributária na devolução ao requerente do imposto e juros indevidamente pago no valor de €40.401,81,

c) Acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados desde 3 de novembro de 2022 até à data do processamento da respetiva nota de crédito

d) Condenar a requerida no pagamento das custas do processo

 

Valor da causa

Fixa-se o valor do processo em € 40.401,81, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária

 

Custas

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

Porto, 31 de março de 2024

Tomás Cantista Tavares