Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 646/2023-T
Data da decisão: 2024-03-28  IVA  
Valor do pedido: € 180.304,27
Tema: IVA – Alteração do método de dedução após fixação do pro rata definitivo.
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Sumário:

I - Encontra-se vedada a possibilidade de correção da metodologia de cálculo, por aplicação do n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA, porquanto esta norma não contempla a possibilidade de um sujeito passivo, que tenha optado por um método de cálculo de direito à dedução do imposto suportado em bens e/ou serviços de utilização mista, poder alterar retroativamente o método utilizado, recalculando a dedução inicial efetuada.

II - Não houve qualquer equívoco na interpretação do regime jurídico aplicável que tenha implicado a não dedutibilidade do IVA, num primeiro momento, em virtude de um errado enquadramento em sede de IVA, confirmado por instruções administrativas.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os Árbitros Fernando Araújo, Ricardo Rodrigues Pereira e Hélder Faustino, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

 

I. Relatório

 

  1. A..., S.A., com o número de identificação fiscal n.º ..., com sede na ..., n.º..., no Porto (doravante “Requerente”), veio, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 10.º todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, para apreciação da legalidade da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa da autoliquidação apresentada e, bem assim, do ato tributário de (auto)liquidação de IVA relativo ao período de abril de 2021 a fevereiro de 2022, nos seguintes termos e fundamentos:
  1. O Requerente aplicou, em 2021 e em 2022, o coeficiente de imputação específico previsto no Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30-01-2009, para apurar o montante de IVA dedutível dos serviços adquiridos à B..., independentemente de estes se destinarem a consumo próprio ou à prestação de serviços da mesma natureza ao C... .
  2. Tal, no entanto, não se afigura correto, porquanto, no que respeita à aquisição de serviços de call center para a prestação exclusiva de serviços da mesma natureza ao C... existe uma conexão direta e exclusiva entre a aquisição de serviços à B... (inputs) e operações ativas (outputs) por si realizadas, da mesma natureza, ao C... .
  3. E, como tal, não estando em causa, quanto a estes serviços, a aquisição de recursos de utilização mista – mas, sim, recursos exclusivamente usados no exercício de uma atividade totalmente tributada (a prestação de serviços de atendimento de chamadas ao C...), não tem aplicação o disposto no artigo 23.º do Código do IVA, mas sim, o disposto no n.º 1 do artigo 20.º do mesmo diploma.
  4. E, como tal, ao invés de aplicar o método do coeficiente de imputação específico previsto no Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30-01-2009, para calcular o IVA a deduzir pela aquisição destes serviços, o Requerente poderia / deveria ter aplicado o método de dedução da imputação direta do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA e, em consequência, deduzir integralmente o montante de IVA incorrido (em vez de 7% desse montante).
  5. Existindo uma conexão direta e exclusiva entre a aquisição de serviços à B... (inputs) e os serviços da mesma natureza prestados, com liquidação de IVA, ao C..., a utilização de um critério de imputação abrangente de toda a sua atividade, como o que resulta da aplicação do Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30-01-2009, não se afigura adequado a calcular o efetivo consumo de recursos, pelo que não se afigura adequado a determinar a capacidade de dedução do IVA em que o Requerente incorre para a realização desta atividade.
  6. De facto, o critério de imputação específico que resulta da aplicação do Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30-01-2009 – que, na prática, se traduz no cálculo de um pro rata geral com algumas adaptações / exclusões – pressupõe a consideração da totalidade das áreas de negócio do Requerente, e do volume de recursos de utilização mista por estas consumido, no cálculo da capacidade de dedução do IVA incorrido (apenas) para o exercício da atividade de prestação de serviços de call center ao C... .
  7. E, como tal, não se poderá afirmar que o critério de imputação específico (do Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30-01-2009) seja mais preciso do que um critério de imputação direta (ou, mesmo, um outro critério de afetação real) da atividade em causa, sendo, pelo contrário, intuitivo, e de bom-senso, o contrário.
  8. De resto, a AT não contesta a maior ou menor adequação do critério da imputação direta na dedução do IVA em causa, mas, somente, a pretensão do Requerente de promover a alteração de metodologia no apuramento da sua capacidade de dedução.
  9. Importa recordar que a retificação, com efeitos retroativos, do exercício do direito à dedução é genericamente possível – não se encontra vedada ab initio, nem tal poderia acontecer, por força do princípio da neutralidade fiscal do imposto – sem prejuízo de o Código do IVA prever procedimentos e prazos específicos para o efeito, consoante o tipo de situação (de “erro”) em causa.
  10. Mesmo que se entenda estar em causa uma regularização de imposto deduzido nas declarações periódicas de 2021, e não o exercício do direito à dedução de IVA que nunca foi deduzido, tal não impede, per se, o sujeito passivo de efetuar uma correção à dedução inicial de imposto, no âmbito do disposto no artigo 78.º, ou do artigo 98.º, consoante o caso.
  11. Mal seria que ao sujeito passivo fosse concedido o direito à retificação, com efeitos retroativos, da dedução de uma dada fatura (por exemplo, por ter ocorrido um lapso na sua contabilização), mas não o direito à retificação retroativa do método por si escolhido para exercer esse mesmo direito, caso apure, entretanto, não ter sido usado o método mais adequado à desoneração do seu encargo com o imposto pago!
  12. Como refere Raquel Montes Fernandes, “[s]endo certo que os sujeitos passivos são livres de escolher o método de dedução que, em cada momento do exercício do direito à dedução, se lhes afigura mais preciso, importa não esquecer que a correção de erros que tenham gerado uma dedução inferior ou superior à devida é, também ela, um imperativo legal (conforme resulta do art.º 184 da Diretiva IVA). Consequentemente, um e outro regime devem ser compatibilizados”.
  13. De facto, “o artigo 184.º da Diretiva 2006/112 prevê que a dedução inicialmente efetuada é objeto de regularização quando for superior ou inferior à dedução a que o sujeito passivo tinha direito. Segundo o artigo 185.º, n.º 1, desta diretiva, a regularização deve ser feita designadamente em caso de alteração dos elementos inicialmente considerados para determinar o montante da dedução. Decorre da leitura conjunta dessas duas disposições que, por um lado, quando, devido à alteração de um dos elementos inicialmente considerados no cálculo das deduções, se torne necessária a regularização, o cálculo do montante desta regularização deve levar a que o montante das deduções operadas afinal corresponda àquele que o sujeito passivo teria o direito de fazer se essa alteração tivesse inicialmente sido tida em conta”.
  14. Resulta, assim, da conjugação dos artigos 184 e 185 do Diretiva IVA, um imperativo legal de regularização (a posteriori, com efeitos retroativos) de deduções de imposto superiores ou inferiores ao montante de dedução a que o sujeito passivo tem direito, independentemente do tipo de erro em causa.
  15. No caso em apreço, a alteração de metodologia da dedução do IVA não se reconduz aos conceitos de erro material ou de cálculo, fatura inexata, anulação da operação ou redução do seu valor tributável, especialmente previstos no artigo 78.º do Código do IVA, sendo entendido, por grande parte da doutrina e da jurisprudência nacional, como correspondendo a um erro de direito (não obstante a Resposta da AT ser no sentido de inexistir, nestes casos, qualquer erro).
  16. É igualmente amplamente reconhecido pela doutrina e jurisprudência nacionais que os erros de direito são regulados pela disciplina do n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA – a título de exemplo, vejam-se as decisões arbitrais Processo n.º 15/2020-T e n.º 493/2021-T [“A errada adoção de um método (coeficiente de imputação específico ou de afetação real) para apuramento do IVA incorrido nos recursos de utilização mista, consubstancia um erro de direito subsumível no n.º 2 do artigo 98.º do CIVA, pelo que o ato tributário de liquidação (autoliquidação) em que se tenha expressado o excessivo ou indevido apuramento do IVA entregue nos cofres do Estado pode ser objeto de revisão no prazo de quatro anos, ao abrigo do n.º 2 do artigo 98.º do CIVA e do artigo 78.º da LGT”].
  17. Não é, como tal, correta a afirmação da AT de que não existe nenhuma norma do sistema comum do IVA ou da legislação interna portuguesa que viabilize a modificação retroativa do método de dedução, porquanto tratando-se esta de um erro de direito, é aplicável a disciplina do n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA.
  18. Tal como não se aceita a afirmação de que a eventual admissão de um procedimento com implicações retroativas colide com o princípio da segurança jurídica e da estabilidade da situação tributária, porquanto o direito à correção de erros também tem enquadramento legal, balizado nos prazos, e de acordo com os procedimentos, previstos na lei para o efeito.
  19. A correção de erros apenas colidiria com os princípios da segurança jurídica e da estabilidade da situação tributária se efetuada fora das normas legais especialmente adotadas pelo legislador para o efeito, o que não se verifica no caso em apreço.
  20. A AT afirma ainda, como vimos supra, que se encontra vedada a correção da metodologia de cálculo, por aplicação do n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA.
  21. Mas também quanto a este ponto não tem razão.
  22. Como se concluiu no processo arbitral n.º 493/2021-T, “[n]ão se vislumbra que exista qualquer base legal que imponha, de forma imperativa e absoluta, que o sujeito passivo apenas possa proceder à correção do método adotado para cálculo do IVA incorrido nos recursos de utilização mista ao longo dos períodos de tributação de cada ano civil e que a correções a efetuar o tenha de ser, de forma exclusiva e definitiva, na declaração periódica do último período de tributação. Afigura-se- nos razoável e racional que o sujeito passivo só, posteriormente, e em tempo mais próximo ou afastado, ao termo do prazo para apresentação da declaração periódica do último período de tributação se aperceba do erro em que incorreu, devendo, portanto, à luz dos princípios da legalidade, da igualdade e da proporcionalidade, ter direito a proceder à correção da situação ilegal, de modo a adequar a dedução do IVA incorrido na aquisição dos recursos de utilização mista o mais possível à efetiva realidade da expressão operacional do exercício da atividade desenvolvida e em função do grau, proporção ou intensidade da utilização dos referidos recursos”.
  23. De facto, conforme refere o STA no acórdão de 12 de Maio de 2021, proferido no proc. 01023/15.0BELRS, para o “exercício do direito à dedução, o legislador português fixou, no Código do IVA, dois conjuntos de prazos para o efeito, consoante tal exercício se processe em termos normais ou patológicos, distinção esta que bem se compreende, se atentarmos à metodologia de autoliquidação que rege a cobrança deste imposto.

Assim, o primeiro conjunto de prazos (situações normais) encontra-se regulado nos artigos 22.º e seguintes – sendo especialmente relevante in casu o artigo 23.º, n.º 6 do Código do IVA – e reporta- se aos casos de relacionamento normal entre o contribuinte e a Administração Fiscal na exigibilidade do imposto; nestes casos, o exercício regular do direito à dedução é regulado consoante o método de dedução adotado, e deve ser exercido num período mais curto (naturalmente), contado a partir do momento em que o imposto se torne exigível.

Já o segundo conjunto de casos reporta-se às situações patológicas, em que o exercício do direito à dedução foi inquinado por erros, falhas ou lapsos e, por conseguinte, pressupõe prazos mais longos para a respetiva correção, devidamente adequados às circunstâncias imponderadas que estão na sua base. Tais prazos encontram-se regulados pelos artigos 78.º, n.º 6 (sob a elucidativa epígrafe “regularizações”) e 98.º, n.º 2 do Código do IVA (sob a epígrafe “revisão oficiosa”), e são de dois e quatro anos, respetivamente”.

  1. Este entendimento veio, ainda, a ser mais densamente concretizado pelo STA no acórdão de 28.06.2017, proferido no processo n.º 01427/24, no âmbito do qual se afirmou que a “aplicação dos métodos de dedução relativos a bens de utilização mista é juridicamente complexa pelo que o erro decorrente da aplicação deste regime jurídico não constitui nem erro material nem erro de cálculo” e, como tal, está em causa um erro de direito”, sendo, consequentemente, aplicável o prazo de 4 anos previsto no n.º 2 do artigo 98.º para operar a respetiva regularização / correção.
  2. Como tal, conclui-se que, “relativamente aos bens de utilização mista, e conforme resulta do disposto no artigo 23.º, n.º 6, do Código do IVA, os sujeitos passivos apenas exercem o direito à dedução na declaração do último período do ano a que respeita a dedução, uma vez que apenas naquele momento será possível aplicar os critérios definitivos para a medida da sua dedução anual. Até lá, a dedução efectuada pelos sujeitos passivos é provisória ou estimada com base no critério histórico, registado no ano precedente. Não se trata, pois, da rectificação de erros, mas do normal funcionamento do método de dedução parcial que apenas é definitivamente concluído, numa base anual, no termo do período (ano) a que respeita”.
  3. Resulta, igualmente, da decisão arbitral proferida no processo n.º 447/2021-T, que “a alteração do método de dedução nos casos de sujeitos passivos mistos, pode sempre ser efectuada ao abrigo do disposto no art.º 98.º, n.º 2, do CIVA, quer a Requerida defenda que é um erro material e por conseguinte a Requerente só o poderia regularizar na “janela” do art.º 78.º, n.º 6, quer entenda que, de acordo com a redacção do n.º 6 do artigo 23.o do Código do IVA, “(...) as correcções ao cálculo da percentagem de dedução, assim como as correcções ao cálculo de dedução efectuada com base em critérios objectivos (método da afectação real) devem ser concretizadas no final do ano em causa e também devem ser reflectidas na declaração periódica referente ao último período do ano em causa”, por ser também nosso entendimento que tais situações se enquadram no denominado erro de Direito. Em ambas as situações aplica-se o art.º 98.º, n.º 2 do CIVA”.
  4. Ou seja, a adoção da norma prevista no n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA – que regula o mecanismo de correção dos critérios de dedução provisórios após apuramento, no final de cada ano, dos valores definitivos – não afasta a possibilidade de os sujeitos passivos, ao abrigo do n.º 2 do artigo 98.º do mesmo diploma, regularizarem, a posteriori, num prazo de 4 anos, uma dedução de imposto inicialmente efetuada.
  5. Tal deriva do facto de a primeira norma (n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA) regular o normal funcionamento do apuramento dos valores definitivos do pro rata ou da afetação real, enquanto que a segunda norma (n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA) é aplicável quando tal dedução tenha sido inquinada por erro (situação patológica).
  6. Uma e outra normas não se excluem, sendo, aliás, complementares.
  7. Mais recentemente, a decisão arbitral proferida no processo n.º 573/2023-T, que teve por objeto a dedução de IVA adicional por alteração retroativa do método de dedução na atividade de gestão de carteira própria de um sujeito passivo misto, concluiu o seguinte:

“Como erro de direito o Supremo Tribunal Administrativo tem considerado as situações em que foi indevidamente utilizado um método de dedução como pode ver-se pelo citado acórdão de 12- 05-2021, processo n.º 01023/15.0BELRS em que se conclui que «uma correcção motivada pela indevida utilização de um método legal de dedução, quando um outro método legal deveria ser aplicável, configura um forçoso erro de Direito (situação patológica), sendo tempestivo o pedido de correcção/revisão da auto-liquidação se efetuado no prazo de quatro anos».

A situação fáctica subjacente a este aresto é substancialmente idêntica à dos autos, pois nele se partiu do pressuposto de que «na sequência de uma revisão interna de procedimentos, o Autor identificou, todavia, duas situações em que havia uma ligação direta e imediata entre os encargos suportados e os serviços prestados e em que não era devida a aplicação do método do pro rata de dedução (conforme invocado pelo Impugnante e não contrariado pela AT).”.

No caso em apreço, o erro que consubstancia a utilização do método do pro rata, numa situação em que era viável a utilização do método da afectação real, que é afirmado pelo Supremo Tribunal Administrativo, é corroborado pela própria interpretação que a Autoridade Tributária e Aduaneira fez do regime de determinação do direito à dedução por instituições de crédito, veiculado pelo Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de Janeiro de 2009, aplicado pela Requerente.

Na verdade, como aí se refere, «face à actual redacção do artigo 23.º, a afectação real é o método que, tendo por base critérios objectivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista» (n.º 7) e apenas «sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico» (n.º 9).

Por isso, sendo o uso de um coeficiente de imputação específico subsidiário da aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, a utilização daquele método, quando é viável o uso do segundo, constitui um erro de direito, na própria perspectiva adotada pela Autoridade Tributária e Aduaneira naquele Ofício-Circulado”.

  1. Por último, alega a AT que a pronúncia do TJUE no caso n.º C-661/18 confirma a impossibilidade legal de uma alteração retroativa do método de dedução do IVA incorrido.
  2. Tal, no entanto, não se afigura verdade e, para o efeito, importa, uma vez mais, trazer à colação as conclusões do acima referido processo arbitral n.º 573/2023-T, na análise efetuada ao caso n.º C-661/18:

“O acórdão do TJUE de 30-04-2020, processo C-661/18 CTT, enunciou as directrizes essenciais sobre a escolha do método de cálculo do pro rata de dedução:

– o legislador português autorizou os sujeitos passivos mistos a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços, pelo que os sujeitos passivos têm a opção de efetuar as suas deduções de IVA de bens e de serviços de utilização mista através do método do pro rata ou com base no método da afetação (n.º 33);

– a aplicação do regime de dedução do IVA por afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços é uma opção facultativa de que os Estados-Membros dispõem na organização do seu regime de tributação. No entanto, embora os Estados-Membros gozem de margem de apreciação na escolha das medidas a adotar para assegurar a cobrança exata do IVA e evitar a fraude, estão obrigados a exercer a sua competência no respeito do direito da União e dos seus princípios gerais, designadamente dos princípios da proporcionalidade, da neutralidade fiscal e da segurança jurídica (v., neste sentido, Acórdãos de 8 de novembro de 2012, BLC Baumarkt, C-511/10, EU:C:2012:689, n.ºs 22 e 23, e de 17 de maio de 2018, Vámos, C-566/16, EU:C:2018:321, n.º 41 e jurisprudência referida) (n.º 34);

– o método escolhido não tem necessariamente de ser o mais preciso possível, mas deve poder garantir um resultado mais preciso do que aquele que decorreria da aplicação da chave de repartição baseada no volume de negócios (n.º 35);

– o princípio da neutralidade fiscal não pode ser interpretado no sentido de que, em cada situação, deve ser procurado o método de dedução mais preciso, a ponto de exigir que se ponha sistematicamente em causa o método de dedução aplicado inicialmente, mesmo após a fixação do pro rata definitivo (n.º 38);

– a Diretiva IVA não impõe ao sujeito passivo que pode escolher entre duas operações a obrigação de aplicar a que implica o pagamento do montante de IVA mais elevado. Pelo contrário, o sujeito passivo tem o direito de escolher a estrutura da sua atividade de forma a limitar a sua dívida fiscal (n.º 40);

– o princípio da segurança jurídica exige que a situação fiscal do sujeito passivo, atentos os seus direitos e obrigações face à Administração Tributária, não possa ser indefinidamente posta em causa, não se afigurando razoável exigir às autoridades fiscais que aceitem, em qualquer circunstância, que um sujeito passivo possa modificar unilateralmente o método de dedução utilizado para a determinação dos montantes de IVA a deduzir (n.º 41);

– o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva n.º 2006/112/CE, não se opõe a que um Estado‐Membro que, ao abrigo dessa disposição, autoriza os sujeitos passivos a efetuar a dedução do IVA com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços utilizados para efetuar tanto operações com direito à dedução como operações sem direito à dedução proíba esses sujeitos passivos de alterar o método de dedução do IVA após a fixação do pro rata definitivo;

– o artigo 184.º da Diretiva IVA prevê que a dedução inicialmente efetuada deve ser regularizada quando for inferior ou superior à dedução a que o sujeito passivo tinha direito.

No entanto, a nível do Direito Nacional, não existe uma proibição generalizada de alterar o pro rata definitivo, designadamente através de regularização, tanto baseada em erro de facto (artigo 23.º, n.º 6, do CIVA), como em «erro de enquadramento ou de direito» (artigo 98.º, n.º 2, do CIVA), como vem entendendo o Supremo Tribunal Administrativo, designadamente nos seguintes acórdãos:

– de 28-06-2017, processo n.º 01427/14;

– de 03-06-2020, processo n.º 0498/15.2 BEMDL;

– de 17-06-2020, processo n.º 0443/13.0BEPRT;

– de 07-04-2021, processo n.º 0796/15.5BEVIS;

– de 12-05-2021, processo n.º 01023/15.0BELRS;

– de 07-04-2022, processo 0379/16.2BEVIS”.

  1. Ou seja, não obstante o TJUE ter concluído que “o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva n.º 2006/112/CE, não se opõe a que um Estado‐Membro que, ao abrigo dessa disposição, (...) proíba esses sujeitos passivos de alterar o método de dedução do IVA após a fixação do pro rata definitivo”, tal não sucede no caso português, porquanto essa proibição generalizada não foi adotada pelo legislador nacional, conforme resulta da jurisprudência acima referida (arbitral e do STA).
  2. Face ao exposto, no que respeita à questão em análise, entende o Requerente não restarem dúvidas de que, no caso em apreço, este pode, nos prazos e nos termos previstos no n.º 2 do artigo 98.º do Código do IVA, retificar a dedução original de imposto por si efetuada, porquanto lhe assiste o direito a corrigir a dedução anteriormente efetuada ao abrigo do coeficiente de imputação específico do Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30-01-2009, optando, dada a conexão imediata e exclusiva entre os inputs e os outputs dos serviços de atendimento de chamadas prestados pelo Requerente, por outro método de dedução que se afigure mais adequado e preciso.
  3. Assim, deve ser reconhecido ao Requerente o direito à dedução adicional de IVA no âmbito desta atividade, no montante de € 180.304,27 (€ 193.875,56 - € 13.571,29).

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado em 12-09-2023, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 14-09-2023. Em 03-11-2023, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou os árbitros, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As Partes foram devidamente notificadas dessa designação, em 03-11-2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou, assim, constituído em 21-11-2023, tendo sido proferido despacho arbitral nessa data em cumprimento do disposto no artigo 17.º do RJAT, notificado à AT para, querendo, apresentar resposta.

 

A AT apresentou Resposta, em 09-01-2024, tendo junto o Processo Administrativo.

Em suma, a AT alega:

  1. Inexistir uma norma do sistema comum do IVA ou da legislação nacional que viabilize uma modificação retroativa do método de dedução usado ab initio pelo sujeito passivo (afastando, em particular, a aplicação do n.º 2 do artigo 98.º, uma vez que o imposto em causa já foi objeto de dedução);
  2. Estar vedada tal modificação por aplicação do disposto no n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA (em particular, remetendo para o processo n.º C-661/18 do TJUE);
  3. Estar vedada tal modificação por colidir com o princípio da segurança jurídica;
  4. Inexistir, no caso em apreço, um erro de direito.

 

Em 01-02-2024, foi proferido Despacho arbitral dispensando a reunião do artigo 18.º do RJAT, convidando as partes a apresentar alegações escritas, sucessivas, no prazo de 10 dias.

 

Em 16-02-2024, o Requerente apresentou alegações escritas, mantendo no essencial o alegado no Pedido de Pronúncia Arbitral.

 

A AT não apresentou alegações escritas.

 

 

II. Saneamento

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

 

III. Fundamentação

 

III.1. Matéria de facto

 

Factos dados como provados

  1. O Requerente é uma instituição de crédito que, no âmbito da sua atividade, realiza, em simultâneo, (i) operações isentas de IVA que não conferem direito à dedução deste imposto e (ii) operações que conferem direito à dedução deste imposto.
  2. O Requerente encontra-se abrangido por distintos regimes de dedução do IVA incorrido:
    1. Quando identifica uma conexão direta e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações ativas (outputs) por si realizadas, aplica o método de dedução da imputação direta (artigo 20.º, n.º 1 do Código do IVA), deduzindo integralmente o imposto incorrido (quanto aos outputs tributados) ou nada deduzindo (quanto aos outputs isentos);
    2. Quando identifica uma conexão direta, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações ativas (outputs) por si realizadas, e consegue determinar critérios objetivos do nível / grau de utilização efetiva, aplica o método da afetação real (artigo 23.º, n.º 2 do Código do IVA);
    3. Para determinar a medida de IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços, afetas indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas (aos recursos de utilização mista), o Requerente aplica o método geral e supletivo do coeficiente de imputação específico, conforme determinado pelo Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30-01-2009.
  3. O Requerente adquiriu, entre início de 2021 e início de 2022, serviços de call center à B..., tendo incorrido num montante total de IVA de € 450.021,81 (cfr. quadro do ponto 51 do Pedido de Pronúncia Arbitral e faturas juntas como Documento n.º 2 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral).
  4. Uma parte desses serviços foi usada para o desenvolvimento da atividade geral do Requerente [parte essa que não é objeto deste processo (cfr., artigos 45 e seguintes do Pedido de Pronúncia Arbitral)], enquanto outra parte foi exclusivamente usada para a prestação de serviços da mesma natureza ao C..., os quais foram (re)faturados a este pelo Requerente com liquidação de imposto.
  5. Em ambos os casos (serviços para consumo próprio vs. serviços prestados ao C...), na aquisição de serviços de apoio ao cliente no atendimento de chamadas telefónicas (serviços de call center) à B..., o Requerente deduziu, tanto em 2021 como em 2022, 7% do IVA incorrido, por aplicação do método da percentagem de dedução calculado nos termos do Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30-01-2009.
  6. Tal resulta do facto de ter qualificado estas despesas (os serviços adquiridos à B...) como recursos de utilização mista.
  7. Os serviços prestados pela B... ao Requerente totalizaram € 842.937,30 (base tributável) + IVA (€ 193.875,55).
  8. Os serviços de call center prestados pelo Requerente ao C... totalizaram € 880.341,00 (base tributável) + IVA (€ 202.478,43), conforme fatura junta como Documento n.º 3 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral, correspondente à refaturação dos serviços adquiridos à B... acrescidos da margem do Requerente pelos seus serviços.
  9. Do universo total de IVA correspondente aos serviços de call center adquiridos pelo Requerente para possibilitar a prestação de serviços da mesma natureza ao C... (€ 193.875,55), o Requerente deduziu o montante de € 13.571,29 (correspondente a 7% do valor total de imposto, o qual foi calculado de acordo com o coeficiente de imputação específico acima referido).
  10. Em 18-04-2023, o Requerente apresentou Reclamação Graciosa relativa à autoliquidação de IVA entre abril de 2021 e fevereiro de 2022, a qual foi indeferida, por Despacho de 02-06-2023, conforme Documento n.º 1 junto ao Pedido de Pronúncia Arbitral.
  11. Em 12-09-2023, o Requerente apresentou o presente Pedido de Pronúncia Arbitral.

 

Factos dados como não provados

Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal Arbitral considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal Arbitral não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13, “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

 

III.2. Matéria de Direito

 

Delimitação do objeto do litígio

 

A questão que se suscita no presente processo arbitral é a de saber se, após dedução do IVA incorrido em despesas necessárias à realização da sua atividade (dedução ao abrigo do artigo 23.º do Código do IVA, aplicando, para o efeito, o coeficiente de imputação específico previsto no Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30-01-2009), o Requerente pode alterar o método de dedução utilizado ab initio, por facto superveniente ou por deteção de um erro no apuramento / no enquadramento jurídico-fiscal.

 

Vejamos,

 

O Requerente peticiona ao Tribunal Arbitral “(...) o reconhecimento do direito à dedução da

totalidade do IVA incorrido na aquisição dos serviços [de call center à B...], no montante remanescente de IVA de € 180.304,27.”.

 

Estamos perante uma situação de alteração retroativa dos critérios que presidiram à escolha do método de dedução relativamente às despesas em causa, tendo as mesmas sido consideradas à data da entrega da declaração periódica em análise, como recursos de utilização mista.

 

O Requerente assume a natureza de sujeito passivo misto, porquanto realiza operações financeiras:

- que não conferem o direito à dedução do IVA, enquadráveis na isenção da alínea 27) do artigo 9.º do Código IVA; e, simultaneamente,

- que conferem o direito à dedução do IVA, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA.

 

No âmbito da sua atividade, o Requerente adquiriu serviços de call center à B... no montante total de € 1.956.616,56, acrescido de IVA no valor de € 450.021,81.

Os serviços de call center adquiridos pelo Requerente e alocados à C... totalizaram o montante de € 842.937,30, acrescido de IVA no valor de € 193.875,55.

 

Os referidos serviços foram integralmente refaturados à C...,

no montante de € 880.341,00, acrescido de IVA, no valor de € 202.478,43.

 

Alega o Requerente que, por lapso, do universo de IVA incorrido na aquisição de serviços de call center alocados à C..., no valor de € 193.875,55, apenas deduziu € 13.571,29, através da aplicação da percentagem de dedução de 7%, quando, na verdade, deveria ter deduzido a totalidade do imposto incorrido, ao abrigo das regras gerais de dedução.

 

Em cumprimento das instruções do Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30-01-2009, a determinação do imposto dedutível incorrido na aquisição de serviços de call center alocados à C... foi efetuada pelo Requerente através da aplicação de um coeficiente de imputação específico.

 

Ora, o Requerente alega que a dedução do imposto assim incorrido decorreu de um erro de enquadramento jurídico, pelo que vem peticionar a correção no que concerne à dedução do IVA incorrido na aquisição de serviços de call center, no período de abril de 2021 a fevereiro de 2022.

 

Acontece que a situação em apreço não se trata de um direito de correção da dedução do IVA incorrido nos recursos de utilização mista, mas sim de alteração ou substituição retroativa do método aplicado de cálculo do direito à dedução do imposto suportado em bens e serviços de utilização mista.

 

Não se trata, pois, do exercício do direito à dedução de IVA que nunca foi deduzido, mas antes de uma regularização de imposto já deduzido.

 

A situação em apreço traduz-se antes numa alteração (ou substituição) da metodologia de cálculo aplicado ao direito ao direito à dedução, de forma a obter uma vantagem económica, não suportada em retificações derivadas de qualquer erro por cumulação de dois métodos de dedução.

 

A alteração retroativa do método de dedução de IVA utilizado não se reconduz à situação do artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA, dado que o imposto inclusivamente já foi deduzido.

 

O direito que a norma pretende acautelar já foi praticado pelo Requerente.

 

É que o imposto dedutível foi calculado nos termos do artigo 23.º do Código do IVA, tendo sido apurado segundo o método escolhido pelo Requerente.

 

O artigo 23.º do Código do Código do IVA, sob a epígrafe “Métodos de dedução relativa a bens de utilização mista”, não licencia casos de acréscimos de dedução de IVA exclusivamente resultantes da modificação, com efeitos retroativos, da metodologia de cálculo da dedução de IVA.

 

Para lá de não existir nenhuma norma do sistema comum do IVA ou da legislação interna portuguesa que viabilize a alteração retroativa do método de dedução, também a eventual admissão de um procedimento com implicações retroativas colidiria com o princípio da segurança jurídica que enforma o sistema comum do imposto.

 

A ratio legis da norma, e a intenção do legislador, foram a de não permitir que ocorram situações em que o sujeito passivo, após ter determinado o imposto dedutível e procedido à autoliquidação do IVA de acordo com o método do pro rata baseado no critério do volume de negócios, venha, mais tarde, derrogar retroativamente a respetiva aplicação, enveredando por pressupostos diferentes, em execução dos quais constrói diversas variantes de imputação que lhe são mais favoráveis para o cálculo das deduções de IVA.

 

Conforme defende João Canelhas Duro a propósito desta matéria: “(...) é incontroverso na jurisprudência que a dedução de IVA é um direito exclusivo dos sujeitos passivos e não um poder-dever, o qual pode ou não ser exercido, não podendo a AT substituir-se-lhes nesse direito, para além de, atento o caráter formalista do imposto, o direito à dedução estar sujeito ao cumprimento das formalidades previstas no CIVA, designadamente temporais.” [1]

 

Entende, pois, que “(...) na dedução relativa a bens mistos, os sujeitos passivos podem optar

pelos métodos de dedução previstos no art.º 23.º do CIVA. A opção por um método em detrimento de outro é uma necessidade decorrente do regime aplicável, não sendo legítima a invocação de um erro quando o sujeito passivo se limitou a optar por um dos métodos que estava ao seu dispor.”.

 

Relativamente à segregação de custos associados a específicos setores de atividade de um sujeito passivo misto, João Canelhas Duro refere que essa segregação “(...) tem de ser realizada no momento do exercício da dedução, não sendo aceitáveis alegações de erro com base em segregações de custos só posteriormente realizadas.”.

 

Acresce que se encontra vedada a possibilidade de correção da metodologia de cálculo, por aplicação do n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA, porquanto esta norma não contempla a possibilidade de um sujeito passivo, que tenha optado por um método de cálculo de direito à dedução do imposto suportado em bens e/ou serviços de utilização mista, poder alterar retroativamente o método utilizado, recalculando a dedução inicial efetuada.

 

Não se está, pois, perante um erro de direito.

 

Com efeito, no caso em apreço, não houve qualquer equívoco na interpretação do regime jurídico aplicável que tenha implicado a não dedutibilidade do IVA, num primeiro momento, em virtude de um errado enquadramento em sede de IVA, confirmado por instruções administrativas.

 

No âmbito do processo n.º 01427/14 do STA, que o Requerente invoca a seu favor, estava em causa uma omissão total de determinação da dedução do imposto relativo aos inputs mistos por complexidade na interpretação do regime jurídico aplicável.

 

O citado acórdão não versa sobre a mesma questão essencial de direito, e não existe identidade entre o pedido objeto da decisão em epígrafe e a situação ora controvertida.

 

Sobre a questão ora em apreço, o TJUE pronunciou-se, recentemente, no acórdão de 30-01-2020, no processo n.º C-661/18 (“CTT - Correios de Portugal”), retirando-se do n.º 31 do acórdão que “(...) o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 173.° da Diretiva IVA, lido à luz dos princípios da neutralidade fiscal, da efetividade, da equivalência e da proporcionalidade, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado Membro que, ao abrigo dessa disposição, autoriza os sujeitos passivos a efetuar a dedução do IVA com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços utilizados para efetuar tanto operações com direito à dedução como operações sem direito à dedução proíba esses sujeitos passivos de alterar o método de dedução após a fixação do pro rata definitivo.”.

 

No n.º 33 do acórdão é sublinhado que, “[no] caso em apreço, é pacífico que, ao abrigo desta

última disposição [artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA], o legislador português autorizou os sujeitos passivos mistos a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços e que os CTT tinham, portanto, a opção de efetuar as suas deduções de IVA de bens e de serviços de utilização mista através do método do pro rata ou com base no método da afetação.”.

 

Ou seja, no âmbito da legislação interna, os sujeitos passivos mistos, como é o caso do Requerente, têm a opção de efetuar as suas deduções de IVA de bens e de serviços de utilização mista através do método do pro rata ou com base no método da afetação real.

Para o que ora importa, no n.º 34 é salientado que “(...) em virtude do artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA, a aplicação do regime de dedução do IVA por afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços é uma opção facultativa de que os Estados Membros dispõem na organização do seu regime de tributação. No entanto, embora os Estados Membros gozem de margem de apreciação na escolha das medidas a adotar para assegurar a cobrança exata do IVA e evitar a fraude, estão obrigados a exercer a sua competência no respeito do direito da União e dos seus princípios gerais, designadamente dos princípios da proporcionalidade, da neutralidade fiscal e da segurança jurídica (v., neste sentido, Acórdão de 8 de novembro de 2012, BLC Baumarkt, C 511/10).”.

 

E, no n.º 35 é recordado que, “(...) relativamente ao princípio da proporcionalidade, que este não se opõe a que um Estado Membro que fez uso da faculdade de conceder aos seus sujeitos passivos o direito de optar por um regime especial de tributação adote uma regulamentação que faz depender a aplicação desse regime da obtenção prévia de uma aprovação, não retroativa, por parte da Administração Tributária, e que o facto de o procedimento de aprovação não ser retroativo não torna este procedimento desproporcionado. Por conseguinte, uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, que recusa aos sujeitos passivos a possibilidade de aplicar, após a fixação do pro rata definitivo, o regime de dedução por afetação, não vai além do que é necessário à cobrança exata do IVA.”.

 

A respeito do princípio da neutralidade fiscal, no n.º 36 e n.º 37 é referido que “(...) é certo que decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que os Estados Membros podem, em conformidade com o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva 2006/112, aplicar, relativamente a uma determinada operação, um método ou uma chave de repartição diferente do método baseado no volume de negócios, desde que, em virtude desse princípio da neutralidade fiscal, esse método garanta uma determinação do pro rata de dedução do IVA pago a montante mais precisa do que a resultante da aplicação do método baseado no volume de negócios. Assim, qualquer Estado Membro que decida autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços deve garantir que as modalidades de cálculo do direito à dedução permitam estabelecer com a maior precisão a parte do IVA relativa às operações que conferem direito à dedução. Com efeito, o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA exige que as modalidades de cálculo da dedução reflitam objetivamente a parte real das despesas ocasionadas pela aquisição de bens e serviços de utilização mista que pode ser imputada a operações que conferem direito à dedução [...]”.

 

Concretizando, o TJUE considerou no parágrafo n.º 38 que “(...) o princípio da neutralidade

fiscal não pode ser interpretado no sentido de que, em cada situação, deve ser procurado o método de dedução mais preciso, a ponto de exigir que se ponha sistematicamente em causa o método de dedução aplicado inicialmente, mesmo após a fixação do pro rata definitivo.”.

 

Relativamente ao princípio da segurança jurídica, no n.º 41 é salientado que este “(...) exige que a situação fiscal do sujeito passivo, atentos os seus direitos e obrigações face à Administração Tributária, não possa ser indefinidamente posta em causa (v., neste sentido, Acórdãos de 6 de fevereiro de 2014, Fatorie, C 424/12, EU:C:2014:50, n.º 46, e de 17 de maio de 2018, Vámos, C 566/16, EU:C:2018:321, n.º 51). Ora, como recorda acertadamente o Governo português, não se afigura razoável exigir às autoridades fiscais que aceitem, em qualquer circunstância, que um sujeito passivo possa modificar unilateralmente o método de dedução utilizado para a determinação dos montantes de IVA a deduzir.”.

 

Remataria o TJUE no n.º 42 que “[resulta] do que precede que o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA, lido à luz dos princípios da neutralidade fiscal, da segurança jurídica e da proporcionalidade, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado Membro que, ao abrigo dessa disposição, autoriza os sujeitos passivos a efetuar a dedução do IVA com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços utilizados para efetuar tanto operações com direito à dedução como operações sem direito à dedução proíba esses sujeitos passivos de alterar o método de dedução do IVA após a fixação do pro rata definitivo.”.

 

Não se encontra estabelecido em nenhuma disposição do sistema comum do imposto que permita essa alteração posterior do método de imputação, porque a eventual obrigatoriedade de aceitação de um tal procedimento não se coadunaria com o princípio da segurança jurídica, o qual protege, em simultâneo, os direitos e obrigações dos sujeitos passivos e das Autoridades Tributárias, o que também decorre da jurisprudência do TJUE, nomeadamente dos acórdãos de 11 de julho de 2002, Marks & Spencer, n.º C-62/00, n.º 35; de 15 de dezembro de 2011, Banca Antoniana Popolare Veneta, n.º C-427/10, n.º 24; e de 6 de fevereiro de 2014, Fatorei, n.º C-424/12, n.º 46.

 

Ainda a propósito do processo n.º C‑661/18, o TJUE admite a alteração do método de dedução no caso concreto, porquanto está subjacente um incorreto apuramento derivado de um erro [de direito] na qualificação de operações, que de acordo com os artigos 19.º e 20.º do Código do IVA, deveriam ter sido consideradas como conferindo o direito à dedução do imposto suportado, com impacto ao nível do imposto a recuperar, determinado por uma situação de ignorância, de boa fé, por desconhecimento da alteração de entendimento vertido numa informação vinculativa da AT.

 

Em conclusão, não se verifica um verdadeiro e próprio erro de direito, por, na verdade, se encontrar em causa um pedido de aplicação retroativa do método de dedução relativa à aquisição de serviços que o Requerente contabilizou como encargos de utilização mista.

 

Face ao que, a pretensão do Requerente carece de base legal, devendo, por isso, considerar-se improcedentes os fundamentos invocados, com todas as consequências legais.

 

 

IV- DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Coletivo julgar totalmente improcedente o Pedido de Pronúncia Arbitral e, em consequência:

  1. Absolver a AT do pedido;
  2. Condenar o Requerente no pagamento integral das custas do processo.

 

 

V-VALOR DA CAUSA

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do CP., do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 180.304,27.

 

 

VI- CUSTAS

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem no valor de € 3.672,00 a cargo do Requerente.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 28 de março de 2024

 

 

(Fernando Araújo)

 

(Ricardo Rodrigues Pereira)

 

 

(Hélder Faustino)

 



[1] “Dedução de IVA, Regularizações e Revisão da Autoliquidação”, CADERNOS IVA 2015, Almedina, página 345 e seguintes.