Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 592/2023-T
Data da decisão: 2024-04-01  IRS  
Valor do pedido: € 197.553,21
Tema: Cláusula geral anti-abuso (art 38.º/2 LGT).
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 SUMÁRIO

A amortização de uma quota com redução do capital social cujo único efeito económico é a distribuição de lucros justifica a desconsideração fiscal desse acto, quando se demonstre o seu carácter anómalo e artificioso e o mero intuito de obtenção de vantagens fiscais, tributando-se o mesmo de acordo com as normas aplicáveis à referida distribuição de lucros.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

1.A..., NIF ... e B..., NIF ..., residentes na ..., ..., ..., ..., ...-... Leiria, vieram requerer, ao abrigo do disposto nos art. 1.º, 2.º/1 a) e 10.º/1 a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária), e do artigo 99.º do CPPT aplicável ex vi art. 10.º/2 c) do mencionado diploma a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir o respectivo pedido de pronúncia sobre a legalidade das correcções constantes dos actos de liquidação oficiosa n.os 2022..., 2022 ... relativos ao de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) de 2018 e juros compensatórios, e ao acto de compensação nº 2022 ... à demonstração de acerto de contas do mesmo ano, os quais, após correcção decorrente do deferimento parcial de reclamação graciosa, envolvem um valor de € 197.553,21 (cento e noventa e sete mil quinhentos e cinquenta e três euros e vinte e um cêntimos).

2.É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por AT ou Requerida.

3.Em 17 de Agosto de 2023 o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.

4.De acordo com o preceituado nos artigos 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 11.º/1 a) do RJAT, o Ex.mo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os membros do Tribunal Arbitral, os quais comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.

5.O Tribunal Arbitral ficou constituído em 24 de Outubro de 2023.

6.Em 30 de Novembro de 2023 a Requerida apresentou Resposta, com defesa por impugnação, juntando o processo administrativo. Nessa data foi proferido despacho solicitando aos Requerentes que se pronunciassem sobre o interesse em manter a produção de prova testemunhal e declarações de parte requeridas no pedido arbitral, indicando, em caso afirmativo, a matéria de facto sobre a qual incidiriam, tendo estes confirmado o interesse e identificado a matéria através de requerimento apresentado em 6 de Dezembro do mesmo ano.

7.Na sequência desse requerimento foi proferido em 12 de Dezembro de 2023 despacho agendando para 31 de Janeiro de 2024, às 10h, a reunião prevista no art. 18.º do RJAT também destinada à prestação de declarações de parte e produção de prova testemunhal.

8.A reunião ocorreu na data prevista, tendo sido ouvida a testemunha E..., contabilista certificada, residente em Leiria e prestado declarações de parte o Requerente A... .

9.No final da reunião foi facultada às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem alegações escritas, sendo, para o efeito, concedido um prazo de 10 dias sucessivos.

10.Os Requerentes apresentaram as suas alegações em 16 de Fevereiro de 2024 e a Requerida em 21 de Fevereiro seguinte.

Posição dos Requerentes

11.Os Requerentes alegam que na sequência de uma acção inspectiva relativa ao ano de 2018 foram confrontados com um conjunto de correcções corporizadas em actos de liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), juros compensatórios e demonstração de acerto de contas que resultou num acerto de contas, no montante total de € 309.575,32, valor esse que seria reduzido para 197.553,21€ em consequência do deferimento parcial da reclamação graciosa apresentada.

12.A correcção resultou da aplicação da norma legal anti abuso prevista no art. 38.º/2 da LGT, aplicação essa que os Requerentes entendem violar o princípio da boa-fé, por resultar de mero procedimento inspectivo interno que deveria ater-se aos elementos contabilísticos e justificativos associados aos mesmos, quando, afinal assenta em elementos relativos à sociedade C..., Lda., incumprindo, assim, as formalidades procedimentais exigíveis.

13.Os Requerentes lamentam que a AT nesse procedimento não lhes tenha solicitado as necessárias informações, pois se o tivessem feito, teriam esclarecido que a amortização da quota adquirida a um antigo sócio e a consequente redução do capital social tinha em vista libertar capital excessivo existente na sociedade, tal como previsto no Código das Sociedades Comerciais.

14.Recordam, para o efeito, que à data dessa operação, a C..., Lda. apresentava capitais próprios que ascendiam a € 1.308.244,55, representando uma autonomia financeira de cerca de 75%, sendo o saldo de caixa e depósitos bancários de € 706.492,77; após a operação de redução de capital, o capital próprio da sociedade passou a € 906.743,61 que correspondia a uma autonomia financeira de cerca de 58%, face a um volume de negócios de € 1.534.507,58.

15.Lembram que logo após essa operação, a Requerente adquiriu 0,99% do capital, por € 12.000 (montante que justifica a valorização de € 700.000 para a quota amortizada).

16.Discordam, por isso, do entendimento da AT, no sentido que que essa operação terá encoberto uma mera distribuição de resultados, o que a levou a desconsiderar aquela e liquidar o imposto neste enquadramento.

17.Insistem que a operação implicou para o Requerente um custo efectivo relativo ao valor da quota de € 532.000,00 adquirida ao seu ex-sócio.

18.Discordam da aplicação da cláusula geral anti-abuso (CGAA), que, no caso, poderia apenas referir-se a uma actuação extra legem (um aproveitamento de forma abusiva da lei para chegar a um resultado fiscal mais favorável, pese embora este não a violar directamente), o que exigiria a demonstração pela AT dos necessários elementos – demonstração essa que não terá ocorrido, já que não evidenciou que as operações realizadas sejam equivalentes, nem o poderia fazer, uma vez que a amortização envolveu a extinção de um quota no montante de € 532.000,00.

19.Não haverá, portanto, equivalência económica entre as situações descritas pelo que não poderá aplicar-se a CGAA.

20.O negócio foi, assim, justificado e adequado, o que afasta também a aplicação do mesmo regime.

21.Opõem-se ainda os Requerentes à aplicação de juros compensatórios, por essa possibilidade não estar prevista na lei à data da operação (decorrendo da L 32/2019) – o que veio a ser reconhecido em sede de reclamação graciosa – facto que determinará a nulidade de todas as liquidações.

22.Insistem os Requerentes na boa-fé com que agiram em todos os momentos, inexistindo na sua conduta qualquer dolo ou negligência.

23.E consideram que a AT violou as suas garantias e expectativas legítimas decorrentes do princípio da confiança quando tentaram aplicar retroactivamente a lei fiscal.

24.Consideram ainda os Requerentes haver violação do princípio da boa-fé, na medida em que depois destes apresentarem a sua declaração em sede de IRS, havia um comportamento público da AT, materializado em várias decisões administrativas de reconhecimento do apuramento dos seus rendimentos, gerador da confiança na legalidade da sua actuação, o que foi contrariado com a aplicação posterior do regime previsto no art. 38.º/2 LGT.

25.Os requerentes alegam também que não tendo sido verificados os pressupostos de exigibilidade das liquidações em causa, não se constituiu qualquer facto tributário, pelo que o pagamento exigido é ilegal, devendo ser anulado.

26.Essa nulidade decorrerá também do facto de a AT ter violado o princípio da verdade material na medida em que, em sede de Inspecção Tributária, não procedeu a todas as diligências complementares e essenciais a que estava obrigada, o mesmo acontecendo relativamente ao princípio do inquisitório, por não ter carreado para o processo todas as provas relativas à situação fáctica em que vai assentou a decisão, nomeadamente conferindo o efectivo benefício em sede de IRS pretensamente atribuído aos Requerentes.

27.Consideram também que, a tributação em IRS resultante da qualificação como lucros dos valores recebidos pelo Requerente obrigaria a sociedade C..., Lda., enquanto sociedade por quotas sujeita ao regime de contabilidade organizada, a efectuar a retenção na fonte a título definitivo, nos termos do art. 71.º/1 a) CIRS, não podendo, por isso, ser imputado aos Requerentes o pagamento do imposto.

28.Alegam finalmente os Requerentes haver falta de fundamentação nos actos de alteração do montante de imposto, em violação do princípio constitucionalmente estabelecido no art. 36.º CRP, com a consequente invalidade.

29.Os requerentes reclamam ainda o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do art. 43.º/1 LGT por erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

Posição da Requerida

30.A Requerida insiste – inclusivamente por remissão – nos argumentos constantes do processo administrativo, considerando o acto impugnado inteiramente válido (depois de corrigida a aplicação da majoração de juros compensatórios).

31.Recorda, assim, que a declaração de IRS dos Requerentes de 2018 foi objecto de análise pelos Serviços de Inspecção Tributária através de um procedimento de inspecção interna no qual se concluiu que a amortização de quota realizada pelo Requerente consubstanciava, na prática, uma distribuição de resultados não declarada, beneficiando indevidamente os sujeitos passivos de tributação claramente mais favorável e desadequada ao facto tributário descoberto.

32.Foi, por isso, aplicada a norma anti abuso prevista no art. 38.º LGT e efectuada a necessária correcção, tributando o acto de acordo com o direito aplicável, o que não foi aceite pelos Requerentes.

33.A AT considera não haver qualquer ilegalidade resultante de o procedimento inspectivo ter sido interno, por se ter limitado a cumprir o disposto no art. 13.º a) RCPITA, tendo-o justificado expressamente no RIT – afastando assim qualquer violação dos princípios da legalidade e da boa-fé.

34.Considera também infundada a pretendida falta de solicitação de informação aos contribuintes, uma vez que foi devidamente cumprido o direito de audição em sede inspectiva e por via da reclamação graciosa, estando devidamente fundamentada a decisão da AT.

35.Ali se explica que a amortização da quota por existência de capital excessivo não era aceite por os montantes financeiros em excesso estarem incorporados em reservas como resultado da ausência de remuneração dos titulares do capital (distribuição de lucro) e, por outro lado, por ter ocorrido um aumento do capital social apenas três meses depois da redução resultante da amortização da quota.

36.O RIT refere ainda a inexistência de critérios objectivos relativamente à determinação do valor da quota, ou dos valores estabelecidos como contrapartida dessa amortização.

37.A consideração da mais-valia paga pelo Requerente pela amortização da quota, para efeito da correcção dos valores de IRS não pode ser efectuada aquando do RIT, mas foi devidamente ponderada no acto de correcção.

38.A aplicação da norma anti abuso fez-se descrevendo procedimento levado a cabo pelo Requerente e explicando em que medida o mesmo equivaleu a uma mera distribuição de lucros, o que ficou demonstrado com o aumento de capital nos três meses seguintes (que evidenciou a desadequação da redução que, por isso, não podia considerar-se ser o objectivo pretendido).

39.A amortização da quota visou, assim, apenas distribuir lucros ao Requerente, aplicando a essa operação a taxa autónoma de 28% (art. 72.º CIRS) o que gerou uma obrigação fiscal de € 22.030,40, quando o imposto devido em sede de IRS, considerando uma distribuição de lucros, se eleva a € 196.000,00.

40.Estão, por isso, cumpridos os requisitos da aplicação do regime da CGAA: a descrição do acto jurídico realizado e do acto com fim económico idêntico, a demonstração de que o mesmo era especialmente dirigido à obtenção de vantagens fiscais.

41.Na reclamação graciosa foi atendida a pretensão dos Requerentes no sentido de não serem aplicado juros compensatórios, pelo que carece de sentido que a questão tenha sido objecto de insistência nesta sede.

42.Discorda ainda a Requerida da invocada violação do princípio da boa-fé resultante do facto de a declaração de IRS apresentada pelos Requerentes em 2020 ter sido validada pela AT (e posteriormente objecto de correcção), já que a inspecção realizada visou  o controlo e análise da declaração, nomeadamente em relação à redução do capital social via amortização de quotas e consequente variação negativa nos capitais próprios da sociedade C..., o que permite afastar a presunção de que são verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes, na medida em que revelem erros inexactidões, falta de esclarecimento da situação tributária ou afastamento dos indicadores objectivos da actividade (art. 75.º LGT).

43.Não aceita também a AT que fosse da responsabilidade da C..., Lda. a retenção na fonte dos valores apurados pelos SIT (que, nessa linha de raciocínio, não poderiam ser imputados aos Requerentes), já que a tributação foi efectuada segundo o enquadramento fiscal indicado por estes, o que impedia a retenção na fonte.

44.A Requerida recorda ainda que a decisão de correcção agora impugnada foi acompanhada da necessária fundamentação quando comunicada, não havendo, por isso, qualquer falha neste plano, o que terá ficado demonstrado pelo facto de os Requerentes, apesar de invocarem falta de fundamento, desenvolverem extensas considerações no sentido de contrariar essa mesma fundamentação.

45.A motivação da decisão foi, assim, clara e devidamente entendida pelos destinatários, os quais, além do mais, puderam exercer o seu direito de audição.

 

II. Saneamento

46.O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objecto do processo dirigido à anulação de actos de correcção liquidação de IRS (v. art.os 2.º e 5.º do RJAT).

47.O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no art. 10.º, do RJAT.

48.As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. art.os 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3).

49.Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

III. Matéria de facto

Factos provados

50.Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:

  1. Desde 04.09.2015 que o Requerente era sócio único da C..., Lda, em razão da aquisição, nessa data, da quota de € 1.995,00 a um sócio (D...) por € 532.000,00, montante obtido por empréstimo da própria sociedade;
  2. Em 7.12.2017 o Requerente enviou à sociedade uma carta solicitando a amortização da quota de € 1.995,00 por excesso de capital social da sociedade;
  3. A operação de amortização da quota, que ocorreu em 2018, gerou € 700.000,00 em favor do Requerente, o que lhe permitiu liquidar o empréstimo de € 532.000,00 obtido junto da sociedade (supra-referido em A);
  4. Três meses após a operação de amortização da quota referida em C., com consequente redução do capital social, a C... efectuou um aumento de € 20.000,00 do capital social;
  5. Os Requerentes procederam à entrega da declaração modelo 3 de IRS de 2018, em 20.06.2019, com anexo G de mais valias onde declararam a amortização de quota da empresa C..., Lda, pertencente ao Requerente, com valor de realização de €700.000,00;
  6. Este facto foi objecto de análise pelos SIT (Serviços de Inspecção Tributária), os quais credenciados pela OI2022..., levaram a cabo um procedimento de inspecção interna;
  7. Em 12.09.2022, os Requerentes foram notificados, em sede de audição prévia, do projecto de correcções do relatório da acção inspectiva efectuada pela Direcção de Finanças de Leiria, tendo estes, em 12.10.2022 peticionado a reapreciação do mesmo projecto;
  8. A Requerida veio a concluir que a referida amortização de quota consubstanciava, na prática, uma distribuição de resultados não declarada, beneficiando indevidamente os sujeitos passivos de tributação claramente mais favorável e desadequada ao facto tributário descoberto, pelo que foi aplicada a norma anti abuso prevista no art. 38.º LGT e recolhido documento de correcção tributando o facto tributário de acordo com o disposto no CIRS (liquidação adicional de IRS número 2022..., referente ao ano de 2018, incluindo os juros compensatórios);
  9. Em 23.11.2022, através de ofício SPGAI – ..., de 21.11.2022, os Requerentes foram notificados do Relatório Final da Inspecção Tributária sobre o período de 2018, tendo apresentado reclamação graciosa do mesmo em 13.03.2023;
  10. Em 19.05.2023, os Requerentes foram notificados para apresentar pronúncia, em sede de audição prévia, perante a proposta de decisão de indeferimento da reclamação graciosa, não se tendo pronunciado;
  11. Em 02.03.2023, os Requerentes foram notificados do despacho do Chefe de Divisão de Direcção de Finanças, ao abrigo de delegação de competências, que deferiu parcialmente a reclamação graciosa, anulando a liquidação de juros majorados, no montante de € 112.022,11;
  12. Em resultado desse deferimento parcial de reclamação graciosa, mantiveram-se correcções no montante de € 197.553,21 cuja apreciação é objecto do presente pedido de pronúncia arbitral.

Factos não provados

51.Não há factos relevantes para esta decisão arbitral que não se tenham provado.

 

52.O tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada ou não provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo remetido pela AT.

 

IV. Matéria de Direito

53.A questão central que se coloca no presente processo prende-se com saber se é devida a aplicação pela AT da CGAA prevista no art. 38.º/2 LGT à operação de amortização da quota de € 1.995,00 do Requerente, realizada em 2018, a qual libertou em favor deste um montante de € 700.000,00, permitindo-lhe liquidar o empréstimo de € 532.000,00 obtido junto da sociedade para aquisição dessa mesma quota em 2015.

54.Os Requerentes questionam, todavia, todo o processo que conduziu à correcção da declaração de IRS de 2018 invocando uma série de vícios que serão analisados em primeiro lugar.

Sobre a natureza interna do procedimento inspectivo

55.Os Requerentes constatam que o resultado do procedimento inspectivo apenas foi possível porque a AT recorreu a elementos, não apenas referentes aos mesmos Requerentes, mas também relativos à sociedade C..., o que implicou a violação de formalidades procedimentais, nomeadamente em termos de participação dos interessados. Impugnam, assim, o carácter interno do procedimento, quando, na sua óptica, terá sido realizada uma inspecção externa (sem se assegurar o cumprimento das exigências formais próprias).

56.Não colhe esta argumentação. De facto, por se tratar de actos de inspecção que se realizam exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos por esta detidos ou obtidos no âmbito do referido procedimento o procedimento de inspecção é qualificado como interno (art. 13.º RCPITA).

57.De facto, os elementos de que a AT dispunha relativamente à C... são, no termos da referida regra, documentos por esta detidos, que integram, portanto, a actuação própria de uma inspecção interna (não implicando uma deslocação às instalações da mesma sociedade, a qual não é, aliás, alegada).

58.Parece resultar das afirmações dos Requerentes que essa natureza interna do processo inspectivo terá impedido – ou, pelo menos, contribuído nesse sentido – que estes pudessem apresentar convenientemente a sua defesa (além de ditar a ausência de outras formalidades do procedimento expresso, que estariam, por isso, em falta, viciando o mesmo procedimento).

59.Não colhendo o argumento que pretendia que o procedimento tivesse natureza externa, ficam directamente prejudicadas as alegações relativas aos vícios resultantes do erro na qualificação do procedimento, sendo que, além disso, em concreto não se verificou qualquer limitação efectiva dos direitos de defesa dos Requerentes.

Sobre a justificação da operação de amortização da quota

60.Relacionada com a questão anterior – mas aparentemente autonomizada – surge a alegação de que a AT só não terá alcançado a motivação que levou o Requerente a solicitar a amortização da quota por não ter solicitado a este os devidos esclarecimentos. Isto porque, na perspectiva dos Requerentes, tais esclarecimentos decorriam da carta enviada em 07.12.2018 à assembleia geral da sociedade (a qual foi, no entanto, apresentada em sede de audição prévia perante o projecto do Relatório da Inspecção Tributária).

61.O argumento também não colhe, na medida em que, tal como refere a Requerida, essa justificação era conhecida da AT por estar referida em documentação na sua posse, e, em qualquer caso, foi possível ponderá-la antes da decisão final, já que o documento foi junto em tempo.

Sobre a falta de fundamentação do Relatório Final de Inspecção Tributária

62.Discordam os Requerentes do entendimento da AT sobre a existência de capital excessivo da sociedade C..., o que terá constituído a justificação para a operação de amortização da quota e redução do capital social.

63.É legítimo que os Requerentes tenham um entendimento diverso da AT sobre o conceito de capital social excessivo e a justificação da sua redução, isso não autoriza, todavia, que por essa via possam concluir que dessa divergência de entendimento resulte uma falta de fundamentação da decisão. A AT justifica (fundamenta). Se os fundamentos não são adequados – que parece ser o que pretendem os Requerentes – haverá eventualmente uma aplicação indevida dos normativos legais, mas nunca uma falta de fundamentação.

64.Concluir-se-á a análise sobre a este aspecto, quando se analisar infra a questão de fundo (saber se estão ou não verificados os requisitos para a aplicação da CGAA).

Sobre a violação do princípio da igualdade fiscal

65.Alegam ainda os Requerentes haver violação do princípio da igualdade fiscal na medida em que a AT ignorou que a operação implicou a amortização de uma quota colocando o Requerente numa situação tributária desfavorável se pretender, no futuro, transaccioná-la – já que detém, uma quota de € 3.000.00 que adquiriu por esse mesmo montante, o que resultará numa mais-valia substancial, em comparação com o que acontecerá com a Requerente que detém uma quota de € 30,00  cujo valor de aquisição foi de € 12.000,00.

66.Não se alcança onde radicará a invocada desigualdade. De facto, é porque a quota de € 3.000,00 foi adquirida por esse valor que, se for transaccionada, haverá lugar a mais-valias substanciais (por corresponder à esmagadora maioria do capital social de uma sociedade com um valor de mercado apreciável). Da mesma maneira que a quota da Requerente, tendo sido adquirida por um valor superior, sendo transaccionada no futuro, gerará mais-valias proporcionalmente mais reduzidas (porque o valor de aquisição se aproximará do valor de mercado). Mas o critério aplicado a ambas as transacções (potenciais) não deixará de ser o mesmo (o diferencial entre o valor de aquisição e o valor de transacção), pelo que estará garantida a igualdade (ou seja, no caso, um tratamento igual em situações idênticas).

67.De facto, não faz sentido que os Requerentes pretendam, aparentemente, que, pelo facto de um deles ter amortizado uma (outra) quota, as quotas que cada um detém tenham de ser sujeitas no futuro, em caso de transacção, a cálculos idênticos para efeitos de aferição das mais-valias.

68.Ainda no âmbito deste argumento, os Requerentes denotam outra desigualdade tributária decorrente do facto de a AT não ter determinado qualquer medida de correcção fiscal quanto ao rendimento da C... .Não se percebe sequer a que correcção se referem, sendo certo que a operação de amortização da quota do Requerente libertou meios para este e já não para a própria sociedade.

Sobre os lapsos no cálculo da mais-valia na operação de aquisição

69.Os requerentes alegam que a AT apresenta, no Relatório Final da Inspecção Tributária de forma propositadamente errada, o cálculo da mais-valia mobiliária da operação de aquisição pelo Requerente da quota do seu sócio, em 2015. Reconhecem, todavia, que a tributação foi calculada sobre o valor correcto. Não há, assim, aparentemente qualquer prejuízo, pelo que não se justifica a análise da questão.

Sobre a aplicação dos juros compensatórios

70.No mesmo sentido, os Requerentes alegam ainda ter a AT erradamente determinado a aplicação de juros compensatórios com base numa disposição (art. 38.º/6 LGT) que não estava em vigor à data dos factos.

71.A AT viria, todavia, a corrigir a situação, anulando a liquidação de juros majorados, pelo que, mais uma vez, não subsiste qualquer prejuízo, o que dispensa mais considerações.

72.Restará apenas insistir que, ao contrário do que pretendem os Requerentes, o lapso – assumido e corrigido pela AT em tempo – não invalida de per se as liquidações. A pretensa indivisibilidade dos elementos que integram a decisão de correcção do rendimento não tem qualquer fundamento.

Sobre a violação do princípio da boa-fé

73.Pretendem também os Requerentes que a AT ao aceitar as declarações de rendimentos dos Requerentes criou nestes a confiança legítima de que não viria posteriormente a contrariar essa posição, nomeadamente vindo a corrigi-las, por aplicação da CGAA. Essa correcção constituirá, assim, uma actuação de má-fé.

74.Pretendem, assim, os Requerentes elevar o princípio da boa-fé à aparente criação automática de direitos adquiridos, ao entenderem que, aceite uma declaração não poderá a AT questioná-la posteriormente.

75.O argumento é evidentemente falacioso. Tal como refere – bem – a AT, a lei presume a boa-fé na actuação dos contribuintes e da administração tributária (art. 59.º/2 LGT), mas essa presunção pode ser afastada nomeadamente quando as declarações do contribuinte se revelem omissas, erradas ou inexactas (art. 75.º LGT). Esse será o caso em qualquer situação na qual a AT venha a corrigir as declarações – como aconteceu relativamente aos rendimentos declarados pelos Requerentes em 2018. 

76.Não se verifica, portanto, qualquer violação do princípio da boa-fé, nem isso poderia conceber-se, sob pena de se estar a proibir a AT de exercer cabalmente a sua função fiscalizadora (que assenta senão sempre, quase sempre, em declarações dos contribuintes, as quais são necessariamente passíveis de verificação e correcção).

Sobre a obrigação da sociedade efectuar a retenção na fonte dos rendimentos

77.Alegam ainda os Requerentes que, a entender-se que a amortização da quota e redução do capital tenha constituído uma distribuição de lucros, caberia à sociedade na C... efectuar a retenção na fonte a título definitivo, nos termos do art. 71.º/1 a) CIRS, não podendo ser imputado àqueles a obrigação de pagamento do imposto, o que tornará ilegal a actuação da AT.

78.Essa retenção na fonte não poderia ter ocorrido, uma vez que não foi esse o enquadramento dado pela empresa aos rendimentos em causa.

79.A correcção efectuada pela AT – alterando o enquadramento fiscal da operação – não pode ficar esvaziada pela qualificação dada anteriormente, nem pode eximir os Requerentes do pagamento do tributo que venha a apurar-se como devido.

Sobre a falta de fundamentação dos actos tributários

80.Entendem ainda os Requerentes haver falta de fundamentação dos actos tributários, justificando essa afirmação no facto de a AT explicar as correcções através de quadros, sem identificação dos critérios que suportem os valores.

81.Não colhe, mais uma vez, a pretensão dos Requerentes, porquanto desde o procedimento inspectivo até à decisão final da reclamação graciosa ficaram claramente expostos os motivos justificativos da decisão – que, aliás, são de simples demonstração, pois tratou-se da desconsideração da operação de amortização da quota e redução do capital e o seu enquadramento a título de distribuição de lucros, o que foi feito através da aplicação da taxa de 28% (art. 72.º/1 d) CIRS) aos € 700.000,00 resultantes da amortização da quota e redução do capital, para calcular o IRS devido, sendo-lhe subtraído depois o montante pago em sede de amortização (€ 22.000,00).

82.A clareza dos fundamentos evidencia-se ainda pelo facto de os Requerentes, ao longo do processo, reagirem demonstrando entenderem aquilo que estava em causa, sempre procurando contrariar os argumentos da AT.

A questão central da aplicação da CGAA

83.Afastados os inúmeros vícios invocados pelos Requerentes, importa analisar a questão central: saber se foi ou não adequada a aplicação pela AT da CGAA ao acto de amortização da quota e redução do capital social, tratando este como mera distribuição de resultados.

84.O art. 38.º/2 LGT estabelece uma CGAA, nos termos da qual são ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.

85.Este regime assume um carácter absolutamente excepcional ao permitir que a tributação seja efectuada por aplicação de outras regras que não as normas gerais que a lei prevê para o(s) negócio(s) efectivamente praticado(s) e bem assim por constituir um desvio ao princípio da segurança jurídica, na sua dimensão de previsibilidade da lei fiscal aplicável, que é um princípio basilar do direito fiscal.

86.Esse carácter excepcional supõe que só possa ser aplicado quando, indubitavelmente, se encontrem verificados todos e cada um dos pressupostos nela previstos.

87.Os pressupostos ou elementos da CGAA podem retirar-se directamente dos termos do art. 38.º/2 LGT, sendo que a doutrina tende a desenvolver a matéria; a obra de Gustavo Courinha, A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito Tributário, de 2009, permanece como uma das mais relevantes e citadas neste propósito, identificando quatro elementos: meio, resultado, intelectual e normativo (os Requerentes referem-nos no p.p.a., acrescentando um elemento sancionatório que parece dever ser considerado como efeito).

O elemento meio

88.O elemento meio supõe a identificação da via escolhida pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal, i.e., o(s) acto(s) ou negócios jurídicos cuja estrutura se encontra determinada em função de um dado resultado fiscal (Courinha, op. cit., p. 165). Essa via, para justificar a aplicação do regime da CGAA, deverá apresentar um carácter anómalo […] ainda que os actos ou negócios que a compõem sejam, em si mesmos, típicos ou vulgares (ibidem, p. 168).

89.No caso, deverá realçar-se, por um lado, a carta identificada em B. da matéria provada e, por outro, a artificialidade do acto.

90.Assim, a existência de uma carta dirigida pelo Requerente à assembleia geral da sociedade da qual ele é o único sócio evidencia um intuito claro de construir uma sucessão de factos capaz de dar consistência a um acto ou solução necessariamente pré decidida.

91.Essa mesma construção revela, só por si, um assinalável grau de artificialidade, por envolver comunicações formais entre a mesma pessoa.

92.Essa artificialidade resulta ainda do carácter anómalo do acto, uma vez que, pretendendo o Requerente obter meios para liquidar a dívida que tinha para com a sociedade, não se bastou em obtê-los da mesma sociedade (o que, em si, seria legítimo, dada a finalidade genérica desta em gerar lucros, cabendo aos sócios decidir se os distribuem, mantêm no activo, ou reinvestem), mas preferiu que a disponibilização desses meios fosse processada através de uma amortização de quota.

93.A escolha dessa via torna-se anómala por duas razões: porque se baseia na assunção de que existiria capital excessivo – o que é contrariado pelo facto de apenas três meses depois efectuar novo aumento da capital – e porque o único efeito económico é a libertação de meios em favor do único sócio, o qual permanece titular da totalidade do capital social.

O elemento resultado

94.Neste elemento resultado importa apenas demonstrar que o sujeito logrou, pelos seus actos, a verificação de uma certa vantagem fiscal e a equivalência dos efeitos económicos com aqueles do acto normal tributado (Courinha, op. cit., p. 176)

95.No caso sub judice, a opção do Requerente em obter os meios através da amortização da quota (ao invés da distribuição de lucros) permitiu-lhe limitar consideravelmente a tributação aplicável.

96.Assinale-se que, ao contrário do que os Requerentes afirmam, a extinção da quota que havia sido adquirida por € 532.000 não teve outro efeito senão o de permitir obter € 700.000,00 da sociedade (e com isso liquidar a dívida à sociedade), já que o sócio em causa permaneceu titular da totalidade do capital social (tal como se referiu anteriormente).

97.O que se verificou, portanto, foi apenas e só uma distribuição de resultados (parcialmente formal, já que se vai consubstanciar na anulação da dívida à sociedade) sem qualquer afectação da posição social do Requerente ou do valor da sua quota (que permanece de 100%).

98.As operações são, portanto, equivalentes.

O elemento intelectual

99.A manifestação da fraude à lei revela-se na pretensão do contribuinte em obter primordialmente uma vantagem fiscal, dirigindo neste sentido os negócios ou actos que pratica. A finalidade não fiscal que, por seu turno, deve guiar a actuação de qualquer sujeito […] é aqui substituída, na sua normal preponderância, por uma finalidade fiscal, acabando secundarizada (Courinha, op. cit., p. 179).

100.Este elemento foi referido anteriormente: pretendendo o Requerente obter meios que lhe permitissem liquidar a dívida à sociedade, não recorreu à distribuição de resultados – enquanto meio próprio para o efeito – usando de um regime para o qual não ofereceu justificação plausível (ou melhor, ofereceu-a, mas contrariou-a logo de seguida) e do qual não obteve outros efeitos senão o da obtenção desses resultados.

101.Para além disso, é manifesto que a vantagem fiscal é significativa.

O elemento normativo

102.A desconsideração fiscal de tais actos ou negócios só sucederá quando, cumulando-se todos os supra referidos requisitos, se demonstre que o efeito fiscal obtido (sempre em atenção aos efeitos identicamente obtidos) merece um juízo de reprovação pelo Direito (Courinha, op. cit., p.189).

103.Não está em questão a liberdade que o contribuinte tem de organizar os seus negócios procurando, dentro dos limites legais, enquadrá-los nos regimes que lhe sejam mais favoráveis.

104.No entanto, ficou já demonstrada a motivação fiscal do acto e o seu carácter anómalo e artificioso. Nesse sentido, parece claro que o enquadramento do acto enquanto amortização de quota e redução do capital social é manifestamente desconforme com a ratio legis do regime.

105.É certo que a Requerida não se preocupa em apresentar um percurso analítico cuidado – recorrendo a transcrições de peças do processo administrativo em termos, no mínimo, excessivos. Mas também é verdade que ficou clara a elisão, o seu quantitativo e o carácter artificioso do mecanismo usado pelo Requerente.

106.Para terminar, importa lembrar apenas a afirmação repetida pelos Requerentes de que em momento algum terão agido com dolo ou negligência.

107.De facto, nada demonstra o contrário. No entanto, a aplicação da CGAA não supõe – ao contrário do que parece assumir-se nessa afirmação – a verificação da culpa dos interessados, mas, menos do que isso, basta a demonstração da inconsistência (ou falta de genuinidade) do propósito, o carácter artificioso do acto e sua desconformidade com a ratio legis, a equivalência dos meios (usado e alternativo) e o intuito de obter vantagens fiscais.  

 

108.Afigura-se, em conclusão, que não colhem os vícios invocados pelos Requerentes, tendo a AT logrado demonstrar os elementos bastantes para a aplicação da CGAA.

 

V. Decisão

Em face do supra exposto, decide-se

  1. Julgar improcedente o pedido de anulação da correcção da liquidação de IRS de 2018 dos Requerentes;
  2. Condenar os Requerentes no pagamento integral das custas do presente processo.

 

VI. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 197.553,21 (cento e noventa e sete mil quinhentos e cinquenta e três euros e vinte e um cêntimos) nos termos do disposto no art. 32.º CPTA e no art. 97.º-A CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º/1 a) e b) RJAT, e do art. 3.º/2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VII. Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 3.672 € (três mil seiscentos e setenta e dois euros), a pagar pelos Requerentes, nos termos dos art. 12.º/2, e 22.º/4  RJAT, e art. 4.º/5 RCPAT.

 

 

Notifique-se.

Lisboa, 1 de Abril de 2024

 

 

Os Árbitros

 

Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Presidente)

 

 

Ana Teixeira de Sousa

 

 

 

Rui M. Marrana (Relator)

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º/5 CPC, aplicável por remissão do art. 29.º/1 e) RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.