Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 156/2023-T
Data da decisão: 2023-11-10  IABA  
Valor do pedido: € 296.197,87
Tema: IABA - Imposto sobre o Álcool, as Bebidas Alcoólicas e as Bebidas adicionadas de Açúcar (IABA). Isenção de imposto (artigo 67.º, n.º 3, alínea a), do CIEC. Requisitos do processo de desnaturação de álcool. Princípio da colaboração. Princípio da boa-fé.
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Sumário:

I – A Administração Tributária está vinculada, na relação com os contribuintes, ao princípio de colaboração, consagrado nos artigos 11.º, n.º 1, do CPA, 59.º da LGT e 48.º do CPPT, bem como ao princípio da boa-fé, reconhecido nos artigos 10.º, n.º 2, do CPA e 59.º, n.º 2, da LGT;

II –A correção tributária que exclui a isenção de IABA, prevista no artigo 67.º, n.º 3, alínea a), do CIEC, relativamente a uma operação de desnaturação de álcool para fins industriais por não ter sido utilizado o desnaturante regularmente previsto, na sequência de um procedimento inspetivo desencadeado posteriormente à realização da operação, viola os princípios de colaboração e da boa-fé, quando se constata que: (i) a estância aduaneira rececionou, com antecedência, uma comunicação do sujeito passivo dando conta da intenção de levar a efeito uma operação de desnaturação para fins industriais mediante a utilização de um desnaturante não autorizado; (ii) a operação foi fiscalizada por um funcionário aduaneiro que pôde constatar, presencialmente, no decurso da operação, e através da extração de amostra, que o desnaturante utilizado não era o indicado para a finalidade a que se destinava o álcool.

III- A violação pela Administração Tributária dos deveres procedimentais de colaboração e de atuação segundo as regras da boa-fé constitui um vício autónomo de violação de lei, suscetível de gerar a anulação do ato tributário impugnado

 

DECISÃO ARBITRAL

Acordam em tribunal arbitral

I – Relatório

 

1. A..., LDA., pessoa coletiva n.º ..., com sede em..., ..., ... -... ..., Tomar, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a legalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Álcool, as Bebidas Alcoólicas e as Bebidas Adicionadas de Açúcar ou outros Edulcorantes (IABA), no montante total de € 296.197,87, dos quais € 9.875,39 relativos a juros compensatórios, e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra ela deduzida, requerendo ainda o reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente tem por objeto social a fabricação de bebidas alcoólicas, exercendo a atividade principal de fabricação de aguardentes não preparadas, com o CAE 11012, e as atividades secundárias de secagem e desidratação de frutos e de produtos hortícolas, com o CAE 10392, produção de vinhos comuns e licorosos, com o CAE 11021, fabricação de álcool etílico de fermentação, com o CAE 20143, e comércio por grosso de bebidas alcoólicas, com o CAE 46341.

 

A Requerente é detentora do estatuto de depositário autorizado e titular do entreposto fiscal de produção, encontrando-se sujeita ao regime de autorização para as subcategorias de IEC designadas como Produtos Intermédios, Bebidas Espirituosas, Álcool Etílico, Álcool Desnaturado, Vinhos Tranquilos e Vinhos Espumantes e Espumosos.

             

 No âmbito da sua atividade, a Requerente procede à desnaturação de álcool de clientes seus, mediante contrato de prestação de serviços ou de venda de bens.

 Para esse efeito, recebe álcool da propriedade de terceiro ou de produção/destilação própria, de seguida procede à sua desnaturação e, após a conclusão desse processo, entrega o mesmo álcool, agora desnaturado, ao seu proprietário ou ao seu adquirente, cobrando uma  retribuição pelos serviços prestados ou de margem de lucro nos bens assim transacionados que inclua a remuneração pela desnaturação.

 A transferência de propriedade, da posse e do risco sobre o álcool destilado ocorre, em qualquer caso, com a entrega do bem, passando, pelo menos nesse momento, para o cliente do serviço ou para o adquirente do álcool desnaturado.

 Sucede que a Requerente foi alvo de ação inspetiva com vista a averiguar o cumprimento das disposições legais relativas à introdução no consumo de álcool isento de imposto para fins industriais, que havia sido declarado à Alfândega de Peniche, na sequência da qual a Autoridade Tributária e Aduaneira veio questionar a aplicação da isenção de IABA, por considerar que o álcool não terá sido desnaturado através do desnaturante previsto na Portaria n.º 1/93, de 2 de janeiro, mas sim através do desnaturante cetrimida, que é utilizado como desnaturante autorizado pela Portaria n.º 968/98, de 16 de novembro, para desnaturação de álcool para fins terapêuticos e sanitários.

 

O procedimento inspetivo deu lugar à instauração de um processo de conferência final (PCF) e à posterior cobrança do IABA no referido montante de € 296.197,87.

 

As introduções no consumo referem-se a um total de 36.080 litros a granel de álcool etílico com 96,1% de TAV, parcialmente desnaturado com cetrimida, ao abrigo da isenção n.º 2020/..., do tipo 1A02, de que é titular a B..., sua cliente, que lhe adquiriu o referido álcool desnaturado pelo valor de € 36.080,00, a que acresceu IVA de € 8.298,40, correspondendo a um valor total de € 44.378,40.

           

Ora, a estância aduaneira de Peniche esteve presente na destilaria no dia 24 de fevereiro de 2021, tendo inspecionado, verificado e validado as operações de desnaturação, e, nesse sentido, a Administração aprovou a desnaturação em processo administrativo próprio e prévio, através de funcionário do posto aduaneiro territorialmente competente.

 

Concluído esse processo, o álcool, já desnaturado com cetrimida, foi transportado, na sua totalidade, para as instalações do adquirente e proprietário, a B... .

 

O Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC) prevê um conjunto de isenções de IABA às bebidas alcoólicas e ao álcool parcialmente desnaturado quando utilizado para fins industriais ou para fins terapêuticos ou sanitários (artigo 67.º, n.º 3, alíneas a) e alínea e), do CIEC), sendo que, tratando-se de álcool utilizado para fins industriais, a isenção depende da aplicação dos desnaturantes identificados na Portaria n.º 1/93, de 2 de janeiro, aí referenciados como sendo Ftalato de dietilo 0,3 por 100 em volume, conjuntamente com Benzoato de benzilo, 2-6 dietilo Xililcarboamil metilamónio (Bitrex), Benzoato de benzilo, 2-6 dietilo Xililcarboamil metilamónio (Bitrex), Ftalato de dietilo e Metiletilcetona (2-butanona). Sendo álcool destinado para fins terapêuticos e sanitários, a isenção aplica-se desde que a operação se realize através do desnaturante previsto na Portaria n.º 968/98, de 16 de novembro, que é referenciado como sendo o brometo de alquiltrimetilamónio (cetrimida).

 

Acresce que, na sequência da emergência de saúde pública ocasionada pela epidemia da COVID-19, a Portaria n.º 89/2020 de 7 de abril, passou a admitir que o álcool destinado aos fins previstos no n.º 3 do artigo 67.º do CIEC possa ser objeto, a título excecional, de desnaturação através de procedimento diverso do previsto na legislação aplicável, desde que previamente autorizado pela estância aduaneira competente.

 

A Autoridade Tributária pretende, no entanto, que haja lugar à tributação em IABA, com a consequente desaplicação da isenção prevista para o álcool desnaturado, por se ter utilizado a cetrimida para desnaturar álcool com fins industriais, quando deveria ter sido utilizado Bitrex ou outro dos desnaturantes referidos na Portaria n.º 1/93.

 

Neste condicionalismo, entende a Requerente que o ato tributário de liquidação de IABA incorre em erro nos pressupostos de dir0eito, além de que constitui abuso de direito por venire contra factum proprium, na medida que a operação de desnaturação foi autorizada e supervisionada pelo posto aduaneiro competente, pelo que a Requerente confiou, legitimamente, estar a proceder em conformidade com as disposições legais aplicáveis.

 

A atuação da Autoridade Tributária violou ainda o princípio da colaboração previsto nos artigos 11.º do CPA e 59.º da LGT, designadamente, por não ter prestado à Requerente as informações e os esclarecimentos necessários para o cumprimento do regime fiscal aplicável e envolve a violação dos princípios da proporcionalidade, da boa-fé e da justiça e razoabilidade, consagrados nos artigos 7.º, 8.º e 10.º do CPA e 55.º da LGT.

 

A desaplicação da isenção, nas circunstâncias do caso, é ainda desconforme com o direito europeu, porquanto a Diretiva n.º 2008/118/CE, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo, estabelece, no seu artigo 27.º, n.º 1, que os Estados Membros deverão sempre isentar do imposto especial de consumo, o álcool desnaturado conforme os processos adotados comunitariamente (alínea a)) ou o álcool não destinado ao consumo humano que tiver sido desnaturado segundo um método aprovado pelo Estado-Membro (alínea b)).

 

Ora, a operação de desnaturação do álcool etílico com recurso a cetrimida é um processo sancionado pela legislação nacional através da Portaria n.º 968/98, para fins terapêuticos e sanitários, correspondendo a um procedimento aceite pela legislação de um Estado-Membro, sendo que a circunstância de o álcool ter sido destinado a fins industriais não constitui uma violação do direito europeu.

 

A Requerente considera ainda que a interpretação dos artigos 66.º, n.º 1, 67.º, n.º 3, 68.º, n.ºs 1 e 5, e 75.º, n.º 2, do CIEC, segundo a qua00l o álcool etílico desnaturado e impróprio para o consumo humano por ingestão, mas cujo processo de desnaturação tenha padecido de irregularidades, que não colocaram em causa a sua inaptidão para o consumo humano, seja tributado pelo IABA à taxa aplicável às bebidas espirituosas, é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, consagrado na parte final do n.º 2 do artigo 18.º e no n.º 2 do artigo 266.º da CRP.

 

Subsidiariamente, a Requerente requer o reenvio prejudicial para o TJUE para esclarecer as dúvidas que se possam suscitar quanto à interpretação da Diretiva n.º 2008/118/CE.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, refere que o artigo 67.º do CIEC estabelece a isenção de imposto relativamente ao álcool utilizado em fins industriais ou destinado a fins terapêuticos e sanitários, sendo que as operações de desnaturação do álcool devem ser realizadas através dos desnaturantes autorizados que se encontram identificados na Portaria n.º 1/93, de 2 de janeiro, para desnaturação para fins industriais, e na Portaria n.º 968/98, de 16 de novembro, para a desnaturação para fins terapêuticos e sanitários.

 

A Portaria n.º 1/93 impõe que os produtos desnaturantes sejam o ftalato de dietilo, o benzoato de benzilo, 2-6 dietilo, xililcarboamilmetilamónio (bitrex) e matiletilcetona (2-butanona), ao passo que a Portaria n.º 968/98 determina que o desnaturante a utilizar seja brometo de alquiltrimetilamónio (cetrimida).

 

Na situação do caso, constatou-se, no âmbito de um procedimento inspetivo, que a Requerente, na qualidade de depositário autorizado, introduziu no consumo, ao abrigo de isenção do tipo 1A02, referente a álcool utilizado em fins industriais, álcool etílico parcialmente desnaturado com cetrimida, tendo violado os pressupostos relativos à isenção do imposto sobre o álcool para fins industriais, prevista na alínea a) do n.º 3 do artigo 67.º do CIEC, na medida em que, para esses fins, o álcool teria de ser desnaturado com um dos desnaturantes indicados na Portaria n.º 1/93, e não com a cetrimida, que é o desnaturante previsto na Portaria n.º 968/98 para a desnaturação parcial do álcool para fins terapêuticos e sanitários. 

 

Por outro lado, a operação de desnaturação foi realizada em 24  de fevereiro de 2021, já posteriormente ao período de vigência da Portaria n.º 89/2020, de 7 de abril de 2020, que se destinou a vigorar durante o estado de emergência determinado pela pandemia Covid-19, e que decorreu até 31 de dezembro de 2020. Sendo certo que a Requerente não efetuou qualquer pedido de autorização para utilizar um desnaturante diverso do aprovado na Portaria n.º 1/93, nem efectuou qualquer pedido de autorização no âmbito da vigência da Portaria n.º 89/2020.

 

Acresce que a utilização da substância prevista na Portaria n.º 1/93, para a desnaturação do álcool para fins industriais, está conforme a Diretiva n.º 92/83/CEE, que autoriza os Estados membros a adotar os procedimentos internos que entendam adequados, incluindo no tocante à identificação dos produtos desnaturantes a utilizar nas operações de desnaturação, e para efeito isenção do imposto especial de consumo.

 

Assim sendo, não tendo o álcool sido desnaturado com os desnaturantes e/ou proporções fixadas nos respetivos diplomas, o imposto torna-se exigível nos termos do n.º 1 do artigo 8.º, conjugado com a alínea f) do n.º 1 do artigo 9.º, do CIEC, considerando ter havido lugar à introdução irregular no consumo por violação dos pressupostos do benefício fiscal. 

 

A Autoridade Autoritária entende ainda que normas relativas a isenções previstas nos artigos 67.º, 68.º, 69.º e 70.º do CIEC não suscitam dúvidas quanto ao seu enquadramento no Direito da União Europeia, não se justificando o pretendido reenvio prejudicial.

 

2. No dia 10 de outubro de 2023, foi realizada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, com produção de prova testemunhal arrolada pelas partes, prosseguindo o processo para alegações pelo prazo sucessivo de 10 dias.

 

Em alegações, as partes mantiveram as suas anteriores posições.

 

            3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 23 de Maio de 2023.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

Matéria de facto

4. A matéria de facto relevante para a decisão da causa é a seguinte.

  

A) Requerente tem por objeto social a fabricação de bebidas alcoólicas, destilados – produção de aguardentes não preparadas (álcool), exercendo a atividade principal de fabricação de aguardentes não preparadas, com o CAE 11012, e as atividades secundárias de secagem e desidratação de frutos e de produtos hortícolas, com o CAE 10392, produção de vinhos comuns e licorosos, com o CAE 11021, fabricação de álcool etílico de fermentação, com o CAE 20143 e comércio por grosso de bebidas alcoólicas, com o CAE 46341.

B) A Requerente é detentora do estatuto de depositário autorizado e titular do entreposto fiscal de produção (EPF) com o nº PT..., sito na ..., ..., na ..., ...-... - ..., encontrando-se sujeita ao regime de autorização para as seguintes subcategorias de IEC: I/000 Produtos Intermédios; S/200 – Bebidas Espirituosas; S/300 – Álcool Etílico; S/400 – Álcool Desnaturado; W/200 – Vinhos Tranquilos (não espumante); W/300 – Vinhos Espumantes (e espumosos).

C) No âmbito da sua atividade, a Requerente procede à desnaturação de álcool de clientes seus, mediante contrato de prestação de serviços ou de venda de bens.

D) No quadro desses contratos, a Requerente recebe álcool propriedade de terceiro ou de produção/destilação própria de substrato vitivinícola/vínico, de seguida procede à sua desnaturação e, após a conclusão desse processo, entrega o álcool desnaturado, ao seu proprietário ou ao seu adquirente, cobrando-se de uma quantia remuneratória dos serviços prestados ou de margem de lucro nos bens assim transacionados que inclua a remuneração pela desnaturação.

E) A Requerente emitiu, em 1 de março de 2021, a declaração de introdução no consumo eletronica E-DIC n.º 21DIC..., correspondente a 18.040,00 litros a granel de álcool etílico com 96,1% de Título Alcoométrico Volúmico (TAV) à temperatura de 20.º C, parcialmente desnaturado com cetrimida.

F) A Requerente emitiu, em 1 de março de 2021, a declaração de introdução no consumo eletronica E-DIC n.º 21DIC..., correspondente a 3.296,00 litros a granel de álcool etílico com 96,1% de TAV à temperatura de 20.º C, parcialmente desnaturado com cetrimida.

G) A Requerente emitiu, em 28 de abril de 2021, a declaração de introdução no consumo eletronica E-DIC n.º 21DIC..., correspondente a 14.744,00 litros a granel de álcool etílico com 96,1% de TAV à temperatura de 20.º C, parcialmente desnaturado com cetrimida.

H) As introduções no consumo, no total de 36.080 litros, foram emitidas ao abrigo da isenção n.º 2020/0..., do tipo 1A02, de que é titular a sociedade B... .

I) A isenção n.º 2020/..., que consta do documento n.º 7 junto ao pedido arbitral, que aqui se dá como reproduzido, contém as seguintes indicações:

Início de validade: 21-09-2020

O tipo da isenção: tipo 1A02 – Parcialmente desnaturado, utilizado em fins industriais;

O código NC 2207.20.00 que abrange os produtos com designação de álcool etílico e aguardentes, desnaturados, com qualquer teor alcoólico;

A quantidade: 100.000,000;

O local de utilização: B..., Lda., Rua ..., n.º ..., ..., ...-... ...;

A estância de controlo: PT000284 – Alfândega do Freixieiro; e

Informação relativa à utilização do produto: “produção de gel desinfetante de mãos”.

J) As introduções no consumo foram tituladas, respetivamente, pelas faturas n.ºs NFACC 0121/41, de 1 de março de 2021, NFACC 0121/42, de 1 de março de 2021, e NFACC 0121/129, de 28 de abril de 2021, que constituem os documentos n.ºs 4, 5 e 6 juntos ao pedido, e que aqui se dão como reproduzidas.

L) As faturas referidas na alínea antecedente foram emitidas pela Requerente a favor da sociedade B..., Lda. e contêm no seu descritivo a seguinte referência: “Álcool etílico parcialmente desnaturado com cetrimida”.  

M) A Requerente, através de fax datado de 17 de fevereiro de 2021, comunicou ao Diretor da Alfândega de Peniche a pretensão de realizar uma operação de desnaturação de álcool para fins industriais nos seguintes termos:

“Sociedade A..., Lda., pessoa coletiva n.º..., entreposto fiscal de produção álcool e de bebidas alcoólicas n.º PT..., vem, nos termos legais, comunicar a V. Exa. que pretende levar a cabo desnaturação de álcool etílico para fins industriais no próximo dia 24-02-2021, pelas 14 horas para o que junta os seguintes elementos exigidos pela Portaria n.º 1/93, de 02/01:

  1. O álcool a desnaturar é vitícola e com o volume de:

        - 18 040 Litros de álcool a 96.1 % e encontra-se no depósito n.º 2.

        - 18 040 Litros de álcool a 96,1% e encontra-se no depósito nº 3.

  1. O desnaturante a utilizar é a cetrimida (CAS no 1119-97-7) na quantidade de:

       - 50 kg no depósito no 2;

        50 kg no depósito nº 3.”

N) A operação de desnaturação, à qual foi atribuído n.º .../2021, foi supervisionada pelo funcionário C..., do posto aduaneiro de Riachos da Alfândega de Peniche.

O) No decurso da operação de desnaturação, foi elaborado, pelo funcionário do posto aduaneiro, um auto de extração de amostras do seguinte teor:

“Aos 24 dias do mês de fevereiro do ano de dois mil e vinte e um, eu C... VAA de 1a Classe na empresa Sociedade A..., Lda., sita em... - ...-... ..., procedi à extração de (três) amostras de 0.5 Lts. antes de se iniciar a operação de desnaturação de 18.040 Litros de Álcool Vínico a 96.1%, acondicionados no depósito n.º 3, e 3 amostras de 0.5 Lts. após a utilização de 50 Kg de Brometo de Alquilmetilamoio (cetrimida), na dita operação, na presença do Sr. D..., funcionário da empresa supracitada, as quais foram devidamente seladas e etiquetadas, tendo sido entregue a amostra n.º 3 ao funcionário supramencionado, para servir de contraprova.

Assim se encerra o presente auto que depois de lido em voz alta e achado conforme, vai ser assinado por todos os intervenientes.

 P) A Requerente foi alvo de uma ação inspetiva, credenciada pela ordem de serviço n.º OI20211..., e desencadeada por despacho do Diretor da Alfândega de Peniche de 27 de agosto de 2021, com vista a averiguar o cumprimento das disposições legais relativas à introdução no consumo de álcool isento de imposto para fins industriais, declarado à Alfândega de Peniche através das declarações mencionadas nas antecedentes alíneas E), F) e G).

M) O projeto de Relatório de Inspeção Tributária, elaborado no âmbito da ação inspetiva, apurou imposto a pagar no valor de € 481.889,39, por violação dos pressupostos do benefício de utilização isenta de imposto a que se refere o artigo 67.º, n.º 3, alínea e), do CIEC, por se ter entendido que a Requerente introduziu no consumo 36.080,00 litros a granel de álcool etílico, parcialmente desnaturado com cetrimida, para utilização para fins industriais.

R) O projeto de Relatório de Inspeção Tributária foi notificado à Requerente, em 10 de setembro de 2021, para efeito do exercício do direito de audição prévia.

Q) Na sequência dessa notificação, a Requerente solicitou a reentrada no seu entreposto fiscal de produção de 13.435 litros de álcool a 96,1% de TAV parcialmente desnaturado e de 1.800 litros de álcool a 70% de TAV parcialmente desnaturado, detidos pela cliente B..., que tinham sido introduzidos no consumo através das declarações referidas nas antecedentes alíneas E), F) e G).  

S) A reentrada foi autorizada pelo Diretor da Alfândega de Peniche, por despacho de 22 de setembro de 2021.

T) Por efeito do deferimento da reentrada de parte do produto sujeito a IEC, no total de 14.100,71 litros, no Relatório Final de Inspeção Tributária, a Autoridade Tributária apurou imposto a pagar no montante de € 286.322,48, correspondente a 20.644,34 litros de álcool contido, na base de 100%, à temperatura de 20ºC, à taxa de € 1.386,93/hl.

U) As conclusões da ação inspetiva determinaram a instauração do Processo de Conferência Final n.º 64/2021em vista à cobrança do IABA em dívida.

V) Por ofício de 10 de janeiro de 2022, a Requerente foi notificada do despacho do Diretor da Alfândega, da mesma data, para o pagamento do montante de € 296.197,87, que inclui o valor de € 286.322,48 referente a imposto e o valor de € 9.875,39 referente a juros compensatórios.

X)  A Requerente procedeu ao pagamento do imposto liquidado e juros compensatórios em 20 de janeiro de 2022.

Z) O Relatório final de Inspeção Tributária, na parte que releva, é do seguinte teor:

 

V - Descrição das irregularidades detetadas

No âmbito da presente ação de natureza fiscalizadora verificou-se que o depositário autorizado SociedadeA... , Lda., ao introduzir 36.080,00 litros a granel de álcool etílico com 96,3 % de TAV à temperatura de 200C, parcialmente desnaturado com cetrimida, ao abrigo da isenção n.º 2020/... do tipo IA02-Álcool parcialmente desnaturado, utilizado em fins industriais, em nome de B..., Lda. com o NIPC ..., violou os pressupostos relativos à isenção do imposto sobre o álcool para fins industriais prevista na alínea a) do n.º 3 do art.º 67º do CIEC, conjugado com os artigos 68.º e 69.º do IEC. A introdução no consumo isenta deste álcool etílico, parcialmente desnaturado com cetrimida, não preenche os condicionalismos especiais para a utilização isenta de álcool desnaturado e que para beneficiar desta isenção, este álcool etílico deveria ter sido parcialmente desnaturado neste interposto fiscal através dos desnaturantes autorizados pela Portaria n.º 1/93, de 2 de janeiro, o que não aconteceu. Neste sentido, o depositário autorizado Sociedade A..., Lda. violou os pressupostos do benefício de utilização isenta do álcool etílico prevista na alínea a) do n.º 3 do art.º 67.º do CIEC, sendo que estes factos consubstanciam a prática de introduções irregulares no consumo, previstas e das alíneas b) e p) do n.º 2 do artº 109.º do RGIT.

[…]

   

VI - Demonstração dos montantes em dívida

A violação dos pressupostos do benefício de utilização isenta do álcool etílico prevista na alínea a) do n.º 3 do art. 67.º do CIEC, constitui fundamento para liquidação do imposto nos termos da alínea f) do n.º 1 do art. 9.º e n.º 6 do art. 11.º, ambos do CIEC, sendo. portanto, exigível o Imposto sobre o Álcool e as Bebidas Alcoólicas (IABA) de € 481.889,39, pela aplicação do disposto no n.º 1 do art.  8.º do mesmo diploma legal. A taxa será a do ano respetivo (2021), aplicada nos termos dos arts.  75.º e 76.º em conjugação com o art. 9.º, e nº 1 e n.º 2 do art.  8.º, todos do CIEC, em função do produto introduzido irregularmente no consumo e do teor alcoólico desse produto. O cálculo da prestação tributária em falta referente a este ponto está refletido no seguinte mapa de apuramento:

 

Data.introd.

Consumo

NIF Operador

Número da e-DIC

Número fatura

Marca Comercial

Código Pautal

Quantidade (Litros) (1)

Grau Alcoólico a 20.ºC  (2)

Quantidade a considerar para efeitos de Cobrança (Litros de álcool 100%)

(3=1x2)

Taxa do ano 2021 (art.º 75.º e 76.º do CIEC) (€/litro 100%) (4)

Montante de IABA em Dívida (€) (5=3x4)

01-03-2021

...

21DIC...

FAT 121/41

Álcool etílico parcialmente desnaturado com CETRIMIDA, 96,1% Vol

22072000

18.040,00

96,30%

17.352,52

13.869,3€

240.944,69€

01-03-2021

...

21DIC...

FAT 121/42

Álcool etílico parcialmente desnaturado com CETRIMIDA, 96,1% Vol

22072000

3.296,00

96,30%

3.174,05

13.869,3€

44.021,82€

28-04-2021

...

21DIC...

FAT 121/129

Álcool etílico parcialmente desnaturado com CETRIMIDA, 96,1% Vol

22072000

14.744,00

96,30%

14.196,47

13.869,3€

1.355,96€

TOTAL

36.080,00

 

34.745,04

 

481.889,39€

 

 

Pelo exposto é exigível, em sede de IABA, o montante de € 481.889,39 a que acresce IVA à taxa normal, acrescendo ainda juros compensatórios nos termos dos n.ºs 1, 3, 6, 7, 8, 9 e 10 do art. 35.º da LGT, de acordo com as taxas em vigor à data, à taxa de 4%, nos termos da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril

Tendo em conta o despacho do Diretor da Alfândega de Peniche, de 22-09-2021, exarado à margem da informação do setor IEC n.º 287/2021, em que foi autorizada a reentrada a título excecional de parte deste álcool parcialmente desnaturado introduzido irregularmente no consumo, e das demais diligências efetuadas, descritas no ponto IX - DIREITO DE AUDIÇÃO PRÉVIA, no controlo desta reentrada do álcool parcialmente desnaturado no entreposto fiscal de produção em apreço, o mapa de apuramento da dívida supra deve rer em conta esta devolução extraordinária autorizada pelo Diretor da alfândega de Peniche  de 14.100,71 litros de álcool contido, na base de 100% de volume, à temperatura de 200C referentes à guia de devolução A n.º 3, de 29-09-2021, da empresa B..., Lda., que reporta à introdução no consumo ocorrida através da e-DIC isenta n.º 21DlC..., respeitante à fatura n.º NFACC 121/129, de 28-04-2021, da empresa Sociedade A..., Lda.

Neste sentido, no campo do mapa de apuramento, referente às quantidades introduzidas ir consumo supra indicadas, respeitante à fatura n.º NFACC 121/129, de 28-04-2021, da empresa Sociedade A..., Lda., que foram introduzidas no consumo através da e-DIC 21 DIC00..., devem ser deduzidos 14.642,48 litros a granel de álcool etílico com à temperatura de 20ºC, parcialmente desnaturado com cetrimida correspondentes a 14.100,71 contido, na base de 100% de volume, à temperatura de 20ºC, entretanto, devolvidos ao entreposto fiscal de produção em apreço.

Assim, para efeitos de liquidação à posteriori deve ser considerando a quantidade de 101 ,52 álcool etílico com 96,3 % de TAV à temperatura de 20ºC, parcialmente desnaturado com cetrimida ao invés dos supramencionados 14.744,00 litros a granel de álcool etílico com 96,3 % de TAV à temperatura de 20ºC parcialmente desnaturado com cetrimida.

Pelo exposto, o cálculo da prestação tributária em falta deve ser corrigido de acordo com o seguinte mapa de apuramento:

 

Data.introd.

Consumo

NIF Operador

Número da e-DIC

Número fatura

Marca Comercial

Código Pautal

Quantidade (Litros) (1)

Grau Alcoólico a 20.ºC  (2)

Quantidade a considerar para efeitos de Cobrança (Litros de álcool 100%)

(3=1x2)

Taxa do ano 2021 (art.º 75.º e 76.º do CIEC) (€/litro 100%) (4)

Montante de IABA em Dívida (€) (5=3x4)

01-03-2021

...

21DIC...

FAT 121/41

Álcool etílico parcialmente desnaturado com CETRIMIDA, 96,1% Vol

22072000

18.040,00

96,30%

17.352,52

13.869,3€

240.944,69€

01-03-2021

...

21DIC...

FAT 121/42

Álcool etílico parcialmente desnaturado com CETRIMIDA, 96,1% Vol

22072000

3.296,00

96,30%

3.174,05

13.869,3€

44.021,82€

28-04-2021

...

21DIC...

FAT 121/129

Álcool etílico parcialmente desnaturado com CETRIMIDA, 96,1% Vol

22072000

101,52

96,30%

97,77

13.869,3€

1.355,96€

TOTAL

21.437,52

 

20.644,34

 

286.322,48€

 

 

Neste sentido e atendendo ao deferimento excecional da reentrada de parte deste produto sujeito a IEC, introduzido irregularmente no consumo, apurou-se em sede do presente procedimento a exigibilidade, em sede de IABA, do montante de € 286.322,48 a que acresce IVA à taxa normal, acrescendo ainda juros compensatórios nos termos do n. 1, 3, 6, 7, 8, 9 e 10 do artigo 35.º da LGT, de acordo com as taxas em vigor

AA) A Requerente apresentou reclamação graciosa contra o ato de liquidação, que foi objeto indeferimento expresso, por despacho do Diretor da Alfândega de Peniche, de 6 de dezembro de 2022.

BB) O despacho de indeferimento baseia-se na informação dos serviços que consta do processo administrativo (PA 202-262), que aqui se dá reproduzida, em que se conclui:

51. A liquidação de imposto objeto da Reclamação Graciosa fundamentou-se nas conclusões obtidas em sede da ação de inspeção, em consonância com as disposições do Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de junho.

52. A Administração Pública está sujeita ao princípio da legalidade e, em obediência a tal princípio, executou todos os procedimentos de acordo com a legislação aplicável à data dos factos, e no estrito cumprimento dos princípios e normas legais estipuladas no nosso ordenamento jurídico.

53. Tendo a Alfândega cumprindo com a legislação em vigor sobre a matéria em causa, designadamente no apuramento e liquidação da dívida.

54. Face ao supra exposto, considera-se que não foram apresentados nesta sede, elementos ou factos suscetíveis de alterar a posição anteriormente assumida, estando reunidos os pressupostos de facto e de direito para ser tomada a decisão final.

55. Assim, propõe-se que seja proferida decisão final de indeferimento da reclamação graciosa do ato de liquidação nos termos e com os fundamentos dados a conhecer através dos ofícios n.º ... e ..., ambos de 2022-10-14 (notificação para a audição prévia), que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais, bem como os da presente informação.

CC) O despacho de indeferimento da reclamação graciosa foi notificado à Requerente em 12 de dezembro de 2022.

DD) O pedido arbitral deu entrada em 13 de março de 2023.

 

Factos não provados

 

Não se encontra provado que a sociedade B... dispusesse de autorização para o envasilhamento de álcool parcialmente desnaturado com cetrimida para fins terapêuticos e sanitários.

 

Não se encontra provado que tenham sido emitidos a prévia autorização da estância aduaneira e o parecer favorável da Direção-Geral da Saúde ou da Direção-Geral da Alimentação e Veterinária para adoção do procedimento excecional de desnaturação a que se refere a Portaria n.º 89/2020, de 7 de abril.

 

Não existem quaisquer outros factos não provados que sejam relevantes para a decisão da causa.

 

Motivação da matéria de facto

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição inicial e os constantes do processo administrativo apresentado pela Autoridade Tributária.

 

Em audiência, a testemunha D..., engenheiro de produção da Sociedade A..., Lda., referiu com relevância o seguinte.

 

A desnaturação do álcool foi efetuada com cetrimida a pedido da sociedade B..., que forneceu o desnaturante. O desnaturante foi importado da Índia, tendo a cliente realizado análise em laboratório para a sua certificação. Para efeito da operação de desnaturação, a Sociedade A... informou a estância aduaneira com todas as indicações necessárias. Estava previsto que a desnaturação fosse para fins industriais. Um funcionário aduaneiro compareceu nas instalações da Requerente para controlar e validar todos os passos da operação.

 

A atividade da Requerente centrava-se na produção de aguardente, só tendo passado a efetuar a desnaturação para fins industriais, em vista à produção de álcool gel, com o surgimento da pandemia COVID. No processo de desnaturação devia ter sido utilizado o Bitrex, mas na desnaturação para fins industriais é indiferente a utilização de um ou outro desnaturante.   O álcool desnaturado com cetrimida é equivalente ao desnaturado com Bitrex, quando o álcool se destine a fins industriais. A desnaturação dá lugar a um álcool impróprio para consumo.

A testemunha E... declarou que a Sociedade A... tem uma destilaria que se destina à produção de aguardente e álcool desnaturado. Para realizar a desnaturação tem de haver uma comunicação à alfândega territorialmente competente, que, no caso da Requerente, é o posto aduaneiro de Riachos, que envia um funcionário para controlar a operação. O funcionário desloca-se às instalações da destilaria, sob pagamento de uma taxa, e vai verificar a quantidade de produto a desnaturar, a quantidade de desnaturante e o volume a marcar. Na operação de desnaturação, há lugar a uma segunda colheita para extração de amostras que o funcionário aduaneiro leva para análise. Concluído o processo de desnaturação, o álcool fica marcado e poderá ser introduzido no consumo. Mesmo no regime de exceção que decorreu no período da pandemia, a destilaria utilizava desnaturante para a operação de desnaturação. A cetrimida tem um aspeto visual diferente do Bitrex.

 

Matéria de direito

 

6. Em debate está a questão de saber se há lugar à sujeição a imposto sobre o álcool e bebidas alcoólicas (IABA), com a consequente exclusão da isenção prevista no artigo 67.º, n.º 3, alínea a), do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo (CIEC), quando o álcool destinado a fins industriais tenha sido desnaturado com desnaturante diverso do especialmente previsto na Portaria n.º 1/93, de 2 de janeiro.

 

Como ponto de partida para a análise, cabe considerar o âmbito de incidência objetiva do imposto sobre o álcool e bebidas alcoólicas, bem como as isenções e o regime aplicável ao álcool desnaturado e às operações de desnaturação que se refere a secção I do capítulo I da parte especial do CIEC, que consta dos artigos 66.º, 67.º, 68.º e 69.º, que a seguir se transcrevem, na parte que mais interessa considerar.

 

Artigo 66.º

Incidência objetiva

1 – O imposto incide sobre a cerveja, os vinhos, outras bebidas fermentadas, os produtos intermédios e as bebidas espirituosas, genericamente designadas por bebidas alcoólicas, e sobre o álcool etílico, genericamente designado por álcool.

2 – Para efeitos de aplicação do número anterior, entende-se por:

[…]

j) «Álcool etílico parcialmente desnaturado» o álcool a que se adicionaram, como desnaturante, substâncias químicas que o tornam impróprio para o consumo humano por ingestão;

[…].

 

Artigo 67.º
Isenções

[…]

3 - Está ainda isento do imposto o álcool:

a) Utilizado em fins industriais, nos termos do artigo 68.º, designadamente sempre que o álcool desnaturado tenha sido incorporado num produto não destinado ao consumo humano ou seja utilizado para a manutenção e limpeza do equipamento utilizado nesse processo de fabrico específico;

[…].

e) Destinado a fins terapêuticos e sanitários;

[…].


Artigo 68.º
Álcool desnaturado

1 - Para efeitos de isenção do imposto, o álcool utilizado em fins industriais deve ser objeto de desnaturação, através de desnaturante a identificar por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia, ou através dos desnaturantes nas proporções descritas no ponto i do anexo ao Regulamento de Execução (UE) n.º 162/2013, da Comissão, de 21 de fevereiro, sendo que, para efeitos de comercialização exclusivamente em território nacional, é permitida a adição de corante - azul de metileno - à fórmula prevista naquele regulamento, na proporção de 2 g/hl de álcool a desnaturar.

2 - Em derrogação do disposto no número anterior, o álcool para utilização em fins industriais pode excecionalmente não ser desnaturado desde que, comprovadamente, a desnaturação se revele prejudicial à saúde pública.

3 - Para efeitos do número anterior, a autorização é dada pelo diretor da alfândega e fica subordinada à condição da utilização industrial se realizar no local especificado naquela autorização, ou noutro local sob controlo aduaneiro.

4 – […]

5 – Para efeitos da isenção do imposto prevista na alínea e) do n.º 3 do artigo anterior, o álcool para fins terapêuticos e sanitários, destinado à venda ao público em farmácias, drogarias e outros estabelecimentos comerciais, para o efeito devidamente licenciados, deve ser objeto de desnaturação, através de desnaturante a identificar por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da saúde.

6 - Os operadores referidos no n.º 1 do artigo 4.º, que pretendam receber álcool parcialmente desnaturado de outro Estado membro ou de países terceiros, devem comunicar à estância aduaneira competente, no termo da operação de circulação ou no ato da importação, consoante o caso, o desnaturante utilizado e as respetivas quantidades.

7 - Para efeitos do número anterior, só se considera álcool desnaturado se a desnaturação tiver sido realizada nos termos da legislação nacional aplicável.


Artigo 69.º
Operações de desnaturação

1 - A desnaturação, total ou parcial, referida no artigo anterior, deve ser realizada em entreposto fiscal, mediante autorização da estância aduaneira competente.

2 - Em exceção do disposto no número anterior, a estância aduaneira competente pode autorizar a desnaturação do álcool nas instalações onde vai ser utilizado, a pedido da entidade a que o álcool se destina.

3 - As operações de desnaturação devem ser precedidas da apresentação de uma declaração junto da estância aduaneira competente, no prazo de dois dias úteis anteriores à operação, indicando a espécie e o volume de álcool a desnaturar e a espécie e quantidade de desnaturante a utilizar.

4 – […].
5 - A estância aduaneira competente deve controlar as operações de desnaturação e proceder à recolha de amostras sempre que o entenda conveniente.

6 – […].

 

Os desnaturantes autorizados para efeitos de isenção de imposto quanto ao álcool destinado a fins industriais, a que se refere o artigo 67.º, n.º 3, alínea a), do CIEC, constam da Portaria n.º 1/93, de 2 de janeiro, e são identificados em anexo à Portaria como sendo Ftalato de dietilo (0,3 por 100 em volume) conjuntamente com Benzoato de benzilo (2/1 000 000 em peso/volume de álcool), Benzoato de benzilo 2-6 … dietilo Xililcarboamil metilamónio (Bitrex), Ftalato de dietilo (0,5% por 100 em volume de álcool) e Metiletilcetona (2-butanona).

 

Sendo o álcool destinado para fins terapêuticos e sanitários, a isenção do imposto, a que se refere o artigo 67.º, n.º 3, alínea e), do CIEC, aplica-se desde que a operação se realize através do desnaturante previsto na Portaria n.º 968/98, de 16 de novembro, que é referenciado como sendo o brometo de alquiltrimetilamónio (cetrimida).

 

As Portarias em causa foram emitidas ao abrigo do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 117/92, de 22 de junho, que regulava a produção, a importação, a introdução, a detenção, a circulação, a exportação e a expedição do álcool etílico não vínico. Esse diploma foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 300/99, de 5 de agosto, que procedeu à fusão dos Decretos-Leis n.ºs 117/92, de 22 de Junho, e 104/93, de 5 de Abril, que transpuseram para a ordem jurídica interna as Diretivas n.ºs 92/83/CEE e 92/84/CEE, do Conselho, de 19 de Outubro. O Decreto-Lei n.º 300/99 foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 566/99, de 22 de dezembro, que aprovou a primeira versão do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo (CIEC), que, por sua vez, foi revogado e substituído pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 6 de junho, que aprovou o atual Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC).

 

 Uma norma de idêntico teor à do citado artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 117/92, remetendo para portaria dos ministros das Finanças e da Economia ou para portaria dos ministros das Finanças e da Saúde, respetivamente, a identificação dos desnaturantes autorizados, para efeitos de isenção, relativamente ao álcool destinado a fins industriais ou a fins terapêuticos ou sanitários, consta do artigo 68.º, n.ºs 1 e 5, do Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC) em vigor, que se encontra acima transcrita. Mas não veio a ser publicada, em execução desse preceito, qualquer nova regulamentação relativa à identificação dos desnaturantes a utilizar para qualquer dessas situações, pelo que deve entender-se que se mantêm em vigor as Portarias n.º 1/93 e n.º 968/98, visto que permanece a exigência legal de realizar a desnaturação através de um desnaturante a identificar através de regulamento. De resto, a Portaria n.º 89/2020, de 7 de abril, publicada já na vigência do CIEC e a que se fará referência de seguida, continua a fazer alusão, no respetivo preâmbulo, às Portarias n.º 1/93, de 2 de janeiro, e n.º 968/98, de 16 de novembro, como sendo os diplomas em que se encontram identificados os desnaturantes a utilizar para efeito da desnaturação para fins industriais ou para fins terapêuticos e sanitários.

 

7. Deve dizer-se, a este propósito, que não tem qualquer aplicação ao caso o procedimento excecional de desnaturação implementado pelo artigo 3.º da Portaria n.º 89/2020, de 7 de abril.

 

 Como resulta do respetivo preâmbulo, essa Portaria pretendeu adotar medidas excecionais relativas às formalidades aplicáveis à produção, armazenagem e comercialização, com isenção do imposto, de álcool destinado aos fins previstos no n.º 3 do artigo 67.º do CIEC, na sequência da emergência de saúde pública ocasionada pela epidemia da doença COVID-19. A nota preambular faz, de resto, expressa referência ao decretamento do estado de emergência, através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, bem como à renovação do estado de emergência através do Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril.

 

Acresce que o artigo 5.º prevê expressamente que a portaria entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (8 de abril de 2020) e vigora até terminar o estado de emergência, com efeitos reportados, nos termos do subsequente artigo 6.º, a 20 de março de 2020.

 

Por outro lado, o citado artigo 3.º da Portaria apresenta a seguinte redação:

 

Procedimento excecional de desnaturação

1 - O álcool destinado aos fins previstos no n.º 3 do artigo 67.º do CIEC pode a título excecional ser objeto de desnaturação através de procedimento diverso do previsto nos termos da legislação nacional aplicável, desde que previamente autorizado pela estância aduaneira competente.

2 - Em derrogação do disposto no número anterior, o álcool pode excecionalmente não ser desnaturado, em caso de rotura de mercado, ou quando esta se revele iminente, desde que destinado a um dos fins previstos no n.º 3 do artigo 67.º do CIEC, mediante prévia autorização da estância aduaneira competente.

3 - Para efeitos do presente artigo, a autorização a emitir pelas estâncias aduaneiras fica dependente de parecer favorável da Direção-Geral da Saúde ou da Direção-Geral da Alimentação e Veterinária, em função do tipo de produto e dos fins a que se destina.

 

É claro, por conseguinte, que a Portaria n.º 89/2020 se destinou a vigorar, excecionalmente, durante a vigência do estado de emergência, que decorreu de 20 de março até 31 de dezembro de 2020, e, para além disso, como resulta dos n.ºs 1 e 3 do transcrito artigo 3.º, a desnaturação de álcool através de procedimento diverso do previsto regulamentarmente só seria admissível desde que previamente autorizado pela estância aduaneira competente e em caso de parecer favorável da Direção-Geral da Saúde ou da Direção-Geral da Alimentação e Veterinária.

 

Ora, a operação de desnaturação teve lugar em 24 de abril de 2021 (alínea O) da matéria de facto), quando já não vigorava o estado de emergência, e, por outro lado, não foi efetuada prova da prévia autorização da estância aduaneira, nem da emissão de parecer favorável Administração Central, prova que, aliás, dificilmente poderia ser realizada quando, à data do procedimento de desnaturação, haviam já caducado as medidas excecionais previstas na Portaria n.º 89/2020.

 

8. O Código dos IEC transpõe para o direito interno a Diretiva 2008/118/CE, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo, que, por sua vez, remete para as diversas Diretivas que regulam os impostos especiais de consumo, e, entre elas, a Diretiva 92/83/CEE, relativa à harmonização da estrutura dos impostos especiais sobre o consumo de álcool e bebidas alcoólicas, que, tendo por base a nomenclatura combinada, estabelece as definições comuns das bebidas alcoólicas e do álcool etílico (cfr. artigos 19.º e 20.º).

 

O artigo 27.º da Diretiva 92/83/CEE, referindo-se à isenção do imposto especial sobre consumo, na parte que interessa considerar, dispõe nos seguintes termos:

1. Os Estados-membros isentarão do imposto especial de consumo harmonizado os produtos abrangidos pela presente diretiva, nas condições por eles estabelecidas para assegurar a aplicação correta e direta das isenções e evitar qualquer tipo de fraude, evasão ou utilização indevida, sempre que esses produtos: 

a) Sejam distribuídos sob a forma de álcool totalmente desnaturado de acordo com as normas de qualquer dos Estados-membros, tendo essas normas sido devidamente notificadas e aceites de acordo com o disposto nos n.ºs 3 e 4 do presente artigo. Esta isenção fica sujeita à aplicação das disposições da Diretiva 92/12/CEE aos movimentos comerciais de álcool totalmente desnaturado; 

b) Tenham sido desnaturados de acordo com as normas de qualquer dos Estados-membros e sejam utilizados para o fabrico de produtos não destinados ao consumo humano;

[…].

 

9. Revertendo ao caso concreto, cabe recordar que a correção tributária que, na decorrência de procedimento inspetivo, originou a liquidação de IABA, se baseou na inverificação dos pressupostos relativos à isenção de imposto sobre o álcool destinado a fins industriais, a que se refere o artigo 67.º, n.º 3, alínea a), do CIEC. O fundamento factual para se concluir pela exclusão da isenção assenta na circunstância de o álcool introduzido no consumo para fins industriais ter sido parcialmente desnaturado com cetrimida, quando o processo de desnaturação deveria ter sido realizado através de qualquer dos desnaturantes previstos na Portaria n.º 1/93.

 

Com efeito, como se deixou já exposto, a isenção do imposto em função das finalidades a que o álcool se destina, quando este deva ser objeto de desnaturação, depende da utilização dos desnaturantes autorizados que se encontram identificados em portaria, sendo que a cetrimida é o indicado na Portaria n.º 968/98 para a desnaturação de álcool para fins terapêuticos e sanitários, ao passo que os desnaturantes aplicáveis relativamente a álcool utilizado em fins industriais  são os constantes da Portaria n.º 1/93, entre os quais se encontra o Bitrex.

 

Sendo de reconhecer que não foi utilizado, na operação de desnaturação em causa, o desnaturante próprio, a legalidade da atuação da Administração não pode deixar de ser analisada, face aos termos em que encontra formulado o pedido arbitral, à luz da factualidade tida como assente que mais diretamente se relaciona com o procedimento de desnaturação e de introdução do álcool no consumo.

 

A esse propósito, cabe referir que a Requerente emitiu declarações de introdução no consumo eletrónicas, no total de 36.080 litros a granel de álcool etílico, parcialmente desnaturado com cetrimida (alíneas E), F) e G) da matéria de facto).

 

As introduções no consumo foram declaradas ao abrigo da isenção n.º 2020/..., de que é titular a sociedade B..., emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira, em que se refere, além do mais, que a isenção é do tipo 1A02 - álcool parcialmente desnaturado, utilizado em fins industriais (alíneas H) e I) da matéria de facto).

 

As introduções no consumo foram tituladas por faturas emitidas pela Requerente a favor da sociedade B..., Lda., que contêm no seu descritivo a referência a “álcool etílico parcialmente desnaturado com cetrimida” (alíneas J) e L) da matéria de facto).

  

A Requerente, através de fax datado de 17 de fevereiro de 2021, comunicou ao Diretor da Alfândega de Peniche a pretensão de realizar uma operação de desnaturação de álcool para fins industriais, indicando, entre outros elementos, que o desnaturante a utilizar é a cetrimida  (alínea M) da matéria de facto).

 

A operação de desnaturação, realizada em 24 de fevereiro seguinte, foi supervisionada por um funcionário do posto aduaneiro de Riachos da Alfândega de Peniche, que, no decurso da operação, elaborou um auto de extração de amostras do qual resulta que foi efetuada uma extração de amostra antes de se iniciar a operação de desnaturação e uma outra extração após a utilização de 50 Kg de Brometo de Alquilmetilamoio (cetrimida) (alíneas N) e O) da matéria de facto).

 

A ação inspetiva, destinada a averiguar o cumprimento das disposições legais relativas à introdução no consumo de álcool isento de imposto para fins industriais, foi desencadeada por despacho do Diretor da Alfândega de Peniche de 27 de agosto de 2021 (alínea P) da matéria de facto).

 

10. Em face de todos estes factos, haverá de concluir-se que a Alfândega não só teve conhecimento prévio, através das declarações eletrónicas, da introdução no consumo de álcool parcialmente desnaturado com cetrimida, como emitiu, para efeito da operação de desnaturação, uma isenção do tipo 1A02, referente a álcool parcialmente desnaturado utilizado em fins industriais (quando o código de isenção para álcool desnaturado para fins terapêuticos e sanitários seria do tipo 1A09). Acresce que a estância aduaneira recebeu, em 17 de fevereiro de 2021, um pedido para uma operação de desnaturação de álcool para fins industriais, em que expressamente se refere que o desnaturante a utilizar é a cetrimida. Por outro lado, a operação, que teve lugar em 24 de fevereiro seguinte, foi fiscalizada por um funcionário do posto aduaneiro, que compareceu no local, e pôde verificar e exarar em auto que o desnaturante utilizado foi a cetrimida, visto que do referido auto resulta que o funcionário aduaneiro não só assistiu presencialmente à adição da cetrimida, no decurso da operação, como extraiu uma amostra do produto já adicionado com esse desnaturante, e que é aí expressamente identificado.

 

Resulta do transcrito artigo 69.º, n.ºs 3 e 5, do CIEC que as operações de desnaturação devem ser precedidas da apresentação de uma declaração junto da estância aduaneira competente, no prazo de dois dias úteis anteriores à operação, indicando a espécie e o volume de álcool a desnaturar e a espécie e quantidade de desnaturante a utilizar e que a estância aduaneira competente deve controlar as operações de desnaturação e proceder à recolha de amostras sempre que o entenda conveniente.

 

Assim sendo, a Autoridade Tributária e Aduaneira não poderia ignorar, através das comunicações que lhe foram efetuadas atempadamente e do próprio exercício das funções de controlo da operação, que havia a pretensão de realizar a desnaturação de álcool destinado a fins industriais, mediante a utilização do desnaturante cetrimida.

 

No entanto, só ulteriormente à realização da operação, por despacho do Diretor da Alfândega de 27 de agosto de 2021, é que foi desencadeada uma ação inspectiva destinada a averiguar o cumprimento das disposições legais relativas à introdução no consumo de álcool isento de imposto, e só por via desse procedimento é que foi detectada a irregularidade por indevida utilização do desnaturante cetrimida, num processo de desnaturação de álcool destinado a fins industriais.

 

11. Importa reter que os órgãos da Administração Pública estão sujeitos a um princípio de colaboração, e, como tal, “devem atuar em estreita colaboração com os particulares, cumprindo-lhes, designadamente, prestar aos particulares as informações e os esclarecimentos de que careçam, apoiar e estimular as suas iniciativas e receber as suas sugestões e informações (artigo 11.º, n.º 1, do CPA).

 

Princípio esse igualmente consagrado nos artigos 59.º da LGT e 48.º do CPPT. Aquele preceito consigna, no seu n.º 3, que a colaboração da administração tributária com os contribuintes compreende, designadamente, a assistência necessária ao cumprimento dos deveres acessórios (alínea c)) e a notificação do sujeito passivo ou demais interessados para esclarecimento das dúvidas sobre as suas declarações ou documentos (alínea d)).  O artigo 48.º do CPPT declara que a administração tributária esclarecerá os contribuintes e outros obrigados tributários sobre a necessidade de apresentação de declarações, reclamações e petições e a prática de quaisquer outros atos necessários ao exercício dos seus direitos, incluindo a correção dos erros ou omissões manifestas que se observem.

 

No caso vertente, a Autoridade Tributária e Aduaneira, podendo ter impedido a realização da operação de desnaturação através de um desnaturante não autorizado, na medida em que teve atempadamente conhecimento da operação e do desnaturante a utilizar e fiscalizou diretamente a própria operação, omitiu quaisquer diligências que permitissem assegurar a regularidade do procedimento, assim como não prestou quaisquer informações ou esclarecimentos ao sujeito passivo que permitisse corrigir o erro em que pudesse ter incorrido.

 

Tendo-se limitado a verificar a existência de ilegalidade em procedimento inspetivo ulterior, quando não podia ignorar, por lhe ter sido comunicado previamente, que o sujeito passivo pretendia realizar a operação de desnaturação para fins industriais com cetrimida, nem podia desconhecer que a operação foi efetivamente executada com esse desnaturante, por ter fiscalizado diretamente a própria operação e certificado em auto que o tipo de desnaturante utilizado.

 

Em todo este este condicionalismo, não pode deixar de concluir-se que a Administração violou manifestamente o dever de colaboração, na sua vertente de dever de esclarecimento.

 

12. A Administração está ainda vinculada a agir e a relacionar-se, no exercício da sua atividade, segundo as regras da boa-fé.

 

 O princípio da boa-fé corresponde a um dever recíproco na relação entre a Administração e os particulares, tendo em vista que nas circunstâncias do caso se pondere, em especial, a confiança suscitada na contraparte pela atuação em causa e o objetivo a alcançar com a atuação empreendida (artigo 10.º, n.º 2, do CPA). Este mesmo princípio é reconhecido no artigo 59.º, n.º 2, da LGT, segundo o qual “presume-se a boa-fé da atuação dos contribuintes e da administração tributária”, de onde se infere que existe um dever geral de atuação segundo a boa-fé, quer por parte dos contribuintes, quer por parte da administração.

 

Por todas as considerações já antes expendidas, a correção tributária efetuada na sequência de um procedimento inspetivo desencadeado já após a operação de desnaturação envolve igualmente a violação do princípio da boa-fé, na vertente da proteção da confiança.

 

Como se deixou já esclarecido, a estância aduaneira rececionou, com antecedência, uma comunicação do sujeito passivo dando conta da intenção de levar a efeito uma operação de desnaturação para fins industriais mediante a utilização da cetrimida, e supervisionou essa mesma operação através de um funcionário que se deslocou às instalações onde ela teria lugar, e pôde constatar, presencialmente e através da extração de amostra, que aquele foi o desnaturante efetivamente utilizado.

Não tendo sido suscitada qualquer objeção ou dúvida, nem perante a pretensão formulada pelo sujeito passivo em 17 de fevereiro de 2021, nem no decurso da operação que fora objeto de fiscalização, a estância aduaneira gerou a legítima expectativa de que o procedimento teria sido realizado corretamente, sendo que, a verificar-se alguma irregularidade quanto ao desnaturante a utilizar, competiria à Alfândega recusar atempadamente a autorização para a operação ou impedir que a operação pudesse ser concretizada através de desnaturante não autorizado. 

 

E, nesse sentido, ao verificar a ilegalidade da operação no âmbito de uma posterior ação inspetiva que teve por objeto averiguar do cumprimento das disposições atinentes ao regime de isenção de imposto, incorreu na violação do princípio da boa-fé.

 

Resta considerar que a violação pela Administração Tributária dos deveres procedimentais de colaboração e de atuação segundo as regras da boa-fé constitui um vício autónomo de violação de lei, suscetível de gerar a anulação do ato tributário impugnado (cfr. acórdãos do STA de 15 de fevereiro de 2012, Processo n.º 089/12, e de 2 de abril de 2014, Processo n.º 01943/13, e, na doutrina, Diogo Leite de Campos/Benjamim Silva Rodrigues/Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, Lisboa, 2012, pág. 623, e  Serena Cabrita NETO/ Carla Castelo TRINDADE, Contencioso Tributário, vol. I , Coimbra, 2017, pág. 163).

 

 

Vícios de conhecimento prejudicado.

 

13. Face à solução a que chega, fica prejudicado o conhecimento dos restantes vícios invocados.

 

Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

 

14. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios até ao reembolso do imposto indevidamente pago.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do ato tributário, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Estando em causa uma liquidação corretiva, realizada na sequência de procedimento inspetivo, não tem aplicação o entendimento expresso nos acórdãos do Pleno do STA de 29 de junho de 2022 (Processo 093/21), e de 22 de março de 2022 (Processo n.º 079/22), segundo o qual, em caso de retenção na fonte e havendo lugar a reclamação graciosa contra o ato tributário, o erro passa a ser imputável à Administração Fiscal depois de verificado o indeferimento da impugnação, funcionando essa data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo.

 

Havendo de entender-se, no caso em presença, que o erro é imputável aos serviços por tr resultado da correção tributária originária, há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IABA, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT), desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

 

Reenvio prejudicial

 

8. A Requerente solicitou a suspensão da instância para reenvio prejudicial para o TJUE sobre questões relacionadas com a interpretação do artigo 27.º, n.º 1, alínea b), da Diretiva 92/83.

 

No entanto, a questão de direito em causa foi apreciada com base no direito interno, não tendo sido aplicada qualquer das disposições da Diretiva e não subsistindo, por isso, qualquer dúvida sobre a interpretação das normas de direito europeu que justifique o recurso ao reenvio prejudicial.

 

III – Decisão

Termos em que se decide:

a) Julgar procedente o pedido arbitral e anular o ato tributário de liquidação de IABA, no montante total de € 296.197,87, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra ele deduzida;

c) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 296.197,87 que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 5.202,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 10 de novembro de 2023

 

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

Carlos Fernandes Cadilha (relator)

 

 

 

O Árbitro vogal

 

 

 

Tomás Tavares

 

 

O Árbitro vogal

 

 

Hélder Faustino