Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 249/2023-T
Data da decisão: 2023-12-04  IVA  
Valor do pedido: € 10.727,16
Tema: Direito à dedução de IVA; viaturas de turismo.
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Sumário:

I – No conceito de viatura de turismo criado pelo legislador fiscal, são o tipo de construção e o equipamento da viatura, e não o fim a que esta seja afetada pelo adquirente ou locatário, que constituem o elemento determinante da exclusão do direito de dedução do imposto suportado na respetiva aquisição ou locação.

II – Tendo resultado provado que as veículos automóveis não são, pelo seu tipo de construção e equipamento, destinados unicamente ao transporte de mercadorias e que, tratando-se de veículos mistos, nenhum deles tem mais de nove lugares, com inclusão do condutor, mostra-se preenchido o conceito de “viatura de turismo” constante do artigo 21, n.º 1, a) do CIVA e, nessa medida, excluído o direito à dedução de IVA.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

1. A..., S.A., titular do n.º de identificação fiscal ..., com domicílio fiscal em ..., n.º ..., ...-..., ...(doravante, Requerente), apresentou, em 06-04-2023, pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2, n.º 1, al. a), e 10, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa.

 

2. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pede:

(i) a declaração de ilegalidade e a anulação dos atos de liquidação adicional de IVA identificados no pedido de pronúncia arbitral e de todas as consequências legais por estes produzidas;

(ii) a declaração de ilegalidade e a anulação dos atos de liquidação de juros compensatórios resultantes dos atos de liquidação adicional de IVA e de todas as consequências legais por aqueles produzidas;

(iii) a declaração de ilegalidade e a anulação das respetivas decisões de aplicação de coima, ordenando-se o arquivamento dos processos contraordenacionais. 

 

3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida).

 

4. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 10-04-2023.

 

5. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6, n.º 2, alínea a) e do artigo 11, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como Árbitro singular o Senhor Dr. Joaquim Silvério Dias Mateus, que comunicou a aceitação do encargo no prazo devido.

 

6. Foram as partes, no mesmo dia, notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6 e 7 do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11 do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído no dia 20-06-2023.

 

7. Em 21-06-2023, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17 do RJAT). O Despacho foi notificado na mesma data.

 

8. No dia 28-08-2023, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD proferiu Despacho dando conta de que o Árbitro designado estaria abrangido pelo disposto no artigo 6, n.º 5 do Regulamento de Seleção e Designação de Árbitros em Matéria Tributária em conjugação como preceituado no artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro. Pelo que designou como Árbitro a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo devido. As partes não manifestaram vontade de recusar essa designação.

 

9. A Requerida veio apresentar resposta, em 10-09-2023, remetendo o Processo Administrativo, na sequência do qual foram as partes notificadas, por Despacho prolatado no dia 18-09-2023, do agendamento da reunião a que alude o artigo 18 do RJAT para o dia 24-10-2023, às 14h30, devendo a inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente ter lugar no âmbito dessa reunião. No mesmo Despacho, solicitou-se à Requerente que, no prazo de 5 (cinco) dias contados a partir da data da notificação do Despacho, viesse ao processo dizer (i) se mantinha interesse na realização da sobredita diligência (inquirição de testemunhas) e (ii) sobre que factos, constantes do pedido arbitral, incidiria a diligência. Por requerimento com data de 29-09-2023, a Requerente confirmou o interesse na realização da diligência e avançou que a inquirição das testemunhas incidiria sobre os factos constantes dos arts. 11, 12, 16, 18, 19 e 22 do PPA.

 

10. A Requerida (AT), por requerimento com data de 03-10-2023, pediu o indeferimento do requerimento de produção de prova testemunhal formulado pela Requerente no seu PPA, entretanto confirmado pelo Requerimento de 29-09-2023. Expressou a AT o entendimento de que alguns dos factos sobre os quais recairia a diligência agendada seriam conclusivos (factos n.º 12, 18 e 19), e de que outros não eram sequer por ela contestados (facto n.º 11). Quanto ao facto identificado sob o n.º 16, argumentou a Requerida ser “indiferente, se a Requerente, de facto utiliza os veículos única e exclusivamente para efeitos de desenvolvimento da sua actividade, porquanto conforme jurisprudência unanime e, até do TJUE (sobre o artigo 21.º do CIVA), as exclusões do direito à dedução ali previstas, não se tratam de presunções susceptíveis de ilisão, ou seja, que as exclusões previstas no artigo 21.º do CIVA, se aplicam, mesmo que nos casos concretos, se demonstre que os desvios para o consumo particular, que visam impossibilitar, não se verifiquem”.

 

11. Sobre este Requerimento recaiu o Despacho do Tribunal com data de 12-10-2023, com o seguinte teor:

“(...)

Entende o Tribunal Arbitral que o facto identificado sob o n.º 11 não é controvertido e já foi objeto de prova, pela Requerente, através da junção aos autos dos documentos n.ºs 5, 6 e 7. Entende igualmente o Tribunal Arbitral que o facto identificado sob o n.º 18 é, no seu segundo segmento (“pelo que, de acordo com definido no art. 21º-1-a) CIVA estas viaturas não são consideradas viaturas de turismo”), conclusivo, isto é, contém matéria de direito e não de facto. O mesmo sucede com os factos identificados sob os n.ºs 12 e 19. A inquirição das testemunhas não deverá, portanto, incidir sobre estes artigos (ou partes de artigos) do PPA.

(...)

Ora, um dos princípios que enforma o processo arbitral é o princípio do contraditório, assegurado, designadamente, através da faculdade conferida às partes de se pronunciarem sobre quaisquer questões de facto ou de direito suscitadas no processo (artigo 16, al. a) do RJAT). Trata-se de faculdades que integram o conteúdo do direito de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva (artigos 20 e 268 da CRP). Este direito compreende o poder de contestar os pressupostos de facto e de direito de que a AT partiu ao praticar o ato de liquidação adicional, de avançar uma interpretação alternativa (que, no entender da Requerente, será mais correta ou conforme à Constituição) das normas de incidência aplicáveis e de fazer prova de factos que sustentem essa interpretação alternativa. Tanto mais que a exclusão das viaturas de turismo do direito à dedução de IVA e a definição de viatura de turismo vertida no artigo 21, n.º 1 do CIVA não são uma imposição da Sexta Diretiva do IVA, mas apenas uma opção do legislador fiscal nacional considerada compatível com o direito da União Europeia. Neste sentido, indefere-se o pedido da Requerida (AT), confirmando-se a realização da diligência de inquirição de testemunhas, ainda que expurgados do seu objeto os factos irrelevantes e conclusivos, nos termos supra indicados.

(...)”

 

12. No dia 24-10-2023, na hora previamente agendada – e não contestada – para a reunião a que alude o artigo 18 do RJAT, veio o Exmo. Mandatário da Requerente, Senhor Dr. B..., comunicar que não poderia comparecer à diligência na hora agendada. Em face de tal circunstância, o Tribunal arbitral informou que oportunamente definiria a tramitação processual subsequente (cf. ata de inquirição de testemunhas por videoconferência).

 

13. A Requerente apresentou, em 25-10-2023, Requerimento no sentido de que fosse remarcada a diligência de produção de prova testemunhal agendada para o dia 24-10-2023, à qual o respetivo mandatário faltou por “lapso” na anotação da data. Sobre este Requerimento recaiu Despacho com data de 30-10-2023, com o seguinte teor:

“(...)

3 - Entende o Tribunal Arbitral que a autonomia na condução do processo, a que aludem o artigo 16, c) e o artigo 19, n.º 1 do RJAT, não significa ausência de regras. Por essa razão, não tendo a Requerente invocado quaisquer razões que possam configurar um justo impedimento, limitando-se a invocar um “lapso” do seu mandatário, indefere-se o requerido, ao abrigo do n.º 1 do artigo 19 do RJAT.

 4 - Quanto à tramitação processual subsequente, fixa-se o prazo de 10 (dez) dias para as partes apresentarem alegações escritas, simultâneas e facultativas.

5 - Ao abrigo do princípio da colaboração solicita-se às partes a remessa das peças processuais em formato word.

6 - A decisão arbitral será proferida até ao dia 20-12-2023, devendo a Requerente proceder, até essa data, ao pagamento da taxa de arbitragem subsequente.

(...)”

 

14. A Requerente apresentou alegações escritas no dia 14-11-2023, reiterando o que constava do pedido de pronúncia arbitral. A Requerida apresentou as suas alegações escritas no dia 23-11-2023, reiterando o teor da resposta.

 

II. Síntese da posição das partes

15. A posição das partes pode ser sintetizada da seguinte forma:

(a) A Requerente alega que os atos de liquidação adicional de IVA são ilegais, porquanto as viaturas objeto de contrato de locação financeira se destinam unicamente ao transporte de mercadorias e a uma utilização com caráter estritamente industrial, estando inclusivamente classificadas como ligeiros de mercadorias. Não podem, por conseguinte, valer como “viaturas de turismo” na aceção do artigo 21, n.º 1, a) do CIVA, não estando abrangidas pela exclusão do direito à dedução do imposto. Ao classificar as viaturas em causa como “viaturas de turismo”, a AT fez uma errada interpretação da lei, incorrendo em erro nos pressupostos de facto e de direito, gerador de um vício de violação de lei.

(b) A Requerida (AT) contende que as viaturas objeto de locação financeira reentram no conceito de “viatura de turismo” presente no artigo 21, n.º 1, a) do CIVA, pelo que as despesas com a locação dessas viaturas estão excluídas do direito à dedução. É assim porque no conceito de “viatura de turismo” escolhido pelo legislador fiscal o que releva é o tipo de construção e equipamento da viatura e não o fim a que é afetada pelo adquirente ou locatário, não relevando a classificação conferida pelo legislador estradal. Trata-se de uma interpretação sancionada positivamente pela jurisprudência do STA, que reconhece que a teleologia subjacente a esta definição ampla e autónoma de “viatura de turismo” é a de evitar a fraude e a evasão fiscais resultantes da dedução de despesas com bens e serviços que, pela sua natureza e caraterísticas, são suscetíveis de serem utilizados para fins alheios a uma atividade empresarial.

(c) Portanto, uma vez que as viaturas em causa, pelo seu tipo de construção e equipamento, não se destinam unicamente ao transporte de mercadorias ou a uma utilização com caráter agrícola, comercial ou industrial e que não têm mais de nove lugares, com inclusão do condutor, reentram no conceito de “viatura de turismo”, na aceção do artigo 21, n.º 1, a) do CIVA, estando as despesas com tais viaturas, por conseguinte, excluídas do direito à dedução do imposto.

 

III – Saneamento

16. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2, n.º 1, a) e 5 do RJAT).

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10, n.º 1, a), do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4 e 10, n.º 2 do RJAT e artigo 1 da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março, na redação da Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro).

 

17. O processo não enferma de nulidades.

 

18. O Tribunal arbitral não tem, contudo, competência para apreciar a parte do pedido relativa à anulação da decisão de aplicação de coima e ao arquivamento do processo contraordenacional, como resulta, a contrario, do artigo 2, n.º 1 do RJAT [Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável]. A incompetência do tribunal é, nos termos do artigo 89, n.ºs 2 e 4, al. a) do CPTA, aplicável ex vi do artigo 29, n.º 1, c) do RJAT, uma exceção dilatória de conhecimento oficioso. Por conseguinte, há lugar, nesta parte, à absolvição da Requerida da instância (cf., neste sentido, a decisão do CAAD de 20-03-2020, no Processo n.º 530/2019-T, bem como a decisão do CAAD de 02-07-2022, no Processo n.º 647/2021-T, entre outras).

 

Cumpre, pois, apreciar e decidir.

 

IV – Matéria de facto

§1. Factos provados

19. Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

1.º - A Requerente é uma sociedade anónima que se dedica à execução de empreitadas de obras públicas e particulares, indústria de construção civil, fornecimento de obras públicas, trabalhos de elaboração de estudos de engenharia civil, fabricação e comercialização de materiais de construção e de produtos de betão, manutenção, conservação e exploração de sistemas de saneamento básico, recolha e tratamento de resíduos sólidos ou líquidos, exploração de fontes de energia renováveis, reciclagem de produtos metálicos e não metálicos, captação, tratamento e distribuição de água, indústria extrativa de pedra e outros minerais não metálicos, compra e venda, compra para revenda, e administração de bens imobiliários, construção, exploração e venda de empreendimentos imobiliários e turísticos, transporte rodoviário de mercadorias, podendo dedicar-se a outras atividades complementares do objeto principal.

2.º - A Requerente convencionou os seguintes contratos de locação financeira, relativos à cedência da utilização das seguintes viaturas, pelos valores assinalados no quadro infra:

- Contrato de locação financeira mobiliária n.º 100100477, com prazo de 48 meses e início em 08-08-2017, em que é locadora a C..., S.A, referente a uma viatura Ford Transit 350 EF CD TREND 170 CV 7 LUG, matrícula ... (cf. doc. 3).

- Contrato de locação financeira mobiliária n.º..., com prazo de 60 meses e início em 20-04-2018, em que é locador o D..., S.A, referente a uma viatura Ford Transit FED, matrícula ... (cf. doc. 4).

- Contrato de locação financeira mobiliária n.º ..., com prazo de 60 meses e início em 20-04-2018, em que é locador o D..., S.A, referente a uma viatura Ford Transit FED, matrícula ... (cf. doc. 4).

 

3.º - As viaturas em questão são classificadas como ligeiro (categoria) de mercadorias (tipo de veículo) – cf. doc. 5, 6 e 7, que contêm os certificados de matrículas dos três veículos mencionados no n.º anterior. 

4.º - A Requerente utiliza as viaturas em causa exclusivamente na sua atividade de construção civil, concretamente no transporte de mercadorias (materiais e equipamentos de sinalização rodoviária a aplicar nas vias de comunicação) e no transporte de pessoas para os locais a operar (cf. as fotografias sob os docs. 9 a 19).

5.º - Pelas ordens de serviço n.º OI2021.../.../.../..., os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Braga instauraram um procedimento de inspeção tributária interno referente aos anos de 2018, 2019, 2020, 2021 e 2022, que visou a análise do pedido de reembolso de IVA n.º .../0.

6.º - Deste procedimento de inspeção tributária, concluso por Despacho de 03-03-2022, resultaram correções ao IVA no total de €10 727,16, por o sujeito passivo ter deduzido o imposto suportado nas rendas de contrato de locação financeira, celebrados pela aquisição das viaturas referidas supra, quando tais despesas não conferiam, no entender da AT, o direito à dedução:

 

(Quadro constante do Relatório de Inspeção Tributária, junto com o processo administrativo a fls. 120)

7.º - Das correções efetuadas pela AT resultaram liquidações adicionais de IVA em idêntico montante (cf. fls. 149 do processo administrativo remetido pela Requerida).

8.º - Em 29-07-2022, A Requerente instaurou o procedimento de reclamação graciosa sob o n.º ...2022..., ao abrigo do artigo 68 do CPPT, peticionando a anulação das liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios, bem como o arquivamento do processo contraordenacional e a anulação da decisão que aplicou a coima, com fundamento no facto de as viaturas melhor identificadas em 2.º não poderem integrar-se no conceito de “viaturas de turismo” a que alude o artigo 21, n.º 1, a) do CIVA, não estando, por conseguinte, abrangidas pela previsão do preceito legal (cf. fls. 133 ss. do processo administrativo remetido pela Requerida).

9.º - Por Despacho com data de 25-11-2022, a AT decidiu pelo indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente, concluindo que “[t]ratando-se de viaturas mistas, cuja finalidade é o transporte de mercadorias e passageiros (entre sete e nove lugares incluindo o condutor), o IVA suportado com as despesas destas viaturas não é dedutível face ao elencado na al. a) do n.º 1 do art. 21.º do CIVA”. Sobre o pedido de arquivamento do processo contraordenacional e de anulação da coima aplicada, a AT concluiu que o artigo 80 do RJIT é o “meio próprio para o sujeito passivo se defender nos processos de contraordenação” (cf. fls. 145 ss. do processo administrativo remetido pela Requerida).

10.º - Em 06-04-2023, a Requerente apresentou o Pedido de pronúncia arbitral que agora se aprecia.

§2. Factos não provados

20. Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.

§3. Fundamentação da matéria de facto

21. O Tribunal arbitral fundou a sua convicção quanto aos factos provados com base na prova documental produzida, constante do processo administrativo junto aos autos. Relativamente ao facto 4.º (“A Requerente utiliza as viaturas em causa exclusivamente na sua atividade de construção civil...”), o Tribunal arbitral entende dá-lo como provado, atento o acervo probatório documental junto aos autos, sem contraditório por parte da AT, para quem não releva o fim a que a viatura se acha efetivamente afeta, mas tão-só o tipo de construção e o equipamento (ponto 48 da Resposta). No requerimento apresentado em 03-10-2023, a AT avança mesmo que é “indiferente, se a Requerente, de facto utiliza os veículos única e exclusivamente para efeitos de desenvolvimento da sua atividade (...)”.

 

V – Fundamentação de direito

22. Confrontado o pedido de pronúncia arbitral e a resposta apresentada pela AT, assim como as alegações de ambas as partes, constata-se que a questão de direito a resolver é a da ilegalidade das liquidações adicionais de IVA, por erro nos pressupostos de facto e de direito. Importa, para tanto, apurar se a AT interpretou e aplicou corretamente o artigo 21, n.º 1, a) do CIVA e se as viaturas objeto de contrato de locação financeira deveriam ser – como foram – subsumidas ao conceito de “viatura de turismo” e, assim, excluídas do direito à dedução do imposto suportado. Esta questão de direito deve ser apreciada no pressuposto, que resulta da matéria de facto, de que as viaturas cujas despesas se ambiciona deduzir foram exclusivamente utilizadas no exercício da atividade económica do sujeito passivo (cf. 4.º de §1. Factos provados).

 

23. Ora, a questão assim enquadrada não é nova no ordenamento jurídico-fiscal nacional e já foi analisada pelo STA, no acórdão de 03-02-2021, processo n.º 0353/11.5BECTB 01017/17. A posição do STA pode ser sintetizada da seguinte forma:

 

(a) Em primeiro lugar, constituindo o IVA um imposto objeto de harmonização positiva pelo legislador da União Europeia, importa aferir da compatibilidade da norma constante do artigo 21, n.º 1, a) do CIVA com a Diretiva de IVA (Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado). Assim, o direito à dedução constitui, enquanto parte integrante do mecanismo do IVA, um princípio fundamental inerente ao sistema comum do IVA e não pode, em princípio, ser limitado (cf. X Holding BV, processo C-33/09, acórdão do Tribunal de Justiça de 15-04-2010, §37).

O artigo 176, segundo parágrafo (à semelhança do artigo 17, n.º 6 da Sexta Diretiva) contém uma cláusula de standstill, pela qual os Estados-membros estão autorizados a manter as disposições derrogatórias do direito à dedução já existentes aquando da adesão à UE, até que o Conselho adote as disposições previstas no primeiro parágrafo deste artigo 176 – o que ainda não aconteceu. O sentido e o alcance da cláusula standstill habilita os Estados‑Membros a excluir do direito à dedução do IVA categorias de despesas que têm um caráter estritamente profissional – isto é, voltadas, em termos exclusivos, ao desempenho da atividade económica a que o sujeito passivo se dedica – desde que tais despesas estejam definidas de forma suficientemente precisa e rigorosa na legislação nacional (cf. Super Bock Bebidas S.A, processo C-837/19, Despacho do Tribunal de Justiça de 17-09-2020, §43; PAGE International, processo C-630/19, acórdão do Tribunal de Justiça de 26-02-2020, §38, em ambos os casos a propósito da norma constante do artigo 21, n.º 1, c) do CIVA, mas em termos suscetíveis de transposição para a alínea a) daquele preceito legal).

Assim, atento o labor de densificação do conceito de “viatura de turismo” revelado pelo artigo 21, n.º 1, a) do CIVA, entende o Tribunal Arbitral, tal como sublinhado pelo STA, que a referida norma não se mostra em desalinho com o artigo 176 da Diretiva do IVA, na interpretação avançada pelo Tribunal de Justiça.

 

(b) Em segundo lugar, a interpretação do artigo 21, n.º 1, a) do CIVA reclama que se tenha em conta a ratio legis da norma legal, ou seja, a sua teleologia. Sobre isto, entendeu o STA que subjacente à exclusão do direito à dedução do IVA suportado com “viaturas de turismo” está a necessidade de controlar aquisições formais de viaturas por empresas (supostamente para o desenvolvimento da sua atividade empresarial) mas que, na verdade, se destinavam a ser utilizadas exclusiva, primacial ou concomitantemente para fins totalmente alheios aos objetivos empresariais ou às atividades desenvolvidas pelas sociedades adquirentes. Trata-se, em síntese, de um desvio ao mecanismo do IVA ditado por razões de combate à evasão fiscal.

 

(c) Conjugando esta nota teleológica com a letra do preceito [onde se define “viatura de turismo” como “qualquer veículo automóvel, com inclusão do reboque, que, pelo seu tipo de construção e equipamento, não seja destinado unicamente ao transporte de mercadorias ou a uma utilização com caráter agrícola, comercial ou industrial ou que, sendo misto ou de transporte de mercadorias, não tenha mais de nove lugares, com inclusão do condutor”], conclui o STA que o legislador fiscal criou, através desta definição, um conceito autónomo, isto é, alheio às classificações do legislador estradal. O que releva, num conceito deste tipo, não é a efetiva afetação da viatura à atividade económica levada a cabo pelo sujeito passivo, mas as caraterísticas intrínsecas do veículo, a saber o tipo de construção e equipamento ou a lotação. Neste sentido, lê-se no acórdão: “[p]ara efeitos de se decidir pela existência ou não do direito à dedução do imposto é indiferente que o sujeito passivo desenvolva efetivamente uma atividade (agrícola, comercial ou industrial) e que a atividade que desenvolve exija que possua viaturas, incluindo de transporte de mercadorias ou de mercadorias e também de passageiros (...). O que releva é, tão-só, saber se a viatura adquirida pela Recorrente se integra no conceito objetivo de viatura de turismo tal como ficou definido pelo legislador fiscal na al. a) do n.º 1 do artigo 21.º do CIVA”.

 

24. O Tribunal arbitral entende que é esta a interpretação correta do artigo 21, n.º 1, a) do CIVA e do conceito de “viatura de turismo” dele constante. Contrariamente ao que invoca a Requerente, o fisco não está a “criar novas classes ou tipos de veículos” (ponto 14 do PPA). O que acontece, simplesmente, é que o legislador fiscal (e não a administração tributária) entendeu que, nesta matéria, deveria desviar-se das classificações dos veículos geralmente acolhidas no âmbito estradal, avançando uma definição autónoma que, no quadro da liberdade de conformação conferida pela Constituição e pelo Direito da União Europeia, considera mais apta à consecução da teleologia da normal fiscal (artigo 11, n.º 2 LGT).

 

25. O facto de a exclusão do direito à dedução ser tolerada pelo Direito da União Europeia, ou seja, a circunstância de este ordenamento não obstar a que os Estados-membros conservem disposições derrogatórias do mecanismo do IVA, não inviabiliza que se possa indagar da constitucionalidade do artigo 21, n.º 1, a) do CIVA. Em especial, atento o princípio da igualdade tributária e da capacidade contributiva, a tributação pelo rendimento líquido e a proibição de presunções inilidíveis nas normas de incidência fiscal (cf., sobre presunções inilidíveis, o acórdão TC n.º 211/2003, processo nº 308/02, 28-04-2003; ou o acórdão TC n.º 211/2017, processo n.º 285/15, 02-05-2017, em ambos os casos com conclusão pela inconstitucionalidade).

 

26. Importa, a este propósito, apurar se o artigo 21, n.º 1, a) do CIVA consagra uma presunção, ou seja, a presunção de que viaturas com certas caraterísticas e com certo equipamento ou tipo de construção são geralmente usadas para fins alheios à atividade económica da empresa. Caso em que, sendo uma presunção ilidível, poderia o sujeito passivo trazer ao procedimento ou ao processo tributário elementos que contrariassem aquela associação (artigo 73 da LGT); ou, sendo uma presunção inilidível, haveria que concluir pela sua inconstitucionalidade, à luz do princípio da capacidade contributiva, tal como interpretado pela jurisprudência constitucional nos arestos supramencionados.

 

27. Todavia, como bem avança a AT (no ponto 40 da sua Resposta), o artigo 21, n.º 1, a) do CIVA não contém uma presunção, nem ilidível nem muito menos inilidível. O legislador fiscal, com o fito de evitar situações de abuso, decidiu avançar uma definição de viatura de turismo assente nas caraterísticas intrínsecas de construção, equipamento e lotação do veículo, prevenindo, através de uma definição deste tipo, e por razões de eficiência e de praticabilidade, as dificuldades que a AT teria em demonstrar qual a efetiva afetação (ou afetações) do veículo (cf., em sentido próximo, o acórdão TC n.º 753/2014, Processo n.º 247/2014, 12-11-2014).

 

28. Da matéria de facto dada como provada, resulta estarem em causa três veículos (um com lotação de sete lugares, outros dois com lotação de nove lugares), que, pelas suas caraterísticas, podem ser usadas para o transporte de pessoas e de mercadorias, ou seja, que “pelo seu tipo de construção e equipamento” não são destinadas unicamente ao transporte de mercadorias. E que, para além disso, sendo mistos (permitindo o transporte de pessoas e de mercadorias), não têm mais de nove lugares, condutor incluído. As viaturas sob análise são, por isso, enquadráveis no conceito de “viatura de turismo” constante do artigo 21, n.º 1, a) do CIVA, estando abrangidas tanto pela primeira como pela segunda parte da definição dele constante.

 

29. Termos em que há que concluir que a AT fez uma correta interpretação e aplicação do artigo 21, n.º 1, a) do CIVA, e não cometeu qualquer ilegalidade ao efetuar as liquidações impugnadas e ao indeferir a reclamação graciosa contra elas deduzida.

 

30. Atento este desfecho, mostra-se prejudicado o conhecimento de outras questões sobre as quais este Tribunal arbitral houvesse de ocupar-se (artigo 608, n.º 2 CPC, aplicável ex vi do artigo 29, n.º 1, e) do RJAT).

 

VI – Decisão

O Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar procedente a exceção dilatória de incompetência material no que concerne ao pedido de arquivamento do processo contraordenacional e, consequentemente, absolver a Requerida da instância;
  2. Julgar improcedente o pedido arbitral;
  3. Condenar a Requerente no pagamento das custas do presente processo.

 

VII – Valor do processo

Em conformidade com o disposto no artigo 306, n.º 2 do CPC, no artigo 97-A, n.º 1, a) do CPPT [« 1- Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as ações que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes: a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende (...)]», e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária [«O valor da causa é determinado nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário»], fixa-se o valor do processo em € 10.727,16, sem contestação da Autoridade Tributária.

 

VIII – Custas

Nos termos do disposto nos artigos 12, n.º 2 e 22, n.º 4 do RJAT, no artigo 4, n.º 4 e na Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante de custas é fixado em € 918,00, a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

Porto, 04 de dezembro de 2023.

 

 

 

 

Marta Vicente

(Árbitro singular)