Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 212/2023-T
Data da decisão: 2023-12-04  IRS  
Valor do pedido: € 10.966,30
Tema: IRS de 2021 – Permuta de imóveis – Mútuo bancário – Artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS.
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SUMÁRIO: 

 

1.     A permuta de imóveis ocorrida, em 2005, não levou ao pagamento de tornas.

2.     Sob a epígrafe “Objeto e Finalidade”, o artigo 1.º do documento complementar que regula a transferência do mútuo para o Banco B... (Portugal), em 2008, não reflete a realidade subjacente quando refere que o valor então mutuado se destina a liquidar integralmente o empréstimo concedido pelo Banco D..., SA. para aquisição de habitação própria e permanente.

3.     O crédito destinado a obras de beneficiação em habitação própria e permanente, é na verdade aquele que traduz a materialidade da situação concreta.

4.     O caso concreto não incorre na previsão do n.º 5, al. a), do artigo 10.° do CIRS.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. RELATÓRIO

 

 A..., residente na rua ..., n.º ..., ..., ...-... Caxias, sujeito passivo com número de identificação fiscal  ..., vem requerer pedido de pronúncia arbitral (doravante PPA), nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que regula o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (doravante RJAT), submetendo à apreciação do Tribunal Arbitral a legalidade da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) respeitante ao ano fiscal de 2021, e da respetiva liquidação de Juros Compensatórios, no valor total de € 10.966,30 (dez mil, novecentos e sessenta e seis euros, e trinta cêntimos), peticionando que seja determinada a anulação daqueles atos de liquidação. 

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente enviado email à Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), a informar da entrada de um pedido de constituição de tribunal arbitral e do n.º do processo atribuído, em 28-03-2023, tendo por sua vez a AT sido notificada, em 02-04-2023.

Nos termos do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 6.º e da alínea b), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a signatária foi designada pelo Ex.mo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos. 

Em 19-05-2023, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico.

 

Síntese da posição das Partes:          

1.      Do Requerente

Os argumentos apresentados no PPA do Requerente sublinham, em síntese, o seguinte:

Após uma longa história de atos translativos, conclui-se que o contrato atual de financiamento do Banco B... (Portugal) destinado a aquisição de habitação própria e permanente, é originário de um contrato de mútuo celebrado com o Banco C... (“C...”), no valor de € 600.000, destinado exclusivamente a obras de beneficiação de habitação própria. 

Considera o Requerente que tal financiamento da habitação própria e permanente só se consumou, em 2005, na esfera individual do Requerente, com a escritura de constituição de propriedade horizontal e permuta, e bem assim com a passagem da responsabilidade solidária pela dívida a responsabilidade conjunta.

Defende ainda que «Nessa data (da permuta/aquisição), o valor do remanescente do crédito ao Banco corresponde ao valor da casa própria permanente melhorada antes da aquisição por permuta».

E conclui, nos seguintes termos: «É certo que a expressão da Lei é clara ao determinar que a dedução da amortização de eventual empréstimo é limitada a empréstimos contraídos para aquisição de imóvel. 

Porém, a longa história deste empréstimo demonstra de forma clara que o remanescente do empréstimo que existia à data da aquisição por permuta de 2005, não é mais do que um empréstimo contraído para aquisição do imóvel.

Não existe pois qualquer incumprimento do disposto no artigo 10.º, n.º 5, alínea a) do Código do IRS (acrescentado nosso)sendo a fundamentação do ofício insuficiente por omissão e contradição, ou, se assim não se entender, qualificada de modo errado.»

 2.   Da Requerida

No essencial entende a Requerida que: 

Para efeito de exclusão de tributação dos ganhos com as mais-valias, ao valor de realização só pode ser deduzida a amortização de empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, conforme se retira da letra da Lei.

Segundo a AT, contudo, o empréstimo em causa foi concedido para a realização de obras no imóvel e não para a sua aquisição o que fica bem patente através da escritura de compra e venda efetuada, em 2003, em que o aqui Requerente e outro sujeito passivo (comproprietários) figuram como segundos outorgantes (compradores) não se referindo que a aquisição foi realizada com recurso a empréstimo. 

Acrescenta a Requerida que, na concessão do empréstimo a ambos os comproprietários refere expressamente que se destina a obras de beneficiação no imóvel (e não para aquisição do mesmo). 

Sublinhando ainda o seguinte: «(…) se a lei (alínea a) do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS utiliza o termo “aquisição”, este deve ser entendido em sentido restrito, isto é, não incluindo as melhorias no imóvel. (…) A lei quer apenas afastar da tributação as quantias que resultam da amortização de empréstimo concedido para aquisição. As leis que isentam ou afastam da tributação são excecionais, pelo que não comportam analogia. Logo, o termo aquisição não se pode aplicar por analogia às situações de obras de melhoramento do imóvel.

Se assim não fosse, a redação da norma seria diferente (para efeitos de comportar a amortização de outros empréstimos concedidos para outros efeitos – no caso, para efetuar obras de melhoramento).

(…)

E se não despendeu qualquer montante (foi “troca por troca”), também não era necessário obter empréstimo para essa aquisição.

(…)

Como é bom de ver, não poderá o valor do empréstimo em dívida (após vários anos de amortização) ser superior ao valor de aquisição do imóvel. Prova-se, pois, uma vez mais, que o empréstimo não pode ter sido concedido para a aquisição do imóvel.

(…)

E não tendo sido concedido para esse efeito (aquisição do imóvel) não pode ter cabimento no disposto na alínea a) do n.º 5 do artigo 10º do Código do IRS». 

Conclui ainda a AT que a sua atuação, por ter aceitado a dedução à coleta dos juros e não aceitar agora a amortização do empréstimo, não se afigura contraditória na medida em que a redação do artigo 85.º do Código do IRS (que tinha por epígrafe “Encargos com imóveis”), em vigor à data dos factos, bem como as instruções de preenchimento do anexo H da declaração de rendimentos quanto ao código 731, abrangiam expressamente não apenas os juros de empréstimos com a aquisição, mas também aqueles resultantes de empréstimos para construção ou beneficiação de imóveis, consideração que antecipadamente secundamos.

 

                                                               ***

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral singular, foi constituído, em 06-06-2023.

Em 08-06-2023, foi proferido despacho arbitral ordenando a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para apresentar resposta, nos termos e prazo do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT, o que efetuou em 06-07-2023, após decurso das férias judiais, juntando Processo Administrativo (doravante PA).

Em 10-07-2023, foram notificadas as partes do despacho, de 09-07-2023, proferido pelo Tribunal Arbitral, no qual se dispensava a reunião prevista no artigo 18.º, n.º 1 do RJAT, bem com a apresentação de alegações, considerando não existirem outros elementos sobre que as partes se devam pronunciar, e estando em causa questões de direito.

 

II. SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à luz do preceituado nos artigos 2.º n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT), e é competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do mesmo diploma, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

Não foram suscitadas exceções de que deva conhecer-se.

O processo não enferma de nulidades.

Inexiste, deste modo, qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

III. MATÉRIA DE FACTO

1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

a)     A escritura de compra e venda efetuada, em 15-10-2003 (doc. 2 junto aos autos), em que o aqui Requerente e outro sujeito passivo (comproprietários) figuram como segundos outorgantes (compradores) não refere que a aquisição do imóvel, no valor de € 99.759,58 (noventa e nove mil, setecentos e cinquenta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos), foi realizada com recurso a empréstimo.

Consta igualmente daquela escritura que foi contratado um empréstimo de € 600.000,00 (seiscentos mil euros)  que se destinava exclusivamente a obras de beneficiação em habitação própria e permanente, empréstimo regulado nos termos do Decreto Lei 349/98, de 11 de novembro.

b)    Por escritura de 2005, retificada em 14 dezembro, o imóvel descrito foi submetido ao regime de propriedade horizontal constituindo-se 3 frações autónomas ("A", "B", e "C").

Na mesma se alterou a escritura de compra e venda, mútuo com hipoteca, fiança e mandato efetuada, em 15-10-2003, passando a constar que a responsabilidade dos outorgantes passaria de solidária a conjunta, na proporção de metade, para cada um dos devedores, o mesmo se passando com as respetivas fianças, em tudo o mais valendo o estipulado no clausulado da escritura de compra e venda, mútuo com hipoteca, fiança e mandato, original de 2003, na medida em que não houve novação do contrato. 

Na sobredita escritura, de 2005, a fls. 70, verso, voltou a sinalizar-se qual era o escopo do mútuo celebrado a coberto da escritura de 2003: exclusivamente a obras de beneficiação em habitação própria e permanente. 

Ficou ainda estipulada a venda da fração autónoma A. 

Procedeu-se, por fim, à permuta entre os outorgantes das frações "B" e "C". 

Os permutantes possuíam 50% das frações B e C do prédio urbano inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo n.º ... da freguesia de ..., concelho de Oeiras.

E com a permuta cada um ficou com 100% de uma das frações: o aqui requerente ficou com a totalidade da fração B e o outro permutante com a totalidade da fração C. 

Às frações B e C, na permuta, foi atribuído o mesmo valor: 200.000,00 €. Antes da permuta, o Requerente detinha o mesmo montante (200.000,00 €) repartido pela fração B (100.000,00 €) e pela fração C (100.000,00 €).

Segundo a própria escritura "Verifica-se ser de quatrocentos mil euros o valor global dos bens permutados não havendo diferença de valores declarados a pagar nem a receber em relação a qualquer um dos permutantes»

Assim, quando se deu a permuta,  Requerente não necessitou de despender qualquer montante para ficar proprietário da fração B.

Conforme esclarece ainda escritura, o primeiro e segundo outorgantes passaram cada um deles, respetivamente, a ser proprietários das frações "B" e "C", e também cada um deles passou a ser devedor «(...) da quantia de duzentos e noventa e seis mil cento e oitenta e três euros e sessenta e dois cêntimos a título de empréstimo de que ambos já se confessaram devedores aquando da referida escritura de 15-10-2003, empréstimo esse que ora alteraram no sentido de, como já se disse, a sua responsabilidade passar a ser conjunta e não solidária.» E que as garantias das hipotecas sobre cada uma das frações, e a fiança se encontram em vigor nos termos registados e exarados, respetivamente.

c)     Em 21-07-2008, o Requerente transfere o mútuo com hipoteca para o Banco B... (Portugal), referindo-se na respetiva escritura que o empréstimo se destina a liquidar o empréstimo anterior contraído junto do Banco C... (“C...”).

d)    De acordo com a redação em vigor à data dos factos, o artigo 85.º do Código do IRS considerava na dedução à coleta não apenas os juros de empréstimos com a aquisição, mas também aqueles resultantes de empréstimos para construção ou beneficiação de imóveis.

e)     O Requerente entregou a sua declaração de IRS do ano fiscal de 2021, declarando no respetivo anexo G do modelo 3 a alienação do imóvel da freguesia ..., Urbano, inscrito na matriz sob o n.º ..., fração B.

f)     No mesmo anexo G, é declarado no quadro 5005 que o remanescente do empréstimo contraído pelo Requerente tem, à data da alienação, o valor de € 199.037,81.

g)    O Requerente foi notificado da Demonstração da Liquidação de IRS de 2021 e Demonstração de juros, n.º 2022..., e Demonstração do acerto de contas n.º 2022 ... .

2. Factos não provados

Não ficou demonstrado que o remanescente do empréstimo contraído pelo Requerente, no valor de € 199.037,81 à data da alienação, tenha sido concedido para a aquisição do imóvel em análise.

Com relevo para a decisão da causa, não existem outros factos que não tenham ficado provados.

3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

 Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Os factos dados como “provados” e “não provados” foram-no com base nos documentos juntos aos autos com o PPA, e no PA - todos documentos que se dão por integralmente reproduzidos – e, bem assim, no consenso das partes.

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT (aqui aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

IV. DO DIREITO

1. A questão a decidir

Atendendo às posições das partes assumidas nos articulados apresentados, a questão central a dirimir pelo presente Tribunal Arbitral diz respeito à possibilidade de amortização do empréstimo a que se vem fazendo referência, possuindo o valor de € 199.037,81, à data da alienação do imóvel.

Entende o Requerente que a sobredita amortização cumpre os requisitos previstos na alínea a) do n.º 5, do artigo 10.º do Código do IRS, podendo o respetivo valor ser excluído de tributação. Enquanto a AT considera que o caso concreto não incorre na previsão do artigo 10.º, n.º 5, al. a) do Código do IRS e, por conseguinte, os ganhos terão de ser tributados em conformidade.

Cumpre apreciar e decidir.

Recordemos alguns dos factos relevantes que resultaram provados supra:

A escritura de compra e venda efetuada, em 15-10-2003, em que o aqui Requerente e outro sujeito passivo (comproprietários) figuram como segundos outorgantes (compradores) não refere que a aquisição do imóvel, no valor de € 99.759,58 (noventa e nove mil, setecentos e cinquenta e nove euros e cinquenta e oito cêntimos), foi realizada com recurso a empréstimo (sublinhado nosso). 

Consta igualmente daquela escritura que foi contratado um empréstimo de 600.000,00 € (seiscentos mil euros)  que se destinava exclusivamente a obras de beneficiação em habitação própria e permanente (sublinhado nosso), empréstimo regulado nos termos do Decreto-lei 349/98, de 11 de novembro.

Por escritura de 2005, retificada em 14 dezembro, o imóvel descrito foi submetido ao regime de propriedade horizontal constituindo-se 3 frações autónomas ("A", "B", e "C").

Na mesma se alterou a escritura de compra e venda, mútuo com hipoteca, fiança e mandato efetuada, em 15-10-2003, passando a constar que a responsabilidade dos outorgantes passaria de solidária a conjunta, na proporção de metade, para cada um dos devedores, o mesmo se passando com as respetivas fianças, em tudo o mais valendo o estipulado no clausulado da escritura de compra e venda, mútuo com hipoteca, fiança e mandato, original de 2003, na medida em que não houve novação do contrato[1]

Na sobredita escritura, de 2005, a fls. 70, verso, voltou a sinalizar-se qual era o escopo do mútuo celebrado a coberto da escritura de 2003: exclusivamente a obras de beneficiação em habitação própria e permanente (sublinhado nosso). 

Ficou ainda estipulada a venda da fração autónoma A. 

Procedeu-se, por fim, à permuta entre os outorgantes das frações "B" e "C". 

Confirma-se que quando se deu a permuta, o Requerente não necessitou de despender qualquer montante para ficar proprietário da fração "B". Segundo a própria escritura "Verifica-se ser de quatrocentos mil euros o valor global dos bens permutados não havendo diferença de valores declarados a pagar nem a receber em relação a qualquer um dos permutantes». 

Não podemos acompanhar o Requerente quando a respeito da permuta e à laia de conclusão afirma no PPA, e citamos «A história longa deste empréstimo demonstra de forma clara que o remanescente do empréstimo que existia à data da aquisição por permuta de 2005 não é mais do que um empréstimo contraído para a aquisição do imóvel.»

Em linha com a decisão arbitral tomada no processo n.º 379/2020-T, de 18-01-2021, onde se concluiu que «(...) na permuta ou troca, na perspetiva civilista, coexistem ou acomodam-se duas compras e vendas de bens imóveis, independentemente da qualificação que se faça do respetivo contrato. (...) Neste sentido e sem outras grandes considerações, diremos que não faria sentido termos regras diferentes em matéria fiscal para determinar o valor de aquisição e o valor de realização dos bens imóveis» –, consideramos que, para efeitos de IRS, estamos na situação concreta perante duas compras e vendas meramente ficcionadas.

Segundo LUÍS MENEZES LEITÃO, a troca tem por objeto a  transferência recíproca de propriedade de coisas ou outros direitos entre os contraentes, com grandes similitudes com o contrato de compra e venda, a que se aplica o artigo o artigo 939.º do Código Civil, sendo um contrato atípico e o seu regime construído por remissão para o referido preceito.  

Como tal, devem valer as regras gerais próprias de um contrato desta natureza, ou seja, os valores são os livremente estabelecidos contratualmente por ambas as partes, sendo certo que só não podem ser inferiores ao VPT, conforme resulta do artigo 44.º do CIRS e também do artigo 12.º, n.º 1 do próprio Código do Imposto municipal sobre Transações (“IMT”). 

Em termos gerais, o que ocorre na permuta é uma troca de imóveis entre dois proprietários, acertando-se depois as diferenças de valor. Veja-se a título meramente exemplificativo o caso de um imóvel, avaliado em 300 mil euros, que é permutado com outro, avaliado em 200 mil, mediante o pagamento da diferença de 100 mil euros. 

In casu, contudo, e repisa-se, não ficou demonstrado que o Requerente tivesse despendido qualquer montante para ficar proprietário da fração "B". Segundo a própria escritura "Verifica-se ser de quatrocentos mil euros o valor global dos bens permutados não havendo diferença de valores declarados a pagar nem a receber em relação a qualquer um dos permutantes» (sublinhado nosso). 

E recorda-se, o primeiro e segundo outorgantes passaram cada um deles, respetivamente, a ser proprietários das frações "B" e "C", e também cada um deles passou a ser devedor «(...) da quantia de duzentos e noventa e seis mil cento e oitenta e três euros e sessenta e dois cêntimos a título de empréstimo de que ambos já se confessaram devedores aquando da referida escritura de 15-10-2003 (sublinhado nosso), empréstimo esse que ora alteraram no sentido de, como já se disse, a sua responsabilidade passar a ser conjunta e não solidária.» 

Tem sido entendido pela doutrina que o mútuo bancário[2], cuja natureza resulta da qualidade do mutuante, consubstancia uma espécie dentro do mútuo comercial. Para além desta caraterística incontornável, o mútuo bancário apresenta especificidades relativamente ao mútuo civil, entre outras questões, no que toca à sua forma e aos juros. 

Ora, das várias diferenças que podemos salientar entre o mútuo civil e o mútuo bancário, merece especial destaque a que respeita à atipicidade do mútuo bancário. Com efeito, estamos perante um contrato para o qual não é prescrito regime legal específico, daqui resultando a enfâse da vontade das partes e do programa negocial por elas definido no contrato: em primeiro lugar deverá sempre ser considerado o que foi estipulado contratualmente.

Contudo, e por força da cláusula geral de direito subsidiário presente no artigo 3.º do Código Comercial, aplicar-se-ão as regras previstas no direito civil sempre que tal se justifique pela falta de normas comerciais aplicáveis, especialmente previstas ou inseridas no Código Comercial.

O contrato de mútuo assume, relativamente à forma, as características de um contrato solene (veja-se o artigo 1143.º do Código Civil, doravante CC), visto que para que seja eficaz e válido, torna-se necessário que as declarações de vontade expressas pelos contraentes sejam plasmadas em escritura pública, se a quantia mutuada for igual ou superior às quantias legalmente fixadas.

Tratando-se de um contrato de mútuo real e oneroso, a necessidade de redução das declarações em escritura pública ou documento particular autenticado torna-o um contrato solene, não podendo a prova ser efetuada senão por documento de valor idêntico, o que faz depender a validade do contrato de mútuo, a partir dos limites fixados na lei, de um requisito ad substantiam (cfr. artigo 364.º do CC, ex vi artigo 219.º, do mesmo Código).

Tem sido longamente entendido pelo supremo Tribunal de Justiça (“STJ”), que nos negócios formais o intérprete está obrigado a partir da letra do mesmo, uma vez que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.

Como tem sido igualmente secundado pelo STJ, que compete ao julgador não se ficar pela aparência nem pela apreciação de expressões ou cláusulas isoladas, antes devendo apreciar as expressões utilizadas no contexto negocial global e as circunstâncias em que foram proferidas. 

Estando em causa diversos contratos de mútuo bancário, teremos de prosseguir na senda de uma interpretação contextualizada, tendo em conta não só um documento lavrado nos termos do artigo 64.º, n.º 2 do Código do Notariado, complementar à escritura de transferência de crédito para o Banco B... (Portugal), em 2008, que aponta de forma isolada a finalidade deste novo empréstimo para «(…) aquisição na habitação própria e permanente identificada (…)», mas todas as cláusulas do novo contrato de mútuo, e do contrato original, bem como o propósito prosseguido pelas partes e as razões que estiveram na base da alteração do contrato de mútuo.

É, naturalmente, a esta luz, que devemos olhar para as três escrituras juntas aos autos.

O empréstimo concedido, no caso concreto, enquadra-se assim no contrato de mútuo bancário, caracterizando-se por ser um mútuo de escopo onde contratualmente o mutuário fica adstrito a dar à importância recebida o destino acordado.

No entanto, para a maioria da doutrina  (v. g. LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO)  a obrigatoriedade de aplicar as quantias recebidas a um fim específico e convencionado é o único elemento novo no mútuo de escopo relativamente ao mútuo típico. 

Assim, é nosso entendimento que a existência de um escopo traduz mais uma vinculação do mutuário, a somar à obrigatoriedade de restituição do capital e pagamento de juros. 

Nas palavras de JANUÁRIO GOMES, o crédito de escopo é aquele que, diversamente do que acontece com o crédito comum, é concedido para uma determinada finalidade, prevendo o contrato consequências específicas se ocorrer a fim diverso. 

A propósito das consequências referidas, CALVÃO DA SILVA realça a resolução do mútuo por incumprimento do escopo, assinalando que a essencialidade do fim para que foi concedido o dinheiro mutuado justifica o direito de resolução do contrato por incumprimento desse dever previsto em cláusula contratual (cláusula resolutiva expressa) ou em norma legal, com vencimento imediato da obrigação de restituição cumulada com indemnização, traduzida na perda de eventuais vantagens previstas (v.g., bonificação de juros ou benefícios fiscais). 

Podemos vislumbrar as razões que estiveram na origem da transferência do crédito[3] do Banco C..., SA (“C...”) para o Banco B... (Portugal), em 2008, nomeadamente a possibilidade de negociar melhores condições e gerar poupança no montante total do empréstimo.

Por outro lado, e para além de enquadramento legal distinto, na maioria das vezes o crédito para obras é visto pelas instituições bancárias como uma solução diferente do crédito habitação, ainda que o financiamento seja para o mesmo imóvel. Se a opção for por créditos separados, geralmente as condições de financiamento não são tão vantajosas, aumentando os custos finais.

O que ocorre com a transferência do mútuo para outra instituição de crédito é, vulgarmente falando, a celebração de novo contrato para liquidação do empréstimo anterior. 

A necessidade de celebração de um novo contrato prende-se com a própria natureza da concessão de um crédito sob a forma de mútuo que obriga a que se assegurem um conjunto de procedimentos.  

Na situação que vimos analisando, a transferência de um crédito habitação para outra instituição de crédito implicou, assim, a celebração de um novo contrato por escritura, de 21-07-2008, o qual refere que o empréstimo se destina a liquidar integralmente o empréstimo concedido pelo Banco C..., SA..

Apenas em documento complementar lavrado nos termos dos artigo 64.º, n.º 2 do Código do Notariado, e como acima vimos, se acrescentando «(...) para aquisição na habitação própria e permanente identificada (...)» 

Sob a epígrafe “Objeto e Finalidade”, o artigo 1.º do documento complementar que regula a transferência do mútuo para o Banco B... (Portugal), em 2008, não reflete a realidade subjacente quando indica que o valor então mutuado se destina a liquidar integralmente o empréstimo concedido pelo Banco D..., SA. para aquisição de habitação própria e permanente, porquanto tem na sua origem o empréstimo contraído junto do C... destinado exclusivamente a obras de beneficiação de habitação própria.

A finalidade indicada por este documento complementar, datado de 2008, que de resto, como vimos, não tem respaldo no documento principal da escritura de transferência do crédito para a segunda instituição – o qual aponta como destino apenas, a liquidação de empréstimo concedido pelo Banco C..., SA. – afigurava-se, à data, de concretização impossível, aparentando tratar-se de um lapso. Vejamos:

De uma banda, porque o imóvel tinha sido adquirido há muito, não se encontrando demonstrado que o tivesse sido por via do recurso ao crédito;

Por outra banda, porque a permuta de imóveis ocorrida pelos anos de 2005, não levou ao pagamento de tornas, como resultou claramente provado nos autos. 

Aqui chegados, e se o legislador se refere no n.º 5, al. a), do artigo 10.° do CIRS, apenas e expressamente a “aquisição do imóvel”, não distinguindo, é de concluir que a solução legalmente adotada corresponde ao objetivo pretendido. 

A previsão da norma não abrange, por conseguinte, o crédito destinado a obras de beneficiação em habitação própria e permanente, que é na verdade aquele que traduz a materialidade da situação concreta.

Acresce que, as normas de incidência dos tributos bem como as que concedem isenções ou exclusões de tributação devem ser interpretadas sem recurso a analogia. Neste sentido vd., entre outros, o Ac. TCAS de 2-12-2012, proc. n.º 05320/12, in www.dgsi.pt.

Forçoso é assim concluir que o caso concreto não incorre na previsão do n.º 5, al. a), do artigo 10.° do CIRS.

A propósito de situação semelhante, veja-se a decisão arbitral do CAAD referente ao processo n.º 454/2020-T:  

«SUMARIO: I - A possibilidade de dedução da amortização do empréstimo contraído para a construção do imóvel alienado para efeitos de tributação, mais favorável, em mais valias, não é permitida. II - Opõe-se a tal o n.º 5 al. a) do art. 10.° do CIRS, que apenas refere a situação de “aquisição do imóvel” , não se expressando relativamente à situação de “construção do imóvel”. III - Tal referência não sucede por acaso e circunscreve os limites em que pode ser considerada a dedução da amortização de empréstimo que haja sido contraído conforme o seu próprio fim ou destinação, não sendo possível equiparar-se este termo aquisição, ao conceito de aquisição referida no art.º 46º n.º 3 do CIRS. IV - Estando em causa a interpretação de normas de exclusão de tributação, devem ser interpretadas nos seus exatos termos, sem o recurso à analogia e evitando também a interpretação extensiva, tornando prevalente a certeza e a segurança na sua aplicação de acordo com as regras interpretativas ditada pelo art.º 9.º n.º 3 do Código Civil, que determina que tenhamos de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».  

Por tudo o que ficou dito, improcede totalmente o pedido do Requerente quanto às alegadas contradições, como vimos, fundamentação insuficiente ou errada qualificação.

 

V. DECISÃO

Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral singular:

 

a)     Julgar o presente pedido de pronúncia arbitral improcedente por não provado e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos, tudo com as devidas e legais consequências.

b)    De harmonia com o disposto nos artigos 296.º e 306.º do Código do Processo Civil (CPC) e 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1 alíneas a) e e) do RJAT, e 3.º, n.ºs 2 e 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 10.966,30 (dez mil, novecentos e sessenta e seis euros e trinta cêntimos), atendendo ao valor económico aferido pelo montante da liquidação de imposto impugnada.

c)     Condenar a Requerente nas custas judiciais. Nos termos dos artigos 12.º e 22.º, n.º 4 do RJAT, e artigos 2.º e 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas, em € 918,00 (novecentos e dezoito euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 04 de dezembro de 2023     

 

A Árbitra

 

 

 

/Alexandra Iglésias/

 

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

 

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.

 



[1] Que não houve vontade de novar, é dito expressamente. Ainda que assim não fosse, o STJ já se manifestou no sentido de que não é permitido presumir a intenção de novar, exigindo a presença de três requisitos: (i) a existência de uma obrigação anterior válida; (ii) a criação de uma nova obrigação, com a extinção da anterior; (iii) e o animus novandi (a vontade de novar). Na ausência de qualquer destes, em particular da declaração expressa de novar, esta não se verifica.

 

[2] O contrato de mútuo bancário, uma modalidade especial do contrato de mútuo celebrado por um banqueiro no exercício da sua atividade, é o contrato pelo qual o banco (mutuante) entrega uma determinada quantia em dinheiro ao cliente (mutuário), ficando este obrigado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, acrescido dos correspondentes juros (vd. JOSÉ ENGRÁCIA ANTUNES, Os Contratos Bancários, página 95 e 96); está em causa um empréstimo de dinheiro, de um valor e não de uma coisa, e é um contrato tipicamente oneroso, pois para além da obrigação de restituir o valor mutuado, o mutuário tem de pagar a devida retribuição: os juros convencionados.

 

[3] Cfr. o Regime dos contratos de crédito relativos a imóveis, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23-06-2017.