Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 191/2016-T
Data da decisão: 2016-12-12  IRC  
Valor do pedido: € 5.943.157,66
Tema: IRC - Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI)
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Decisão arbitral

 

 

1.      Relatório

 

A…, S.A. (adiante designada por “A…” ou Requerente), pessoa coletiva nº…, com sede em …, Apartado …, em …, veio, ao abrigo do artigo 2º nº 1, alínea a) e dos artigos 10º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante abreviadamente designado “RJAT”) e dos artigos 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, apresentar pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade do ato de liquidação de Imposto de Rendimento Colectivo (IRC) nº 2015…, referente ao exercício de 2012.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) em 11-04-2016.

 

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 6º e da alínea b) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 25-05-2016, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11º, nº 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6º e 7º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 14-06-2016.

 

Devidamente notificada, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido, defendendo-se unicamente por impugnação.

 

No dia 14-10-2016, teve lugar a reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, tendo-se procedido então à inquirição das testemunhas.

 

Foi fixado o dia 13 de Dezembro para a prolação da decisão final.

 

As partes apresentaram alegações escritas, pronunciando-se sobre a prova produzida, reiterando e desenvolvendo as respetivas posições jurídicas.

 

Pretende a Requerente que seja declarada a ilegalidade parcial da liquidação de IRC nº 2015 … relativa ao exercício de 2012 e correspondentes juros compensatórios no que respeita ao montante de € 5.943.157,66, com a sua consequente anulação nesta parte e restituição desse montante já pago pela Requerente, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, alegando, em síntese:

 

a)      A Requerente foi destinatária, na qualidade de sociedade dominante do Grupo Fiscal B…, grupo sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades, da liquidação adicional de IRC relativa a 2012.

b)      A liquidação adicional resultou de 3 correcções ao cálculo do imposto que, somadas, ascendem a € 6.522.927,95 e que se dividem da seguinte forma:

- € 5.620.824,79, relativos ao crédito fiscal ao investimento resultante do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI) de exercícios anteriores (2009, 2010 e 2011);

- € 16.714,16, relativos ao crédito fiscal ao investimento ao investimento resultante do RFAI no exercício de 2012;

- € 885.389,00, relativos à aplicação do artigo 92º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC).

c)      No presente pedido de pronúncia só estão em causa as duas primeiras correcções que perfazem o montante de € 5.637.538,95 (exceptua-se a parcela de € 885.389,00), bem como os respectivos juros compensatórios no montante de € 305.618,71, tudo perfazendo o total de € 5.943.157,66.

d)      Em relação ao RFAI dos exercícios anteriores (2009, 2010 e 2011) já foi proferida pelo CAAD no processo 400/2015-T, a 10 de Dezembro de 2015, decisão arbitral que reconheceu e legitimou esses créditos fiscais.

e)      O Tribunal arbitral afirmou, então, que, em relação àqueles exercícios da Requerente não só este benefício fiscal de RFAI existe como foi devidamente reportado para 2012 na parte que não tenha sido passível de ser deduzido à colecta anteriormente.

f)       Razão pela qual a correcção determinada e consequente liquidação adicional no exercício de 2012 relativa ao reporte e dedução do RFAI de 2009, 2010 e 2011 é nula por ofensa de caso julgado material nos termos do artigo 161º, nº 2, al. i) do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aplicável ex vi artigo 2º, al. d) do Código do Procedimento e Processo Tributário (CPPT).

g)      De qualquer forma, do texto do nº 2 do artigo 2º do RFAI não se retira o requisito utilizado pela AT - exercício, a título principal, de actividade no sector energético - para negar o enquadramento do investimento realizado pela Requerente em sede de RFAI.

h)      O RFAI aplica-se ao sujeito passivo de IRC que exerça, a título principal, uma das actividades elencadas do artigo 2º, nº 1, al. a) (pressuposto subjectivo) e que faça investimentos nos activos também elencados no RFAI (pressuposto objectivo ou incidência real do incentivo), podendo ele e aqueles seus investimentos (preenchidas que estejam adicionalmente algumas condições “administrativas” previstas no nº 3 do artigo 2º), beneficiar do incentivo fiscal ao investimento em sede de IRC.

i)       Entre as actividades elencadas naquele dispositivo, encontra-se a actividade no sector da indústria transformadora.

j)       Ora a indústria transformadora é a secção C do CAE, onde se insere, entre outras, a Divisão 17, justamente o código da A… .

k)      Usando as exactas palavras do texto legal, a Requerente é, justamente, um “sujeito passivo de IRC que exerce a título principal, uma actividade (…) nos sectores (…) da indústria (…) transformadora (cfr. artigo 2º, nº 1, al. a) do RFAI).

l)       O critério delimitador do âmbito de aplicação pessoal do RFAI dirige-se à entidade (exige-se que exerça a titulo principal actividade num dos sectores nomeados) e não à actividade A ou B, de entre as prosseguidas pela empresa, ou seja, não é a actividade em si mesma o elemento que é ou deixa de ser elegível para efeitos de RFAI, mas antes o contribuinte quando nele se reúna determinada característica: dedicar-se a título principal a uma das actividades elencadas no RFAI.

m)   De qualquer forma, no exercício da actividade de produção de pasta de papel e papel, que é a da A… e respectivo grupo, a integração de actividades de produção de energia é uma inevitabilidade económica e ambiental.

n)      Sendo artificioso tentar separar investimentos, como fez a AT na unidade que fabrica a pasta do papel ou o papel da unidade que fornece on site energia, designadamente térmica, ou que simplesmente prolonga o aproveitamento da matéria-prima valorizando energeticamente os enormes desperdícios gerados na extracção da celulose para o fabrico da pasta de papel e, em ultima analise, fabrico de papel.

o)      Assim sendo, os investimentos em equipamentos de energia concretizados pela Portucel, em 2009, 2010 2011 e 2012, são indissociáveis da actividade de produção de pasta de papel e papel.

p)      Em síntese, não só o único requisito electivo previsto no nº 1 do artigo 2º do RFAI (a norma aplicada pela AT para fazer a correcção que aqui se discute) se encontra preenchido (a Requerente dedica-se a titulo principal ao sector da industria transformadora), como também, adicionalmente, o destino do investimento aqui em causa foi uma actividade que, mesmo se prosseguida de forma desintegrada de uma indústria transformadora – o que não foi o caso -, seria de um sector (o energético) constante da lista prevista no RFAI em vigor nos exercícios de realização do investimento aqui em causa (entre 2009 e 2012).

q)      Igualmente nesta sede, o CAAD já entendeu no processo acima referido, em decisão julgada inteiramente procedente à Requerente relativamente ao RFAI de 2009, 2010 e 2011 que “não tem suporte legal e enferma de vício de violação de lei a conclusão, em que a Autoridade Tributária e Aduaneira assentou a liquidação impugnada, de que o investimento não é ilegível por ter sido concretizado em actividade diferente da actividade principal da Requerente (decisão de 10 de Dezembro de 2015 proferida no processo nº 400/2015).

r)       A partir de 2012, para que não restem quaisquer dúvidas, a Requerente passou a incluir expressamente no seu objectivo social que este “consiste na produção e comercialização de pastas celulósicas e de papel e seus derivados e afins e na produção e comercialização de energia eléctrica e de energia térmica.

s)      E, por isso, nem sequer subsiste, em relação ao exercício de 2012, esse argumento puramente formalista invocado pela AT de que não é actividade principal da Requerente a produção de energia.

t)       O acto de liquidação em causa deve, por isso, ser declarado parcialmente ilegal e parcialmente anulado, porquanto padece de vicio de violação de lei e, consequentemente, por violar o principio da legalidade.

 

Por seu turno, a Requerida veio em resposta alegar, em síntese:

 

a)      Ora, em 2009, 2010 e 2011 e 2012, a Requerente concretizou investimentos em unidades de produção de energia situadas nos seus complexos industriais.

b)      Por aplicação do RFAI apurou um crédito de imposto em IRC, em função do investimento em equipamento de produção de energia.

c)      A AT desconsiderou o direito ao crédito de imposto, por entender que seria necessário que a A… exercesse formalmente actividade no sector energético, verificando-se que não exercia a título principal a actividade beneficiada pelos investimentos.

d)      Verificando-se, mesmo, na situação concreta, que o exercício de tal actividade nem é levado a cabo por parte da A… uma vez que esta, embora tendo mantido a titularidade dos investimentos, havia contratado a cessão da sua exploração a uma sua dominada a 100%.

e)      De facto, em 1 de Janeiro de 2009, a A… e a C…, S. A. (C…) celebraram contrato de cessão temporária de exploração das instalações destinadas à produção de energia eléctrica e térmica, destinado a «possibilitar à C…, de harmonia com o seu objecto social, a produção e comercialização de energia eléctrica e térmica»;

f)       Em 08.09.2011, a A… requereu informação vinculativa relativamente à criação e manutenção dos postos de trabalho associados a investimentos que considerava relevantes para efeitos de RFAI e à possibilidade de transferência de responsabilidade de detenção dos investimentos e de manutenção dos postos de trabalho no caso de serem efectuadas operações de entrada de activos ao abrigo do regime de neutralidade fiscal.

g)      Os Serviços de Informação Tributária (SIT) corrigiram o benefício fiscal deduzido nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigoº 90.º do CIRC, na Declaração de Rendimentos Modelo 22 do grupo, com os fundamentos constantes do ponto III – 2. do Relatório de Inspecção Tributária (RIT) relativo à sociedade A… (junto como doc. n.º 4 da PI), a saber:

- No que concerne à correcção ao benefício fiscal por RFAI de 2012, de € 16.714,16, é dito que «A A… requereu à Direcção de Serviços do IRC (DSIRC) um pedido de informação vinculativa n.º … relativamente a eventuais contingências em sede de aplicação do RFAI aos investimentos relacionados com a central de biomassa relacionada com a produção de energia no âmbito de uma situação de reestruturação do grupo económico e do destaque dessa actividade para outra empresa. (…). Das conclusões apuradas naquela Informação Vinculativa, destaca-se que:

“ a) Dado que a primeira condição para que um sujeito passivo de IRC possa aproveitar do incentivo em causa é, desde logo, o exercício, a título principal, de uma actividade que se integre num dos sectores elencados nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigoº 2.º do diploma que criou o RFAI 2009, forçoso se torna concluir que a Requerente, não exercendo qualquer actividade que se integre no sector energético, não pode aproveitar do incentivo relativamente ao investimento afecto à central termoeléctrica a biomassa.”

h)      Mencionando-se no RIT (cfr. ponto IX.2.2, pág. 12/15): «A A… contesta a correcção proposta no ponto III-2.1.2 do presente relatório de inspecção e no ponto III.2.2 do relatório de inspecção à sociedade A… SA (…) argumentando que:

a) “A AT fundamenta a correcção na posição assumida pela DSIRC na resposta ao pedido de informação vinculativa …” considerando que a A…“… por não exercer a título principal uma actividade no sector energético, não pode beneficiar do RFAI, relativamente ao investimento afecto à central termoeléctrica a biomassa”.

i)       Consta da resposta ao pedido de informação vinculativa, designadamente o seguinte:

«A requerente desenvolve as seguintes actividades (…) Actividade principal: Fabricação de pasta (…) Actividade secundária: Fabricação de papel e de cartão (excepto canelado) (…) Ora, se a primeira condição para que um sujeito passivo de IRC possa aproveitar do incentivo em causa é, desde logo o exercício, a título principal, de uma actividade que se integre num dos sectores elencados nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigoº 2.º do diploma que criou o RFAI 2009, forçoso se torna concluir que a requerente, não exercendo qualquer actividade que se integre no sector energético, não pode aproveitar do incentivo relativamente ao investimento afecto à central termoeléctrica a biomassa. Aliás, segundo consta da informação adicional anexa ao pedido de informação vinculativa, «a colocação de energia eléctrica na Rede Eléctrica Nacional encontra-se limitada a empresas especificamente licenciadas para o efeito como tal, as unidades geradoras de energia detidas pela A…, S. A. encontram-se a ser operadas pela empresa do grupo C…, S. A. (a …), empresa a quem foi atribuída a licença de exploração de unidades geradoras. Logo, se a operadora das unidades geradoras de energia é a C…, não podemos, sequer, dizer que a requerente desenvolve uma actividade no âmbito do sector energético (neste caso, a produção e distribuição de energia). Portanto, só pode beneficiar do RFAI o investimento que o sujeito passivo realizou no âmbito da actividade que exerce a título principal, ou seja, no seu segmento de negócio de produção de pasta ... (...) Indústrias transformadoras). (…) »

j)       Vemos, pois, que a aqui Requerente, em sede de exercício do direito de audição no procedimento de inspecção tributária, reconheceu que a correcção se fundamenta na resposta ao pedido de informação vinculativa.

k)      Simplesmente, negligente ou deliberadamente, faz dessa resposta uma leitura muito truncada.

l)       A Requerente não se refere na petição inicial à cessão da exploração a entidade terceira dos bens de investimento a cuja actividade foram afectos.

m)   A razão para dever ser desconsiderado o investimento em causa não é tanto a A… exercer a actividade a título principal ou secundário, mas sim, tal desconsideração deriva da constatação de não ser sequer a A… a exercer a actividade de produção e distribuição de energia.

n)      Mais constatando os serviços que tal actividade não constava do respectivo objecto social e era mesmo vedada por lei à aqui Requerente;

o)      Pelo que se verificava que os bens de investimento em causa não foram afectos à exploração da empresa, não sendo por isso, elegíveis para efeitos de RFAI.

p)      A Requerente alega que terá realizado investimentos no decurso dos anos de 2009 a 2012 relevantes para efeitos de atribuição do benefício previsto no âmbito da actividade de produção de energia eléctrica e térmica (vapor), instrumentais em relação à actividade de produção de pasta de papel.

q)      Porém, deve notar-se também que, como se fez constar do ponto IX.2.2 3) do RIT - «à data da realização das inspecções para os períodos de 2009, 2010 e 2011, as indicações transmitidas pelo grupo B…, conforme indica o parágrafo 14º do Direito de Audição, foi que o investimento foi realizado para a produção de energia eléctrica;»

r)       Pelo que deve ter-se por provado o facto de que os bens de investimento em causa não foram afectos à exploração da empresa Requerente mas da empresa C…, S.A.

s)      Mesmo que as matérias-primas – desperdícios de madeira e lixívia negra – fossem fornecidos à C…, S.A. pela Requerente bem como cedidos os trabalhadores e os equipamentos utilizados, ao abrigo do contrato de cessão temporária de exploração, tal circunstância – a comprovar-se - não é por si só suficiente para considerar que a exploração das unidades produtoras de energia é feita directamente pela Requerente.

t)       Mesmo que o capital social da C…, S.A. seja detido na sua totalidade pela Requerente e mesmo que ambas integrem o perímetro do grupo para efeitos da aplicação do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), tal circunstância é igualmente irrelevante, pois não implica que deixem de ser tratadas, para efeitos fiscais, como sujeitos passivos de IRC autónomos.

u)      Posto isto, é legítimo concluir que, conquanto a Requerente tivesse realizado e financiado os investimentos e fosse a proprietária dos equipamentos das unidades produtoras de energia, de facto, para efeitos do RFAI, tais investimentos não são qualificáveis como “investimentos relevantes “ (n.º 2 do artigoº 2.º) por não estar preenchido o requisito da afectação dos mesmos à exploração da empresa, o que vale por dizer, que os investimentos elegíveis não foram efectuados numa actividade exercida pelo sujeito passivo investidor.

v)      Ora, a lei estabelece expressamente que os bens de investimentos devem ser afectos à actividade da empresa, pressupondo-se que sejam afectos à actividade da empresa que vem invocar o direito ao benefício.

w)    Em relação ao facto de a Requerente considerar os investimentos em equipamentos de energia concretizados pela A…, em 2009, 2010 2011 e 2012, indissociáveis da actividade de produção de pasta de papel e papel, sempre se dirá que, do ponto físico, técnico e económico, os investimentos afectos à produção de energia certamente apresentam autonomia relativamente às unidades de produção da pasta de papel e de papel, pois que a Requerente chegou a considerar a hipótese, no pedido de informação vinculativa que apresentou à DSIRC, em 2011, de proceder ao destaque dessas unidades produtivas para a C…, o que denota que a separação que a AT efectuou não é artificiosa.

x)      A interpretação do RFAI feita pela AT decorre linearmente da letra e do espírito da lei. 

y)      Devendo, assim, improceder, por falta de fundamento, o pedido arbitral.

 

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e foi regularmente constituído.

 

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas (artigos 4º e 10º, nº 2, do mesmo diploma e artigo 1º da Portaria nº 112-A / 2011, de 22 de Março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

A Requerente alega a excepção do caso julgado, alegando, em súmula, que a questão que coloca, com referência ao acto impugnado, está decidida, com trânsito em julgado, pelo acórdão do tribunal arbitral proferida no processo nº 400/2015, de 10 de Dezembro de 2015.

 

A Requerente invoca com alguma timidez o caso julgado (escreve: «em bom rigor»), e percebe-se que assim faça.

 

É que não deixa de causar perplexidade que requeira a constituição do tribunal arbitral para que ele… se não pronuncie sobre a questão proposta, por estar impedido por força do caso julgado, obstativo de uma segunda pronúncia!

 

Assim sendo, a legitimidade da Requerente ou, pelo menos, o seu interesse em agir, seriam discutíveis.

 

Mas a verdade é que a questão se deve colocar num outro plano.

 

Quanto à legitimidade, ela resulta de a Requerente, sujeito passivo de IRC, ter sido objecto de um acto de liquidação. O interesse em agir advém, desde logo, de esse acto se reflectir na sua esfera patrimonial (a Administração, consolidado o acto, não deixaria de, legitimamente, o executar), sendo seu interesse que ele não faça caso decidido.

 

De todo o modo, a excepção do caso julgado é de conhecimento oficioso, pelo que importa decidi-la – artigo 577º, alínea i) e 578º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi artigo 2º, al. e) do CPPT.

 

O caso julgado pressupõe, nos termos do artigo 580º, nº 1 do CPC, a repetição de uma causa depois da primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, pretendendo-se com isso impedir que venha a ser proferida pelos tribunais, no futuro, nova decisão sobre a situação jurídica já definida, vinculando-os a acatar e aplicar a definição transitada em julgado quando lhes seja submetida a mesma questão, acautelando-se, desta forma, o principio da certeza e da segurança do direito, assim como o prestigio da administração da justiça.

 

Como escreve o Professor Alberto dos Reis, a págs. 86 do Volume III de Código de Processo Civil anotado, «A excepção do caso julgado consiste na alegação de que a acção proposta já está decidida por sentença com trânsito em julgado. Por outras palavras, consiste na alegação de que a causa é a repetição de outra anterior, já arrumada por sentença transitada em julgado».

           

Ora, o objecto da sentença invocada pela Requerente foi um acto tributário distinto daquela cuja apreciação agora submete ao tribunal.

 

Daí que se possa desde logo concluir que a causa não é a repetição de outra já decidida.

 

Tudo o que acontece é que são os mesmos os sujeitos processuais neste e no processo nº 400/2015-T do CAAD.

 

Mas, por muito semelhantes que sejam o pedido e a causa de pedir, não há identidade entre eles.

 

Vejamos o que nos diz o acórdão do STA de 7.12.2011, proferido no processo nº 0419/11: «o caso julgado [material] visa essencialmente a imodificabilidade da decisão transitada e a irrepetibilidade do juízo contido na sentença. Como ensinava Manuel de Andrade, o caso julgado obsta «a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por uma anterior decisão, e, portanto, desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados» (cfr. Noções Elementares de Processo Civil, pág. 317).

 

Por isso, perante a propositura de nova acção sobre a mesma questão, o juiz deve negar-se a proferir nova decisão autónoma, sob pena de ineficácia da nova decisão. (…) É «nos precisos limites e termos em que se julga» que se determina a extensão do caso julgado, limites subjectivos e objectivos que, por remissão do nº 1 do artigo 671º, estão definidos nos artigos 497º e 498º do CPC. Os limites objectivos do caso julgado definem-se por referência ao objecto do processo. Como se prescreve nestes artigos, é preciso que exista a «repetição de uma causa» depois da «primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admita recurso ordinário», em que «o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior», o que acontece «quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir». Portanto, objecto do processo e a extensão objectiva do caso julgado identificam-se através do pedido e da causa de pedir. Mas o papel principal é desempenhado pela pretensão do autor, que se identifica como o efeito jurídico pretendido (nº 2 do artigo 498º do CPC), ou seja, a providência solicitada ao tribunal (pedido imediato) e a posição jurídica material a tutelar por esse meio (pedido mediato). A causa de pedir serve apenas para individualizar a posição subjectiva que o autor pretende efectivar com a providência solicitada. Como refere Antunes Varela «a ordem pela qual, compreensivelmente, a lei enumera as três identidades caracterizadoras do caso julgado (a identidade do pedido, antes da identidade da causa de pedir) mostra que é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado» (cfr. Manual de Processo Civil, pág. 712)».

 

No processo de anulação de actos tributários ou de quaisquer outros actos administrativos, o objecto do processo define-se por referência a um acto inválido: o pedido imediato corresponderá à eliminação do acto em questão da ordem jurídica; a causa de pedir corresponderá às específicas causas de invalidade do concreto acto invocadas.

 

Assim, o objecto da pronúncia do tribunal é o acto impugnado, cuja legalidade se aprecia e que se declara nulo, ou se anula, ou se mantém na ordem jurídica. Os poderes de pronúncia do tribunal não vão além disso, ainda que a jurisprudência venha entendendo que se alargam à condenação da Administração a repor a situação que existiria se a ilegalidade não tivesse sido cometida, o que é um mero corolário da declaração de nulidade ou da anulação, correspondendo a uma obrigação já prevista na lei e impondo-se, por isso, à Administração sem necessidade daquela condenação expressa.

 

            É verdade que a concepção segundo a qual o contencioso administrativo se esgota num processo a (ou contra) um acto, está hoje abandonada, substituída por uma concepção mais subjectivista.

 

Mas essa subjectivização não é absoluta, não se passou de um contencioso objectivo para um subjectivo, antes se criaram meios para que os particulares possam obter, não apenas a declaração de ilegalidade dos actos administrativos, mas também a definição do conteúdo da relação jurídica de que são sujeitos passivos.

 

Ou seja, no caso concreto da impugnação de um acto de liquidação, é ele o elemento essencial do processo: é contra ele que o impugnante reage e é sobre ele, e só sobre ele, que se projectam os efeitos da sentença.

 

Dito de outro modo, a tutela propiciada por este meio processual consiste, só, na eliminação do acto ofensivo do direito subjectivo. E o acto, nos impostos anualizados, como é o caso, tem os seus efeitos limitados a um concreto exercício, não alastrando para os seguintes.

 

Os tribunais não tutelam, por esta via, directa e globalmente, a posição jurídica substantiva, a relação jurídica material subjacente. Fazem-no só nos limites em que o acto impugnado a mal definiu ou desrespeitou, lesando os direitos e interesses legalmente protegidos do impugnante.

 

Por isso é que a lei ordinária – artigo 100º da Lei Geral Tributária (LGT) e 24º nº4 do RJAT - se limita a, quando os tribunais anulem um acto de liquidação, impedir a Administração de o repetir com o mesmo conteúdo, sob pena de violação do caso julgado, mas não obsta a que, afora isso, ela redefina livremente o conteúdo da mesma relação jurídica material, assente em outros factos ou em outro quadro normativo.

 

A tutela subjectiva fica a cargo de outros meios processuais, entre os quais avulta a acção para reconhecimento de um direito, meio complementar que o Governo não confiou aos tribunais arbitrais, embora para tanto dispusesse de credencial bastante – cfr. a alínea a) do nº 4 do artigo 124º da lei nº 3-B/2010, de 28 de Abril.

 

Pelo exposto, não há, sobre a questão decidenda, caso julgado que obste à pronúncia pedida pela Requerente.

 

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

II. Decisão

 

1. Matéria de facto

 

1.1.Factos dados como provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)         A Requerente A…, S.A. é a sociedade dominante do grupo B…, sujeito ao RETGS (doc. 17 junto com processo administrativo).

b)        A Requerente foi destinatária, nessa qualidade, da liquidação adicional de IRC nº 2015…, relativa a 2012, datada de 17.12.2015, cuja ilegalidade parcial invoca (doc. 1 junto com o pedido arbitral).

c)        A referida liquidação adicional resultou de procedimento de inspecção tributário interno relativo ao período de 2012, cujo Relatório de Inspeção Tributária se encontra junto aos presentes autos e se dá por integralmente reproduzido (doc. 4 junto com o pedido arbitral).

d)        Na utilização da principal matéria-prima utilizada na fabricação de pasta de papel e papel, ou seja, a madeira, geram-se desperdícios com valor energético para a produção da necessária energia (biomassa). (depoimento da testemunha D… e doc. 5 junto com o pedido arbitral).

e)        Os processos de produção de pasta de papel e papel e de energia térmica e, posteriormente, elétrica são indissociáveis por razões técnicas, económicas e ambientais (depoimento da testemunha D…).

f)         A produção de energia com utilização de desperdícios resultantes da actividade da Requerente de produção de pasta de papel foi, até 2012, efetuada pela empresa do grupo C…, SA, com quem a Requerente celebrou contrato de cessão temporária de exploração.

g)        Este contrato de cessão temporária de exploração existente entre a Requerente e a C… nunca foi referido pela AT durante o procedimento de inspecção (depoimento da testemunha E…), nem o Relatório de Inspecção Tributária lhe faz qualquer alusão directa (doc. 4 junto pela Requerente com o pedido arbitral).

h)        Passando a Requerente, a partir de 2012, a produzir energia com utilização dos referidos desperdícios.

i)          Em 2012, a Requerente alterou o contrato de sociedade (ap. 6 de 17.04.2012 da certidão comercial junto aos autos) no que se refere ao objecto social passando o mesmo a definir-se nos seguintes termos:

“1 - O objecto social consiste na produção e comercialização de pastas celulósicas e de papel e seus derivados e afins e na produção e comercialização de energia eléctrica e energia térmica; 2 - A sociedade pode, acessoriamente, explorar os serviços e efectuar as operações civis e comerciais, industriais e financeiras relacionadas, directa ou indirectamente, no todo ou em parte, com o seu objecto ou que sejam susceptíveis de facilitar ou favorecer a sua realização; 3 - Na prossecução do seu objecto, a sociedade poderá, mediante deliberação do conselho de administração, participar no capital de outras sociedades, constituídas ou a constituir, seja qual for o seu objecto, e mesmo que regidas por leis especiais, bem como associar-se, sob qualquer outra forma, com quaisquer entidades singulares ou colectivas, nomeadamente para formar agrupamentos complementares de empresas, consórcios e associações em participação ou outro tipo de exercício de actividade económica.”

j)     A Requerente efectuou em 15.02.2016 o pagamento do montante da liquidação adicional em crise, conforme doc. 3 junto aos autos.

k)   O pedido de constituição de Tribunal Arbitral deu entrada no dia 28-03-2016.

 

1.2. Factos dados como não provados

 

De entre os alegados, relevantes para a decisão, nenhum ficou por provar.

 

1.3. Fundamentação da matéria de facto

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigoº 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental, o PA juntos aos autos e o depoimento das testemunhas arroladas pela Requerente, D… e E…, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06- 2014, proferido no processo 07148/131, “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

 

 

2.                  Do Direito

 

A questão essencial a decidir e colocada pela sociedade comercial A…, S.A., sociedade dominante de um grupo de sociedades, enquadradas no “Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades”, no seu pedido de pronúncia arbitral é a seguinte:

- Ilegalidade parcial do acto de liquidação adicional n.º 2015…, de 3/6/2012, relativo ao IRC do exercício de 2012, no que se refere a correcções efetuadas pela AT, que perfazem o montante de € 5.637.538,95, acrescido de juros compensatórios no montante de € 305.618,71, tudo perfazendo o total de € 5.943.157,66.

 

A Requerente invocou na sua declaração Modelo 22 de 2012 o direito a crédito fiscal nos termos do nº 2 do artigo 90º do CIRC, no montante de € 5.637.538,95, sendo o montante de € 5.620.824,79 relativo ao crédito fiscal ao investimento resultante do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI) de exercícios anteriores (2009, 2010 e 2011) e o montante de € 16.714,16, relativo ao crédito fiscal ao investimento resultante do RFAI no exercício de 2012.

 

A Inspecção considerou que a A…, SA deduziu indevidamente à colecta de IRC esses montantes por, como consta do RIT, no que se refere ao RFAI de períodos anteriores a 2012, ter deduzido “montante que corresponde a parte dos créditos fiscais que indevidamente calculou entre 2009 e 2011, sobre investimento não qualificado como relevante e corrigido pela inspeção aos períodos de 2010 e 2011” e, no que se refere ao investimento efectuado em 2012, ter considerado “indevidamente como investimento relevante as adições de Ativos Fixos Tangíveis relacionados com a atividade acessória de produção de energia quando nos termos do RFAI/2009 apenas é objeto de incentivo o investimento afeto à atividade principal”.

 

Em relação ao RFAI dos exercícios anteriores (2009, 2010 e 2011), a questão já não é nova. De facto, como foi dito atrás, já foi proferida pelo CAAD, no processo 400/2015-T, a 10 de Dezembro de 2015, decisão arbitral que reconheceu e legitimou esses créditos fiscais: o Tribunal arbitral afirmou, então, que, em relação aqueles exercícios da Requerente, não só este benefício fiscal de RFAI existe como foi devidamente reportado para 2012 na parte que não tenha sido passível de ser deduzido à colecta anteriormente.

 

Logo, no que se refere ao RFAI dos exercícios anteriores a 2012, vamos limitar-nos a remeter para a fundamentação expendida no referido acórdão.

 

Importa, no entanto, começar por descrever o enquadramento legal dos factos tributários em causa no caso em apreço.

 

O Regime Fiscal de Apoio ao Investimento constitui um benefício fiscal ao investimento em activos fixos tangíveis e activos fixos intangíveis, e foi aprovado pela Lei nº 10/2009, de 10 de Março, e sucessivamente prorrogado pelos Orçamentos do Estado para 2010 (Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), para 2011 (Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro) e para 2012 (Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro).

 

Nos números 2 a 6 do artigo 2.º, define-se o âmbito de aplicação do regime ao nível do tipo de investimentos elegíveis e não elegíveis e das condições exigidas para que os sujeitos passivos de IRC possam beneficiar do incentivo fiscal em questão, sendo que, o artigo 3.º n.º 1 consagra a forma de cálculo do benefício fiscal.

 

De acordo com o artigo 3.º do RFAI, este benefício fiscal consiste numa “dedução à colecta de IRC”, sendo que a dedução se faz “até à concorrência de 25% da mesma”. Quando a dedução “não possa ser efectuada integralmente por insuficiência de colecta, a importância ainda não deduzida pode sê-lo, nas mesmas condições, nas liquidações dos quatros exercícios seguintes.”

 

Advém da própria natureza do benefício em causa o estabelecimento de vários limites à dedução à colecta dos montantes investidos, que têm a ver com os montantes investidos e com a região onde são realizados os investimentos, situação que pode conduzir a que a totalidade dos mesmos não possam ser deduzidos à colecta do ano em que foram realizados, neste caso, sendo permitida a possibilidade do seu reporte.

 

Antes de mais, importa referir que o RFAI aprovado pelo artigo 13.º da Lei n.º 10/2009, de 10 de Março, prorrogado sucessivamente até 2013, determina no n.º 1 do artigo 2.º, sob a epígrafe “âmbito de aplicação e definições” o seguinte:

«1- O RFAI 2009 é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam, a título principal, uma actividade:

a) Nos sectores agrícola, agro-industrial, energético e turístico e ainda da indústria extractiva ou transformadora, com excepção dos sectores siderúrgico, da construção naval e das fibras sintéticas, tal como definidos no artigo 2.º do Regulamento (CE) n.º 800/2008, da Comissão, de 6 de Agosto;

b) (…) 2- Para efeitos do presente regime, consideram-se como relevantes os seguintes investimentos desde que afectos à exploração da empresa».

Ora, nos termos do acórdão acima mencionado, e passamos a citar, “em primeiro lugar, há que notar que a Requerente se integra claramente na previsão textual do n.º 1 deste artigo 2.º, pois é um sujeito passivo de IRC que exerce, a título principal, uma actividade na indústria transformadora.

Por outro lado, no n.º 2, que define os investimentos elegíveis, não se faz qualquer restrição aos que estejam conexionados com a actividade principal das empresas elegíveis, pelo que, por esta via, também não se pode encontrar suporte textual para concluir que apenas investimentos conexionados com a actividade principal das empresas indicadas no n.º 1 sejam elegíveis.

As normas que criam benefícios fiscais têm natureza de normas excepcionais, como decorre do teor expresso do artigo 2.º, n.º 1, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), pelo que devem ser interpretadas nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições, de forma a abrangerem todos os casos nelas literalmente previstos e apenas esses, como é jurisprudência pacífica. ([1])

A necessidade de suporte textual consistente para a interpretação de normas excepcionais é acentuada no caso de normas incluídas na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, como é o caso das que prevêem benefícios fiscais [artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP]. O que se reconduz a que seria incompaginável com a Constituição, por ofensa dos princípios da reserva de lei e da reserva de lei a adição pela Administração de requisitos para a concessão de benefícios fiscais não explicitamente exigidos pelas normas que os prevêem e que não se apura com a segurança reclamada pelo princípio da confiança que aí estejam implícitos.

No caso em apreço, para além de não haver qualquer suporte textual para o afastamento do benefício fiscal nos casos em que uma empresa é enquadrável na previsão do n.º 1 do artigo 2.º do RFAI, não há qualquer razão para detectar um requisito adicional implícito, pelo menos nos casos em que o sector económico em que é feito o investimento numa actividade secundária, pois a aplicação do benefício fiscal nesta área sintoniza-se com a intenção legislativa de «potenciar o investimento produtivo empresarial» e, no caso, de promover a independência e eficiência energéticas, bem como da sustentabilidade ambiental, revelada no Relatório da Proposta de Lei n.º 247/X que deu origem à Lei n.º 10/2009. ([2]

Assim, é de concluir que podem usufruir do benefício fiscal empresas enquadráveis na previsão do n.º 1 do artigo 2.º do RFAI que façam investimentos em actividades que não sejam a sua actividade principal, pelo menos quando eles são efectuados numa actividade secundária que está também prevista nesta norma.

O que leva a concluir que não tem suporte legal e enferma de vício de violação de lei a conclusão, em que a Autoridade Tributária e Aduaneira assentou a liquidação impugnada, de que o investimento não é elegível por ter sido concretizado em actividade diferente da actividade principal da Requerente.

É certo, porém, que está ínsito no regime do artigo 2.º do RFAI que os investimentos sejam utilizados numa actividade da própria empresa elegível, mesmo que não seja a principal.

No caso em apreço, não se pode duvidar de que a produção da biomassa florestal e a sua utilização para produção de energia eléctrica está directamente conexionada com a indústria da madeira e da pasta..., pois essa ligação é expressamente assumida na Resolução do Conselho de Ministros n.º 169/2005, de 24 de Outubro, ao enunciar, entre as medidas a adoptar para «a produção de energia eléctrica e a expansão de outros usos directos sob a forma de calor ou de luz a partir de fontes renováveis de energia», «a valorização da biomassa florestal, em regime a compatibilizar com as indústrias da madeira e da pasta......».

Para além disso, a produção de energia eléctrica, nos termos do contrato celebrado com a C…, S.A., não pode ser considerada uma actividade alheia à Requerente, pois:

– a Requerente manteve a propriedade da instalação destinada à produção de energia;

– a instalação está situada no interior do Complexo de de que Requerente é proprietária (cláusula 1.ª do Contrato);

– a operação do equipamento de produção de energia é efectuada, em regra, por trabalhadores da Requerente, que já estavam afectos à instalação no momento em que foi celebrado o contrato (cláusula 3.ª, n.º 1, do Contrato);

– os trabalhadores da Requerente afectos à produção de energia continuaram a ser por ela remunerados, mantendo aquela sobre eles o poder disciplinar, e ficando os mesmos apenas funcionalmente sujeitos às ordens e orientações da C…, S.A. (cláusula 3.ª, n.º 2, do Contrato);

– «toda a energia eléctrica e térmica produzida na instalação será destinada prioritariamente, a satisfação das necessidades do Complexo de da A…, S.A. e acessoriamente à venda a terceiros, tudo de harmonia com contratos que vierem a ser celebrados com os referidos adquirentes» (cláusula 5.ª do Contrato);

– como contrapartida da cessão e da prestação de serviços, a C…, S.A. efectua pagamentos à Requerente;

– era a Requerente quem fornecia a lixívia negra, as biomassas, a água de alimentação às caldeiras e os consumíveis , como se depreende da Cláusula 6.ª, n.º 1, alínea b);

– a entidade que nominalmente efectua a exploração dos investimentos é detida a 100% pela Requerente. 

Neste contexto, é inequívoco que há uma actividade de produção de energia com utilização de biomassa produzida pela Requerente, que é levada a cabo por trabalhadores da Requerente, nas suas instalações, com utilização dos equipamentos adquiridos com os investimentos em causa, obtendo a Requerente proveito económico de tal actividade, através dos pagamentos previstos no contrato, que são contrapartida não só da cessão como da prestação de serviços.

Assim, está-se perante uma actividade que, pelo menos, no que concerne à prestação de serviços remunerada, é exercida directamente pela Requerente, com base nos investimentos efectuados, realidade esta que não é prejudicada pelo facto de a C…, S.A. desenvolver a sua própria actividade económica, explorando os mesmos investimentos, através da prestação de serviços que adquire à Requerente e, eventualmente, também com outros meios próprios.

Por outro lado, a prestação de serviços conexionada com a produção de energia através de biomassa constitui uma actividade acessória enquadrável no objecto social da Requerente, que abrangia, em 2010, «acessoriamente explorar os serviços e efectuar as operações civis e comerciais, industriais e financeiras relacionadas, directa ou indirectamente, no todo ou em parte, com o seu objecto ou que sejam susceptíveis de facilitar ou favorecer a sua realização» [alínea b) da matéria de facto fixada]. No caso, é evidente que a prestação de serviços tendentes à produção de energia eléctrica com uso de biomassa não pode deixar de considerar-se como estando relacionada «directa ou indirectamente, no todo ou em parte» com o objecto principal da Requerente, como é genericamente reconhecido na referida Resolução do Conselho de Ministros n.º 169/2005 e resulta dos documentos n.ºs 9 e 11 juntos com o pedido de pronúncia arbitral.

Sendo assim, não se vê como se possa concluir, em termos económicos, que a Requerente não explora os investimentos, ao utilizá-los por trabalhadores seus, nas suas instalações, para produzir energia eléctrica prioritariamente para si própria, obtendo proveitos económicos pelo exercício de tal actividade.

Para além de esta realidade ser a «substância económica» a que se deve atender nos casos de dúvida sobre a interpretação de norma de incidência (artigo 11.º, n.º 3, da LGT) ([3]), no caso em apreço a entidade que juridicamente assume a responsabilidade pela exploração é detida a 100% pela Requerente e está em causa um benefício fiscal que se aplica à colecta, no âmbito de tributação efectuada pelo regime especial de tributação dos grupos de sociedades, pelo que nem se afigura que a realidade jurídica resultante da exploração nominal pela C…, S.A. possa merecer tratamento distinto do que se justifica em face da substância económica.

Por outro lado, independentemente de a actividade de prestação de serviços à C…, S.A.  efectuada pela Requerente carecer ou não de alguma licença ou autorização que não tenha sido obtida (o que não se apurou), é certo que a hipotética ilicitude de tal prestação de serviços não constituiu fundamento da posição assumida pela Autoridade Tributária e Aduaneira ao praticar o acto impugnado, pelo que não pode ser dado relevo a esse hipotético fundamento invocado a posteriori.

Para além disso, também não se vislumbra porque é que o legislador, visivelmente preocupado em incentivar a produção de energia através de fontes renováveis e incentivar o investimento, pretenderia obstar a que uma empresa realizasse investimentos em equipamentos e instalações com o fim de os explorar através da prestação de serviços a outras empresas comercializadoras de energia.

Por isso, para além de a situação da Requerente se enquadrar literalmente na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RFAI, única norma que a Autoridade Tributária e Aduaneira invocou como estabelecendo obstáculo jurídico à pretensão da Requerente, não se vêem razões que justifiquem uma interpretação restritiva, designadamente a inclusão de um requisito adicional com o alcance de o benefício fiscal não poder ser usufruído por empresas que, tendo uma actividade principal do tipo das aí previstas, realizaram investimentos nos sectores aí previstos no âmbito de uma actividade secundária compatível com o seu objecto.

Por outro lado, não se vislumbra que a interpretação que resulta do teor literal daquele artigo 2.º, n.º 1, do RFAI seja incompaginável com os princípios constitucionais da igualdade ou da legalidade.

Na verdade, desde logo, quanto ao princípio da legalidade, o que o ofenderia seria a adição, por via administrativa, de um requisito não previsto explicitamente nem detectável como implícito.

Quanto ao princípio da igualdade, a interpretação que resulta do teor literal é aplicável à generalidade das empresas que se encontre na situação descrita naquela norma, e os benefícios fiscais, favorecendo quem deles usufrui, têm justificação na prossecução dos fins extrafiscais que com eles se prossegue, que, no caso em apreço, são evidentes e pormenorizadamente explicados no relatório da Proposta de Lei n.º 247/X, que veio a dar origem ao RFAI.

Por maioria de razão, a mesma, argumentação vale para o investimento realizado em 2012, acrescentando-se que a posição defendida pela AT se encontra acrescidamente prejudicada em virtude de, em inícios de 2012, o objecto social da Requerente ter sido ampliado no sentido de abranger igualmente a “produção e comercialização de energia elétrica e de energia térmica” enquanto atividade principal, conforme certidão comercial junta aos autos.

Termos em que se conclui que o acto de liquidação em apreço, na parte impugnada no presente processo, enferma de vício de violação de lei, designadamente, do artigo 2.º, n.º 1, do RFAI, o que justifica a sua anulação parcial, nos termos do artigo 163º, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo.

As liquidações de juros compensatórios têm por base a liquidação impugnada, pelo que enfermam também do mesmo vício de violação de lei, na medida em que assentam na parte aqui anulada.

Procedendo o pedido de pronúncia arbitral pelas razões apontadas, fica prejudicado, por inútil, o conhecimento de outras questões suscitadas pela Requerente.

A Requerente pede reembolso da quantia paga e juros indemnizatórios, tendo-se provado que pagou a quantia de € 5.637.538,95, acrescida de juros compensatórios no montante de € 305.618,71, tudo perfazendo o total de € 5.943.157,66 (doc. 3).

O artigo 43º, nº 1 da LGT estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine (…) que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento de divida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

No caso em apreço, o erro que afectou a liquidação é imputável à AT.

Pelo que a Requerente tem direito a ser reembolsada da quantia que pagou (artigos 100º da LGT e 24º, nº 1 do RJAT) e juros indemnizatórios desde a data de pagamento da quantia, 15.02.2016, até reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43º, nºs 1 e 4, e 35º, nº 10 da LGT, 559º do CC e Portaria nº 291/2003 de 8 de Abril.

 

3. Decisão

 

De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral:

 

a)      Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar parcialmente ilegal a liquidação nºs 2015…, referente ao ano de 2012, anulando-a na parte referente às correcções impugnadas, com todas as consequências jurídico-tributárias legalmente aplicáveis.

b)      Condenar a AT à restituição do montante de € 5.943.157,66, acrescida de juros indemnizatórios à taxa legal, com as devidas consequências legais.

c)      Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

4. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 5.943.157,66, nos termos dos artigos 305º, nº 2 do CPC e 97º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 29º do RJAT e do nº 2 do artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

5. Custas

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem a cargo da Requerida em € 74.358,00, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, nº 4, ambos do RJAT, e 4º, nº 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 12 de Dezembro de 2016

 

 

 

O Arbitro Presidente,

 

 

(José Baeta de Queiroz)

 

 

O Arbitro Vogal,

 

(João Taborda da Gama)

 

 

O Arbitro Vogal,

 

(Cristina Aragão Seia)

 



[1] Neste sentido, pode ver-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15-11-2000, processo n.º 025446, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 501, páginas 150-153, em que se cita abundante jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e do Supremo Tribunal de Justiça. Este Boletim do Ministério da Justiça está disponível em http://www.gddc.pt/actividade-editorial/pdfs-publicacoes/BMJ501/501_Dir_Fiscal_a.pdf

[2]http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c3246795a5868774d546f334e7a67774c336470626d6c7561574e7059585270646d467a4c316776644756346447397a4c334277624449304e793159587a45756347526d&fich=ppl247-X_1.pdf&Inline=true

 

[3] São normas de incidência, em sentido lato, as que «definem o plano de incidência, ou seja, o complexo de pressupostos de cuja conjugação resulta o nascimento da obrigação de imposto, assim como os elementos da mesma obrigação». Neste sentido, são normas de incidência as que determinam os sujeitos activo e passivo da obrigação tributária, as que indicam qual a matéria colectável, a taxa e os benefícios fiscais (SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, 7.ª edição, página 126, e NUNO SÁ GOMES, Manual de Direito Fiscal, volume II, página 56).