Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 761/2022-T
Data da decisão: 2023-10-17  IRS  
Valor do pedido: € 153.085,47
Tema: IRS – Rendimentos de capitais – Lançamentos em contas correntes dos sócios – Arts. 5.º, n.º 1, al. h) e 6.º, n.º 4 do CIRS – Retenção na fonte.
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ACÓRDÃO

 

Os árbitros Juiz José Poças Falcão (Presidente), Ana Teixeira de Sousa e. António Pragal Colaço, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir Tribunal Arbitral Colectivo deliberam o seguinte:

 

SUMÁRIO:

  1. A presunção de que os montantes transferidos para as contas dos sócios devem ser considerados como adiantamento de lucros, é uma presunção legal e não uma presunção simples, apenas natural ou judicial, e como tal, vale a regra constante do n° 2 do art.° 350° do CC, própria para as presunções legais, as quais, para serem destruídas (nos casos em que a lei o permite) têm de ser ilididas mediante prova em contrário.
  2. Tendo a Requerente invocado a existência de um empréstimo para justificar a disposição patrimonial, contabilisticamente registada, a favor dos seus sócios, só, no caso e atento os valores,  através de escritura-pública ou documento particular  autenticado poderia provar a existência desses contratos  – artigo 1143º, do Código Civil 
  3. A apresentação de documentos particulares simples de confissão de dívida subscritos pelos sócios, não equivale, não substitui e não comprova, pela forma legal, a celebração de contratos de mútuo, eventualmente causais de tais declarações confessórias de dívida.
  4. A presunção prevista no artigo 6º-4, do CIRS, é uma presunção legal que permite que os lançamentos contabilísticos duma sociedade comercial em contas dos seus sócios sejam tratados ou considerados fiscalmente como espelhando lucros ou adiantamentos por conta destes, a menos que a sociedade ou os sócios comprovem que tais movimentos resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, sem prejuízo de, nos termos do nº 5, do citado artigo 6º,  ser também ilidida com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pelo Autoridade Tributária e Aduaneira
  5.  Comprovados pela AT os lançamentos contabilísticos, é ónus do sujeito passivo a comprovação de qualquer das causas de elisão da mencionada presunção legal, designadamente, como é o caso, da demonstração, material e  formal, da existência de contrato ou contratos de mútuo.
  6. Não ilidida a presunção, os movimentos espelhados nos lançamentos contabilísticos, ficam sujeitos retenção na fonte, à taxa liberatória de 28%, nos termos dos artigos  5º-2/h) e 71º-1/a), do CIRS.

 

 

I – RELATÓRIO

 

  1. A... LDA., sociedade com o Número Único de Identificação Fiscal e de Pessoa Colectiva ..., com sede em Rua ..., n.º..., ...-... Caldas da Rainha, veio, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 10.º todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, requerer a constituição do tribunal arbitral;
  2. O objecto de pronúncia arbitral é a declaração de ilegalidade da Liquidação de Retenções na Fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante IRS) com o n.º 2021... no valor de € 141.036,00 (cento e quarenta e um mil e trinta e seis euros) e liquidações de juros compensatórios n.º 2021... no montante de € 11.625,04 (onze mil seiscentos e vinte e cinco euros e quatro cêntimos), n.º 2021 ... no montante de € 34,74 (trinta e quatro euros e setenta e quatro cêntimos) e n.º 2021 ... no montante de € 389,69 (trezentos e oitenta e nove euros e sessenta e nove cêntimos).
  3. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:
  1. Contesta a correcção efectuada pela AT em sede de RF-IRS relativa ao exercício de 2019, a qual é baseada na presunção de qualificação como adiantamento por conta de lucros dos montantes lançados em contas correntes dos sócios da Requerente, ao abrigo do n.º 4 do artigo 6.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (Código do IRS);
  2. Inexistem lucros da Requerente quer nos exercícios objecto do procedimento de inspecção, quer nos exercícios anteriores, que permitissem o alegado adiantamento por conta de lucros;
  3. Os valores lançados nas contas correntes dos sócios da Requerente, respeitam a quantias recebidas a título de empréstimo nas datas de 29 de Março de 2019, 31 de Julho de 2019 e 31 de Agosto de 2019, conforme declarações de reconhecimento e assunção de dívida já juntas;
  4. Da factualidade supra exposta, não restam dúvidas sobre o enquadramento dos montantes lançados nas contas correntes dos sócios como sendo relativos a mútuos, que foram inclusive prontamente restituídos, conforme documentos comprovativos de transferência bancária;
  5. Esta posição dos serviços padece de vício de ilegalidade, porquanto se baseia num critério meramente formal para manter uma presunção juris tantum, ou seja, uma presunção ilidível, para mais perante factos concretos que substanciam a operação de mútuo que efectivamente subjaz aos lançamentos efectuados nas contas correntes dos sócios da Requerente
  1. No dia 12 de Dezembro de 2022 o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
  2. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros o Juiz José Poças Falcão (Presidente), Ana Teixeira de Sousa e António Pragal Colaço, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  3. Em 31 de Janeiro de 2023 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma.
  4. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 20 de Fevereiro de 2023.
  5. A Requerida, devidamente notificada para o efeito,  apresentou a sua resposta e o  processo administrativo,  defendendo-se por  impugnação.
  6. No  dia 1 de Abril de 2023 o Tribunal emitiu Despacho determinando, à luz do disposto nos artigos 16º-c), do RJAT e do princípio da proibição da prática de atos inúteis, a dispensa da reunião do Tribunal.
  7. Mais determinou que, “contendo os autos todos elementos que o Tribunal considera  essenciais para a decisão,  ambas as partes deverão apresentar no prazo simultâneo de 20 (vinte) dias, alegações escritas, de facto (factos essenciais que consideram provados e não provados) e de direito, formulando as respetivas conclusões”.
  8. Fixou-se o dia 15-06-2023, como data previsível para a prolação e notificação da decisão arbitral final e notificou-se a Requerente para pagamento da taxa de arbitragem subsequente dando cumprimento ao disposto no artigo 4º-3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária [pagamento, antes da decisão e pela forma regulamentar, do remanescente da taxa arbitral].
  9. À luz do princípio da cooperação [cfr artigo 7º, do CPC], notificaram-se as partes para remeter ao CAAD cópias dos respetivos articulados, em formato editável (de preferência, em “Word”).
  10. Em 2 de Maio a Requerida apresentou as suas alegações tendo a Requerente optado por não as apresentar.
  11. No dia 15 de Agosto o Tribunal, considerando as dificuldades próprias do período de férias judiciais, que estariam a tornar difícil a conclusão do processo sem risco de incumprimento do prazo previsto no artigo 21º-1, decidiu, no uso da faculdade prevista no nº 2, do citado normativo, prorrogar pelo período máximo de 2 meses a partir do seu termo final, o prazo para a prolação e notificação da decisão às partes.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
  2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
  3. O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

POSIÇÃO DAS PARTES

Fundamentos da Requerente

  1. No âmbito da inspecção promovida pela Autoridade Tributária para o ano de 2019 apurou-se que, nesse ano de 2019, foram registados a débito nas contas dos sócios, os seguintes movimentos:

Conta 268201 - “Empréstimo concedido -B...”: Moeda: Euro, Data Diário Doc. Descrição Débito 2019-03-29 4 2P3 Transf. B... 482.000,00, 019-07-31 4 4P7 Novo Banco - JULHO 1.700,00, 2019-08-31 4 7P8 Novo Banco - AGOSTO 13.000,00 Total 496.700,00.

  1. Conta 268202 - “Empréstimo concedido -C...”: Moeda: Euro, Data Diário Doc. Descrição Débito 2019-08-31 4 7P8 Novo Banco - AGOSTO 7.000,00, Total 7.000,00.
  2. As correcções propostas em sede de RF-IRS têm por base a consideração como adiantamentos por conta de lucros destes montantes lançados em contas de sócios, ao abrigo do n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS.
  3. Ora os valores lançados nas contas correntes dos sócios da Requerente, respeitam a quantias recebidas a título de empréstimo nas datas de 29 de Março de 2019, 31 de Julho de 2019 e 31 de Agosto de 2019, conforme declarações de reconhecimento e assunção de dívida ou seja, os montantes lançados nas contas correntes dos sócios são relativos a mútuos, que foram inclusive prontamente restituídos, conforme documentos comprovativos de transferência bancária.
  4. De acordo com o n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS “Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.” (sublinhado nosso).
  5. Tal presunção é, contudo, ilidível nos termos do n.º 5 do mesmo artigo “com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira”.
  6. Será afastada a presunção da qualificação como lucros ou adiantamento por conta de lucros dos montantes lançados em contas correntes dos sócios sempre que os sujeitos passivos demonstrem perante a AT que ao referido lançamento contabilístico subjazem realidades diversas da distribuição ou adiantamento de lucros.
  7. Para a Requerente a aplicação da presunção prevista no n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS obriga a AT à prova da verificação dos pressupostos subjacentes à invocação da própria presunção nos termos do nº 1 do artigo 394 do Código Civil (aplicável por força do artigo 11º da LGT).
  8. Sobre a AT impende o ónus de provar que os lançamentos em conta corrente dos sócios não resultam “de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais” (cf. n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS) e apenas após tal prova, invocar a presunção da qualificação de tais lançamentos como distribuições ou adiantamentos por conta de lucros.
  9. Nos termos do n.º 2 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) “Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei.”.
  10. Neste sentido, estabelece o artigo 297.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) que o adiantamento por conta de lucros de uma sociedade deve obedecer a determinadas regras, nomeadamente à sua deliberação pelo órgão de administração da sociedade (cf. n.º 1, alínea a) do artigo 297.º do CSC), e à existência, com base num balanço intercalar elaborado com a antecedência máxima de 30 dias, de importâncias passíveis de constituir um adiantamento por conta de lucros (cf. n.º 1, alínea b) do artigo 297.º do CSC).
  11. Nos termos do CSC, apenas poderá ocorrer a alocação aos sócios de um “adiantamento” por conta de lucros quando a sociedade verifique, efectivamente, a existência desses lucros no período a que respeita tal adiantamento.
  12. No conceito de lucro previsto na legislação tributária, o n.º 1 do artigo 17.º do Código do IRC estabelece que “O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.”.
  13. Analisando as demonstrações de resultados da Requerente para os anos de 2018 e 2019 – durante os quais, presume a AT, a Requerente obteve lucros em montante suficiente para realizar um adiantamento aos seus sócios, facilmente se conclui que a Requerente não dispunha, nos exercícios objecto de inspecção tributária – ou mesmo no conjunto de exercícios desde o seu início de laboração – de lucros em montante que permitissem uma distribuição ou adiantamento aos seus sócios no montante total de 503.700,00€ (quinhentos e três mil e setecentos euros).

 

  1. Por outro lado, nos termos do artigo 1142.º do Código Civil (aplicável ex vi n.º 2 do artigo 11.º da LGT) o contrato de mútuo é aquele pelo qual “uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
  2. Ora, no caso em apreço, a Requerente produziu perante a AT prova documental suficiente para suportar o facto económico concreto que deu origem aos lançamentos na conta corrente dos seus sócios: um reconhecimento e assunção de dívida e a obrigação de restituição dos montantes mutuados.
  3. Efectivamente, existindo uma obrigação – cumprida, aliás – de reembolso dos montantes transferidos, não se concebe como poderá porventura a AT qualificar tais transferências como adiantamentos por conta de lucros – os quais, aliás, não existem conforme foi também já provado.
  4. Também não procede o argumento dirimido pela AT no sentido de que a preterição de uma formalidade legalmente prevista permita a invocação da presunção prevista no n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS.
  5. Com efeito, é por demais entendido pela doutrina e jurisprudência que a cominação para a falta de forma escrita ou escritura pública, conforme aplicável nos termos do artigo 1143.º do Código Civil (aplicável ex vi n.º 2 do artigo 11.º da LGT) é a exigibilidade imediata de todas as quantias mutuadas – e nunca, em caso algum, a apropriação dessas mesmas quantias por parte do mutuário (cf. Abílio Neto, in Código Civil Anotado – 19.ª Edição Reelaborada, Ediforum 2016, pp. 1059 e ss.).
  6. É ponto assente que no caso de nulidade do contrato de mútuo por inobservância da forma legalmente prevista, é afastada a aplicação do enriquecimento sem causa – ou seja, reconhece-se que existe, de facto, um fundamento jurídico para a transferência dos montantes para o mutuário, embora este esteja obrigado à sua restituição (cf. RLJ, 102.º - 503).
  7. Pelo que, tudo exposto, não pode senão concluir-se, por conseguinte, que inexistindo na esfera da Requerente quaisquer lucros que permitissem a respectiva distribuição ou adiantamento aos sócios, e tendo estes assumido e cumprido com a obrigação de restituição dos montantes recebidos, então terão os montantes lançados nas contas correntes destes de ser qualificados de forma diversa daquela que propõe a AT.
  8. E não se alegue, como pretende a AT, que a Requerente não logrou demonstrar a verdadeira substância de mútuo dos montantes lançados em contas de sócios.
  9. Na decisão final de indeferimento da reclamação graciosa, vem a AT referir que para ilidir a presunção da qual lança mão, teria a Requerente de apresentar prova de todos os fluxos financeiros que permitam concluir pela característica de mútuo dos montantes lançados nas contas de sócios.
  10. Contudo, perante os elementos documentais produzidos pela Requerente tal prova afigura-se inequívoca: a Requerente obteve, efectivamente, da parte dos sócios a devolução de todos os montantes a estes mutuados, sem que tenha ocorrido uma oneração definitiva do seu património, assim se cumprindo com o requisito de restituição previsto no artigo 1142.º do Código Civil.

 

 

  1. Assim, conforme resulta do exposto, só a qualificação desses lançamentos como transferências ao abrigo de um contrato de mútuo se afigura correcta, porquanto é a única que respeita a verdade material dos factos, a sua substância económica e o respeito pelo princípio da capacidade contributiva – pressuposto essencial do sistema fiscal português, conforme estabelecido no n.º 1 do artigo 4.º da LGT.
  2. Termina solicitando a anulação da liquidação de retenção na fonte de IRS relativa aos lançamentos efectuados durante o exercício económico de 2019 reconhecendo que os elementos apresentados comprovam a existência de mútuo nos montantes transferidos dos sócios para a sociedade requerente.

 

Fundamentos da Requerida

  1. A Requerida considera que os argumentos apresentados se reconduzem-se, no essencial, aos já apresentados e analisados, quer no âmbito do procedimento de inspeção, quer em sede de reclamação graciosa, motivo pelo qual se remeta para a informação de suporte à decisão de indeferimento, em que se destaca a seguinte argumentação:
  2. b. No âmbito do procedimento inspectivo, apurou-se que, no ano de 2019 foram registados a débito nas contas dos sócios, os seguintes movimentos, Conta 268201 - “Empréstimo concedido -B...”: Moeda: Euro, Data Diário Doc. Descrição Débito 2019-03-29 4 2P3 Transf. B... 482.000,00, 019-07-31 4 4P7 Novo Banco - JULHO 1.700,00, 2019-08-31 4 7P8 Novo Banco - AGOSTO 13.000,00 Total 496.700,00
  3. Conta 268202 - “Empréstimo concedido -C...”: Moeda: Euro, Data Diário Doc. Descrição Débito 2019-08-31 4 7P8 Novo Banco - AGOSTO 7.000,00, Total 7.000,00
  4. c. Os pagamentos aos sócios foram efectuados através de transferência bancária.
  5. d. O n.º 4 do artigo 6.º do CIRS (Presunções relativas a rendimentos da categoria E) estabelece que os lançamentos em contas correntes dos sócios, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros. Nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS consideram-se rendimentos de capitais os adiantamentos por conta de lucros. Os rendimentos de capitais em causa são tributados por retenção na fonte à taxa liberatória de 28%, conforme previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do CIRS.
  6. e. Assim, nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º, n.º 4 do artigo 6.º, alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º, n.º 3 do artigo 98.º e alínea a) do n.º 2 do artigo 101.º, todos artigos do CIRS, estão sujeitos a retenção na fonte, à taxa liberatória de 28%, os adiantamentos por conta de lucros, cujo imposto deverá ser entregue até ao dia 20 do mês seguinte.
  7. f. Alega a reclamante que, sobre a AT impende o ónus de provar que os lançamentos em conta corrente dos sócios não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais e apenas após tal prova, invocar a presunção de qualificação de tais lançamentos como adiantamentos por conta de lucros.
  8. g. Todavia não lhe assiste razão. Efetivamente, cabe à Administração Tributária a prova da base da presunção, isto é, a prova da existência dos lançamentos, ao passo que ao sujeito passivo cabe a prova dos factos que ilidem a presunção, e, portanto, a demonstração de que os lançamentos resultam de mútuos, de prestação de trabalho ou de exercício de cargos sociais. O sentido da norma do artigo 6.º, n.º 4, do CIRS é o de agravar a posição jurídica do contribuinte, impondo-lhe o ónus da prova da fonte do rendimento quando sejam efectuados lançamentos não fundamentados na conta corrente dos sócios. Isto é, se for contabilizado um lançamento a favor do sócio presume-se, para efeitos de tributação em IRS, que se trata de distribuição de lucros, cabendo ao sujeito passivo demonstrar o contrário.
  9. h. O que, nos termos do nº 4 do artigo 6º do CIRS, compete à Autoridade Tributária é provar a existência da base da presunção: no caso, os lançamentos a débito dos sócios escriturados pela Reclamante. Não compete à AT, designadamente, “demonstrar a existência dos factos que levem à presunção de que os lançamentos a débito do sócio constituem adiantamento de lucros”. É que, se a demonstração a fazer necessariamente pela AT fosse já dirigida a que os referidos lançamentos a débito fossem considerados adiantamento de lucros, não seria necessária a citada presunção.
  10. i. Acresce que, o S.P. não veio apresentar qualquer contrato de mútuo, como forma de comprovação, que se trata de empréstimos entre a sociedade e os sócios, sendo que, não foram registados pela sociedade reclamante, quaisquer juros pelos alegados empréstimos concedidos e o S.P. também não fez qualquer referência aos mesmos. Por outro lado, em sede de Imposto do Selo, caso se tratasse de empréstimos concedidos pela sociedade aos sócios, as operações de concessão do crédito ficariam sujeitas a imposto, sendo que a taxa a aplicar variaria consoante o prazo definido para reembolso do empréstimo (Verba 17.1 da Tabela Geral do Imposto de Selo). j. Assim, a elisão da presunção não pode bastar-se apenas com a indicação de documentos de assunção de dívida, sendo que, a assunção de dívida é a tomada de responsabilidade legal de um crédito que não foi contratado inicialmente. Ao formalizar a alteração de titularidade da dívida, a pessoa que a assume passa a ser responsável pelo seu pagamento integral, tal como se a tivesse contraído desde o início.
  11. k. Nos termos do disposto no artigo 595º do Código Civil, há duas formas de formalizar uma assunção de dívida: ou o devedor original faz um contrato com o novo devedor e submete o documento para validação do credor, ou o novo devedor acerta o contrato diretamente com o credor sem precisar sequer do consentimento do antigo devedor. Em todo o caso, o credor tem sempre de ratificar.
  12. l. Face ao exposto, e relativamente à alegação de que os sócios subscreveram o Acordo para Reconhecimento de Dívida e Plano de Pagamentos, o mesmo não se afigura relevante, nem suficiente para a verificação dos factos tributários em causa, no ano de 2019, assim como, a alegação de que face aos resultados históricos da sociedade não será previsível a obtenção de lucros tão elevados, não se subsume no que está previsto no referido artigo 6.º do CIRS. “O mútuo é, por sua natureza, um contrato real, que implica a transferência da coisa para que esta possa ser colocada à disposição do mutuário. A atribuição patrimonial efetuada pelo mutuante é um elemento constitutivo e integrante do contrato, pelo que o contrato não se completa nem existe sem a entrega” (PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. II, 2.ª edição, Coimbra, págs. 601-602).
  13. m. Portanto, incumbia à reclamante o ónus de demonstrar documentalmente a existência do contrato de mútuo, e que os montantes em causa recebidos pelos sócios, o foram a qualquer outro título, ou por outrem, ou que foram transferidos para a sociedade, ónus que não cumpriu, pois receberam por transferência bancária, importâncias que pertenciam à sociedade e que reverteram para a sua esfera pessoal, sem que tenha sido objecto de tributação na empresa. Assim, restava à reclamante a prova de que tais importâncias foram recebidas a outro título, ou que as mesmas foram devolvidas à sociedade, prova que não logrou fazer.
  14. n. Quanto à alegação da reclamante, relativamente à oneração do património da sociedade através da distribuição de lucros aos sócios, também não lhe assiste razão. A consideração de haver ou não alteração da situação patrimonial da reclamante, é, logicamente, um ponto de chegada e não o ponto de partida da presunção.
  15. o. Relativamente à correspondência entre os documentos de assunção de divida (que carecem sempre da aceitação do credor, nos termos previstos no artigo 595º do Código Civil) e os lançamentos efectuados em 2019, a análise dos documentos anexos à petição, alegadamente relacionados com transferências bancárias efetuadas pelos sócios para a reclamante em 2021, não permitem só por si, estabelecer uma relação com a questão reclamada e concluir que se trata de devoluções de quantias recebidas em 2019, pois carece de outros elementos de prova, designadamente, extractos bancários até à data, e extratos da contabilidade, de forma a demonstrar inequivocamente que os montantes que receberam foram devolvidos.

Em resumo

  • a. Face ao exposto, como nenhuma prova foi feita de que não ocorreu adiantamento por conta de lucros, nem em sede de procedimento inspetivo, nem em sede de reclamação graciosa, não cumprindo a reclamante o ónus imposto pelo artigo 74º da LGT, de acordo com a norma geral do artigo 342º do Código Civil, somos do parecer que a liquidação de retenções na fonte de IRS relativa ao período de 2019, se deverá manter.”
  • Com o devido respeito, resulta evidenciado nesta decisão que não existe erro sobre os pressupostos de facto e de direito, e igualmente, não foi ilidida a presunção legal que resulta do disposto no artigo 6º, nº 4 do CIRS.
  • A este propósito resulta claro da decisão proferida no processo n.º 371/2020-TCAAD o modo de operar desta presunção: “ Estabelece-se, no artigo 6.º, n.º 4, do CIRS, uma presunção da maior relevância, tendo em conta a própria natureza dos rendimentos de capitais, especialmente propícia a fácil sonegação.  Da verificação de alguns eventos específicos, a lei, repousando em observações da experiência, extrai a ocorrência de um evento não observado, no caso o adiantamento de lucros.  Esta presunção visa evitar a fraude e a evasão fiscal num domínio onde existe um risco sério de ocultação de rendimentos, assegurando eficiência na tributação diante das dificuldades probatórias da AT, as quais só seriam colmatadas através da mobilização de quantidades irrealistas de meios humanos e materiais e da realização de investigações altamente complexas e intrusivas.  Esta presunção facilita a prova da AT relativamente à existência de certos rendimentos e à respetiva quantificação, resolvendo o problema da qualificação das quantias escrituradas cuja “causa” jurídica não tenha sido expressamente declarada.  No entanto, sendo o IRS baseado, em primeira linha, na produção efetiva de rendimentos geradores de capacidade contributiva, compreende-se que as presunções neste âmbito tenham que ser necessariamente excecionais e relativas (iuris tantum). Na linha do que se dispõe para as presunções consagradas nas normas de incidência tributária (art.º 73.º LGT), a presunção em causa admite prova em contrário, dizendo-se expressamente que pode ser ilidível por um diversificado conjunto de meios (art.º 6.º, n.º 5, do CIRS).”.
  • Nestes termos, competindo à AT o ónus de demonstrar a ocorrência dos factos de que deriva o direito à liquidação (os factos-pressupostos da existência, qualificação e quantificação do facto tributário), conforme dispõe n.º 1 do art.º 74º da LGT, esta demonstra fundamentadamente tais factos, conforme foi devidamente explicitado no capítulo III do relatório de inspeção, cabendo agora à requerente, o ónus de demonstrar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito.
  • Consequentemente, competia à Requerente, demonstrar que os lançamentos resultam de mútuos, prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, o que não conseguiu alcançar, porquanto, e com o devido respeito, vem invocar argumentos destituídos de prova cabal.
  • Ou seja, a impugnante não consegue fazer prova, sem margem para qualquer dúvida, que não estamos na presença de adiantamentos por conta de lucros.
  • A presunção de que os montantes em causa deveriam ser considerados como adiantamento por conta de lucros, é uma presunção legal (estabelecida expressa e diretamente na lei), e não uma presunção simples ou judicial, pelo que, vale a regra constante do nº 2 do artº 350º do CC, própria para as presunções legais, as quais, para serem destruídas (nos casos em que a lei o permite) têm de ser ilididas mediante prova em contrário.
  • Ora, os argumentos e prova apresentada não são de molde a ilidir a presunção em causa.
  • Pelo exposto, face à prova apresentada, pode concluir-se que a Requerente não logrou ilidir a presunção ou, pelo menos, abalar a convicção decorrente da presunção, como lhe estava legalmente imposta, pelo que, ficou provado que a transferência dos fundos não ocorreram a título de mútuo, prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, os mesmos só podem ter ocorrido a título de adiantamento por conta de lucros, nos termos do nº 4 do artº 6º do CIRS, conforme entendimento unanime da jurisprudência proferida sobre o assunto, nomeadamente os Acórdãos do TCA Sul, de 25-11-2008, proferido no processo 02544/08, de 13-10-2009, proferido no processo 03221/09, e de 11-01-2011, proferido no processo 04357/10).
  • E assim é, tanto a natureza do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e a conceção de rendimento acréscimo patrimonial adotada, “a tributação visada pelas normas em causa é a existência, ainda que a título presuntivo, de fluxos económico-financeiros da sociedade para o sócio (que contabilisticamente implicam registo a débito nas respetivas contas), pois só neste caso é indiciada a existência dum acréscimo patrimonial e de capacidade contributiva, que, como é consabido, constitui o pressuposto e o critério de tributação” (cfr. Acórdão do TCA Norte, de 02/08/2018, proc. 01056/07.0BEVIS).
  • Razões pelas quais, “a presunção de que os referidos montantes transferidos para as contas dos sócios deveriam ser considerados como adiantamento de lucros, é uma presunção legal e não uma presunção simples, apenas natural ou judicial, e como tal, vale a regra constante do n° 2 do art.° 350° do CC, própria para as presunções legais, as quais, para serem destruídas (nos casos em que a lei o permite) têm de ser ilididas mediante prova em contrário. No caso de presunção natural, não é necessário fazer a prova do contrário do facto presumido, bastando abalar a convicção resultante da presunção, e não, necessariamente, fazer prova do contrário do facto a que ela conduz” (cfr. Acórdãos do TCA Sul de 16/12/1997 e de 3/2/1998).
  • Não tendo, com o devido respeito, a Requerente logrado efetuar a prova em contrário legalmente exigida para ilisão da presunção.
  • A AT limitou-se, portanto, a aplicar as consequências jurídicas, que, do ponto de vista fiscal, se impunham face à ocorrência dos pressupostos de facto subjacentes à correção efectuada.

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

  1. A Requerente, sujeito passivo de IRC,  foi alvo da acção inspetiva com a Ordem de Serviço nº OI2021... de âmbito parcial, em IRC, IVA e RF IRS, para o exercício de 2019.
  2. Nessa sequência, foi elaborado o respetivo Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, que aqui se dá por inteiramente reproduzido, no qual foi proposta a seguinte correção atinente a IRS, com os fundamentos que seguidamente também se enunciam [cf. PA]:

“I.4.3. Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares

  1. Pelo relato efectuado no item “3” do capítulo III (…) do presente projecto de relatório, a retenção na fonte não efectuada ascende a

 

  1. No âmbito da qual se apurou que, no ano de 2019 foram registados a débito nas contas dos sócios, os seguintes movimentos:

Conta 268201 - “Empréstimo concedido -B...”: Moeda: Euro, Data Diário Doc. Descrição Débito 2019-03-29 4 2P3 Transf. B... 482.000,00, 019-07-31 4 4P7 Novo Banco - JULHO 1.700,00, 2019-08-31 4 7P8 Novo Banco - AGOSTO 13.000,00 Total 496.700,00.

Conta 268202 - “Empréstimo concedido -C...”: Moeda: Euro, Data Diário Doc. Descrição Débito 2019-08-31 4 7P8 Novo Banco - AGOSTO 7.000,00, Total 7.000,00.

Os pagamentos aos sócios foram efectuados através de transferência bancária – conforme consta do Relatório da Inspecção Tributária inserido no processo administrativo.

  1. Não foi pago Imposto de Selo sobre o montante destes empréstimos.
  2. B..., sócia da Requerente,  subscreveu um documento datando-o de 9 de junho de 2021, declarando reconhecer ser devedora á ora Requerente A..., Lda., do valor total de €496.700,00, “(...) valor que recebeu a título de empréstimo nas datas de 29 de março de 2019, 31 de julho de 2019 e 31 de agosto de 2019, nos valores de 482.000,00 €, 1.700,00 € e 13.000 €, respectivamente, e que irá proceder ao reembolso deste valor nos seguintes termos: 1º pagamento de 100.000,00 €, até 31 de Agosto de 2021; 2º pagamento no valor de 150.000,00 €, até 30 de Outubro de 2021 e 3º O remanescente até 31 de Dezembro de 2021 (...)” [Doc 3, com a petição inicial];

 

  1. C..., sócio da Requerente,  subscreveu um documento datando-o de  9 de junho de 2021, reconhecendo  ser devedor á ora Requerente A..., Lda., do valor total de 7.000,00 €, “(...) valor que recebeu a título de empréstimo na data de  31 de agosto de 2019,  e que irá proceder ao reembolso deste valor 31 de Agosto de 2021 (...)até 31 de Dezembro de 2021 (...)” [Doc 4, com a petição inicial];

 

  1.  B... entregou à Requerente,  através de transferências bancárias,  os valores  de € 100.001,98,  em 31-8-2021, de 150.000,00, em 10-12-2021 e 246.701,96 em 22-2-2022  – DOC. 6 da PI.
  2.  C... entregou à Requerente através de transferência bancária de 27-8-2021 o valor de € 7.000,00 em 2021 – DOC. 7 da PI.

A.2. Factos dados como não provados

2. Factos não Provados

Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não resultaram provados os seguintes factos:

- que entre a Requerente e os seus sócios, B... e C..., tivesse sido outorgado o “Contrato de Empréstimo” que justifica a contabilização dos valores referidos no ponto 7., dos factos provados;

- que os valores lançados nas contas correntes destes sócios da Requerente, respeitem a quantias recebidas a título de empréstimo nas datas de 29 de Março de 2019, 31 de Julho de 2019 e 31 de Agosto de 2019;

- que as transferências bancárias elencadas supra sob nos números 8. E 9., dos factos provados constituam reembolsos de empréstimos da Requerente aos seus sócios, B... e e C... .

 

 

A3. Motivação quanto à Matéria de Facto

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

A convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas Partes, nos documentos juntos e no processo administrativo instrutor (PA), tudo analisado de forma crítica.

No tocante aos factos não provados ponderou o Tribunal, por um lado, a inexistência dos meios de prova legais de comprovação da existência de mútuos entre a Requerente e os seus sócios e, por outro, a subsistência de dúvidas quanto à verdadeira causa dos movimentos contabilísticos e dos fluxos financeiros daa sociedade para os seus sócios conducentes a declarações confessórias de dívida e promessas de pagamento, tudo em conjugação com a inexistência de  qualquer válida deliberação da Requerente no sentido da aprovação da concessão de empréstimos aos sócios, designadamente os que são alegados.

Mais concretamente: era ao sujeito passivo de IRC e ora Requerente que competia a prova da existência de mútuo ou mútuos, que permitiria a não sujeição  dos pagamentos efetuados às retenções na fonte, à taxa liberatória de 28%,  prevista no artigo 71º-1/a), do CIRS, ilidindo, deste modo, a presunção, prevista no artigo 6º- 4, do CIRS,   de que tais pagamentos correspondiam a lucros ou adiantamento por conta dos lucros.

Pois bem: ainda que se abstraísse da forma legal (no caso, escritura pública ou documento particular autenticado)  dos  contratos de mútuo invocados, ainda assim ficariam a subsistir dúvidas sobre a existência material de empréstimos da Requerente aos seus sócios, dúvidas  que foram também  causa da matéria de facto não provada, à luz do disposto no artigo 414º, do CPC: “a dúvida sobre a realidade de um facto (...) resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita (...)”,

 

Assinale-se, a reforçar as sobreditas dúvidas,  que aceitando-se como  possíveis, válidos e legais contratos dc mútuo entre sociedade, como mutuante e sócios, como mutuários, a concretização deste tipo de contratos necessita de ter por base razões devidamente justificadas, plausíveis e enquadradas no interesse social, razões estas que, por sua vez, devem constar obrigatoriamente do acordo escrito entre as partes  sob pena de estarmos eventualmente perante um negócio inválido e/ou simulado que poderá visar apenas, por exemplo,  suprir dificuldades económico-financeiras dos sócios sem qualquer interesse para a sociedade.

Pois bem, esse acordo escrito não está, no caso,  alegado ou documentado e igualmente não se demonstra a existência de qualquer deliberação da sociedade requerente no sentido da concessão de empréstimos aos seus sócios.

Registe-se que o empréstimo concedido aos sócios não se encontra dentro do âmbito da actividade social, pelo que é sempre prudente e avisado colocar o assunto à formal consideração e aprovação da Assembleia Geral, de onde constem os detalhes do empréstimo e a aprovação do mesmo pelos sócios ou accionistas, assegurando-se assim o pleno cumprimento do interesse social e os princípios da informação, da igualdade, da transparência e da boa-fé que devem pautar o relacionamento entre sócios ou accionistas.

 

Quanto aos factos provados, resultam estes das posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, da prova documental e do PA juntos aos autos, tomando em conta, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[1], que  “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

 

B. DO DIREITO

  1.  O objeto do pedido consiste na análise da legalidade do ato de retenção na fonte de IRS nº 2021..., no valor de €141.036,00 e das liquidações de juros compensatórios nº 2021..., na importância de € 11.625,04 e nº 2021..., na importância de € 389,69.
  2. Como resultou provado no ano de 2019 foram registados a débito nas contas dos sócios, os seguintes movimentos:

Conta 268201 - “Empréstimo concedido -B...”: Moeda: Euro, Data Diário Doc. Descrição Débito 2019-03-29 4 2P3 Transf. B... 482.000,00, 019-07-31 4 4P7 Novo Banco - JULHO 1.700,00, 2019-08-31 4 7P8 Novo Banco - AGOSTO 13.000,00 Total 496.700,00.

Conta 268202 - “Empréstimo concedido -C...”: Moeda: Euro, Data Diário Doc. Descrição Débito 2019-08-31 4 7P8 Novo Banco - AGOSTO 7.000,00, Total 7.000,00.

  1. Os pagamentos aos sócios foram efectuados através de transferências bancárias – conforme consta dos documentos juntos pela Requerente e  do Relatório da Inspecção Tributária inserido no processo administrativo.
  2. A AT pretender fazer valer a presunção estatuída no artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS e, nesse sentido, propugna que a transferência daquele valor deve ser considerada um adiantamento por conta de lucros.
  3. A Requerente, por seu turno, alega que a mencionada transferência de valor teve subjacente um empréstimo por ela efetuado aos seus referidos sócios e, nessa medida, entende que não se verificam os requisitos de aplicabilidade da dita presunção legal.
  4. Assim, a questão de mérito submetida à apreciação deste Tribunal respeita, nuclearmente, à aplicação ao caso concreto da presunção resultante do artigo 6.º, n.º 4, do Código do IRS, tendo em vista determinar se o ato tributário controvertido padece do apontado vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito.

Enquadramento legal

  1. O artigo 6.º do Código do IRS, na sua redacção vigente em 2019, determinava o seguinte:

Presunções relativas a rendimentos da categoria E

 

1 - Presume-se que as letras e livranças resultam de contratos de mútuo quando não provenham de transações comerciais, entendendo-se que assim sucede quando o credor originário não for comerciante.

2 - Presume-se que os mútuos e as aberturas de crédito referidos na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior são remunerados, entendendo-se que o juro começa a vencer-se nos mútuos a partir da data do contrato e nas aberturas de crédito desde a data da sua utilização.

3 - Até prova em contrário, presumem-se mutuados os capitais entregues em depósito não incluídos na alínea b) do n.º 2 do artigo anterior e cuja restituição seja garantida por qualquer forma.

4 - Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.

5 - As presunções estabelecidas no presente artigo podem ser ilididas com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

  1. Nos termos da al. h) do n.º 2 do art.º 5.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante designado por CIRS), são considerados rendimentos de capitais "Os lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º".
  2. Por sua vez, o n.º 4 do art.º 6.º do mesmo diploma legal, refere que "Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros”.
  3. Pelo n.º 1 do artigo 71º,  do CIRS, "Estão sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória de 28%" enquanto a alínea a) do referido n.º 1 prevê a tributação pela referida taxa liberatória "Os rendimentos de capitais obtidos em território português, por residentes ou não residentes, pagos por ou através de entidades que aqui tenham sede, direção efetiva ou estabelecimento estável a que deva imputar-se o pagamento e que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada;”.
  4. A alínea a) do nº 2 do artigo 101º,  do CIRS, consagra que tratando-se de rendimentos referidos no artigo 71º, a retenção na fonte nele prevista cabe "Às entidades devedoras dos rendimentos (…)”. Por sua vez, o artigo 98ºdo diploma citado, estabelece que: "Nos casos previstos nos artigos 99º a 101.º  a entidade devedora dos rendimentos sujeitos a retenção na fonte, as entidades registadoras ou depositárias, consoante o caso, são obrigadas, no acto do pagamento, do vencimento, ainda que presumido, da sua colocação à disposição, da sua liquidação ou do apuramento do respectivo quantitativo, consoante os casos, a deduzir-lhes as importâncias correspondentes à aplicação das taxas neles previstas por conta do imposto respeitante ao ano em que esses actos ocorrem". E também conforme o nº 3 do artigo 98º do CIRS "As quantias retidas nos termos dos artigos 99º a 101º, devem ser entregues até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas."

Neste sentido, é o sujeito passivo obrigado a efetuar a retenção na fonte na data da colocação à disposição dos adiantamentos por conta de lucros, à taxa em vigor à data dessa operação. No caso presente, a data de referência deverá corresponder à data em que os valores foram lançados nas contas correntes dos sócios da Requerente - datas de 29 de Março de 2019, 31 de Julho de 2019 e 31 de Agosto de 2019, ascendendo o seu valor a € 496.700,00 no caso da sócia B... e € 7.000,00 no caso do sócio C... .

  1. Pelo que este montante, de conformidade com o previsto no nº 4 do artigo 6º, do CIRS, se presume efectuado a título de adiantamento por conta de lucros.
  2. Á luz deste dispositivo legal a Requerida entendeu existirem diversas omissões e incongruências que inviabilizam que o registo como “Empréstimo” dos valores seguintes:  Conta 268201 - “Empréstimo concedido -B...”: Moeda: Euro, Data Diário Doc. Descrição Débito 2019-03-29 4 2P3 Transf. B... 482.000,00, 019-07-31 4 4P7 Novo Banco - JULHO 1.700,00, 2019-08-31 4 7P8 Novo Banco - AGOSTO 13.000,00 Total 496.700,00,  corresponda a um verdadeiro mútuo, suscetível de fazer afastar a aplicação da presunção do n.º 4 do art. 6.º do CIRS. Com efeito: (1) não teve lugar o pagamento do imposto do selo, aquando da formalização do contrato; (2) não foram registados nem pagos quaisquer juros sobre as quantias alegadamente objecto de empréstimo (3) o contrato, a ter sido celebrado, deveria tê-lo sido por escritura pública (artigo 1143.º do Código Civil), forma que constitui um requisito ad substantiam e, por isso, à sua inobservância tem de aplicar-se a regra geral do artigo 364.º do mesmo Código, com a consequência de a falta importar a invalidade do contrato, conforme dispõe o artigo 219.º.
  3. A Requerente contrapôs apresentando um documento de reconhecimento de dívida e compromisso e pagamento assinado em 2021 pela sócia B... e pelo outro sócio C... .
  4. O documento particular  anexo à PI com o número 3 é assinado pela sócia B... reconhecendo esta que, durante o ano de 2019, a 29 de Março, 31 de Julho e 31 de Agosto, a sociedade Requerente efectuou diversos empréstimos à signatária, nos valores  de € € 482.000,00, € 1.700,00 e € 13.000,00. Mais reconheceu que os empréstimos seriam  reembolsados durante o ano de 2021, € 100.000,00 em  31 de Agosto, € 150.000,00 em 30 de Outubro e o restante até 31 de Dezembro de 2021.
  5. O documento anexo à PI com o número 4 é assinado pelo sócio C... em que este reconhece  que durante o ano de 2019, a 31 de Agosto, a sociedade Requerente efectuou um empréstimo ao signatário no valor de € € 7.000,00. Mais declara que o empréstimo será reembolsado à Requerente até 31 de Agosto de 2021.
  6. Como vimos acima, as liquidações impugnadas assentam na aplicação do disposto nos artigos 6º n.º 4 do Código do IRS, que sob a epígrafe “Presunções relativas a rendimentos da categoria E”, determina que os “lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho que exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros”..
  7. Conforme determina a alínea h) do nº 2 do artigo 5° do Código do IRS, os adiantamentos por conta de lucros constituem rendimentos da categoria E e são sujeitos a IRS por imposição do artigo 1 ° do referido CIRS, e a retenção na fonte a titulo definitivo, à taxa liberatória de 28 % (taxa em vigor para os exercícios em análise), por força do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 71° do mesmo Código.
  8. Assim, o primeiro pilar em que assenta a tese da AT que conduz à liquidação impugnada é a presunção prevista no artigo 6º n.º 4 do Código do IRS.
  9. Ora, segundo a definição contida no artigo 349º do Código Civil:

“Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.

  1. Como refere o Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), em acórdão proferido em 11-01-2007, no processo n.º 00270/06.0BEMDL:

“As presunções pressupõem a existência de um facto conhecido, cuja prova incumbe à parte que a presunção favorece e pode ser feita pelos meios probatórios gerais; assim, provado esse facto, intervém a Lei (no caso de presunções legais) ou o julgador (no caso de presunções judiciais) a concluir dele a existência de outro facto (presumido), servindo-se o julgador, para esse fim, de regras deduzidas da experiência da vida”.

  1. Como vimos, a presunção em análise determina que os “lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais (…), presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.
  2.  No caso presente, o meio invocado pela Requerente no sentido da não aplicação da presunção foi alegar que os lançamentos em contas dos seus sócios derivavam de um contrato de mútuo (não estando, pois, em causa prestação de trabalho ou exercício de cargos sociais).
  3. Por seu turno, o n.º 5 do mesmo artigo 5º do Código do IRS dispõe sobre o modo como pode ser ilidida a referida presunção: com base em decisão judicial, acto administrativo, declaração do Banco de Portugal, reconhecimento pela Direcção-Geral dos Impostos [hoje Autoridade Tributária e Aduaneira].
  4. Não tendo sido ilidida a presunção por qualquer das vias indicadas, resta verificar se o sujeito passivo provou a existência do alegado mútuo.
  5. . Alega a reclamante que, sobre a AT impende o ónus de provar que os lançamentos em conta corrente dos sócios não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais e apenas após tal prova, invocar a presunção de qualificação de tais lançamentos como adiantamentos por conta de lucros.
  6. Todavia não lhe assiste razão. Efetivamente, cabe à Administração Tributária a prova da base da presunção, isto é, a prova da existência dos lançamentos, ao passo que ao sujeito passivo cabe a prova dos factos que ilidem a presunção, e, portanto, a demonstração de que os lançamentos resultam de mútuos, de prestação de trabalho ou de exercício de cargos sociais. O sentido da norma do artigo 6.º, n.º 4, do CIRS é o de agravar a posição jurídica do contribuinte, impondo-lhe o ónus da prova da fonte do rendimento quando sejam efectuados lançamentos não fundamentados na conta corrente dos sócios. Isto é, se for contabilizado um lançamento a favor do sócio presume-se, para efeitos de tributação em IRS, que se trata de distribuição de lucros, cabendo ao sujeito passivo demonstrar o contrário.
  7. O que, nos termos do nº 4 do artigo 6º do CIRS, compete à Autoridade Tributária é provar a existência da base da presunção: no caso, os lançamentos a débito dos sócios escriturados pela Reclamante. Não compete à AT, designadamente, “demonstrar a existência dos factos que levem à presunção de que os lançamentos a débito do sócio constituem adiantamento de lucros”. É que, se a demonstração a fazer necessariamente pela AT fosse já dirigida a que os referidos lançamentos a débito fossem considerados adiantamento de lucros, não seria necessária a citada presunção.
  8. Acresce que a Requerente não veio apresentar ou comprovar, pela forma própria,  qualquer contrato de mútuos ou empréstimos entre a sociedade e os sócios, sendo que, não foram registados pela sociedade reclamante, quaisquer juros pelos alegados empréstimos concedidos e o Requerente  também não fez qualquer referência aos mesmos. Por outro lado, em sede de Imposto do Selo, caso se tratasse de empréstimos concedidos pela sociedade aos sócios, as operações de concessão do crédito ficariam sujeitas a imposto, sendo que a taxa a aplicar variaria consoante o prazo definido para reembolso do empréstimo (Verba 17.1 da Tabela Geral do Imposto de Selo).
  9. Impressiona igualmente que não se alegue ou demonstre a existência de deliberação da sociedade relativamente à concessão de crédito aos sócios pela via de empréstimos ou mútuos, na consideração de que, como já anteriormente se assinalou,  a concretização deste tipo de contratos necessita de ter por base razões devidamente justificadas, plausíveis e enquadradas no interesse social, razões estas que, por sua vez, devem constar obrigatoriamente do acordo escrito entre as partes, sob pena de estarmos perante um negócio inválido e/ou simulado que visa apenas suprir dificuldades económico-financeiras dos sócios/accionistas sem qualquer interesse para a sociedade.
  10. Por outro lado, como anterior e igualmente se assinalou,  o empréstimo concedido aos sócios não se encontra dentro do âmbito da actividade social, pelo que é sempre prudente e avisado colocar o assunto à formal consideração e aprovação da Assembleia Geral, de onde constem os detalhes do empréstimo e a aprovação do mesmo pelos sócios ou accionistas, assegurando-se assim o pleno cumprimento do interesse social e os princípios da informação, da igualdade, da transparência e da boa-fé que devem pautar o relacionamento entre sócios/accionistas.

 

  1. Ora no caso sub juditio, não está invocada nem se e demonstra a existência de  qualquer deliberação da sociedade no sentido apontado.
  2. Daqui decorre que,  por efeito da sobredita  regra de direito probatório material, cabe à Administração Tributária a prova da base da presunção, isto é, a prova da existência dos lançamentos, ao passo que ao sujeito passivo (a Requerente) cabe a prova dos factos que ilidam essa presunção, e, portanto, a demonstração de que os lançamentos resultam (no caso) de mútuos.
  3. Pois bem, essa ilisão não foi, no caso, ilidida na medida em que tal  não pode bastar-se apenas com a indicação de documentos, particulares simples,  de reconhecimento de dívida, tanto mais que  esses documentos,  ainda que subscritos por quem reconhece a dívida, são  assinados e datados após o termo da inspecção tributária e eram inexistentes à data a que se reporta a alegada dívida,  ou seja, à data do lançamento dos montantes identificados na conta corrente dos sócios.
  4. Face ao exposto, e relativamente à alegação de que os sócios subscreveram o Acordo para Reconhecimento de Dívida e Plano de Pagamentos, o mesmo não se afigura relevante, nem suficiente para a verificação dos factos tributários em causa, no ano de 2019, assim como, a alegação de que face aos resultados históricos da sociedade não será previsível a obtenção de lucros tão elevados, não se subsume no que está previsto no referido artigo 6.º do CIRS. “O mútuo é, por sua natureza, um contrato real, que implica a transferência da coisa para que esta possa ser colocada à disposição do mutuário. A atribuição patrimonial efetuada pelo mutuante é um elemento constitutivo e integrante do contrato, pelo que o contrato não se completa nem existe sem a entrega” (PIRES DE LIMA /ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. II, 2.ª edição, Coimbra, págs. 601-602).
  5. Portanto, incumbia à Requerente o ónus de demonstrar documentalmente e pela forma legal a existência do contrato de mútuo e que os montantes em causa recebidos pelos sócios, o foram a qualquer outro título, ou por outrem, ou que foram transferidos para a sociedade, ónus que não cumpriu, pois receberam por transferência bancária, importâncias que pertenciam à sociedade e que reverteram para a sua esfera pessoal, sem que tenha sido objecto de tributação na empresa. Assim, restava à reclamante a prova de que tais importâncias foram recebidas a outro título, ou que as mesmas foram devolvidas à sociedade, prova que não logrou fazer.
  6. Há a acrescentar que da análise do texto transmitido como sendo o do contrato de mútuo – documento de reconhecimento de dívida e pagamento - , resultam diversas omissões e incongruências que inviabilizam que o mesmo se possa considerar um verdadeiro contrato de mútuo suscetível de fazer afastar a aplicação da presunção do n.º 4 do art. 6.º do CIRS. Com efeito: (1) não foi assinado pelo Requerente;  (2) não se procedeu ao reconhecimento da assinatura dos sócios; (3) não teve lugar o pagamento do imposto do selo, aquando da formalização do contrato; (4) o contrato, a ter sido celebrado, deveria tê-lo sido por escritura pública (artigo 1143.º do Código Civil), forma que constitui um requisito ad substantiam e, por isso, à sua inobservância tem de aplicar-se a regra geral do artigo 364.º do mesmo Código, com a consequência de a falta importar a invalidade do contrato, conforme dispõe o artigo 219.º.
  7. Por estas razões não é possível invocar o artigo 75.º da Lei Geral Tributária no sentido da autenticidade do documento, acrescendo ainda que o mesmo não consta da documentação da sociedade, nem da escrita, nem da contabilidade.
  8. Poder-se-ia dizer, no limite, que ficam a subsistir muitas dúvidas sobre a realidade dos factos alegados e cuja prova competia à Requerente com vista à elisão da presunção o artigo 6º-4,  do CIRS quando prevê que “os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob a forma comercial, quando não resultem de mútuos, de prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros”.
  9. Tudo visto, há que concluir pela inexistência, por falta de prova, de um contrato de mútuo celebrado entre a Requerente e os seus sócios B... e C...; o que significa que aos lançamentos feitos por aquela nas contas correntes dos seus sócios terá de aplicar-se a presunção do já identificado n.º 4 do art. 6.º do CIRSe daí as importâncias em causa serem tributáveis em IRS, em virtude dos artigos 5.º n.º 1 e 2 alínea h) e 6.º n.º 4, e objeto de retenção na fonte, nos termos dos artigos 71.º n.º 1 alínea c) e 98.º do mesmo Código e, atento o disposto no artigo 7.º n.º 3 alínea a) s/n.º 2 do mesmo Código - que, no aspeto temporal do pressuposto objetivo, estabelece a colocação à disposição como momento relevante para a sujeição a tributação - as datas para a tributação, no caso sub judice, são as datas em que foram feitos os lançamentos dos quantitativos nas contas do sócio gerente, e com as taxas então vigentes.”
  10. Quanto à alegação da reclamante, relativamente à oneração do património da sociedade através da distribuição de lucros aos sócios, também não lhe assiste razão:  a consideração de haver ou não alteração da situação patrimonial da reclamante, é, logicamente, um ponto de chegada e não o ponto de partida da presunção.
  11. Relativamente à correspondência entre os documentos de reconhecimento de dívida – embora sem relevo para a prova da existência e validade dos alegados contratos de mútuo -  e os lançamentos efectuados em 2019, a análise dos documentos relacionados com transferências bancárias efetuadas pelos sócios para a reclamante em 2021, não permitem só por si, estabelecer uma relação com a questão reclamada e concluir que se trata de devoluções de quantias recebidas (a que título?) em 2019, pois carece de outros elementos de prova, designadamente, extractos bancários até à data e extratos da contabilidade, de forma a demonstrar inequivocamente que os montantes que receberam foram devolvidos.
  12. Nestes termos, a liquidação controvertida não enferma do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, que a Requerente lhe imputa. 
  13. A esta luz e face ao exposto, deve o pedido arbitral ser considerado improcedente na sua totalidade.

 

Dos juros compensatórios e demonstrações de acerto de contas

A liquidação de juros compensatórios tem como fundamento a falta de retenção na fonte do imposto IRS que é considerado devido pelo tribunal pelo que é de manter a sua exigência pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar totalmente improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

  1. Manter a liquidação  de Retenções na Fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante IRS) com o n.º 2021 ... no valor de € 141.036,00 (cento e quarenta e um mil e trinta e seis euros) e as liquidações de juros compensatórios n.º 2021 ... no montante de € 11.625,04 (onze mil seiscentos e vinte e cinco euros e quatro cêntimos), n.º 2021 ... no montante de € 34,74 (trinta e quatro euros e setenta e quatro cêntimos) e n.º 2021 ... no montante de € 389,69 (trezentos e oitenta e nove euros e sessenta e nove cêntimos) e
  2. Condenar a Requerente nas custas do processo, no montante abaixo fixado.

 

D. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 153.085,47€ (cento e cinquenta e três mil e oitenta e cinco euros e quarenta e sete cêntimos) nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.672,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, atento o seu total decaimento  (artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT e 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

  • Notifique-se, incluindo o Ministério Público.

 

      Lisboa, 17 de Outubro de 2023

 

O Árbitro Presidente  do Tribunal,

 

(José Poças Falcão)

 

A Árbitra Adjunta (Relatora)

 

(Ana Teixeira de Sousa)

 

O Árbitro Adjunto,

 

(António Pragal Colaço)

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.