Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 506/2017-T
Data da decisão: 2018-05-25  IRC  
Valor do pedido: € 148.607,20
Tema: IRC – Prova – Retenção na fonte.
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Acordam os Árbitros José Poças Falcão (Árbitro Presidente), Manuel Pires e Carla Castelo Trindade (Árbitros Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o presente Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

 

DECISÃO ARBITRAL

I – RELATÓRIO

Em 12 de Setembro de 2017, o “A...”, a actuar como “A...” do B..., Fundo de Pensões, com sede em ..., Reino Unido, com NIF português ... (doravante “Requerente”) apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).

Mediante o pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, o Requerente pretende a anulação do acto de indeferimento expresso da Revisão Oficiosa, no qual se discutiu a (i)legalidade da retenção na fonte efectuada a título definitivo, no valor global de € 148.607,20Euros (cento e quarenta e oito mil e seiscentos e sete Euros e vinte cêntimos).

Com efeito, não se conformando com o acto de indeferimento da Revisão Oficiosa acima referido, o Requerente solicitou a constituição deste tribunal arbitral formulando, se bem se entende, um pedido de anulação da decisão de indeferimento da revisão oficiosa e consequente declaração de ilegalidade da retenção na fonte efectuada à Requerente, com fundamento em vícios de violação de:

- Preterição do direito de audiência prévia;

- Erro quanto à apreciação da prova da retenção de imposto;

- Violação das regras de repartição do ónus da prova;

- Violação dos princípios do inquisitório, da cooperação e da verdade material;

- Violação do princípio da igualdade tributária e do Direito da União Europeia               

Com a petição a Requerente juntou 9 documentos.

No exercício da opção de designação de árbitro prevista na alínea b) do n.º 2 e em cumprimento do disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 10.º e no n.º 2 do artigo 11.º, todos do RJAT a requerente designou como Árbitro a Dr.ª Carla Castelo Trindade.

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º e do n.º 3 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, e dentro do prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, o dirigente máximo do serviço da Administração Tributária designou como Árbitro o Exmo Senhor Prof. Doutor Manuel Pires.

Por acordo, os árbitros nomeados pelas partes indicaram para presidir a este Tribunal Arbitral o Dr.º José Poças Falcão que, no prazo aplicável, aceitou o encargo.

As partes foram notificadas dessa designação, não tendo sido apresentado qualquer pedido de recusa da designação como árbitro dos que compõem este tribunal.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 e no n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 6 de Dezembro de 2017.

Notificada para apresentar a sua resposta, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida”) exerceu tal direito.

Atendendo a que, no caso, não se verificava nenhuma das finalidades que legalmente estão cometidas à reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e, tendo em conta a posição tomada pelas partes nos articulados, ao abrigo do disposto nos artigos 16.º alínea c) e 19.º do RJAT, bem como dos princípios da economia processual e da proibição de actos inúteis, dispensou-se a realização desta reunião tendo as partes sido notificadas para, querendo, apresentar alegações.

Em 25 de Janeiro de 2018 a Requerida juntou aos autos cópia do procedimento administrativo.

As partes apresentaram alegações.

II. SANEAMENTO

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

Foi invocada, por parte da Requerida, uma excepção dilatória de incompetência material. Com efeito, na sua resposta, a Requerida defendeu-se por excepção, invocando a incompetência material do tribunal arbitral decorrente da circunstância do pedido de pronúncia arbitral ter sido formulado na sequência de indeferimento de pedido de revisão oficiosa.

A Requerida defende, em suma, que o artigo 2.º, alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, através da qual a Autoridade Tributária e Aduaneira ficou vinculada à jurisdição arbitral exclui as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa, através de reclamação graciosa, nos termos do artigo 131.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário. No entender da Requerida «na situação sub judice, para que o Presente Tribunal Arbitral pudesse pronunciar-se, sempre se impunha que o pedido de pronúncia arbitral fosse com referência à reclamação graciosa nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 132.º do CPPT, o que não sucedeu».

A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é, em primeira linha, limitada às matérias indicadas no art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).

Contudo, numa segunda linha, a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é também limitada pelos termos em que Administração Tributária se vinculou àquela jurisdição pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pois o art. 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».

Em face desta segunda limitação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, a resolução da questão da competência depende essencialmente dos termos desta vinculação, pois, mesmo que se esteja perante uma situação enquadrável naquele art. 2.º do RJAT, se ela não estiver abrangida pela vinculação estará afastada a possibilidade de o litígio ser jurisdicionalmente decidido por este Tribunal Arbitral.

Na alínea a) do art. 2.º desta Portaria n.º 112-A/2011, excluem-se expressamente do âmbito da vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» (sublinhado nosso).

A referência expressa ao precedente «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário» deve desde logo ser interpretada como reportando-se aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa, que é o meio administrativo expressamente previsto naqueles artigos 131.º a 133.º do CPPT, para cujos termos se remete. Em boa verdade, não se compreenderia que, não sendo necessária a impugnação administrativa prévia «quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária» (cfr. art. 131.º, n.º 3, do CPPT, aplicável aos casos de retenção na fonte, por força do disposto no n.º 6 do art. 132.º do mesmo Código), se afastasse a competência da jurisdição arbitral por não ter sido efectuada tal impugnação administrativa que, no âmbito do CPPT, se entende ser desnecessária.

No caso em apreço, é pedida a declaração de ilegalidade de acto de autoliquidação, na sequência do indeferimento de um pedido de revisão de actos tributários efectuado após o decurso do prazo de dois anos previstos no artigo 132.º, a que se seguiu recurso hierárquico.

Importa, antes de mais, esclarecer se a declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão do acto tributário, previstos no art. 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD pelo art. 2.º do RJAT, na medida em que este último preceito não faz qualquer referência expressa a actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa.

Ora, a fórmula «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado directamente um tal acto de indeferimento. Na verdade, a ilegalidade de actos de liquidação (actos de primeiro grau) pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.

A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efectuada através da declaração de ilegalidade de actos de segundo grau resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Em todo o caso, quando o contribuinte traz o acto de primeiro grau ao conhecimento do tribunal arbitral por via de um indeferimento de reclamação graciosa, recurso hierárquico ou pedido de revisão oficiosa (acto de segundo grau), é ainda o primeiro que é objecto do pedido de pronúncia arbitral. É ainda a (i)legalidade do acto de primeiro grau que o tribunal arbitral há-de apreciar e declarar.

O que o artigo 2.º do RJAT não permite, de todo, é a apreciação de vícios próprios do acto de segundo grau. Conforme referido por Carla Castela Trindade, «Entende-se, a este propósito que os actos de segundo ou terceiro graus poderão sempre ser arbitráveis na medida em que comportem, e só nessa medida, eles próprios, a (i)legalidade dos actos de liquidação em causa. (…) Defende-se aqui, por conseguinte, uma interpretação segundo a qual não são arbitráveis os vícios próprios dos actos de indeferimento de reclamações graciosas, de recursos hierárquicos ou de pedidos de revisão do acto tributário porque escapam ao âmbito material da arbitragem tributária.» (cfr. Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado (2016) pp. 69-70).

Deste modo, dúvidas não restam que um acto de liquidação em sentido amplo pode ser trazido ao conhecimento do tribunal arbitral na sequência de um acto de indeferimento de pedido de revisão oficiosa – funcionando a revisão oficiosa como o recurso à via administrativa, i.e, como conhecimento administrativo prévio à sindicância judicial ou jurisdicional, legalmente exigido -, contando que o objecto do pedido de pronúncia arbitral seja, ainda, aquele acto de primeiro grau cuja (i)legalidade o contribuinte reclama.

Chegados a esta conclusão, resta aferir se, quanto a actos de autoliquidação de imposto, a alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, quando conjugada com a alínea a) do artigo 2.º da Portaria de Vinculação, exclui os casos em que o pedido de pronúncia arbitral não foi procedido da reclamação graciosa – ou para o que aqui importa, com o recurso à via administrativa que pode perfeitamente suceder através de revisão oficiosa ou de recurso hierárquico – necessária, prevista nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, no prazo de dois anos, mas sim de pedido de revisão oficiosa de acto tributário, no prazo mais alargado de quatro anos, permitido pelo artigo 78.º da LGT.

Que o pedido de reclamação oficiosa do acto tributário deve ser equiparado à reclamação graciosa necessária prevista nos artigos 131.º a 133.º do CPPT quando efectuado no prazo da reclamação graciosa (dois anos), não nos suscita grandes dúvidas. Este tem sido, de resto, o entendimento maioritário da doutrina e jurisprudência. De resto, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se repetidamente no sentido desta equiparação. Veja-se, por todos, o Acórdão de 12 de Julho de 2006, proferido no âmbito do processo n.º 0402/06 (disponível em www.dgsi.pt), onde se decidiu:

“No entanto, não é indiferente para o contribuinte impugnar ou não os actos de liquidação dentro dos respectivos prazos, pois em caso de anulação em processo impugnatório, judicial ou administrativo, pode ser invocada qualquer ilegalidade e há direito a juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido até à emissão da nota de crédito (artigos. 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 3, do CPPT), enquanto nos casos de revisão oficiosa da liquidação (quando não é feita a pedido do contribuinte, no prazo da reclamação administrativa, situação que é equiparável à de reclamação graciosa) apenas há direito a juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.º 3, da LGT e a anulação apenas pode ter por fundamento erro imputável aos serviços e duplicação de colecta (artigo 78.º, n.ºs 1 e 6, da LGT).

Essencialmente, o regime do artº 78.º, quando o pedido de revisão é formulado para além dos prazos de impugnação administrativa e contenciosa, reconduz-se a um meio de restituição do indevidamente pago, com revogação e cessação para o futuro dos efeitos do acto de liquidação, e não a um meio anulatório, com destruição retroactiva dos efeitos do acto. 

A esta luz, o meio procedimental de revisão do acto tributário não pode ser considerado como um meio excepcional para reagir contra as consequências de um acto de liquidação, mas sim como um meio alternativo dos meios impugnatórios administrativos e contenciosos (quando for usado em momento em que aqueles ainda podem ser utilizados) ou complementar deles (quando já estiverem esgotados os prazos para utilização dos meios impugnatórios do acto de liquidação).

Trata-se de um regime reforçadamente garantístico, quando comparado com o regime de impugnação de actos administrativos, mas esse reforço encontra explicação na natureza fortemente agressiva da esfera jurídica dos particulares que têm os actos de liquidação de tributos.”

A questão coloca-se, isso sim, quando o pedido de revisão oficiosa é realizado já após o prazo de dois anos previsto para a reclamação graciosa necessária. Antecipamos, porém, que tal como defendido por Carla Castelo Trindade, «esta admissibilidade [de equiparação do pedido de revisão oficiosa à reclamação graciosa necessária] vale, por maioria de razão, tanto para o pedido de revisão oficiosa apresentado fora do prazo previsto para a reclamação graciosa necessária (que é de 2 anos nos termos daqueles artigos do CPPT), como para o pedido que é realizado quando ainda era possível a apresentação de reclamação graciosa» (cfr. Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado (2016) p. 97).

Contudo, a propósito da equiparação do pedido de revisão oficiosa à reclamação graciosa necessária para efeitos de acesso à via arbitral, defende a Requerida que a referência expressa aos artigos 131.º a 133.º do CPPT que se faz no artigo 2.º da Portaria de Vinculação não permite outra interpretação que a não a de que para que o acto possa ser sujeito à jurisdição arbitral, terá de ser necessariamente precedido de reclamação graciosa, por ser este o meio de reacção procedimental expressamente previsto nos artigos 131.º a 133.º do CPPT.

No entanto, entendemos que aquela referência expressa aos artigos 131.º a 133.º do CPPT não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos dos tipos ali referidos. Na verdade, a interpretação exclusivamente baseada no teor literal que defende a Requerida no presente processo não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada». Quanto a correspondência entre a interpretação e a letra da lei, basta «um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (cfr artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil) o que só impedirá que se adoptem interpretações que não possam em absoluto compaginar-se com a letra da lei, mesmo reconhecendo nela imperfeição na expressão da intenção legislativa.

Destarte, a letra da lei não é obstáculo a que se faça interpretação declarativa, que explicite o alcance do teor literal, nem mesmo interpretação extensiva, quando se possa concluir que o legislador disse menos do que o que, em coerência, pretenderia dizer, isto é, quando disse imperfeitamente o que pretendia dizer. Na interpretação extensiva «é a própria valoração da norma (o seu “espírito”) que leva a descobrir a necessidade de estender o texto desta à hipótese que ela não abrange», «a força expansiva da própria valoração legal é capaz de levar o dispositivo da norma a cobrir hipóteses do mesmo tipo não cobertas pelo texto». A interpretação extensiva, assim, é imposta pela coerência valorativa e axiológica do sistema jurídico, erigida pelo artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil em critério interpretativo primordial pela via da imposição da observância do princípio da unidade do sistema jurídico.

É manifesto que o alcance da exigência de reclamação graciosa prévia, necessária para abrir a via contenciosa de impugnação de actos dos tipos referidos nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, tem como única justificação o facto de relativamente a esse tipo de atos não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto, posição essa que até poderá vir a ser favorável ao contribuinte, evitando a necessidade de recurso à via contenciosa. Daí que a reclamação graciosa necessária esteja também prevista relativamente a actos de retenção na fonte e de pagamento por conta, que têm de comum com os actos de autoliquidação a circunstância de também não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade dos actos.

A confirmar inequivocamente este entendimento (de que a reclamação graciosa necessária foi prevista de forma a que a Administração Tributária possa pronunciar-se, por uma primeira vez, sobre o acto antes de se abrir a via contenciosa) o n.º 3 do artigo 131.º do CPPT, estabelece que «sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102.º» (sublinhado nosso) – norma que, de resto é aplicável também aos actos de retenção na fonte por remissão do n.º 6 do artigo 132.º do CPPT. Nestes casos, houve uma pronúncia prévia genérica da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto de autoliquidação ou retenção na fonte, sendo esse o facto que explica que deixe de exigir-se a reclamação graciosa necessária

Ora, nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de acto de autoliquidação ou retenção na fonte é proporcionada à Administração Tributária, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, pelo que, em coerência com as soluções adoptadas nos n.ºs 1 e 3 do artigo 131.º e 3 e 6 do artigo 132.º do CPPT, não é exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa (isto caso o sujeito passivo ainda estivesse em tempo de lançar mão da reclamação graciosa, ou seja, ainda dentro do prazo de dois anos).

Por outro lado, é inequívoco que o legislador não pretendeu impedir aos contribuintes a formulação de pedidos de revisão oficiosa nos casos de actos de autoliquidação, pois estes foram expressamente referidos no n.º 2 do artigo 78.º da LGT e no n.º 2 do artigo 54.º da mesma Lei estabelece-se a aplicabilidade à autoliquidação e à retenção na fonte das garantias dos contribuintes previstas no n.º 1, em que se inclui a revisão oficiosa. E aos actos de autoliquidação, praticados pelo sujeito passivo, são equiparáveis, por mera interpretação declarativa, os de retenção na fonte que são praticados pelo substituto tributário, que é considerado sujeito passivo (artigo 18.º, n.º 3, da LGT).

Neste contexto, permitindo a lei expressamente que os contribuintes optem pela reclamação graciosa ou pela revisão oficiosa de actos de autoliquidação e de retenção na fonte, não há qualquer razão para não permitir o acesso à via arbitral por um contribuinte que tenha optado pela revisão do acto tributário em lugar da reclamação graciosa.

Por isso, é de concluir que os membros do Governo que emitiram a Portaria de Vinculação, ao fazerem referência aos artigos 131.º a 133.º do CPPT, disseram imperfeitamente o que pretendiam, pois, pretendendo impor a apreciação administrativa prévia à impugnação contenciosa de actos dos tipos referidos, acabaram por incluir uma referência aos artigos 131.º a 133.º, artigos esses que, como se viu, não esgotam as possibilidades de apreciação administrativa desses actos.

Aliás, é de notar que esta interpretação não se cingindo ao teor literal até se justifica especialmente no caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria de Vinculação, por serem evidentes as suas imperfeições. Uma primeira, a de associar a fórmula abrangente «recurso à via administrativa» (que referencia, além da reclamação graciosa, o recurso hierárquico e a revisão do acto tributário) à «expressão nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», que tem potencial alcance restritivo à reclamação graciosa. Uma segunda, a de utilizar a fórmula «precedidos» de recurso à via administrativa, reportando-se às «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos», que, obviamente, se coadunariam muito melhor com a feminina palavra «precedidas».

Deste modo, assegurando a revisão do acto tributário a possibilidade de apreciação da pretensão do contribuinte antes do acesso à via contenciosa que se pretende alcançar com a impugnação administrativa necessária, a solução mais acertada, porque é a mais coerente com o desígnio legislativo de «reforçar a tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes» manifestado no n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, é a admissibilidade da via arbitral para apreciar a legalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte ou de pagamento por conta previamente apreciada em procedimento de revisão. E, por ser a solução mais acertada, tem de se presumir ter sido normativamente adoptada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).

Por outro lado, contendo aquela alínea a) do artigo 2.º da Portaria de Vinculação uma fórmula imperfeita, mas que contém uma expressão abrangente «recurso à via administrativa», que potencialmente referencia também a revisão do acto tributário, encontra-se no texto o mínimo de correspondência verbal, embora imperfeitamente expresso, exigido por aquele n.º 3 do artigo 9.º para a viabilidade da adopção da interpretação que consagre a solução mais acertada.

É de concluir, assim, que o artigo 2.º alínea a) da Portaria de Vinculação, devidamente interpretado com base nos critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9.º do Código Civil e aplicáveis às normas tributárias substantivas a adjectivas, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de retenção na fonte que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.

Antecipando este entendimento, alega a Requerida que «tal interpretação ser não só ilegal, mas manifestamente inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como da legalidade (cf. artigos 3.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, ambos da CRP), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, que vinculam o legislador e toda a actividade da AT».

Na verdade, a Constituição não impõe que a interpretação dos diplomas normativos tenha de cingir-se ao teor literal e, no caso em apreço, como se explicou, devidamente interpretadas as normas do artigo 2.º, n.º 1, do RJAT e do artigo 2.º da Portaria de Vinculação, conclui-se que a vinculação da Administração Tributária aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD abrange os casos em que actos de autoliquidação foram precedidos de pedidos de revisão oficiosa. Por isso, a interpretação que ora se faz não estende a vinculação da Administração Tributária em relação ao que está patente na lei, antes define exactamente os seus termos, seguindo-se as regras de interpretação de normas genericamente previstas.

Por outro lado, ao interpretar e aplicar as normas jurídicas, este tribunal arbitral está a desempenhar a função que lhe está constitucionalmente atribuída (artigos 202.º, n.º 1, 203.º e 209.º, n.º 2, da CRP), pelo que nem se vislumbra como possa existir violação dos princípios da separação de poderes, do Estado de Direito e da legalidade, pois o decidido por este tribunal evidencia, precisamente, a perfeita concretização desses princípios. Com efeito, a Assembleia da República autorizou o Governo a legislar (cfr. artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril); o Governo, no uso de poderes legislativos, emitiu o RJAT; a Administração, através de dois membros do Governo, emitiu a Portaria de Vinculação; o tribunal arbitral, no uso dos seus poderes, interpreta e aplica os referidos diplomas normativos.

No que respeita ao princípio da legalidade, recorda-se que o mesmo traduz-se no cumprimento da lei, na interpretação que dela for feita pelos tribunais, que se impõe às interpretações dos outros órgãos estaduais (artigo 205.º, n.º 2, da CRP). É precisamente a aplicação da legalidade que se faz ao reconhecer a competência dos tribunais arbitrais para o conhecimento de pedidos de declaração de ilegitimidade de actos de autoliquidação precedidos de acesso à via administrativa através de pedido de revisão oficiosa.

Quanto à invocação do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, tal como definido no artigo 30.º, n.º 2, da LGT, em que se refere que «o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributário», tratar-se-á, decerto, de lapso, já que ao decidir sobre a sua competência o tribunal arbitral não está a praticar qualquer acto de disposição de qualquer crédito. De todo o modo, como bem entendeu o Tribunal Constitucional, na esteira da generalidade da doutrina, o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários aplica-se à Administração e não aos tribunais.

No sentido da interpretação supra defendida, de que o artigo 2.º da Portaria de Vinculação não exclui a apreciação pelos tribunais arbitrais, de actos de autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta precedidos de pedido de revisão de acto tributário, veja-se o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, de 27 de Abril de 2017, no âmbito do processo n.º 08599/15 (disponível em www.dgsi.pt), onde se sumariamente se decidiu que «O artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011 viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa», mais se acrescentando que:

«A referência ao artigo 131.º do CPPT que se faz no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não exclui expressamente a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais quando estão em causa pedidos de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos de autoliquidação.

Não se verificando uma exclusão expressa, não se poderá dizer que estamos perante uma ampliação da vinculação, mas tão-somente perante interpretação de norma de exclusão de vinculação, e nessa medida não se verifica a violação de qualquer princípio ou preceito constitucional.»

Improcede, assim, esta excepção de incompetência com fundamento na não apresentação de reclamação graciosa da autoliquidação.

As partes são legítmas e estão devidamente representadas.

O processo é isento de nulidades.

Cumpre decidir.

III.1. FACTOS PROVADOS

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada. Tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário e o artigo 607.º, n.º 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º Código de Processo Civil aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Ora, atendendo às posições assumidas pelas partes, e à prova documental junta aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

  1. A Requerente é uma pessoa colectiva de Direito do Reino Unido, constituída sob a forma jurídica de um Fundo de Pensões, de acordo com a legislação do Reino Unido e devidamente aprovada pela Administração Fiscal deste País.
  2. A residência fiscal da Requerente situa-se no Reino Unido, considerando-se, assim, sujeito passivo não residente para efeitos fiscais em Portugal (cfr. Documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral)
  3. A requerente detinha investimentos financeiros em Portugal, designadamente participações sociais em sociedades residentes, para efeitos fiscais, em Portugal.
  4. No ano de 2009, a Requerente, na qualidade de accionista de sociedades residentes fiscais em Portugal, recebeu dividendos daquelas participações sociais no valor bruto total de 743.036,01 Euros (setecentos e quarenta e três mil e trinta e seis euros e um cêntimo) (cfr. Documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
  5. O valor bruto dos dividendos auferidos pela Requerente em Portugal, em 2009, foi sujeito a retenção na fonte em sede de IRC, à taxa liberatória de 20%, resultando num imposto retido no montante de 148.607,20 Euros (cento e quarenta e oito mil seiscentos e sete euros e vinte cêntimos) (cfr. Declarações emitidas pela “C...” e pela “D...” em anexo ao Documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
  6. Em 28 de Dezembro de 2011, a Requerente por considerar ilegal a referida retenção na fonte, apresentou reclamação graciosa (cfr. Documento nº 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
  7. Por ofício nº ... de 24/10/2012, a Requerente foi notificada do 1º Projecto de Decisão ‑ o qual foi recepcionado pela representante fiscal da Requerente a 25 de Outubro de 2012 ‑ para exercer, querendo, o seu direito de audição prévia (cfr. Documento nº 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
  8. Por requerimento apresentado no dia 2 de Novembro de 2012, a Requerente exerceu o seu direito de audição prévia.
  9. A reclamação graciosa foi indeferida, com fundamento na sua intempestividade, por despacho exarado em 11 de Dezembro de 2012, e notificado em 14 de Dezembro de 2012, tendo a mesma sido convolada em revisão oficiosa, com base em erro imputável aos serviços (cfr. Documento nº 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
  10. Em 03 de Julho de 2013, por ofício nº..., a Requerente foi notificada do 2º Projecto de Decisão, para exercer, querendo, o seu direito de audição prévia relativamente à intenção da Requerida de indeferir o pedido de revisão oficiosa (cfr. Documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
  11. A Requerente não exerceu o seu direito de audição prévia relativamente ao 2º Projecto de Decisão.
  12. Em 11.9.2013, por despacho proferida pela Subdiretora Geral da AT na Informação nº .../2013, de 13 de maio de 2013, foram as retenções consideradas feridas de ilegalidade e o apuramento de IRC ferido de erro, com a consequente autorização da revisão dos atos tributários ora em causa;
  13. Em 19 de Dezembro de 2013, a Requerida notificou a Requerente para identificar e juntar cópia das guias de entrega do imposto nos cofres do Estado em relação aos dividendos já mencionados (cfr. Documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
  14. Através de requerimento com data de entrada nos serviços da Requerida em 24 de Janeiro de 2014, a Requerente solicitou a suspensão do procedimento tributário por período não inferior a três meses, sendo aquele o prazo previsto para a obtenção das guias do imposto cujo reembolso requeria (cfr. Documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
  15. Este requerimento foi indeferido pela Requerida por alegada falta de base legal (cfr no processo administrativo o despacho notificado à Requerente pelo ofício nº .../2014, de 18-2-2014).
  16. Em 14-3-2014, a Requerente, na impossibilidade de obter cópias ou identificação  das citadas guias de entrega de imposto, deu entrada nos Serviços da Requerida, de um requerimento a solicitar a revisão oficiosa e a restituição do imposto retido na importância de €148.607,20, juntando, para prova, 4 (quatro) documentos [declarações emitidas pela “C...” e pela “D...” contendo a relação dos dividendos pagos pelas mesmas à Requerente, na qualidade de intermediários financeiros e declarações emitidas pelo Banco E... à D..., que actuava como intermediário financeiro na compra das acções que deram origem ao pagamento dos referidos dividendos].
  17. O procedimento administrativo culminou com o despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, emitido a 06 de Junho de 2017 e, notificado à Requerente em 14 de Junho de 2017, com fundamento na falta de entrega das guias de imposto requeridas (cfr. Documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral). 

III.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Como referido, relativamente à matéria de facto dada como assente, o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada tal como dispões o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram, como acima se referiu, escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, não existindo outra factualidade alegada que seja relevante para a correcta composição da lide processual.

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

Está em causa nos autos a alegada ilegalidade do ato de liquidação de IRC decorrente do indeferimento do pedido de revisão com fundamento na falta de identificação das guias de entrega do imposto retido nos cofres do Estado, omissão essa impeditiva da emissão do cheque de restituição da respetiva importância.

Na verdade, atendendo às posições das partes assumidas nos articulados apresentados, a questão central a dirimir pelo presente tribunal arbitral consiste em apreciar a ilegalidade do acto de retenção na fonte efectuada a título definitivo, no valor de 148.607,20 Euros, relativo a rendimentos auferidos pela Requerente no ano de 2009, em sede de IRC, na consideração de que, conforme previamente havia sido aceite pela AT, a liquidação de IRC não tinha, no caso, fundamento legal.

Como se referiu supra, em sede de decisão sobre a excepção de incompetência invocada pela Requerida, o objecto do pedido de pronúncia arbitral é, ainda, a apreciação do acto tributário de primeiro grau (o acto de retenção na fonte de IRC, referente ao ano de 2009). A ser tal acto ilegal, a sua manutenção na ordem jurídica por via do indeferimento do pedido de revisão oficiosa, redundará em vício de violação de lei.

Tendo a Requerente imputado diversos vícios ao acto tributário impugnado, há que determinar a ordem do conhecimento dos mesmos, devendo ser observada a ordem do artigo 124.º do CPPT, aplicável por força do artigo 29.º, nº 1, alínea a) do RJAT[1].

A Requerente invoca, em primeiro lugar a violação do direito de audiência prévia constituindo um vício de lei por violação de preterição de formalidades essenciais e que, procedendo, dará lugar à anulação do acto tributário, de acordo com o disposto no artigo 60.º, n.º1, alínea b), e n.º 5 da LGT.

Em segundo lugar, a Requerente invoca erro da Administração Tributária no que toca à apreciação da prova da retenção na fonte do imposto, constituindo também este um vício de lei e que, procedendo, redundará igualmente na declaração de ilegalidade da referida retenção.

Em terceiro lugar, a Requerente alega a violação das regras de repartição do ónus da prova, que procedendo dará lugar à anulação do acto tributário com fundamento na violação das regras constantes do artigo 74.º, n.º.s 1 e 2, da LGT.

Ainda no que toca aos vícios de violação de lei, em quarto lugar, a Requerente alega a violação dos princípios do inquisitório, da cooperação e da verdade material que, procedendo, levará à anulação do acto impugnado e à consequente declaração de ilegalidade da retenção efectuada, nos termos dos artigos 58.º e 59.º da LGT, bem como do próprio CPPT, designadamente nos artigos 48.º, 50.º e alínea e) do artigo 69.º.

Por último, em quinto lugar, a Requerente vem alegar a violação do Direito da União Europeia e do princípio da igualdade fiscal. A violação do princípio da igualdade fiscal traduz-se em um tratamento diferenciado entre residentes e não residentes que procedendo consubstancia a violação de um direito fundamental como resulta dos artigos 13.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Nesta medida, a requerente alega que a Administração Tributária deveria ter declarado nula tal retenção. Assim, não o tendo feito, a Requerente alega a violação do princípio da não discriminação em função da nacionalidade consagrado no actual artigo 18.º do Tratado da União Europeia, sendo que a verificar-se resulta igualmente numa violação do princípio da igualdade, bem como dos princípios Europeus da liberdade de estabelecimento e da liberdade de circulação de capitais, ambos previstos no actual artigo 63.º TFUE. Assim, verificando-se tais violações alegadas com fundamento na violação do princípio constitucional do primado do Direito Europeu nos termos do artigo 8º da CRP e artigo 1.º, n.º 1, da LGT, as mesmas darão lugar à anulação (e não à nulidade, como alega a Requerente) do acto tributário tendo em consideração o disposto no artigo 161.º, n.º 2, alínea d), do actual Código de Procedimento Administrativo, aplicável ex vi alínea d) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

De entre os vícios invocados pela Requerente, analisar-se-ão em primeiro lugar os vícios de violação de lei por violação do princípio da igualdade tributária e do Direito da União Europeia e, seguidamente, dos vícios de violação de lei por erro da Administração Tributária quanto à apreciação da prova da retenção do imposto e por violação das regras de repartição do ónus da prova, já que são aqueles que conduzirão à “mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos” na medida em que a sua eventual procedência impedirá a renovação do acto.

Assinale-se preliminarmente que os Tribunais não têm que apreciar todos os argumentos formulados pelas partes, conforme tem sido repetidamente afirmado pela Jurisprudência (vd inter alia, Acórdão do Pleno da 2ª Secção do STA, de 7 Junho de 1995, proferido no âmbito do recurso n.º 5239, in DR – Apêndice de 31 de Março de 97, pgs. 36-40 e Acórdão do STA – 2.ª Sec – de 23 Abril de 1997, DR/AP de 9 Out 97, p. 1094, também publicados em www.dgsi.pt).

Vícios de violação de lei

Conforme alega a Requerente, os dividendos, enquanto rendimentos resultantes de rendimentos financeiros, pagos por uma entidade residente a um sujeito passivo também ele residente em Portugal estavam, à data dos factos, sujeitos a retenção na fonte a uma taxa de 20%, nos termos do disposto nos artigos 94.º, n.º 1, alínea c) e 94.º do Código do IRC, bem como do artigo 101.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS. A título de excepção, determina o artigo 16.º do EBF que os Fundos de Pensões que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional estão isentos de tributação em sede de IRC.

Por seu turno, nos casos de distribuição de dividendos por parte de sociedades residentes em Portugal a fundos de pensões não residentes em Portugal – e, por conseguinte, constituídos de acordo com a legislação de outros Estados, nomeadamente Estados membros – os rendimentos obtidos em Portugal estavam, à data dos factos, sujeitos a retenção na fonte liberatória à taxa de 20%, ao abrigo do disposto nos artigos 94.º, n.º 1, alínea c), e 87.º, n.º 4, alínea c), ambos do Código do IRC.

Assim, um fundo de pensões residente em Portugal, quando recebe dividendos ou outros rendimentos provenientes de sociedades sediadas em Portugal está sujeito a um regime fiscal mais favorável do que o aplicável a um fundo de pensões constituído de acordo com a legislação de um qualquer outro Estado Membro quando receba dividendos ou outros rendimentos de fonte portuguesa. Os primeiros gozam da isenção prevista no EBF, os segundos estão sujeitos a retenção na fonte liberatória.

Ora o artigo 18.º do TFUE estabelece uma proibição genérica de discriminação baseada na nacionalidade, adiante concretizado no artigo 63.º do TFUE no que diz respeito à livre circulação de capitais, estabelecendo-se, assim, uma proibição de toda e qualquer forma de discriminação baseada na nacionalidade ou no local de investimento entre entidades ou pessoas residentes em Estados Membros da União Europeia.

Este é, de resto, um dos princípios basilares do Direito da União Europeia.

Não há dúvida de que a distribuição de dividendos é um movimento de capital, como tal regido pelo princípio da liberdade de circulação de capitais, na acepção do artigo 63.º do TFUE.

Assim, tem razão a Requerente quando afirma que as distribuições de dividendos a si efectuadas no ano de 2009 constituem um movimento de capital, cumprindo estabelecer se a legislação nacional se mostra, ou não, contrária ao disposto no artigo 63.º do TFUE, por via da introdução de um tratamento discriminatório entre fundos de pensões residentes em Portugal e fundos de pensões estabelecidos noutros Estados Membros da União Europeia.

Por decisão proferida a 6 de Outubro de 2011, no âmbito do processo 403/09, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) considerou, precisamente, que ao tributar os dividendos auferidos por fundos de pensões não residentes a uma taxa superior à que incide sobre dividendos por fundos de pensões residentes em território português, Portugal não cumpriu com as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 63.º do TFUE, herdadas do artigo 40.º do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu, de 2 de Maio de 1992.

No geral, seguimos o entendimento plasmado no referido aresto, que, de resto, determinou que Portugal adaptasse a legislação nacional de modo a eliminar tal discriminação. Em resultado, foi acrescentado um n.º 7 ao artigo 16.º do EBF (por via do artigo 144.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, a qual, porém, segundo invoca a Requerida, só passou a ser aplicável a partir de 1 de Janeiro de 2012, não sendo de aplicação retroactiva).

Contudo, e conforme bem refere a própria Requerida no seu acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, independentemente da entrada em vigor da norma, o certo é que a legislação anterior encontrava-se em profunda violação com o Direito da União, em face da restrição imposta pela redacção anterior do artigo 16.º do EBF. Assim, as retenções na fonte efectuadas com base na redacção anterior da norma encontram-se feridas de ilegalidade.

E é a própria Requerida que afirma, no mesmo acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, que “De facto se considerarmos que as retenções efectuadas antes da redacção dada ao artigo 16.º do EBF pelo artigo 144.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro estavam feridas de ilegalidade, teremos de considerar que o apuramento de imposto então efectuado ficou ferido de erro, como tal enquandrando-se o pedido de revisão oficiosa na segunda parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT”.

No entanto, não obstante ter reconhecido a ilegalidade do acto de retenção na fonte à taxa liberatória, a Requerida, ainda assim, indeferiu o pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente por falta de identificação da entrega do imposto nos cofres do Estado.

Posto isto, cumpre agora determinar se, tal como alega a Requerente, se verificou ou não um vício de violação de lei por erro quanto à apreciação da prova da retenção do imposto por parte da Requerida, bem como por violação das regras de repartição do ónus da prova que levaram à desconsideração da documentação apresentada pela Requerente e, consequente, à emissão de acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.

Tendo em conta a apreciação da Requerida, esta considera que de facto a Requerente apresentou documentos contendo a referência à retenção na fonte do imposto, sem que, porém, em nenhum destes tenha procedido à identificação da guia ou guias de retenção na fonte do imposto. Assim, no entender da Requerida, a falta de identificação da guia de entrega do imposto nos cofres do Estado impede a emissão do respectivo cheque de restituição do imposto.

Contudo, como resulta da matéria do procedimento administrativo a Requerente entregou junto da Requerida as declarações emitidas pela “C...” e pela “D...” contendo a relação dos dividendos pagos pelas mesmas à Requerente, na qualidade de intermediários financeiros (Cfr. supra,ponto 16., dos factos provados).

Tais declarações comprovam a efectiva retenção na fonte de IRC. Acresce que a Requerente juntou documentação referente a declarações emitidas pelo Banco E... à D..., que actuava como intermediário financeiro na compra das acções que deram origem ao pagamento dos referidos dividendos. Da análise de tal documentação resulta que tanto os códigos ISIN (Número Internacional de Identificação de Valores Mobiliários), como as datas relevantes para efeitos do pagamento dos dividendos, são coincidentes com a informação constante daquela declaração da D... .

De referir que pese embora o montante dos dividendos indicados na referida declaração não seja inteiramente coincidente, tal divergência resulta do facto de a D..., enquanto intermediário financeiro, prestar serviços não só à Requerente mas também a outros seus clientes. Assim, os dividendos recebidos pela D... não dizem respeito apenas a acções da Requerente mas também de outras entidades.

Assim, embora a Requerente não tenha conseguido apresentar à Requerida as guias de retenção na fonte solicitadas, tal sucedeu apenas porque as mesmas não lhe foram disponibilizadas pelas entidades que as possuem, não obstante ter feito prova plena da retenção que lhe foi efectuada (e que não parece ser, em si própria, posta em causa pela Requerida).

Posto isto, resulta do artigo 74.º da LGT, sob a epígrafe “Ónus da prova” que:

“1. O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.

2. Quando os elementos de prova dos factos estiverem em poder da administração tributária, o ónus previsto no número anterior considera-se satisfeito caso o interessado tenha procedido à sua correcta identificação junto da administração tributária. (...)”.

Decorre da citada norma que a Requerida tinha, no presente caso, o ónus de demonstrar a factualidade que a levou a desconsiderar a documentação entregue pela requerente como prova da retenção e, sobretudo, como prova, pelo menos, indiciadora da entrega do imposto retido nos Cofres do Estado (já que é sobretudo isso que a Requerida exigia da Requerente, como substituída tributária).

Ora, in casu, a Requerida poderá ter total acesso às guias de retenção na fonte e entrega, mediante uma consulta ao seu próprio sistema informático visto que, das declarações enviadas pela Requerente consta o NIF do Banco. É bem verdade que a Requerente não precedeu à entrega das guias à AT conforme lhe fora solicitado. Contudo, de acordo com o princípio do inquisitório compete à AT a realização de todas as diligências que se afigurem necessárias para a boa descoberta da verdade material. Assim, não obstante a requerida não ter conseguido obter tais guias, a AT encontra-se capaz de ter acesso a informação que lhe permitia confirmar a efectiva entrega do imposto. Logo, da conjugação dos princípios do inquisitório, da cooperação e da verdade material, parece-nos manifesto que, a AT não cooperou de forma recíproca com a Requerente, não contribuindo nem procurando a descoberta da verdade material que lhe incumbe. A única preocupação da AT foi apenas uma questão meramente formal, não observando as exigências legais que sobre esta recaem, ou seja, as constantes dos artigos 58.º, 59.º da LGT e 48.º, 50.º e 69.º alínea e) do CPPT.

Em face do exposto, procede integralmente o pedido de pronúncia arbitral da Requerente, no que respeita à existência de um vício de violação de lei por erro na apreciação da prova da retenção do imposto, bem como por violação das regras de repartição do ónus da prova.

Assim, e conforme anteriormente decidido no Processo arbitral n.º 91/2012-T a “procedência integral dos vícios de violação de lei prejudica o conhecimento dos vícios de forma e procedimentais, como decorre da ordem do conhecimento de vícios prevista no n.º 2 do artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária”.

Na verdade, o estabelecimento de uma ordem de conhecimento de vícios só se justifica pela circunstância de a eventual procedência dos vícios de conhecimento prioritários tornar desnecessário o conhecimento dos restantes, pois, se fosse sempre necessário conhecer todos os vícios seria irrelevante a ordem do seu conhecimento.

Pelo exposto, procedendo os vícios acima expostos, fica prejudicado o conhecimento dos vícios de violação do direito de audiência prévia, de violação dos princípios do inquisitório, da cooperação e da verdade material já analisado em conjunto com os dois vícios anteriores, bem como a invocada inconstitucionalidade.

Juros indemnizatórios

A Requerente pede ainda que seja determinado o pagamento de juros indemnizatórios por considerar que o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, objecto do presente pedido, resulta de erro de aplicação dos pressupostos de facto e de direito de que a lei faz depender a correcção proposta pela Administração tributária, sendo, por conseguinte, o erro em questão inteiramente imputável à Administração tributária.

O presente tribunal é competente para analisar a questão da eventual condenação da Administração tributária a juros indemnizatórios tal como disposto na alínea b) do artigo 24.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária na medida em que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária[2].

Já nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” mais não é do que o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

A doutrina também tem defendido que se enquadra no âmbito das competências dos tribunais arbitrais a fixação dos efeitos das suas decisões, nos mesmos termos previstos para a impugnação judicial, designadamente, quanto à condenação em juros indemnizatórios ou à condenação por indemnização por garantia indevida (Cf. Carla Castelo Trindade (2016), “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado”, 121 e Jorge Lopes de Sousa (2013), “Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária”, 116).

Foi também esse o entendimento do tribunal arbitral constituído no âmbito do processo n.º 66/2013-T, onde estavam também em causa pedidos de reembolso e condenação no pagamento de juros indemnizatórios. Concluiu aquele tribunal que:

“Assim, à semelhança do que sucede nos tribunais tributários em processo de impugnação judicial, este Tribunal é competente para apreciar os pedidos de reembolso da quantia paga e de pagamento de juros indemnizatórios.

No caso em apreço, é claro que estes pedidos têm de proceder, já que as liquidações são anuladas e o erro de que enfermam é imputável à Administração Tributária, pelo que o direito a juros indemnizatórios e (sic.) reconhecido pelo artigo 43.º, n.º 1 da LGT.”

Assim, concluindo este tribunal que o acto de retenção na fonte de IRC referente ao ano de 2009 é ilegal, sendo também ilegal, até por inerência, o acto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, por vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de direito, que justifica a sua anulação, nos termos do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo, aplicável nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e 2.º, alínea c) da LGT, procede também o pedido da Requerente a juros indemnizatórios contados desde a data em que ocorreu a da decisão que indeferiu o pedido de revisão oficiosa.

V. DECISÃO

Termos em que se decide neste tribunal arbitral:

a) Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b) Declarar a ilegalidade e consequente anulação do acto de indeferimento da revisão oficiosa, proferido, com delegação de competências, pela Exma. Senhora Subdirectora-Geral, em 06/06/2017, e notificado à Requerente em 14/06/2017 e, bem assim, dos actos de retenção na fonte de IRC, referentes aos dividendos distribuídos à Requerente relativos ao exercício de 2009, no montante apurado de 148.607,20 Euros ordenando-se o respectivo reembolso;

c) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT desde a data da decisão que indeferiu o pedido de revisão oficiosa.

VI. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em 148.607,20 euros nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VII. CUSTAS

Não há lugar à fixação de custas [artigos 6º-b) e 4º-1, a contrario, do RJAT]

Notifique-se.

 

Lisboa, 25 de Maio de 2018

 

O Tribunal Arbitral Coletivo

 

José Poças Falcão

(Árbitro Presidente)

 

Carla Castelo Trindade

(Árbitra Adjunta)

 

 

Manuel Pires

(Árbitro Adjunto e que anexa declaração de voto de vencido)

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138.º, número 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

1.Votei vencido, por entender verificar-se a incompetência material do tribunal arbitral. O art. 1º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, estabeleceu “a arbitragem como meio

alternativo de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”. No entanto,” A vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos” (art. 4° n° 1 do citado Decreto-Lei). Daí, diferentemente do pretendido às vezes, não corresponder à lei a adesão genérica, abstracta, incondicional e irrestrita à arbitragem. mas sim a adesão à arbitragem com limitações admissíveis legalmente. Em conformidade, na Portaria n° 112-A/2013, de 22 de Maio, estabeleceu- se a vinculação da agora AT à jurisdição dos tribunais arbitrais (artigos 1º e 2º proémios) “com excepção das

(….) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamentos por conta, que não tenham sido precedidos de recurso de via administrativa nos termos dos artigos 131º a 133º do Código de Procedimento e de Processo Tributário” [citado artigo 2º alínea a)]. A adesão , pois, “ a este mecanismo de resolução alternativa de litígios “ foi “ nos termos e condições aqui [na citada portaria] estabelecidos, atendendo à especificidade e valor das matérias em causa”, não se podendo, assim, invocar a plenitude do carácter alternativo da arbitragem com a impugnação, visto terem sido permitidas legal e expressamente, bem como estabelecidas limitações a que se tem necessariamente de atender, qualquer que seja a natureza atribuída à portaria, até pela relevância redobrada, no caso, por, não obstante ser, em geral, excepção a apreciação do tipo agora em causa, operar-se o retorno à possibilidade da competência, no caso de se cumprir algo que, sem ele, repete-se, estaria fora do campo da arbitragem, isto é, está-se perante uma excepção à excepção. A limitação, no caso sob julgamento, é a precedência da reclamação graciosa e não “o recurso à via administrativa” em geral referido, mas imediatamente limitado. De outro modo porque se acrescentou algo ao recurso de tal via? Seria uma inutilidade. Como é possível entender-se que a norma correspondente permite a afirmação de obediência ao preceito segundo o qual “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” ( artigo 9º nº.2 do CC)? De outro modo, considerando unicamente o prius ilimitado, qual o efeito do posterius, constituído pela restrlção? E é porque existe especificidade e não generalidade que não é aceitável a ideia de que o desejado foi qualquer tipo de apreciação prévia pela Administração de algo por ela ainda não considerado, a ser submetido a entidade fora do seu âmbito, e não é aceitável porque houve especificação estabelecida pela norma, houve limitação da via a utilizar para o efeito. Aliás, a limitação é ainda mais ostensiva quando o artigo 124º da Lei 3-B/2020, de 28 de Abril, a lei de autorização da arbitragem, refere, no âmbito das possibilidades do objecto do processo, os actos” de indeferimento total ou parcial de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão de actos tributários, os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação”, redacção muito mais ampla do que a acolhida finalmente. Uma eventual diferente vontade do legislador não foi de modo algum explicitada, pelo contrário, a limitação ostensivamente acrescentada é reveladora da falta daquela vontade, não sendo de recepcionar a presunção de um julgador sem perícia ou distraído (artigo 9º nº. 3 do CC). É certo estarem ultrapassados desde há muito o brocardo in claris non fit interpretatio, mas a extensão da letra da lei, o que ocorreria com a interpretação pretendida, só é admissível por razões claras e determinantes, o que não ocorre, visto nem sequer haver quaisquer razões, atento a reclamação graciosa e a revisão (oficiosa) constituírem procedimentos diversos quer pela iniciativa (artigos 68º do CPPT e 78º da LGT), quer pelos objectivos ( idem), quer pelos prazos (artigos 70º do CPPT e 78º da LGT) quer pelo decisor (artigos 75º do CPPT, 78º da LGT e 6º n. 4 do Decreto-lei nº 433/99), quer pelos efeitos ( artigos 68º do CPPT e 79º da LGT), sendo relevantes, no caso em apreciação, os prazos e o decisor, sendo, portanto, totalmente forçada a respectiva equiparação que não pode ser ditada por uma mera identidade entre a revisão e a reclamação resultante de ambas proporcionarem a possibilidade de apreciação prévia por parte da AT, visto as diferenças assinaladas com interesse no presente âmbito e nunca consideradas, interpretação não abrangente, todavia, que não elimina essa possibilidade de apreciação. Portanto, não é indiferente o recurso a qualquer das duas vias, mormente no relativo à diferença concernente à entidade de grau hierárquico distinto que proferirá a decisão, não se tratando obviamente de se exigir a correspondente cumulação, visto o legislador ter optado apenas por uma: a reclamação graciosa. Como resultado do que se escreveu, não é admissível, seria mesmo incongruente, que a lei, depois de explicitar a limitação após a menção genérica do “recurso à via administrativa”, incluísse implicitamente a perfeita equiparação, tendo em mente a interpretação da disposição relevante conforme a jurisprudência no âmbito da impugnação judicial - artigo 131º do CPPT, argumento consagrando, como outros, a tendência inaceitável de se pretender cobrir a arbitragem com regras de outros institutos, mesmo em confronto com as específicas regras da referida arbitragem. Portanto, não basta, para sustentar a opinião contrária, a mera remissão para o artigo.131º do CPPT. Não existe, pois, razão para se desconhecer a reserva formulada, que se considere inequívoca a inclusão da revisão, ferindo, com esse desconhecimento e inclusão, a liberdade e a opção feita, liberdade e opção que legal e claramente conduziram a uma restrição do processo arbitral face à impugnação, ao seu carácter alternativo, liberdade reconhecida pelo decreto-lei e concretizada pela portaria, daí não se poder imputar a esta ilegalidade de qualquer grau. O contrário seria a ampliação da vinculação limitada da arbitragem, limitação que claramente foi permitida e estabelecida, vinculação não existente no caso da impugnação, limitação que poderia até ter sido mais ampla, dado o disposto no decreto-lei sob referência, convindo bem sublinhar que, com o carácter acolhido, não é impossibilitada “a arbitragem como meio alternativo da resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”, como mais um elemento da tutela dos interesses do contribuinte , de reforço, portanto, da sua tutela, visto ser possível a arbitragem, o que antes não sucedia, não sendo igualmente invocável a negação do princípio do acesso ao direito e do direito do contribuinte à tutela jurisdicional efectiva, unicamente porque não lhe foi concedida a escolha que pode existir noutros domínios mas não neste, pelos motivos aqui amplamente referidos e assaz justificados. De outro modo é situar incompreensivelmente o raciocínio num momento anterior ao das limitações, obnibulando-as totalmente contra legem Também não pode, pois, ser considerado violado o artigo 78º da LGT, por apenas não se ter admitido, no caso, a via nele estabelecida, tendo, porém, sido admitida legalmente outra, não existindo algo que tivesse impedido a via seguida, sendo, pelo contrário, admitida.

Ainda invocar uma não concordância do género de palavra (“precedidos” em vez de” precedidas”, porque referida a pretensões) como algo probatório da falta de rigor na redacção do preceito sob análise, conduzindo a outra “deficiência” que seria a aposição da reclamação à via administrativa em geral, aposição que, segundo a mesma opinião, seria desnecessária, é algo que, pela comparação feita, não envolve comentário prolongado, visto ser suficiente atentar serem os dois casos qualitativamente bem díspares, sem réstea de comparabilidade. A exigência restrita é clara, não existe qualquer imperfeição, não esquecendo que “na fixação do sentido e do alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador considerou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (artigo 9º n°3 do CC). De tudo resulta não se estar face à uma mera interpretação literal, visto o circunstancialismo que rodeou a criação da norma e a sua ratio demonstrarem bem o afirmado. No sentido sustentado, afigura-se o que o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa ensinou em 2011:”De harmonia com o disposto na no art. 2º, alínea a), da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, relativamente a atos de autoliquidação, a Administração Tributária apenas se vinculou a jurisdição dos tribunais arbitrais se o pedido de declaração da ilegalidade tiver sido precedido de recurso à via administrativa, isto é, de reclamação graciosa. Por isso, se o sujeito passivo pretender apresentar um pedido de declaração de ilegalidade perante um tribunal arbitral, a reclamação graciosa será sempre necessária “(Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6ª edição, 2011, II volume, pág. 409; cfr., para outros tipos de casos, págs.430 e 428 ). E não se diga também, por reflectir pensamento outrora em voga e não o pensamento esclarecido actual, que a solução objecto de nosso dissenso tem uma função garantística, visto a liquidação de impostos ter natureza agressiva ou mesmo fortemente agressiva e para apoio da nossa divergência quanto a este aspecto não é necessário recorre r a Murphy e Nagel com o seu The Myth of Ownership - the taxes and justic e, Concluindo: de todo o escrito resulta que deveria ter sido decidida a incompetência material deste tribunal arbitral para apreciar o presente caso, julgando procedente a invocada excepção, não devendo, pois, ter sido conhecido o mérito do pedido. E não se diga ser pacífica a opinião contrária ou, utilizando o sentido usual, não se diga estar-se perante vox clamantis in deserto.( cfr . acórdãos nos Processos nºs 51/2012-T, 236/20113-T e 603/2014-T).

2. Também votei vencido por entender, mesmo que a excepção anterior não fosse procedente, o que não se concede, ser o tribunal incompetente quanto à matéria de reembolso consequência da procedência do pedido, considerando as disposições legais disciplinadoras do respectivo poder de julgar - nomeadamente os artigos 2º nº. 1 e 24º nº.1,

alínea b) do RJAT e Portaria nº 112-A, de 22 de Março, por força do artigo 4º nº.1 do RJAT não existindo, sem excepção, a orientação contrária. Assim, procedendo à devida interpretação do dispositivo legal, o acórdão do tribunal arbitral nº. 244/2013-T.

3.Mas, mesmo que o tribunal fosse competente, o que novamente não se concede, a decisão sobre o mérito não deveria ter adoptado a procedência do pedido, com todos os respectivos efeitos. A decisão considerou que a " questão central a dirimir" " consiste em apreciar a ilegalidade do actos de retenção na fonte efectuada a título definitivo", questão, porém, ultrapassada, porque a AT considerou, já antes do processo, a prevalência do direito da União Europeia, aliás, como é reconhecido na decisão. O problema era outro: dado o reconhecimento pela AT que o acto não deveria ter sido praticado, teria de ser provada a entrega do imposto, para este ser reembolsado, reembolso pedido pela Requerente, prova que não tendo sido feita foi o fundamento do indeferimento da revisão ( nesta sede, a competência do tribunal seria irrepreensível?). Daí também se mostrar inconsistente que se tenha decidido que a AT "tinha, no presente caso, o ónus de demonstrar a factualidade que a levou a desconsiderar a documentação entregue pela requerente como prova da retenção", visto esta - a retenção - ser anterior à entrega ao Estado da importância retida, entrega que, por seu turno, é condição do reembolso, não se estando no presente caso a exigir novamente imposto retido. Para justificar a exigência não é suficiente invocar o princípio indiscutível de não se dever, não se poder proceder ao reembolso de algo que não está provado ter sido pago, não bastando suposições? Não seria isto suficiente para a devida decisão, dada a respectiva evidência, acrescendo, no caso, ter sido verificado o incumprimento, pelo sujeito passivo, de aspectos formais? Seria não aceitável a orientação resultante do Decreto-lei nº. 42/91, de 22 de Janeiro, artigo 18º. nº 7 (então vigente), aplicável por analogia, de dever o contribuinte carrear o material probatório necessário para obter o reembolso, em situação de estraneidade, mercê de disciplina legal originariamente não doméstica, o que, no caso, se justificava redobradamente face ao inêxito da pesquisa da AT na sua aplicação informática com os elementos disponíveis ( cfr. o que foi escrito pela Requerida no artigo 61º da respectiva resposta sobre a impossibilidade a que tinha chegado com os elementos disponíveis - nunca comunicação da “entrega do imposto, nomeadamente através da entrega da Modelo 30”, não tendo sido “encontradas declarações correspondentes aos critérios fornecidos”- e que foi contestado no nº. 78 das alegações e respectiva conclusão k) da Requerente, mas remetendo a prova para documento I, que juntou com as alegações, mas de cuja leitura nada se retira sobre o assunto, o que não foi considerado na decisão). Não houve, pois, passividade da AT, ela procurou a verdade, mas a sua actuação, com os dados disponíveis, não possibilitou obter o resultado pretendido. Aliás, a Requerente não estava totalmente convicta da possibilidade de a AT poder obter os elementos da prova necessária, pois, por três vezes, afirma tal " muito provavelmente” (nºs 85 e 103, bem como conclusão m) das respectivas alegações). Foi pena que, nas alegações da AT, ela nada referisse ao contraditado, embora sem procedência, mas não o poderia fazer por desconhecer o teor do afirmado, dada a simultaneidade de alegações determinada no processo. Aliás, também relativamente à entrega do imposto, a Requerente não é totalmente assertiva quando refere "deverá ter sido entregue" (artigo 48º do requerimento inicial) ou tal " certamente" aconteceu (artigo 43º do requerimento inicial), o que, aliás, deveria ter sido também reflectido no elenco factual, dada a sua importância. Deste modo, não pode ser considerado que a prova de algo a reembolsar não foi feita por comportamento imputável à AT, dado o que esta afirmou e não poder ser procedente a negação da Requerente, dado o escrito anteriormente. Querer mais para a actuação da AT, mesmo esquecendo o princípio e a orientação assinalados e que não devem nem podem ser esquecidos, teria o alcance de as regras sobre o ónus da provado contribuinte ser praticamente subvertido, não podendo o princípio do inquisitório, o dever de colaboração e a procura da verdade material irem para além do razoável ( aliás, o artigo 74º nº 2 para inverter o ónus da prova torna necessários dois requisitos: " os elementos de prova dos factos" estarem em poder da administração tributária" e a disponibilização pelo interessado da respectiva "correcta identificação", o que, mormente o primeiro, não ocorreu).

O equilíbrio procurado pelo legislador tem de ser respeitado e, portanto, preservado pelo

intérprete. A actuação da AT tem limites, até operacionais, podendo o ilimitado ou, mesmo não sendo ilimitado, o excessivo conduzir a situações disruptivas, que o intérprete deverá conservar em mente. Como se sabe, entre as várias opiniões sobre a posição do intérprete e/ou julgador na aplicação da lei há duas posições extremas: boca da lei (Montesquieu) e livre da lei (legibus solutus), nesta última, na melhor das hipóteses, procurando corrigir soluções legais consideradas inapropriadas. Qualquer dessas posições deve ser afastada, visto a letra da lei não constituir o único elemento a considerar, quando existam outros elementos da interpretação impondo significado diverso, mas também deve existir sempre resistência à tentação de se ser substituto do legislador. Ora existe ou não princípio e/ou normativo legal regulando a restituição de impostos? Se existe, como existe, não podemos afastá-los. por exemplo, inferindo o seu contrário de declarações de privados, ainda mais não substitutos, mesmo que o contribuinte, perante a situação concreta, considere ser a solução adequada. Quanto ao aspecto da colaboração da AT, já acima escrevemos o suficiente para provar a respectiva existência. E, embora não provado o pagamento, não seria procedente também a falta de audiência prévia (aspecto não tratado na decisão, dada a razão da procedência acolhida), visto a razão da audição ser facultar ao contribuinte participar na decisão, invocando o que tem por conveniente sobre o fundamento incluído para o que vai ser decidido. Qual foi o fundamento da decisão no caso? A falta da identificação das guias. O contribuinte foi ou não ouvido, com anterioridade à decisão, sobre esse aspecto? Indubitavelmente e de modo assaz " liberal" ( cfr. artigos 76º e 77º da Resposta, não contestados e também não reflectidos totalmente no elenco factual, apesar da respectiva relevância). Sendo assim, como é, poderia afirmar-se que o direito de o contribuinte participar em tempo útil não foi respeitado? A resposta teria de ser indubitavelmente negativa. Satisfez-se a ratio legis: a possibilidade de contribuição do interessado para a decisão foi propiciada em tempo útil, o que ocorreu dado o pedido ao

Requerente, relativo às guias de pagamento, ter sido feito antes do indeferimento e com amplitude e a não satisfação desse pedido ter sido o fundamento do indeferimento.

 

 

 (Manuel Pires)

 



[1] Jorge Lopes de Sousa, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, in Guia da Arbitragem Tributária, Coord. Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, 2013, Almedina, pág. 202

2 Que estabelece, que “a Administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.