Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 373/2023-T
Data da decisão: 2024-03-14  IMT  
Valor do pedido: € 9.160,55
Tema: IMT; artigo 270.º, n.º 2, do CIRE; pessoa singular; e rendimentos da categoria B de IRS.
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SUMÁRIO:

 

I – A isenção prevista no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE é aplicável às pessoas singulares (insolventes) que (i) desenvolvam uma atividade “empresarial”; e (ii) se prove que o imóvel estava afeto à atividade empresarial.

 

II – O fundamento teleológico da isenção encontra-se no fomento e apoio à célere alienação dos bens que integram a massa insolvente, com vista à tutela dos interesses dos credores e, paralelamente, ao interesse público de restabelecimento do normal funcionamento do mundo empresarial, afetado pelo processo de insolvência.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

I - RELATÓRIO

 

  1. A...,  contribuinte n.º ..., com domicílio fiscal na Rua ..., n.º..., ..., Estoril, doravante designado por  “Requerente”,  veio  requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a); 5.º, n.º  2, alínea a); 6.º, n.º 1; e 10.º, n.º 1, alínea a),  todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente, na sequência da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa n.º ...2022... e, mediatamente, da liquidação de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (“IMT”) n.º ... . O Requerente pretende, a final, que seja anulada a liquidação de IMT, determinada a restituição do imposto que estima ter sido indevidamente pago, e a condenação da Requerida no  pagamento de juros indemnizatórios.

 

  1. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante também designada por “Requerida” ou “AT”.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor  Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) em 24 de maio de 2023 e, de seguida, notificado à AT.

 

  1. Nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2; no artigo 6.º, n.º 1 e no artigo 11.º, n.º 1, alínea b), todos do RJAT, na redação vigente, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro, que, no prazo legal, comunicou a aceitação do encargo.

 

  1. Em 13 de julho de 2023, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

  1. O Tribunal Arbitral  foi constituído em 31 de julho de 2023, tendo a Requerida sido notificada para apresentar resposta no dia 14  de agosto de 2023.

 

  1. A Requerida apresentou Resposta, em 12 de outubro de 2023 (após despacho que autorizou a prorrogação do prazo),  na qual  defendeu  que: i) o imóvel foi adquirido no âmbito de insolvência de pessoa singular e, como tal, não é aplicável o artigo 270.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (“CIRE”); e ii) a decisão da reclamação graciosa não é “inválida” por  não ter sido tomado em conta o exercício do direito de audição prévia, pois, o referido direito foi exercido de modo intempestivo. Juntou ainda o processo administrativo (“PA”).

 

  1. O Tribunal Arbitral determinou, por despacho de 9 de janeiro de 2024, a dispensa da realização da reunião a que o artigo 18.º do RJAT alude, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais, previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT. Paralelamente, perante o facto de as questões que o processo suscita estarem suficientemente debatidas nas peças processuais apresentadas pelas partes, dispensou, igualmente, a apresentação de alegações – artigo 113.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), subsidiariamente aplicável, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

  1. O Requerente veio aos autos, em 16 de janeiro de 2024 solicitar a junção de três documentos.

 

  1. A Requerida foi notificada, em 18 de janeiro de 2024, após despacho, para, nomeadamente, querendo, se pronunciar quanto ao pedido de junção; tendo-se pronunciado por requerimento de 30 de janeiro de 2024.

 

  1. O Tribunal Arbitral, por despacho de 1 de março de 2024, não admitiu  a remessa, pela Requerida,  do pedido de reclamação de créditos formulado no processo n.º .../20...T8STR, porquanto não se vislumbrou qualquer  obstáculo à sua junção pelo Requerente com o pedido de pronúncia arbitral, como também, o documento (reclamação de créditos) respeita a factos anteriores à apresentação do pedido de pronúncia arbitral, artigos 10.º, n.º 2, alíneas c) e d), 16.º, alínea c), do RJAT e artigos 99.º e 108.º, n.º 1 e 3, do CPPT.

 

  1. No mesmo despacho convidou as partes a querendo se pronunciarem sobre a eventual existência da exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar o vício de invalidade imputado à decisão de indeferimento da reclamação graciosa, porquanto, a verificar-se, obstaria ao conhecimento do mérito (nesse segmento) e teria, por consequência, a absolvição da Requerida da instância  quanto ao referido vício de invalidade da decisão da reclamação graciosa, v. artigos 16.º, n.º 1, do CPPT e 278.º, n.º 1, alínea a) e 576.º, n.º 2 do Código de Processo Civil  (“CPC”), subsidiariamente aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). 

 

  1. O Requerente veio aos autos, em 5  de março de 2024,  dizer: “[q]ue nada tem a opor que o Tribunal Arbitral se julgue incompetente para conhecer do pedido da invalidade da decisão da reclamação graciosa por não apreciação do direito de audição”.

 

Posição do Requerente

 

  1. O Requerente alega que a suprarreferida decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, mediatamente, a  liquidação de IMT são ilegais, pois padecem do vício de violação de lei.

 

  1.  Vejamos, em concreto, os fundamentos:

 

  1.  O conceito de “empresa” não é equivalente ao de “pessoa coletiva”, pois tanto pode ser titular de uma “empresa” a “pessoa coletiva”, como a “pessoa singular”;

 

  1. A referida interpretação permite, ipso facto,  a anulação da  decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, mediatamente, da liquidação em crise.

 

  1. Reforça a referida posição alegando que:

 

  1. O artigo 270.º, n.º 2, do CIRE em lado algum refere que o sujeito ativo da transmissão tenha de ser uma  pessoa singular ou uma pessoa coletiva, uma “empresa” ou não;

 

  1. O referido artigo  não distingue a qualidade do insolvente, se pessoa singular ou coletiva;

 

  1. Tratando-se da “venda” de um imóvel praticada no “âmbito da liquidação da massa insolvente”,  a sua aquisição estaria isenta de IMT.

 

  1. Defende, em terceira linha que:

 

  1. A insolvente “B... “ é, de facto, uma “empresa”, um efetivo “agente económico”, na medida em que exerce uma atividade económica de forma qualificada;

 

  1. A própria AT sempre tratou a referida insolvente como um verdadeiro “agente económico”;

 

  1. A insolvente não é, assim, um “particular”, antes é sujeito passivo de IVA, não pode deixar de ser considerada como uma empresa para efeitos do CIRE.

 

  1. Peticiona, por último,  a restituição do imposto indevidamente pago,  no montante de 9 160,55 euros, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.

 

Posição da Requerida

 

  1. A Requerida defende que o ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2022... e, mediatamente, a liquidação de IMT n.º ... não padece de erro sobre os pressupostos de facto e de direito.

 

  1. Defende, relativamente à inexistência de erro sobre os pressupostos de facto, o seguinte:

 

  1. A metade indivisa do imóvel foi adquirida no âmbito de insolvência de pessoa singular;

 

  1. A residência da insolvente era na Rua ..., n.º ..., ..., constituindo o prédio a sua habitação própria e permanente;

 

  1. A insolvente “B...” exerce a sua atividade profissional  através da sociedade “C... Unipessoal, Lda.”;

 

  1. No título de compra e venda elaborado e outorgado no âmbito do processo de insolvência n.º .../20...T8SR, a insolvente é “CB...” e não “C... Unipessoal, Lda.”.

 

  1. Já no que respeita ao erro sobre os pressupostos de direito, observa o seguinte:

 

  1. O artigo 270.º, n.º 2, do CIRE não é aplicável à hipótese sub iudice;  a isenção não abrange a alineação de prédio urbano destinado a habitação, que integra a esfera jurídica de pessoa singular.

 

  1. Não pode, de tal modo, beneficiar da isenção de IMT,  pois não ocorreu a venda de um bem integrado numa “empresa”.

 

22. Saneamento

 

O Requerente alega, nomeadamente, que a decisão da reclamação graciosa é “[n]ula ou anulável” por não ter sido considerado o direito de audição prévia do sujeito passivo.

O legislador limitou a competência dos tribunais arbitrais (artigo 2.º do RJAT) (a) à: “[d]eclaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta” e (b) “[d]eclaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais”.

Desta formulação resultam importantes limitações à competência do Tribunal Arbitral. A principal limitação - e também a mais relevante para o presente processo - é o facto de não serem arbitráveis os vícios próprios dos atos de indeferimento de reclamações graciosas, de recursos hierárquicos ou de pedidos de revisão do ato tributário porque escapam ao âmbito material da arbitragem tributária. Por outras palavras, esses atos de indeferimento só poderão ser  carreados para a jurisdição arbitral, na estrita condição de terem, eles próprios, apreciado a (i)legalidade do ato tributário que o sujeito passivo, verdadeira e efetivamente, pretende impugnar pela via arbitral, veja-se, neste sentido, Carla Castelo Trindade, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária – Anotado, Almedina, 2014, p. 70.

Ora, assim sendo, a incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar o vício (invalidade por não apreciação do direito de audição intempestivamente apresentado) imputado à decisão de indeferimento da reclamação graciosa, obsta ao conhecimento do mérito (nesse segmento) e tem, por consequência, a absolvição da Requerida da instância (repete-se quanto ao referido vício de invalidade da decisão da reclamação graciosa por não apreciar o direito de audição prévia que  o Requerente alega ter sido apresentado intempestivamente, v. artigos 16.º, n.º 1, do CPPT e 278.º, n.º 1, alínea a) e 576.º, n.º 2 do CPC, subsidiariamente aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). 

O Tribunal Arbitral declara-se, assim, incompetente para apreciar o vício de invalidade da reclamação graciosa.

 

23. Questões a Apreciar

 

  1. Se a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, mediatamente, a  liquidação de IMT   são  ilegais, por padecerem do vício de violação de lei, pois  a aquisição do prédio foi efetuada a uma “empresa”;

 

  1. Se o Requerente tem direito ao reembolso do  imposto que sustenta ter sido indevidamente pago;

 

  1. Se a Requerida deve ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios, perante a existência de “erro imputável aos serviços”.

 

II – FUNDAMENTAÇÃO

 

MATÉRIA DE FACTO

 

24. Factos com relevância para a apreciação da causa que se consideram provados

 

24.1  O Requerente adquiriu, em 28 de julho de 2022,  “metade indivisa” do  prédio urbano, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ..., da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ... .

(PA)

 

24.2 O aludido prédio destina-se a habitação e situa-se na Rua ..., n.º ..., ... .

(PA)

 

24.3 A aquisição foi efetuada no âmbito da liquidação da massa insolvente de  “B...”, contribuinte n.º ...,  no processo n.º .../20...T8STR, do juízo de Comércio (J3), do Tribunal Judicial  da Comarca de Santarém.

(PA)

 

24.4 O Requerente declarou a aquisição para efeitos de IMT, tendo, em consequência, sido emitida  a guia n.º..., no valor de  9 160,55 euros.

(PA)

 

24.5 O imposto foi pago em 26 de julho de 2022.

(PA)

 

24.6 O Requerente apresentou reclamação graciosa do ato de liquidação de IMT, em 10 de novembro de 2022, tendo-lhe sido atribuído o n.º ...2022... .

(PA)

 

24.7 O Requerente foi notificado, no dia 3 de janeiro de 2023, para, querendo, exercer o direito de audição prévia, no prazo de 15 dias.

(PA)

 

24.8 O referido direito foi exercido no dia 25 de janeiro de 2023.

(PA)

 

24.9 A reclamação graciosa foi indeferida, nomeadamente, com a seguinte fundamentação:

 

Ora, da consulta à escritura de compra e venda do imóvel, junta pelo reclamante, que deu origem à liquidação ora reclamada, verifica-se que o imóvel foi adquirido a uma pessoa singular em situação de insolvência e não a pessoa coletiva.

(PA)

 

24.10  O despacho de indeferimento expresso da reclamação graciosa foi proferido pelo Exmo. Senhor Chefe do Serviço de Finanças de ..., com fonte em delegação de competências do Exmo. Senhor Diretor de Finanças de Lisboa, no dia 20 de janeiro de 2023, tendo o Requerente assinado o aviso de receção no dia 23 de fevereiro de 2023.

(PA)

 

24.11  O Tribunal Judicial  da Comarca de Santarém reconheceu, nomeadamente, no processo n.º .../20...T8STR, do Juízo de Comércio (J3) um crédito da Fazenda Pública de IRS.

(Documento junto pelo Requerente no dia 19 de junho de 2023)

 

24.12 O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 22 de maio de 2023 (Sistema informático do CAAD).

 

25.Factos não provados

 

25.1 Que a insolvente “B...” era, à data do trânsito em julgado da sentença de insolvência, titular de rendimentos da categoria B e, paralelamente, que o prédio (melhor identificado em 24.1) estava afeto à atividade empresarial.

 

Não existem quaisquer outros factos não provados com relevo para a decisão.

 

26. Fundamentação dos factos provados e não provados

 

O Tribunal Arbitral, quanto à matéria de facto, não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada ( artigo 123.º, n.º 2,  do  CPPT, do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, nos quais se descreve a fonte utilizada para que se os dê como assentes.

Não se deram como provadas, nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

Não se deu como provado que a pessoa singular, à data do trânsito em julgado, desenvolvia uma “atividade empresarial” (com titularidade de rendimentos da categoria B) e, concomitantemente, que o prédio apreendido para a massa insolvente estava afeto à referida atividade, porquanto nenhuma prova documental que suportasse o facto foi carreada para os autos.

 

27.MATÉRIA DE DIREITO

 

A questão em dissídio nos autos encontra-se na interpretação (e delimitação do âmbito de aplicação) do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE. Em concreto, para o Requerente, o facto de a insolvente ser uma pessoa singular ou coletiva é irrelevante para a  aplicação da isenção, já para a Requerida, a  aplicação da isenção ao caso sub iudice exige que a aquisição de um imóvel seja proveniente de empresa ou de estabelecimento comercial desta.

O artigo 270.º, n.º 2, do CIRE tem a seguinte redação:

 

 

Estão igualmente isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os atos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.

 

 

A interpretação do referido artigo não tem sido pacífica, pois, existiu divergência jurisprudencial quanto à questão:  a isenção aplica-se apenas na transmissão da própria empresa insolvente ou de um seu estabelecimento enquanto universalidade de bens; ou, também é aplicável à  transmissão (venda) de ativos imobiliários da empresa?

A  resposta à questão consta do acórdão  do Supremo Tribunal Administrativo (de uniformização de jurisprudência) n.º 3/2017, de 29 de março de 2017. Todavia, não se ignora que  a questão que, neste processo, se coloca é distinta: determinar se o âmbito de aplicação desta isenção de IMT incorpora bens imóveis que integram o património de uma  pessoa coletiva (“empresa”) insolvente, ou, pelo contrário,  como também bens imóveis incorporados na massa insolvente de uma pessoa singular afetos à atividade empresarial.

Ainda assim, o fundamento teleológico da norma de isenção é fundamental para dar resposta à questão que, neste autos, se coloca. Vejamos.

A ratio encontra-se, de acordo com o referido aresto, no fomento e apoio à célere alienação dos bens que integram a massa insolvente, com vista à tutela dos interesses dos credores e, paralelamente, ao interesse público de restabelecimento do normal funcionamento do mundo empresarial, afetado pelo processo de insolvência.

Importa, agora, responder à questão objeto dos autos (tem o Requerente direito à aplicação da isenção?), tendo presente o fundamento teleológico subjacente à isenção prevista no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE.

No Direito Fiscal vigora um conceito de “empresa” que integra aquelas como tal consideradas no âmbito do Direito das Sociedades Comerciais ou em segmentos específicos do Direito Comercial e, paralelamente, a atividade de pessoas singulares que seja geradora de rendimentos da categoria B de IRS[1].

A aplicação da isenção em análise não fica automaticamente afastada pela circunstância de estarmos perante uma insolvência de pessoa singular, na medida em que há pessoas singulares que desenvolvem atividades empresariais e devem ser consideradas “empresa” para efeitos da norma em dissídio.

Deste modo, importa perceber se, à data da insolvência, a pessoa singular desenvolvia uma atividade de natureza industrial, comercial ou agrícola, isto é, se auferia rendimentos provenientes da categoria B de IRS. Ressalta-se que é fundamental demonstrar que o imóvel integra o “ativo da empresa”.

Cumpre, por isso apurar se o Requerente, sobre quem incide o ónus da prova dos pressupostos da isenção  de que pretende beneficiar, logrou demonstrar que o imóvel em causa integrava o “ativo da empresa”.

Sustenta a jurisprudência[2] a este respeito:

 

 

Assim, a afetação de bens à atividade empresarial – e que, consequentemente, integrarão o ativo da empresa - terá, necessariamente de consubstanciar uma afetação formal, definida numa data concreta, que resulte do tratamento contabilístico e fiscal conferido a esse bem. Esta exigência justifica-se pela confusão que, não raras vezes, se gera entre os bens que integram o património privado e os bens que integram o património da empresa, aliada à necessidade de assegurar, com o necessário grau de fiabilidade, que o bem está ao serviço da atividade empresarial. Esta conclusão, extrai-se, inclusive, de alguns artigos do CIRS que se referem à “afetação de bens à atividade empresarial” e que, para o que aqui nos importa, contribuem para densificar esse conceito.

 

Assim, a prova de que o imóvel objeto de venda no âmbito do processo de insolvência se encontrava afeto à atividade empresarial do Insolvente marido, empresário em nome individual, passaria por demonstrar que o imóvel se encontrava registado no ativo imobilizado da contabilidade de empresário do Insolvente, com as consequências que daí decorrem, designadamente, ao nível do registo das depreciações e eventual relevância em sede de mais ou menos-valias, assim como pela demonstração de que os encargos relativos àquele bem eram reconhecidos no âmbito da atividade empresarial do Insolvente. (nosso sublinhado)

 

Dispõe o artigo 74.º, n.º 1,  da LGT que: “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”. Este será, salvo melhor opinião, o primeiro dado a ter em conta na apreciação da questão decidenda.

No caso sub iudice, pretende o Requerente prevalecer-se do benefício fiscal previsto no artigo 270.º, n.º 2,  do  CIRE. Daí que, nos termos do citado artigo 74.º, n.º 1,  da LGT lhe assista o ónus de provar os pressupostos do benefício de que pretende usufruir.

Sucede, no entanto que, o Requerente não fez prova de que o prédio estava afeto à atividade da insolvente, pelo contrário, há uma total omissão nos autos de que a insolvente era titular de rendimentos da categoria B (à data do trânsito em julgado da sentença de insolvência) e, concomitantemente, se o prédio se encontrava afeto à atividade empresarial desenvolvida.

Assim, a prova de que o imóvel objeto de venda, no âmbito do processo de insolvência, se encontrava afeto à atividade empresarial da insolvente, passaria por demonstrar que era titular de rendimentos empresariais e, em segundo lugar, que o imóvel se encontrava registado no ativo imobilizado, com as consequências que daí decorrem, designadamente, ao nível do registo das depreciações e eventual relevância em sede de mais ou menos-valias, assim como pela demonstração de que os encargos relativos àquele bem eram reconhecidos no âmbito da atividade empresarial da insolvente.

Ora, não se provou que, a insolvente, pessoa singular, desenvolvia uma atividade empresarial (nos termos supra expostos)  e, muito menos, que o prédio estivesse afeto à referida atividade, circunstâncias que, repete-se, devem ser valoradas contra quem tinha o ónus da prova do direito ao benefício fiscal.

Acrescenta-se que os documentos carreados para os autos não permitem, sem margem para dúvidas,  provar o exercício da referida atividade ou a afetação do bem à atividade empresarial.

Em resumo, perante a  ausência de prova, por parte do Requerente, i) de que a insolvente, pessoa singular, desenvolvia uma atividade empresarial à data do trânsito em julgado da declaração de insolvência; e ii) que o imóvel adquirido fazia parte do ativo da empresa, fica por demonstrar o preenchimento dos pressupostos de que depende a aplicação da isenção de IMT, prevista no 270.º, n.º 2, do CIRE, motivo pelo qual não merece qualquer censura a liquidação  impugnada, mantendo-se, por isso, na ordem jurídica.

 

Restituição do imposto que considera indevidamente pago e condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios

 

O  Requerente pediu ainda a restituição do imposto e a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.

Ora, tendo em consideração que se julgou improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, em virtude de não se imputar qualquer ilegalidade, quer ao indeferimento expresso da reclamação graciosa (quando aprecia o vício de erro sobre os pressupostos de facto e de direito da liquidação em crise), quer à liquidação de IMT, não se pode considerar que ocorreu um qualquer erro imputável aos serviços que justifique a plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido praticado o ato de liquidação nos termos anteriormente referidos. Assim sendo, a liquidação de IMT é legal,  não ocorrendo  erro imputável à AT, pois não foi pago qualquer montante de imposto que deva ser reembolsado, não assistindo ao Requerente o direito ao recebimento de quaisquer juros indemnizatórios.

 

III – DECISÃO

 

Termos em que se decide:

 

  1. Reconhecer a incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar o vício de invalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa,  por não apreciação do direito de audição,  absolvendo-se, assim, a Requerida da instância (quanto ao referido vício);

 

  1. Julgar improcedente o pedido de anulação da liquidação de IMT n.º..., mantendo-se, por isso, a mesma na ordem jurídica;

 

  1. Julgar improcedente o pedido de restituição da  quantia paga, com as legais consequências;

 

  1. Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios;

 

  1. Condenar o Requerente no pagamento integral de custas arbitrais.

 

VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 9160,55 euros, nos termos do artigo 97.º - A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

CUSTAS

 

Custas no montante de 918 euros, em conformidade com o RCPAT e a Tabela I a este anexa e com os artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, a cargo do Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 14  de março de 2024

 

O árbitro,

                                                                                               

Francisco Nicolau Domingos



[1] José Casalta Nabais, Introdução ao Direito Fiscal das Empresas, 3.ª edição, 2018, pp. 15-18.

[2] Decisão arbitral n.º 19/2020-T, de 6 de janeiro de 2021.