Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 357/2023-T
Data da decisão: 2024-03-25  Selo  
Valor do pedido: € 151.307,70
Tema: Imposto do Selo – Autoliquidação. Pedido de revisão oficiosa. Erro imputável aos serviços. Sociedades de Capital de Risco. Instituição Financeira.
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Sumário:

 

As sociedades de capital de risco não se caraterizam como “instituições financeiras” para efeitos da incidência de Imposto do Selo nos termos das verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Professor Doutor Victor Calvete (árbitro presidente), Dr. Pedro Guerra Alves (árbitro vogal) e Dr. Pedro Miguel Bastos Rosado (árbitro vogal e relator), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 25 de julho de 2023, acordam no seguinte:

 

  1. Relatório

 

1. Em 15 de Maio de 2023, A...– SOCIEDADE DE CAPITAL DE RISCO, S.A., com o NIPC..., e sede na ..., n.º ....º..., ...-... Lisboa, apresentou pedido de pronúncia arbitral (PPA) ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária - RJAT), e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pretendendo obter a anulação da “decisão de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa apresentado contra as autoliquidações de Imposto do Selo emitidas e pagas nos meses de Janeiro e Julho de 2019, e Janeiro e Junho de 2020, no montante total de € 151.307,70 (cento e cinquenta e um mil, trezentos e sete euros e setenta cêntimos)”, bem como o reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios calculados à taxa legal, desde a data do pagamento de cada autoliquidação até efetivo e integral reembolso.

 

2. É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante designada por Requerida ou AT.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) em 17 de maio de 2023 e automaticamente notificado à AT.

 

4. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo Victor Calvete (árbitro presidente), Pedro Guerra Alves e Eva Dias Costa (relatora), que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5. Em 7 de julho de 2023, as partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo arguido qualquer impedimento.

 

6. Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT sem que as Partes alguma coisa viessem dizer, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 25 de julho de 2023.

 

7. Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º do RJAT, a Requerida apresentou resposta em 3 de outubro de 2023, tendo junto o “processo administrativo” no dia seguinte (adiante designado apenas por PA).

 

8. Na sua Resposta, em que só invocou excepções, a AT defendeu que:

  1. não estando em causa a apreciação da (i)legalidade dos actos de liquidação, a impugnação judicial ou pedido de pronúncia arbitral não são os meios próprios de reação”;
  2. quer da notificação efectuada à Requerente, quer, sobretudo, pelo conteúdo da decisão final do pedido de revisão oficiosa, estamos perante um acto de rejeição liminar, que NÃO comportou a apreciação da legalidade das liquidações”;
  3. a acção administrativa constitui o meio processual adequado quando o acto impugnado é relativo a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade de um acto de liquidação”;
  4. no que respeita às autoliquidações atacadas por via da revisão oficiosa, todas realizadas após 30 de março de 2016, data que marca o fim da ficção legal consagrada no n.º 2 do artigo 78.º da LGT, inexiste qualquer erro imputável aos serviços e, por outro lado, a AT não teve qualquer intervenção nas liquidações de imposto realizadas pela REQUERENTE de acordo com o quadro legal vigente, apesar daquela vir defender o seu contrário.”;
  5. não pode a REQUERENTE, com suporte numa informação vinculativa, justificar que a promoção das autoliquidações em causa se deveu a erro que possa imputar aos serviços da AT.” – informação essa que, aliás, a AT considera que já tinha “caducado, conforme o estabelecido na segunda parte do n.º 15 do artigo 68.º da LGT.” na “data dos factos tributários controvertidos”;
  6. sendo que, de resto, “a informação prestada não fixa, afinal, quaisquer obrigações para o contribuinte, seja a obrigação de pagar imposto, sejam obrigações acessórias ou instrumentais desta”, pelo que “a informação vinculativa não constitui ato que integre o processo de liquidação, logo assim porque se reporta a factos meramente eventuais”;
  7. Concluindo, portanto, que “Tratando-se de um “erro imputável” ao sujeito passivo, a administração fiscal só teria o poder/dever de promover a sua revisão se o sujeito passivo tivesse tomado a iniciativa nesse sentido “no prazo da reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade”.”, e que “o tribunal arbitral é materialmente incompetente para a apreciação de pedidos que derivem de procedimentos tributários considerados intempestivos.”;
  8. E termina invocando o Sumário da decisão proferida no processo n.º 81/2022-T do CAAD:

«I - O recurso à impugnação judicial, de que o processo arbitral tributário constitui um meio alternativo, ou à acção administrativa especial depende de o conteúdo do acto impugnado, respectivamente, comportar ou não a apreciação da legalidade do acto de liquidação.

II - Estando em causa a autoliquidação de Imposto do Selo e tendo o pedido de revisão oficiosa sido expressamente indeferido por intempestividade e sem comportar a apreciação da legalidade da autoliquidação, o meio idóneo é a acção administrativa especial e, consequentemente, o tribunal arbitral é materialmente incompetente para apreciar o mérito do pedido.».

 

9. Tendo a árbitra relatora renunciado às suas funções, o Conselho Deontológico designou como novo árbitro do tribunal arbitral coletivo Pedro Miguel Bastos Rosado, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

10. Em 17 de outubro de 2023, as partes foram notificadas da designação do novo árbitro, não tendo arguido qualquer impedimento.

 

11. Reconstituído o Tribunal com a nomeação de um novo árbitro, e tendo em conta que a Resposta da AT suscitava excepções, foi proferido despacho, em 2 de Novembro de 2023, a fixar prazo para que, querendo, a Requerente se pronunciasse.

 

12. Em 14 de Novembro de 2023 a Requerente respondeu às excepções.

 

13. Retomando argumentação que já utilizara preventivamente no PPA, a Requerente contrapôs, no essencial, que:

  1. A impugnação judicial é o meio processual adequado para discutir a legalidade do ato de liquidação – artigo 99.º do CPPT – independentemente do teor da decisão da decisão que sobre ele recaiu, ou seja, de ser uma decisão formal ou de mérito.”;
  2. Ainda que assim não o seja – o que não se concede, mas por mero dever de patrocínio se expõe – e, por tal, que se considere que o meio idóneo no caso de rejeição liminar será a ação administrativa, também esse meio processual não se aplicaria ao caso concreto dos autos.”;
  3. Depois de transcrever os excertos da fundamentação da decisão de indeferimento liminar do pedido de revisão oficiosa que foram reproduzidos na alínea c. dos Factos Provados, a Requerente invocou “o recente Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 19/05/2022, proferido no âmbito do processo n.º 00702/13.1BEPRT4, no qual se pode ler que:

(…) a utilização do processo de impugnação judicial ou do recurso contencioso (actualmente acção administrativa especial, por força do disposto no artigo 191.º do CPTA) depende do conteúdo do acto impugnado: se este comporta a apreciação da legalidade de um acto de liquidação será aplicável o processo de impugnação judicial; se não comporta uma apreciação desse tipo, é aplicável o recurso contencioso/acção administrativa especial (…)”.

  1. Invocou ainda a Requerente que “cautelosamente, sabendo do entendimento da Autoridade Tributária, a Requerente prontificou-se a liquidar e pagar o imposto que tal Autoridade consideraria devido, não perdendo, no entanto, o direito a requerer a revisão das citadas liquidações.”;
  2. E defendeu que havia erro imputável à AT porque “Tem vindo a jurisprudência arbitral* a considerar que, ao contrário do que tem sido defendido pela Autoridade Tributária, as comissões de gestão não são sujeitas a Imposto do Selo.” (*nota suprimida);
  3. Sendo esse erro imputado à Administração Tributária, por ser esse o entendimento preconizado pela própria, perante os Contribuintes e sujeitos passivo do Imposto.”;
  4. E, citando vária jurisprudência em abono, defendeu que “pode ser efetuada a revisão, mesmo que não exista erro, no sentido estrito, imputável aos serviços, caso contrário sairia frustrado o dever da Autoridade Tributária de plenamente reconstituir a legalidade ofendida, em violação do Princípio da Legalidade que deve ser observado na atuação administrativa, nos termos da Constituição e da LGT.

 

14. Para evitar que Requerente e Requerida se voltassem a pronunciar em alegações sobre matéria que o Tribunal já necessariamente decidiu quando as determina, e dando cumprimento à al. b) do n.º 1 do artigo 18.º, do RJAT (“Ouvir as partes quanto a eventuais excepções que seja necessário apreciar e decidir antes de conhecer do pedido;”), o Tribunal decidiu em 19 de janeiro de 2024 julgar improcedentes as excepções suscitadas nos termos da decisão em anexo.

 

15. Tendo ficado decididas as questões prévias ao conhecimento de mérito e não havendo testemunhas a ouvir, dispensou-se a reunião do artigo 18.º do RJAT, concedendo-se à Requerente e à Requerida a possibilidade de, querendo, apresentar alegações simultâneas no prazo de 20 dias.

 

16. Por, com as vicissitudes de tramitação referidas no Relatório, tal implicar a ultrapassagem do prazo fixado no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT para a prolação da decisão arbitral, o Tribunal determinou a prorrogação por dois meses do prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT, ao abrigo do disposto no seu n.º 2. 

 

17. As partes não apresentaram alegações.

 

 

II.        Saneamento

 

1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT.

 

2. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

3. O processo não enferma de nulidades.

 

4. O pedido de constituição do tribunal arbitral é tempestivo.

 

5. O Tribunal é competente.

 

 

III. Matéria de facto

 

1. Factos provados

 

Dão-se como provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

 

a) A Requerente é uma sociedade de capital de risco, regularmente constituída em Portugal, que tem como atividade principal a gestão de fundos de capital de risco, tendo, atualmente sob gestão os Fundos B...– FCR e C...– FCR.

 

b) No âmbito dessa atividade de gestão, a Requerente cobra semestralmente uma comissão de gestão.

 

c) Sobre a referida comissão de gestão, a Requerente procedeu à liquidação de Imposto do Selo, à taxa de 4%, pela verba 17.3.4 da TGIS, autoliquidações do Imposto do Selo emitidas e pagas nos meses de janeiro de 2019, julho de 2019, janeiro de 2020 e junho de 2020, no montante total de € 151.307,70 (cento e cinquenta e um mil, trezentos e sete euros e setenta cêntimos), subjacentes às declarações de retenção na fonte de Imposto do Selo nº ... de 2019, nº ... de 2019, nº ... de 2020 e nº ... de 2020.

(cfr. documentos n.ºs 1 a 12 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, e o PA, cujos teores se dão como reproduzidos);

 

d) Em 26 de janeiro de 2023, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa das autoliquidações de Imposto do Selo referente aos períodos supra indicados em c) (cfr. o PA, cujo teor se dá como reproduzido);

 

e) Por despacho de 9 de fevereiro de 2023 do Chefe da Divisão de Serviço Central da Unidade de Grandes Contribuintes, notificado à Requerente por carta registada expedida em 13 de fevereiro de 2023, foi decidido a REJEIÇÃO LIMINAR  do pedido de revisão oficiosa com fundamento em extemporaneidade de tal pedido (cfr. documento n.º 13 junto com o pedido de pronúncia arbitral, e o PA, cujos teores se dão como reproduzidos);

 

f) Além da fundamentação dessa intempestividade, a Informação dos serviços que serviu de base à referida decisão continha, porém, as seguintes considerações:

 

(cfr. documento n.º 13 junto com o pedido de pronúncia arbitral, e o PA, cujos teores se dão como reproduzidos);

 

g) Em 13 de maio de 2023, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

2. Fundamentação da matéria de facto dada como provada

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, als. a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT).

 

Os factos provados acima elencados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral, atrás identificados, cuja autenticidade não foi colocada em causa, no PA, e nas posições assumidas por ambas as Partes em relação aos factos essenciais, sendo as questões controvertidas estritamente de Direito.

 

 

3. Factos não provados

 

Não existem quaisquer outros factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.

 

 

  1.  Matéria de Direito

 

1. Apreciação do mérito do pedido de pronúncia arbitral

 

1.1. Posições das Partes

 

Para fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alegou, em síntese, o seguinte:

 

- que “a sujeição a Imposto do Selo está dependente da condição essencial de se tratar de comissões ou contraprestações cobradas por instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras, conforme estabelece o corpo da verba 17.3 da TGIS, nas quais a Requerente não se enquadra”;

 

- que “as ‘SCR’ - Sociedades de Capital de Risco - não se encontram tipificadas como «sociedades financeiras» na legislação nacional desde 2002, o que significa que tais comissões estão excluídas da esfera de incidência do imposto do selo, em especial da verba 17.3.4 da TGIS.”;

 

- que “a Requerente atuou no pressuposto incorreto de que se qualificava como sujeito passivo de imposto do selo nas referidas operações.”;

 

- que “(n)os termos da verba 17.3.4 da TGIS estão sujeitas a imposto do selo, à taxa de 4%, as «outras comissões e contraprestações por serviços financeiros» – incidência objetiva.;

 

- que verba 17.3.4 da TGIS  “encontra-se inserida na verba geral 17.3, a qual apenas abrange: «Operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras» – incidência subjetiva.”;

 

- que “a sujeição a imposto do selo prevista naquela verba da TGIS tem como condição essencial que a entidade que cobra a comissão corresponda a uma daquelas tipologias jurídicas.”;

 

- que “na qualidade de ‘SCR’ constituída ao abrigo do Regime Jurídico do Capital de Risco, Empreendedorismo Social e Investimento Especializado (Lei n.º 18/2015, de 4 de março) – ‘RJCRESIE’ – não se encontra abrangida pela verba 17.3 da TGIS.”;

 

- que “as ‘SCR’ não são instituições de crédito, nem sociedades financeiras”;

 

- que “o imposto do selo autoliquidado sobre as comissões de gestão cobradas pela A... ao ‘FCR’ não era legalmente devido, na medida em que não se encontram verificados os pressupostos da incidência subjetiva”;

 

- que “serão de anular, por serem ilegais, as autoliquidações de imposto do selo emitidas e pagas nos meses de Janeiro e Julho de 2019, e de Janeiro e Junho de 2020, no montante total de € 151.307,70 (cento e cinquenta e um mil, trezentos e sete euros e setenta cêntimos) sobre as referidas comissões de gestão.”;

 

- que “(n)as autoliquidações em apreço a Requerente limitou-se a seguir o entendimento preconizado pela AT, através de Parecer do Centro de Estudos Fiscais e Aduaneiros n.º 25/2013, de 26/08/2013, e da informação vinculativa n.º 4416 (com Despacho concordante da Direção de Serviços de IMT em 21-08-2013)”; 

 

- que “apesar de, como o nome indica, as autoliquidações terem sido efetuadas pela própria Requerente a AT optou por não atender ao pedido da A..., persistindo no erro”;

 

- que “a ilegalidade das autoliquidações também se deve a erro imputável à AT.”;

 

- que deverá ser reembolsada do “imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios calculados à taxa legal, desde a data do pagamento de cada autoliquidação até efetivo e integral reembolso”.

 

Na sua resposta, em que só invocou excepções, a AT alegou, em síntese, e no que respeita às questões ora a decidir, o seguinte:

 

- que “quanto às autoliquidações de Imposto do Selo atacadas por via da revisão oficiosa, inexiste imputabilidade do erro aos serviços, pois as mesmas resultaram de uma correta aplicação da lei feita à data pela ora Requerente, sem qualquer intervenção da AT”;

 

- que “tendo os atos de autoliquidação do Imposto do Selo ocorrido após a revogação do n.º 2 do artigo 78.º da LGT, a decisão da revisão oficiosa n.º ...2023... não podia ser outra que não aquela que comportou a rejeição liminar do pedido formulado naqueles autos, por se encontrar esgotado o prazo vertido no artigo 78.º da LGT para o efeito.”.

 

Já na Informação dos serviços que serviu de base à decisão de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa, a AT considerou:

 

- que  “tanto as SCRC como os próprios FCR, devem ser inseridos na categoria de “instituições financeiras””;

 

- que “as comissões em análise preenchem cumulativamente os elementos de natureza objetiva e subjetiva, previstos na verba 17.3.4. da TGIS e, em conformidade, estão sujeitas a Imposto do Selo por força do disposto no n.º 1.º do Código do Imposto do Selo.”  

 

 

1.2. Questões a decidir

 

Neste momento, a questão principal a apreciar e decidir nos presentes autos é a que se prende com saber se as comissões cobradas por sociedades de capital de risco por atividades de gestão e representação jurídica de fundos de capital de risco se encontra sujeita a Imposto do Selo nos termos das verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS).

 

Em caso de procedência do pedido de pronúncia arbitral, o tribunal terá, ainda, de decidir se a Requerente tem direito ao reembolso do imposto pago acrescido de juros indemnizatórios nos termos peticionados.

 

 

2. Da legalidade das autoliquidações de Imposto do Selo

 

Antes de mais, importa começar por dizer, como se assinalou nos acórdãos proferidos no Processo n.º 226/2018-T e no Processo 757/2020, que a isenção de IVA relativamente às operações desenvolvidas pelas sociedades de capital de risco, no pressuposto de que a sua atividade é equiparada à administração ou gestão de fundos de investimento, não implica a necessária sujeição dessa atividade a imposto do selo.

 

Com efeito, de acordo com o n.º 2 do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo (CIS), “não são sujeitas a imposto as operações sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado e dele não isentas”.

 

Todavia, essa é uma mera norma de incidência negativa da qual não pode resultar, por argumento a contrario, que todas as operações não sujeitas ou cobertas pela isenção de IVA passem a ser abrangidas pelo Imposto do Selo.

 

O n.º 1 do artigo 1.º do CIS delimita a incidência objetiva deste imposto nos seguintes termos:

 

“O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens”.

 

Assim, a norma que delimita pela positiva a incidência objetiva do Imposto do Selo é a do n.º 1 do artigo 1.º do CIS, pelo que a sujeição ao imposto por parte de sociedades de capital de risco depende de a sua atividade se encontrar enquadrada em qualquer dos factos ou situações jurídicas previstas na Tabela Geral do Imposto do Selo.

 

No caso ora em apreciação estão em causa, especificamente, as verbas 17.3 e 17.3.4 da TGIS, cujo teor é o seguinte:

 

“17.3 - Operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou outras entidades a elas legalmente equiparadas e quaisquer outras instituições financeiras – sobre o valor cobrado: […]

17.3.4 – Outras comissões e contraprestações por serviços financeiros, incluindo as taxas relativas a operações de pagamento baseadas em cartões …… 4%”.

 

Daqui resulta que é devido Imposto do Selo por comissões e contraprestações cobradas por serviços financeiros, desde que se trate de operações realizadas por ou com intermediação de instituições de crédito, sociedades financeiras ou equiparadas e outras instituições financeiras.

 

Deste modo, para que o Tribunal possa concluir, no caso em análise, que é devido Imposto do Selo, tem de se verificar o elemento subjetivo contido na verba 17.3 – a Requerente, enquanto sociedade de capital de risco, tem de ser qualificada em alguma das categorias aí elencadas – e, cumulativamente, tem de se verificar o elemento objetivo, contido na verba 17.3.4 – as comissões cobradas têm de dizer respeito à prestação de serviços financeiros.

 

Cabendo decidir, cumpre desde já referir que a questão de direito em discussão no presente processo foi já extensa e detalhadamente analisada pela jurisprudência arbitral, que deve aqui ser ponderada de forma a garantir uma tutela efetiva do princípio da segurança jurídica, que encontra reflexo no n.º 3, do artigo 8.º do Código Civil onde se determina que “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.

 

Neste ponto merecem destaque, as decisões arbitrais proferidas nos Processos nºs 757/2020-T, de 27 de outubro de 2021, e 228/2023-T, de 19 de outubro de 2023.

 

Conforme é afirmado no acórdão arbitral proferido no processo n.º 757/2020-T:

“Começando pela análise deste último requisito, deve fazer-se notar que as sociedades de capital de risco, que constituíam uma das espécies de sociedades financeiras segundo o disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea h), do Regime Jurídico das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RJICSF), na sua redação originária, perdeu esse qualificativo por efeito da revogação dessa disposição, operada pelo Decreto-Lei n.º 319/2002, de 28 de Dezembro, que alterou o regime jurídico das sociedades de capitais de risco, que então constava do Decreto-Lei n.º 433/91, de 7 de Novembro.

No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 319/2002, a descaraterização das sociedades de capitais de risco como sociedades financeiras é assinalada como um dos “traços mais salientes do novo regime” e encontra-se justificada nos seguintes termos:

As sociedades de capital de risco deixam de ser qualificadas como sociedades financeiras. Tal alteração é agora viabilizada pelo facto de as sociedades de capital de risco deixarem de estar autorizadas a praticar atividades exclusivas de instituições de crédito e sociedades financeiras, como seja a participação na colocação de valores mobiliários. Em consequência, e à semelhança do que já acontece em outros países europeus, as sociedades de capital de risco passam a estar unicamente sujeitas a registo junto da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários CMVM;

A modificação do estatuto das sociedades de capital de risco relaciona-se com a proibição, estabelecida no artigo 10.º, n.º 1, alínea d), daquele diploma legal, de “concessão de crédito ou prestação de garantias, sob qualquer forma ou modalidade, exceto em benefício de sociedades em que participem”, proibição que se manteve nos diplomas que sucessivamente vieram regular o regime jurídico do capital de risco, como consta do artigo 7.º, n.º 3, alínea d), do Decreto-Lei n.º 375/2007, de 8 de Novembro, e do artigo 10.º, n.º 2, alínea d), da Lei n.º 18/2015, de 4 de Março. E é igualmente consentânea com o objeto social das sociedades de capital de risco, que se encontra circunscrito à realização de investimento em capital de risco e à gestão de fundos de capital de risco, e a que se encontra vedado a realização de operações não relacionadas com a prossecução do seu objeto social e a respetiva política de investimentos (artigos 9.º, n.ºs 1 e 2, e 10.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2015, disposições que têm correspondência no regime jurídico anteriormente definido nos Decretos-Lei n.º 319/2002 e n.º 375/2007).

Resta acrescentar que a norma do artigo 6.º, n.º 1, alínea h), do RJICSF não foi repristinada, mantendo-se a sua revogação, quer na atual redação do RJICSF, quer na redação vigente à data em que ocorreram os atos tributários de autoliquidação de imposto do selo, revogação que, entretanto, se estendeu às sociedades gestoras de fundos de investimentos e às sociedades gestoras de fundos de titularização de créditos (cfr., RJICSF na versão da Lei n.º 54/2021, de 13 de Agosto).

Tendo havido um claro propósito legislativo de excluir as sociedades de capital de risco do conceito de sociedades financeiras - o que se encontra explicado pelo seu próprio objeto social e a proibição da prática de atividades exclusivas das instituições de crédito -, não faz qualquer sentido, no plano da hermenêutica jurídica, que se pretenda qualificar essas mesmas entidades como sociedades financeiras com base numa interpretação analógica a partir de elementos interpretativos que provêm de outros lugares do sistema.

A Requerida alega, referindo-se ao regime jurídico do capital de risco aprovado pelo Decreto-Lei n.º 375/2007, entretanto revogado, que, nos termos do seu artigo 12.º, n.º 2, a "a gestão de Fundos de Capital de Risco pode ser exercida por sociedades de capital de risco, por sociedades de desenvolvimento regional e por entidades legalmente habilitadas a gerir fundos de investimento mobiliário fechados", e essas entidades são "sociedades financeiras", nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 6.º do RGICSF, pelo que não existe razão válida para sujeitar ao imposto de selo as comissões de gestão cobradas pelas sociedades de desenvolvimento regional e as sociedades gestoras de fundos de investimento e não as comissões de gestão cobradas pelas sociedades de capital de risco.

Importa notar, em primeiro lugar, que não estamos a discutir, no presente processo, a sujeição a imposto do selo de comissões eventualmente cobradas pelas sociedades de desenvolvimento regional ou sociedades gestoras de fundos imobiliários, mas antes a qualificação das sociedades de capital de risco como instituição financeira, e, mais especificamente, como sociedade financeira. E o que se constata é que as sociedades de desenvolvimento regional continuam a ser tidas como sociedades financeiras (artigo 1.º. n.º 1, alínea b), subalínea vii), do RJICSF), enquanto que as sociedades de capital de risco deixaram de ter esse qualificativo por efeito da revogação da alínea h) do n.º 1 do artigo 6.º do RJICSF operada pelo Decreto-Lei n.º 319/2002 (o que é igualmente aplicável às sociedades gestoras de fundos de investimento, a que se referia a subalínea vi) do n.º 1 do artigo 1.º RJICSF, que foi também revogada).

Estando em causa a incidência subjetiva do imposto do selo em função da qualificação do sujeito passivo como sociedade financeira, é patente que não é possível caracterizar como sociedade financeira uma instituição que deixou de ser considerada como tal pelo RJICSF, com base num mero argumento de analogia com uma outra entidade que continua a ser tida pelo RJICSF como uma sociedade financeira.

Como se sabe, o recurso à analogia apenas tem lugar quando se verifiquem casos omissos relativamente aos quais se torne necessário aplicar as normas que diretamente contemplem casos análogos e justifica-se por uma razão de coerência normativa ou de justiça relativa de modo a assegurar um tratamento semelhante para conflitos de interesses semelhantes.

É claro que não existe nenhuma lacuna suscetível de ser preenchida por via analógica quando o legislador optou deliberadamente por excluir as sociedades de capital de risco da categoria de sociedades financeiras, revogando a disposição legal que anteriormente previa essa qualificação.

Acresce que o n.º 4 do artigo 11.º da LGT proíbe a integração analógica de lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República, e, no caso vertente, está justamente em causa uma norma de incidência subjetiva de imposto que se enquadra na reserva parlamentar, sendo certo que o Código do Imposto do Selo foi aprovado pela Lei n.º 159/99, de 11 de setembro.

E, por conseguinte, encontra-se vedado ao intérprete a integração por meio de analogia relativamente à referida disposição da verba 17.3 da TGIS.

Um outro argumento que é utilizado pela Autoridade Tributária prende-se com o disposto no artigo 30.º do Código dos Valores Mobiliários, que, sob a epígrafe “Investidores profissionais”, no seu n.º 1, alínea f), considera como investidores profissionais “outras instituições financeiras autorizadas ou reguladas, designadamente entidades com objeto específico de titularização, respetivas sociedades gestoras, se aplicável, e demais sociedades financeiras previstas na lei, sociedades de capital de risco, fundos de capital de risco e respetivas sociedades gestoras”.

Como se explicita no acórdão proferido no Processo n.º 399/2019-T, a referida norma limita-se a classificar as sociedades de capital de risco como investidores profissionais, a par de diversas outras entidades, como instituições de crédito e empresas de investimento, em vista aos deveres de conduta que essas entidades se encontram obrigadas no âmbito do mercado dos valores mobiliários, em consonância com as diretivas europeias.

Não é possível extrair dessa disposição, com um campo de aplicação específico, a conclusão de que essas entidades são consideradas como instituições financeiras para efeito de incidência de imposto do selo, tanto mais que a verba 17.3 da TGIS se refere a operações realizadas com a intermediação de instituições financeiras ao passo que as sociedades de capital de risco se encontram excluídas de qualquer atividade de intermediação financeira.

(…)

As sociedades de capital de risco não podem entender-se, por conseguinte, como instituições financeiras para efeito do disposto nas verbas 17.3 e 17.4 da TGIS, pelo que a Requerente não se encontrava sujeita a imposto do selo relativamente às comissões cobradas por atividades de gestão e representação jurídica dos fundos de capital de risco.

Não se verificando um dos requisitos de que depende a incidência do imposto, não se torna necessário averiguar se os serviços prestados pela Requerente se caracterizam, para o aludido efeito, como serviços financeiros.“

 

Tendo presente a jurisprudência acabada de citar, à qual adere este Tribunal Arbitral, conclui-se, sem necessidade de mais desenvolvimentos, que não de verifica o pressuposto subjetivo, contido na verba 17.3, de que depende a incidência do Imposto do Selo.

 

Ou seja, as sociedades de capital de risco não se caraterizam como “instituições financeiras”, para efeito da incidência de Imposto do Selo nos termos das verbas 17.3 e 17.3.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo, pelo que a Requerente não se encontrava sujeita a Imposto do Selo relativamente às comissões cobradas por atividades de gestão e representação jurídica dos fundos de capital de risco.

 

Assim sendo, não se verificando um dos requisitos cumulativos de que depende a incidência do imposto em causa, torna-se desnecessário apreciar a verificação do pressuposto objetivo, ou seja, saber se os serviços prestados se caraterizam, ou não, para o aludido efeito, como serviços financeiros.

 

Pelos fundamentos expostos, conclui-se pela procedência do pedido de pronúncia arbitral, uma vez que deveria ter sido deferido pedido de revisão oficiosa deduzido pela Requerente – sendo claro que a AT não estava obrigada por lei a assumir o entendimento que adotou – e, consequentemente, são anuladas as autoliquidações contestadas, em virtude de serem desconformes à norma de incidência do Imposto do Selo contida na verba 17.3 da TGIS.

 

Em face do exposto, e sem necessidade de maiores considerações, procede na íntegra o pedido de pronúncia arbitral quanto a esta questão, sendo ilegais os atos de autoliquidação de Imposto do Selo relativos aos meses de janeiro de 2019, de julho de 2019, de janeiro de 2020 e de junho de 2020, subjacentes às declarações de retenção na fonte de Imposto do Selo nº ... de 2019, nº ... de 2019, nº ... de 2020 e nº ... de 2020, dos quais resultou o montante total a pagar de € 151.307,70 (cento e cinquenta e um mil, trezentos e sete euros e setenta cêntimos), que enfermam de vício de violação da lei, devendo, como tal, ser anulados, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

O indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa enferma do mesmo vício, já que mantém as autoliquidações, com os fundamentos que constam do despacho de indeferimento.

 

 

3. Pedido de restituição das quantias paga e juros indemnizatórios

 

A Requerente formula pedido de restituição das quantias arrecadadas pela AT, bem como de pagamento de juros indemnizatórios.

 

A Requerida não põe em causa os pagamentos do imposto.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».

 

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

 

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite também a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redação inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

 

Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

 

Por outro lado, dependendo o direito a juros indemnizatórios de direito ao reembolso de quantias pagas indevidamente, que são a sua base de cálculo, está ínsita na possibilidade de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a possibilidade de apreciação do direito ao reembolso dessas quantias.

 

Cumpre, assim, apreciar o pedido de reembolso dos montantes indevidamente pagos e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

Pelo que se referiu, o pedido de pronúncia arbitral procede quanto à declaração de ilegalidade dos atos de autoliquidação de Imposto do Selo atrás referidos, dos quais resultou o valor total a pagar de € 151.307,70 (cento e cinquenta e um mil, trezentos e sete euros e setenta cêntimos).

 

Por isso, a Requerente tem o direito de ser reembolsada do montante total pago, por força dos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado».

 

Pelo exposto, procede o pedido de reembolso da quantia total de € 151.307,70 (cento e cinquenta e um mil, trezentos e sete euros e setenta cêntimos) paga indevidamente pela Requerente nas datas atrás referidas.

 

Relativamente ao direito a juros indemnizatórios, o seu regime substantivo é regulado no artigo 43.º da LGT, com a epígrafe “Pagamento indevido da prestação tributária” que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

 

3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

 

4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

 

5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.

Na decisão interlocutória sobre a matéria das exceções, em anexo, o Tribunal decidiu que o erro nas autoliquidações não decorre de qualquer lapso da Requerente, mas da sua conformação com o entendimento da AT.

 

E mesmo que se considerasse que o erro que afeta as autoliquidações (efectuadas sob a designação de retenção na fonte de Imposto do Selo) seria imputável à Requerente, e não da sua conformação com o entendimento da AT, o mesmo manifestamente não sucede com a decisão do pedido de revisão oficiosa, pois deveria ter sido deferida a pretensão da Requerente.

 

Isto é, a ilegalidade do indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa é sempre imputável à AT, pois não decidiu no sentido favorável à Requerente.

 

Esta situação de a Autoridade Tributária e Aduaneira manter uma situação de ilegalidade, quando devia repô-la deverá ser enquadrada, por mera interpretação declarativa, no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, pois trata-se de uma situação em que há nexo de causalidade adequada entre um erro imputável aos serviços e a manutenção de um pagamento indevido e a omissão de reposição da legalidade quando se deveria praticar a ação que a reporia deve ser equiparada à ação.

 

Como se vê, o n.º 1 do artigo 43.º da LGT reconhece o direito a juros indemnizatórios como consequência da anulação de atos de liquidação quando se determinar em processo de reclamação graciosa ou impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços.

 

Mas a Requerente não apresentou reclamação graciosa nem impugnação judicial das autoliquidações, tendo apresentando, antes, pedido de revisão oficiosa, nos termos do artigo 78.º da LGT.

 

O pedido de revisão oficiosa apresentado no prazo da reclamação graciosa, a que alude o n.º 1 do artigo 78.º da LGT é equivalente a esta, como se entendeu nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12-07-2006, processo n.º 0402/06, e de 15-04-2009, processo n.º 065/09.

 

Todavia, a Requerente não apresentou o pedido de revisão oficiosa no prazo da reclamação graciosa, pois as autoliquidações foram apresentadas em janeiro de 2019, em julho de 2019, em janeiro de 2020 e em Junho de 2020, e a Requerente apresentou o pedido de revisão oficiosa em 26 de janeiro de 2023.

 

Para as situações em que o pedido de revisão oficiosa não é apresentado no prazo da reclamação graciosa, apenas se prevê o direito a juros indemnizatórios na alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, «quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste».

 

Sobre a questão da determinação do momento a partir do qual são devidos juros indemnizatórios, no caso em que se lance mão do pedido de revisão do ato tributário, previsto no art.º 78.º da LGT, têm-se pronunciado os nossos tribunais superiores, no sentido de ser aplicável a mencionada alínea c) do n.º 3 do art.º 43.º da LGT.

 

Refira-se, a este propósito, o Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 22.11.2023 (Processo: 088/23.6BALSB) e a ampla jurisprudência no mesmo citada, onde se refere:

“A questão tem-se colocado diversas vezes e tem merecido resposta uniforme, quer na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo quer no Pleno da mesma Secção (A título de exemplo e por mais recentes, referimos os seguintes acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

- de 29 de Junho de 2022, proferido no processo n.º 93/21.7BALSB, disponível em

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/2cffe7a2f22e0a8f8025887500390aa2;

- de 23 de Fevereiro de 2023, proferido no processo n.º 1/22.8BALSB, disponível em

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/b89dfad60ba58535802589630041477d;

- de 23 de Fevereiro de 2023, proferido no processo n.º 154/21.2BASLSB, disponível em

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/8d726d303443ed4680258960004e0843;

- de 28 de Setembro de 2023, proferido no processo com o n.º 22/23.3BALSB, disponível em

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/fd18e5683a47fbbf80258a3900367fb8.). Porque concordamos com essa orientação jurisprudencial, actualmente consolidada, limitamo-nos a remeter para a fundamentação expendida num desses acórdãos do Pleno, o proferido em 11 de Dezembro de 2019 no processo n.º 58/19.9BALSB (Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/67db23f4f3310fb9802584dd0056c46a.), dispensando a junção deste aresto porque indicamos onde está disponível.

Nesse acórdão ficou decidido que, nos casos em que é pedida pelo sujeito passivo a revisão oficiosa do acto de liquidação e o acto venha a ser anulado em impugnação judicial dessa liquidação (ou em decisão arbitral equivalente) e na sequência do indeferimento daquele pedido de revisão oficiosa, os juros indemnizatórios são devidos apenas a partir de um ano após o pedido de revisão formulado.

Acolheu-se aí a fundamentação de acórdão anterior na mesma Secção (o acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário de 27 de Fevereiro de 2019, no processo n.º 22/18.5BALSB, no presente recurso invocado como acórdão fundamento). No que ora releva, reafirmou-se o entendimento – que, de resto, já vinha uniformizado – no sentido de que não devem distinguir-se, para efeitos de aplicação da alínea c) do n.º 3 do art. 43.º da LGT, as situações em que é deduzido o pedido de revisão e a administração revê o acto mais de um ano após a dedução desse pedido, daquelas em que a administração não revê o acto mas este vem a ser anulado judicialmente após mais de um ano a contar desse pedido.

No caso sub judice, a liquidação com o n.º ….., efectuada em 15 de Setembro de 2017, foi objecto de pedido de revisão em 18 de Dezembro de 2020, o qual foi indeferido por decisão de 23 de Junho de 2021 [cfr. alíneas F), N) e Q) dos factos provados], mas a liquidação veio a ser anulada por decisão do CAAD proferida em 3 de Dezembro de 2021.

Ou seja, a decisão anulatória foi proferida (em 3 de Dezembro de 2021) dentro de um ano após a apresentação do pedido de revisão (que ocorreu em 18 de Dezembro de 2020), motivo por que, nos termos da jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal Administrativo, não são devidos juros indemnizatórios”.

Portanto, quando, na sequência de um pedido de revisão apresentado ao abrigo do art.º 78.º da LGT, a decisão seja proferida dentro do prazo de um ano contado do momento da sua apresentação (mesmo que se trate de decisão judicial, como é o caso abordado no aresto citado), é de ter em conta o disposto no art.º 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT.

Este é o quadro jurisprudencial unânime, quando estamos perante pedidos de revisão apresentados já depois de decorrido, designadamente, o prazo de reclamação graciosa, por, no fundo, se considerar que a própria inércia do administrado, ao deixar decorrer os prazos de reação graciosa ou contenciosa regulares, demonstra um desinteresse temporário na recuperação do valor em causa – o que justifica este específico regime.

Assim, para que esta conclusão seja extraível é necessário que o pedido de revisão tenha sido apresentado já depois de decorrido o prazo para a apresentação da reclamação graciosa, caso contrário é de aplicar o disposto no n.º 1 do art.º 43.º da LGT, porquanto sempre a AT teria o poder dever de convolar o pedido de revisão em pedido de reclamação graciosa, em obediência ao princípio da colaboração, previsto, designadamente, no art.º 59.º da LGT.

Portanto, o objetivo da mencionada alínea c) do n.º 3 do art.º 43.º da LGT é o de, de alguma forma, censurar a conduta do administrado, quando não considera o prazo da reação graciosa imediata à liquidação (ou seja, o prazo para reclamar graciosamente), lançando mão de um outro procedimento gracioso que lhe permite reagir num momento ulterior, em determinadas circunstâncias.

Caso o pedido, mesmo que o administrado designe de pedido de revisão, seja apresentado dentro do prazo previsto para se reclamar graciosamente, inexiste tal juízo de censura.” (sic).

 

Refira-se, ainda, a título de exemplo, o Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 29 de Junho de 2022, proferido no processo n.º 93/21.7BALSB, acima referido, onde se decidiu:

“(…) examinemos a questão do termo inicial da obrigação de juros indemnizatórios, quando ligado à existência do procedimento gracioso de revisão oficiosa.

Nesta sede, deve confirmar-se a orientação jurisprudencial, que se tem por consolidada, do Pleno da Secção deste Tribunal, de que é expressão o acórdão lavrado no processo nº.51/19.1BALSB e datado de 11/12/2019, a qual se expressa no seguinte: pedida pelo sujeito passivo a revisão oficiosa do acto de liquidação (cfr. artº.78, nº.1, da L.G.T.) e vindo o acto a ser anulado, mesmo que em impugnação judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após a apresentação daquele pedido, e não desde a data do pagamento da quantia liquidada, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, al.c), da L.G.T., mais não relevando o facto de a A. Fiscal o ter decidido, embora indeferindo, em período inferior a um ano (cfr. v.g. ac.S.T.A.-Pleno da 2ª.Secção, 11/12/2019, rec.51/19.1BALSB; ac.S.T.A.-Pleno da 2ª.Secção, 4/03/2020, rec.8/19.2BALSB; ac.S.T.A.-Pleno da 2ª.Secção, 20/05/2020, rec.5/19.8BALSB; ac.S.T.A.-Pleno da 2ª.Secção, 29/06/2022, rec.93/21.7BALSB).”.

 

Portanto, este regime justifica-se pela falta de diligência do contribuinte em apresentar reclamação graciosa ou pedido de revisão no prazo desta, como se prevê no n.º 1 do artigo 78.º da LGT.

 

Pelo que, no caso em apreço, a norma à face da qual tem de ser aferida a existência de direito a juros indemnizatórios é, pois, a alínea c) deste n.º 3 do artigo 43.º da LGT.

 

Como decorre da matéria de facto fixada, o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 26 de janeiro de 2023, pelo que apenas a partir de 27 de janeiro de 2024 haverá direito a direito a juros indemnizatórios, não relevando o facto de a AT o ter decidido, embora indeferindo, em período inferior a um ano.

 

E não desde as datas em que a Requerente efetuou os pagamentos indevidos, como é pela mesma peticionado. 

 

Assim, os juros indemnizatórios devem ser contados com base no valor total de € 151.307,70 (cento e cinquenta e um mil, trezentos e sete euros e setenta cêntimos), desde 27 de janeiro 2024, até ao integral reembolso do montante pago, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

 

  1. Decisão

 

Em face do exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à questão da ilegalidade dos atos de autoliquidação de Imposto do Selo, relativos aos meses de janeiro de 2019, de julho de 2019, de janeiro de 2020 e de junho de 2020, no montante total de € 151.307,70 (cento e cinquenta e um mil, trezentos e sete euros e setenta cêntimos), subjacentes às declarações de retenção na fonte de Imposto do Selo nº ... de 2019, nº ... de 2019, nº ... de 2020 e nº ... de 2020;

 

  1. Anular estes atos de autoliquidação de Imposto do Selo;

 

  1. Anular a decisão de indeferimento expresso do pedido de revisão oficiosa correspondente ao procedimento n.º ...2023...; 

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao reembolso da quantia de € 151.307,70 (cento e cinquenta e um mil, trezentos e sete euros e setenta cêntimos) e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagá-la à Requerente, nos termos do decidido em IV. 3.;

 

  1. Julgar parcialmente procedente o pedido de juros indemnizatórios a favor da Requerente, em virtude do imposto indevidamente pago, e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagá-los à Requerente, contados desde 27 de janeiro de 2024 até ao integral pagamento do montante que deve ser reembolsado, à taxa legal supletiva, nos termos do decidido em IV. 3.;

 

  1. Condenar a AT nas custas do processo nos termos do decidido em VII.

 

 

VI. Valor do Processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do C.P.C., do artigo 97.º A n.º 1, al. a) do C.P.P.T. e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 151.307,70 (cento e cinquenta e um mil, trezentos e sete euros e setenta cêntimos).

 

VII. Custas

 

De acordo com o previsto nos artigos 22.º, n.º 4, e 12.º, n.º 2, do RJAT, no artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma, fixa-se o valor global das custas em € 3.672,00 (três mil seiscentos e setenta e dois euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 25 de março de 2024

 

O árbitro presidente

 

 

Victor Calvete

 

 

O árbitro adjunto

 

 

Pedro Guerra Alves

 

 

 

O árbitro adjunto e relator

 

 

Pedro Miguel Bastos Rosado