Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 632/2023-T
Data da decisão: 2024-03-22  IRS  
Valor do pedido: € 146.878,94
Tema: IRS. Mais-valias de valores mobiliários – artigos 10.º, n.º 1, alínea b), e 43.º, n.º 6, do Código do IRS. Regime transitório do artigo 5.º do DL 442-A/88, de 30 de novembro. Aumento de capital social. Momento da aquisição das participações sociais.
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SUMÁRIO

  1. Por força do artigo 5.º do Decreto-Lei 442-A/88, de 30 de novembro, não há sujeição a tributação, em sede de IRS, dos ganhos derivados da alienação de participações sociais durante a vigência do Código do IRS, quando as mesmas hajam sido adquiridas pelo alienante antes de 1 de janeiro de 1989.
  2. Em conformidade com o artigo 43.º, n.º 6, alínea a), do Código do IRS, a data a considerar como a da aquisição dos valores mobiliários, por alteração do valor nominal, corresponde à data de aquisição dos valores mobiliários que lhes deram origem.
  3. O disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei 442-A/88, de 30 de novembro, é aplicável aos aumentos de capital por novas entradas, em dinheiro ou em espécie, e por incorporação de reservas, posteriores a 1 de janeiro de 1989, que tenham tido por efeito alterar o valor nominal de participações sociais detidas na referida data.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Dra. Sofia Quental e Dra. Cristina Coisinha, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa – CAAD para formar Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 15 de novembro de 2023, decidem o seguinte:

I.       RELATÓRIO

  1. A..., pessoa singular com domicílio fiscal em Rua ..., n.º ..., ..., ...-... Lagos, NIF ...  (“Requerente”), veio, em 5 de setembro de 2023, ao abrigo do disposto nos artigos 95.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), da LGT, 99.º, alínea a), do CPPT, 140.º, n.º 1, do Código do IRS, 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.ºs 1.º, alínea a), e 2.º, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”), com vista à apreciação da legalidade dos atos de liquidação de IRS n.º 2023..., de juros compensatórios n.º 2023..., e da demonstração de acertos de contas n.º 2023..., referentes ao ano de 2019, dos quais resulta o montante total a pagar de € 146.878,94.
  2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 7 de setembro de 2023.
  3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  4. Em 27 de outubro de 2023, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
  5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 15 de novembro de 2023.
  6. Em suporte das suas pretensões alega o Requerente, em síntese, o seguinte:
  1. O Requerente foi um dos sócios fundadores da sociedade B..., Lda., constituída em 1982. Posteriormente, o Requerente participou em vários aumentos de capital social sem emissão de novas quotas, tendo tais aumentos de capital por efeito aumentar o valor da quota do Requerente. As liquidações de IRS e juros compensatórios contestadas, emitidas com referência ao ano de 2019, referem-se à alienação da quota pelo Requerente no dia 11 de fevereiro de 2019.
  2. A questão decidenda no âmbito dos presentes autos consiste saber se a mais-valia mobiliária auferida pelo Requerente em 2019 deve (ou não) ser sujeita a tributação em sede de IRS, à luz, designadamente, do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro.
  3. Do artigo 43.º, n.º 6, alínea a), do Código do IRS resulta que, nas situações em que o aumento do capital social implica a alteração do valor nominal das participações sociais existentes – sendo irrelevante, para o efeito, a modalidade de aumento verificada, atenta a utilização do advérbio «designadamente», a qual, em Direito, preconiza um elenco meramente exemplificativo – a data de aquisição a considerar, para efeitos de cálculo do ganho, será a data de aquisição dos valores mobiliários na origem dos ora alienados. A doutrina e jurisprudência portuguesas suportam de forma pacífica e sedimentada esta posição.
  4. Conclui-se, assim, in casu, que a quota do Requerente na sociedade B..., Lda. alienada em 2019 deve considerar-se adquirida na data da constituição da sociedade em 1982. Para o efeito, são irrelevantes os aumentos de capital social ocorridos em 1989 e 1997 porquanto não foram emitidas nem subscritas novas quotas, tendo-se apenas verificado um aumento do valor nominal da quota de que o Requerente já era titular desde 1982. Logo, a mais-valia auferida está excluída de tributação em sede de IRS por força do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, devendo as liquidações impugnadas ser declaradas ilegais e anuladas, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito.
  5. Caso o Douto Tribunal Arbitral entenda que a liquidação de imposto impugnada não padece de ilegalidade, sempre será de realçar padecer de ilegalidade a liquidação de juros compensatórios sub judice, no montante de € 13.770,35, nos termos dos artigos 91.º do Código do IRS e 35.º da LGT, porquanto o eventual direito da AT à perceção de juros compensatórios depende necessariamente da ocorrência de uma situação de retardamento na liquidação do imposto imputável, a título de culpa, ao sujeito passivo.
  6. No cenário de procedência do presente pedido de pronúncia arbitral, para além do direito ao reembolso do montante por si indevidamente pago, o Requerente terá ainda direito à perceção de juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços da AT, computados sobre montante efetivamente pago, desde a data do pagamento até à emissão da respetiva nota de crédito, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT.
  1. Em 19 de dezembro de 2023, a Requerida apresentou resposta e juntou o processo administrativo, invocando em síntese o seguinte:
  1. A norma transitória instituída pelo artigo 5.º do diploma que aprovou o Código do IRS, ao consignar, no seu n.º 1, que só ficam sujeitos a IRS a aquisição dos bens ou direitos que tiver sido efetuada depois da entrada em vigor do Código de IRS, determina que apenas fica excluído de tributação o valor que foi adquirido e realizado antes da entrada em vigor do Código do IRS.
  2. Os aumentos de capital, quer por novas entradas, quer por incorporação de reservas, constituem alterações ao contrato de sociedade. A parte da quota respeitante ao aumento do capital por novas entradas considera-se adquirida no momento em que o aumento do capital social é realizado, e a parte da mais-valia imputável ao aumento do capital social por entradas dos sócios, se realizada depois da entrada em vigor do Código do IRS, considera-se sujeita a imposto.
  3. No caso dos presentes autos, o valor da quota (€ 32.384,45) detida pelo Requerente à data da cessão de quotas por € 1.000.000,00 (11 de fevereiro de 2019), tem a sua origem no aumento de capital realizado em 22 de maio de 1997 no valor de € 3.529,00, e não no momento da constituição em 6 de dezembro de 1982 (€ 2.493,99).
  1. Por despacho de 29 de dezembro de 2023, o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT. Nesse mesmo despacho foi concedido o prazo simultâneo de 10 dias para as partes apresentarem, querendo, as suas alegações.
  2. Em 18 de janeiro de 2024, o Requerente apresentou alegações, onde assumiu o mesmo posicionamento manifestado no PPA.

 

  1. SANEAMENTO
  1. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março).
  2. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido (cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).
  3. O PPA é tempestivo porquanto foi apresentado em 5 de setembro de 2023, ou seja, no prazo de 90 dias contados do termo do prazo para pagamento voluntário do imposto em apreço (7 de junho de 2023), conforme resulta dos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e 102.º, n.º 1, alínea a), do CPPT.
  4. O processo não enferma de nulidades.

 

  1. QUESTÃO DECIDENDA
  1. Nos presentes autos há que decidir a questão de saber se os ganhos decorres da transmissão, durante a vigência do Código do IRS, de participações sociais adquiridas antes de 1 de janeiro de 1989, cujo valor nominal tenha sofrido um aumento em virtude de novas entradas e de incorporação de reservas após 1 de janeiro de 1989 (i.e. já na vigência do Código do IRS), se encontram excluídos de IRS por efeito do disposto na norma transitória do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

FACTOS PROVADOS

  1. O Requerente é um cidadão de nacionalidade holandesa, casado sob o regime de separação de bens, residente fiscal em Portugal há vários anos (cf. referido nos artigos 9.º e 10.º do PPA - facto não controvertido).
  2. A sociedade por quotas B..., Lda., titular do número de identificação de pessoa coletiva ..., foi constituída em 6 de dezembro de 1982, com o capital social de € 4.987,98 (à data, 1.000.000$00) (cf. Documento 4 junto ao PPA - facto não controvertido).
  3. O Requerente foi um dos sócios fundadores da sociedade B..., Lda., sendo titular de uma quota com o valor nominal de € 2.493,99 (à data, 500.000$00), representativa de 50% do capital social (cf. Documento 4 junto ao PPA - facto não controvertido).
  4. Em 12 de dezembro de 1989, mediante escritura pública, procedeu-se ao aumento do capital social da sociedade B..., Lda. de € 4.987,98 para € 6.234,87 (à data, 1.250.000$00), por novas entradas em dinheiro, tendo o Requerente subscrito € 1.246,89 (€ 6.234,87 – 4.987,98) e passado a deter uma quota no valor nominal de € 3.740,98 (à data, 750.000$00), representativa de 60% do capital social (cf. Documento 5 junto ao PPA - facto não controvertido).
  5. Em 22 de maio de 1997, mediante escritura pública, verificou-se um novo aumento do capital social da B..., Lda., desta feita para € 66.090,72 (à data, 13.250.000$00), passando o Requerente a deter uma quota no valor nominal de € 39.654,43 (à data, 7.950.000$), representativa de 60% do capital social (cf. Documento 6 junto ao PPA - facto não controvertido).
  6. Em 2001, mediante escritura pública, o capital social da B..., Lda. foi convertido em Euros (€), correspondendo aos montantes acima indicados (cf. Documento 8 junto ao PPA - facto não controvertido).
  7. Em 17 de julho de 2007, o Requerente transmitiu parte da sua quota (€ 7.269,98) à outra sócia, C..., passando a deter uma quota no valor nominal de € 32.384,45, representativa de 49% do capital social (cf. Documento 8 junto ao PPA - facto não controvertido).
  8. Em 11 de fevereiro de 2019, o Requerente e a sua sócia, na qualidade de cedentes, celebraram, mediante documento particular, um contrato de cessão de quotas através do qual venderam a totalidade das quotas que detinham na sociedade B..., Lda., representativas de 100% do capital social, às sociedades D..., Unipessoal, Lda. (NIPC...) e E..., Lda. (NIPC...), tendo o Requerente recebido € 1.000.000,00 (cf. Documento 9 junto ao PPA - facto não controvertido).
  9. Por referência ao ano de 2019, o Requerente apresentou a sua declaração periódica de rendimentos Modelo 3, à qual foi atribuído o n.º ...-2019-... -..., declarando a mais-valia mobiliária decorrente da transmissão da sua quota na B..., Lda., correspondente à diferença entre o valor de realização (€ 1.000.000) e o valor de aquisição (€ 32.384,45) (cf. Documento 10 junto ao PPA - facto não controvertido).
  10. No seguimento do procedimento inspetivo promovido em cumprimento da ordem de serviço n.º OI2023..., de 4 de janeiro de 2023, a AT notificou o Requerente do Relatório de Inspeção Tributária, no qual se pode ler (cf. Documento 12 junto ao PPA - facto não controvertido):

 

 

  1. Subsequentemente, a AT emitiu atos de liquidação de IRS n.º 2023..., no montante de € 133.108,59, com data-limite de pagamento em 7 de junho de 2023, juros compensatórios n.º 2023..., no montante de € 13.770,35, e demonstração de acerto de contas n.º 2023..., no montante de € 146.878,94, referentes ao ano de 2019, dos quais resultou o montante total a pagar de € 146.878,94, os quais foram notificados ao Requerente em maio de 2023 (cf. Documentos 1, 2 e 3 juntos ao PPA - facto não controvertido).
  2. O Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral em 5 de setembro de 2023.
  3. Ao abrigo de um plano de pagamento em prestações acordado com a AT, o Requerente efetuou, até à presente data, o pagamento das prestações referentes aos meses de julho de 2023 e fevereiro de 2024, conforme demonstra a seguinte tabela:

 

Mês

 

 

Montante €

Julho 2023

12.347,59

Agosto 2023

12.409,93

Setembro 2023

12.470,25

Outubro 2023

12.532,59

Novembro 2023

12.592,92

Dezembro 2023

12.655,25

Janeiro de 2024

12.717,59

Fevereiro de 2024

12.833,83

 

TOTAL

 

 

€ 100.559,95

 

(cf. Documentos 14 e 15 juntos ao PPA e comprovativos de pagamento juntos aos autos).

 

 

FACTOS NÃO PROVADOS

  1. Com relevo para a decisão, não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

  1. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
  2. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
  3. Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, a prova documental, bem como o processo administrativo junto aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

EXCLUSÃO DE TRIBUTAçÃO por efeito do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro

  1. A questão jurídica que se encontra na base do litígio nos presentes autos de arbitragem é a de saber se a mais-valia auferida pelo Requerente, em virtude da alienação em 2019 de uma quota representativa do capital social da B..., Lda., beneficia da aplicação do regime transitório vertido no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro.
  2. A referida norma de incidência tributária procede a uma delimitação quanto à sujeição a IRS dos ganhos que não eram sujeitos ao Imposto de Mais-Valias aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 673, de 9 de junho de 1965.
  3. O artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, dispõe o seguinte:

1 - Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 673, de 9 de Junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afetos ao exercício de uma atividade agrícola ou da afetação destes a uma atividade comercial ou industrial, exercida pelo respetivo proprietário, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efetuada depois da entrada em vigor deste Código.

2 - Cabe ao contribuinte a prova de que os bens ou valores foram adquiridos em data anterior à entrada em vigor deste Código, devendo a mesma ser efetuada, quanto aos valores mobiliários, mediante registo nos termos legalmente previstos, depósito em instituição financeira ou outra prova documental adequada e através de qualquer meio de prova legalmente aceite nos restantes casos.

3 - Quando, nos termos dos n.ºs 8 e 10 do artigo 10.º do Código do IRS, haja lugar à valorização das participações sociais recebidas pelo mesmo valor das antigas, considera-se, para efeitos do disposto no n.º 1, data de aquisição das primeiras a que corresponder à das últimas.

  1. Com base no elemento literal da norma jurídica, conclui-se que a sujeição de ganhos a IRS apenas se verifica se a aquisição dos bens ou direitos transmitidos pelo sujeito passivo tiver sido efetuada após a entrada do Código do IRS – ou seja, após 1 de janeiro de 1989, nos termos do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro. Caso a aquisição dos bens ou direitos transmitidos pelo sujeito passivo seja anterior àquela data, e contanto que o ganho não fosse já sujeito a tributação em sede de Imposto de Mais-Valias, não há lugar a tributação em sede de IRS, mesmo que o facto gerador do ganho ocorra em momento posterior à entrada em vigor do Código do IRS.
  2. Posto isto, em face do exposto, há que atender ao normativo legal em vigor, em sede de IRS, acerca da determinação do momento de aquisição de participações sociais.
  3. Como tal, in casu, o regime transitório supra referido deverá ser conjugado com o disposto no artigo 43.º, n.º 6, alínea a), do Código do IRS, o qual contempla uma norma de determinação da matéria coletável, na qual se dispõe que, para apuramento do saldo entre mais e menos valias, se considera que:

“A data de aquisição dos valores mobiliários cuja propriedade tenha sido adquirida pelo sujeito passivo por incorporação de reservas ou por substituição daqueles, designadamente por alteração do valor nominal ou modificação do objeto social da sociedade emitente, é a data de aquisição dos valores mobiliários que lhes deram origem”.

  1. Consequentemente, como a lei faz expressamente referência à incorporação de reservas, a controvérsia cinge-se à questão de saber se o mesmo regime se aplicará nos casos em que existem aumentos de capital por novas entradas (em dinheiro ou espécie) ocorridos posteriormente a 1 de janeiro de 1989, com impacto no valor nominal das quotas detidas pelos sócios, como é o caso nos presentes autos de arbitragem.
  2. Embora não sendo as quotas valores mobiliários stricto sensu, por força do disposto no artigo 1.º do Código dos Valores Mobiliários, deverá interpretar-se extensivamente o enunciado em apreço, tanto mais que inexiste qualquer razão para distinguir, neste particular, os titulares de quotas e os titulares de outros valores mobiliários. Dir-se-á, inclusivamente, que uma tal distinção sempre contenderia com o mais elementar princípio da igualdade. A este argumento acresce outro de ordem sistemática, atento que tratar-se-á da interpretação mais conforme com o estabelecido no artigo 10.º. n.º 1, alínea b), do Código do IRS, uma vez que esta norma de incidência tributária define o conceito de mais-valias como correspondendo à “alienação onerosa de partes sociais e de outros valores mobiliários”.
  3. Por outro lado, importará notar que o enunciado normativo vertido no artigo 43.º, n.º 6, alínea a), do Código do IRS, apresenta uma redação exemplificativa, na medida em que ali se emprega o advérbio de modo “designadamente”, o que permite inferir que o legislador pretendeu abranger todas as situações de alteração do valor nominal, sem distinguir entre situações de incorporação de reservas e situações de aumento de capital sob a forma de novas entradas, em dinheiro ou espécie, materializadas no reforço de quotas pré-existentes.
  4. A temática em apreço, atinente à consideração ou desconsideração dos aumentos de capital para efeitos do disposto no artigo 43.º, n.º 6, alínea a), do Código do IRS, tem vindo a ser amplamente discutida em sede judicial e arbitral, merecendo especial referência a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, decorrente do Acórdão proferido no processo n.º 0149/17 em 7 de março de 2018, onde se decidiu que:

A legislação comercial prevê a possibilidade de serem efectuados aumentos de capital. Por regra, tal operação funciona como uma fonte de financiamento para a empresa, para desenvolver novos projetos, um plano de expansão da organização, ou para fazer uma restruturação da atividade da empresa com a utilização de novos capitais próprios da organização que podem provir dos atuais acionistas ou sócios das empresas ou ser aberta a novos investidores.

O aumento de capital de uma empresa assume duas diversas formas, ou se realiza por incorporação de reservas, implicando uma mera operação contabilística, na qual as reservas (ou seja, nos lucros obtidos no passado e ainda detidos) se transferem para o capital social da organização, sem mudança da situação líquida da empresa, ou por novas entradas.

Quando, como na situação em análise, o aumento de capital assume a forma de novas entradas, em dinheiro ou em bens, a operação implica um processo diferente, com uma alteração da situação líquida da empresa, devido à entrada de dinheiro (ou de bens) na empresa. Neste caso, ou os sócios/acionistas das empresas adquirem as novas quotas/ações emitidas pela empresa, ou não há criação de novas quotas/acções mas é aumentado o valor nominal das existentes e, em ambas estas situações o resultado dessa operação serve para reforçar o capital social da organização.

Quando há emissão de novas quotas/ações esta é feita a um preço definido e, na maioria das vezes, as novas quotas/ações encontram-se reservadas aos anteriores sócios/acionistas, podendo ainda verificar-se a aquisição de novas quotas/acções por novos sócios. De acordo com o disposto no art.º 92.º, n.º 4 do CSC “A deliberação de aumento de capital deve indicar se são criadas novas quotas ou acções ou se é aumentado o valor nominal das existentes, caso exista, sendo que na falta de indicação, se mantém inalterado o número de acções.”

  1. Se o artigo 43.º, n.º 6, alínea a), do CIRS impõe que a data de aquisição a considerar é a data da aquisição da participação social na origem da alienação (6 de dezembro de 1982), tendo a aquisição mobiliária ocorrido em momento anterior à entrada em vigor do CIRS (1 de janeiro de 1989), a mais-valia resultante da transmissão ocorrida a 11 de fevereiro de 2019 não está sujeita a tributação em sede de IRS, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro.
  2. O entendimento segundo o qual o disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei 442-A/88, de 30 de novembro, é aplicável aos aumentos de capital por novas entradas, em dinheiro ou em espécie, posteriores a 1 de janeiro de 1989 que tenham tido por efeito aumentar o valor nominal de participações sociais detidas à referida data, ao qual se adere, tem sido acolhido pela jurisprudência arbitral, sendo disso exemplo as Decisões Arbitrais proferidas no âmbito dos processos n.ºs 594/2019-T, 689/2019-T, 394/2020-T, 526/2020-T, 335/2021-T, 562/2021-T, 54/2022-T, 65/2022-T, 417/2022-T e 180/2023-T.
  3. Por se entender que tal é o entendimento mais convergente com as normas legais aplicáveis, e em face da necessidade de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito, como resulta do disposto no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, seguir-se-á o mesmo nos presentes autos.
  4. A Requerida na defesa da sua posição convoca o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), de 28 de setembro de 2017, proferido no âmbito do processo n.º 01264/09, segundo o qual se deve aplicar a norma transitória até ao aumento de capital, entendendo-se como excluídas aquelas que tiveram lugar na vigência do Código do IRS. Todavia, entende este Tribunal Arbitral que tal decisão não tem em consideração a interpretação que se considera mais adequada do artigo 43.º, n.º 6, alínea a), do Código do IRS.
  5. Neste âmbito, cabe fazer referência ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 7 de junho de 2017, proferido no âmbito do processo n.º 01471/14, que segue a fundamentação expendida no Acórdão do Pleno, de 16 de setembro de 2015, tirado no recurso n.º 1292/14, em estabelece que:

“[C]onsideramos que o facto tributário se reporta ao momento em que se realizam as mais-valias, ou, por outras palavras, o facto tributário que as origina e conforma nasce e esgota-se no preciso momento (autónomo e completo) da alienação e coetânea realização das mais-valias, sendo, por isso, um facto tributário instantâneo, e não um facto tributário complexo de formação sucessiva ao longo de um ano.

É certo que as mais-valias, tal como os demais rendimentos sujeitos a IRS, são declaradas anualmente (art. 57.º do CIRS) e que o rendimento coletável anual do sujeito passivo corresponde ao saldo positivo apurado entre as mais-valias e as menos-valias que se tenham concretizado no mesmo ano (art. 43.º n.º 1 do CIRS). Mas essa operação de agregação entre as mais-valias e as menos-valias não tem a virtualidade de alterar ou transmutar a natureza dos factos tributários subjacentes. O que daí pode concluir-se é, apenas, que as mais-valias e as menos-valias alcançadas durante o mesmo ano são declaradas num único momento - na declaração anual de IRS - e que ambas concorrem para o apuramento do saldo final que vai servir para determinar e quantificar o rendimento anual sujeito a tributação em IRS.

Por outras palavras, a norma que prevê a agregação necessária ao apuro do saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias em face de todos os atos de alienação ocorridos no ano, constitui uma norma sobre a determinação da base tributável para efeitos de IRS, isto é, uma norma sobre a determinação do rendimento coletável, e não uma norma sobre a incidência, como, de resto, ressalta da organização sistemática do Código do IRS, onde a referência a esse saldo se encontra inserida no capítulo que trata da determinação do rendimento coletável e não no capítulo que trata da incidência do imposto. E, como é óbvio, o facto tributário tem de ser localizado no tempo em face da respetiva norma de incidência, e não em face da norma de determinação do rendimento coletável.

Em suma, o saldo positivo que será tributado não se confunde com o facto tributário em si. Tal saldo tem relevo apenas para o acerto do rendimento coletável e determinação da obrigação de pagamento de imposto que emerge (ou não) para o sujeito passivo em sede de IRS, carecendo de relevo para a formação do facto tributário em si, já que este, como se viu, surge isolado no tempo, ocorrendo por mero efeito da obtenção do ganho no momento de cada ato de alienação dos bens mobiliários em questão.”

  1. Desta forma, em complemento do já acima referido, nomeadamente, daquilo que deve resultar a título interpretativo do referido artigo 43.º, n.º 6, alínea a), do Código do IRS, resultante do citado Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 7 de março de 2018, proferido no âmbito do processo n.º 0149/2017, também seguindo o entendimento da decisão proferida no processo n.º 689/2019-T do CAAD, é possível concluir que a referida norma legal pretende referir-se não só aos aumentos do valor nominal de quotas realizados através da incorporação de reservas, mas também aos aumentos realizados através de novas entradas.
  2. Igualmente, tal como resulta da Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo nº 526/2020-T, não há motivo para distinguir, para o apuramento de mais-valias, os diversos momentos em que ocorreram aumentos de capital relativamente à entrada inicial já que, considerando este sentido interpretativo, o aumento de capital através do aumento do valor nominal das quotas já existentes é tido como sendo realizado no momento em que foram adquiridos os valores mobiliários originários.
  3. No presente caso, constata-se que o Requerente não adquiriu qualquer quota “nova” no quadro dos aumentos de capital concretizados em 1989 e 1997, uma vez que o que sucedeu naquelas datas foi a alteração do valor nominal da quota que havia já por si sido adquirida em data anterior. Assim sendo, os aumentos de capital social em apreço não resultam no afastamento da relevância da data de aquisição da quota pelo Requerente, devendo aquela considerar-se adquirida antes de 1 de janeiro de 1989.
  4. Pelo exposto, impõe-se a conclusão de que o rendimento auferido pelo Requerente não está sujeito a tributação em sede de IRS por força do artigo 5.º do Decreto-Lei 442-A/88, de 30 de novembro.
  5. Em consequência, o Tribunal Arbitral declara ilegais e anula os atos de liquidação de IRS n.º 2023..., juros compensatórios n.º 2023..., e demonstração de acertos de contas n.º 2023..., referentes ao ano de 2019, e condena a AT na restituição do montante de imposto e juros compensatórios indevidamente pago pelo Requerente.

 

VÍCIOS DE CONHECIMENTO PREJUDICADO

  1. No PPA, o Requerente peticiona a anulação autónoma da liquidação de juros compensatórios, por violação dos artigos 91.º do Código do IRS e 35.º da LGT, caso o Tribunal Arbitral não anule a liquidação de IRS sub judice. Todavia, face à solução que se chega quando à legalidade da liquidação de imposto impugnada e à consequente anulação dos juros compensatórios liquidados, fica prejudicada a apreciação autónoma da legalidade dos juros compensatórios por violação dos artigos 91.º do Código do IRS e 35.º da LGT.

 

JUROS INDEMNIZATÓRIOS

  1. Uma vez que a liquidação de IRS impugnada foi julgada ilegal e uma vez que essa ilegalidade resulta unicamente de erro imputável à AT, e tendo o Requerente procedido ao pagamento (parcial) do imposto e juros compensatórios indevidamente liquidados, verifica-se o direito à perceção de juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços da AT, sobre o montante de imposto e juros compensatórios efetivamente pago pelo Requerente, computados desde a data do pagamento indevido até à emissão da respetiva nota de crédito, por força do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e artigo 61.º, n.º 5, do CPPT.

 

  1. DECISÃO

Termos em que, com os fundamentos de facto e de direito que supra ficaram expostos, decide o Tribunal Arbitral Coletivo julgar:

  1. Procedente o pedido de declaração de ilegalidade e anulação dos atos de liquidação de IRS n.º 2023..., juros compensatórios n.º 2023..., e demonstração de acertos de contas n.º 2023..., referentes ao ano de 2019, com as legais consequências;
  2. Procedente o pedido de reembolso do montante de imposto e juros compensatórios indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios computados desde a data do pagamento indevido até à emissão da respetiva nota de crédito.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se ao processo o valor de € 146.878,94, tal como indicado pelo Requerente e não contestado pela Requerida – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do RCPAT.

 

  1.   CUSTAS

Custas no montante de € 3.060,00, a cargo da Requerida em razão do decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com os artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

Notifique-se.

CAAD, 22 de março de 2024

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

 

Rita Correia da Cunha

 

 

Sofia Quental

 

Cristina Coisinha