Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 872/2019-T
Data da decisão: 2020-06-25  ISV  
Valor do pedido: € 9.722,39
Tema: ISV – Componente Ambiental.
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DECISÃO ARBITRAL

 

1. Relatório

 

A..., Lda. (doravante Requerente), com o NIPC...,  com sede na Rua ... n.º..., em Guimarães veio, ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante RJAT), apresentar pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a anulação das liquidações de Imposto sobre os Veículos (doravante "ISV") e das decisões de indeferimento subjacentes a actos de liquidação de ISV devidamente identificados nos autos relativamente ao ano 2019, no valor total de €24.244,94 (vinte e quatro mil, duzentos e quarenta e quatro Euros e noventa e quatro cêntimos)

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por AT).

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 20.12.2019.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi constituído em 12.03.2020.

 

A AT apresentou resposta, a 20.04.2020, defendendo a excepção de ilegitimidade da Requerente, a caducidade do direito de acção e a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

Por despacho de 27.04.2020, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, sendo fixado prazo para alegações sucessivas.

 

A 5.05.2020, a Requerente apresentou pedido de ampliação do pedido aos actos de indeferimento das reclamações graciosas, de 20.02.2020, referentes a actos de liquidação de ISV de 2019, devidamente identificados.

 

Por despacho de 3.06.2020, o Tribunal admitiu a ampliação do pedido e actualizou o valor do pedido.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e é competente.

 

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias.

 

Será prioritariamente apreciada na decisão a alegada ilegitimidade da Requerente quanto à DAV n.º 2019/... e à caducidade do direito de acção quando à DAV n.º 2019/..., de 5.09.20219 e n.º 2019/..., de 6.09.2019.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

a)            A Requerente, A..., Lda dedica-se à importação de veículos automóveis para introdução ao consumo no mercado nacional;

b)           A Requerente detém o estatuto de operador reconhecido;

c)            A  20 de Dezembro de 2020, a Requerente apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral para declaração de ilegalidade dos actos de liquidação resultantes da apresentação das Declarações Aduaneiras de Veículo (DAV) n.ºs 2019/..., de 05.09.2019 (aceitação em 04.09.2019), 2019/..., de 06.09.2019 (aceitação em 22.05.2019), 2019/..., de 09.09.2019, (aceitação em 09.09.2019), 2019/..., de 13.09.2019 (aceitação em 12.09.2019), 2019/..., de 18.09.2019 (aceitação em 27.06.2019), 2019/..., de 19.09.2019 (aceitação em 20.11.2018), 2019/..., de 24.09.2019 (aceitação em 10.09.2019), 2019/..., de 01.10.2019 (aceitação em 17.09.2019), 2019/..., de 05.10.2019 (aceitação em 17.09.2029), 2019/..., de 08.10.2019 (aceitação em 30.09.2019),  todos relativos a Imposto Sobre Veículos (ISV), no valor total de €9.722,39;

d)           A 19 de Fevereiro de 2020, foi requerida e aceite a ampliação do pedido relativamente aos actos de liquidação após o processamento das DAV n.º 2019/..., de 07.11.2019 (aceitação em 07.10.2019), 2019/..., de 09.11.2019 (aceitação em 30.09.2019), 2019/..., de 21.11.2019 (aceitação em 08.11.2019), 2019/..., de 30.11.2019 (aceitação em 27.11.2019), 2019/..., de 04.12.2019 (aceitação em 03.12.2019), 2019/..., de 04.12.2019 (aceitação em 10.09.2019), 2019/..., de 05.12.2019 (aceitação em 02.12.2019), 2019/..., de 11.12.2019 (aceitação em 25.11.2019, 2019/..., de 15.11.2019 (aceitação em 08.11.2019), 2019/..., de 24.12.2019 (aceitação em 23.12.2019), 2019/..., de 24.12.2019 (aceitação em 23.12.2019), 2019/..., de 04.01.2019 (aceitação em 04.12.2019), no valor total de €5.406,15.

e)           As liquidações acima identificadas não contemplaram as percentagens de redução por número de anos do veículo sob o valor da componente ambiental.

f)            As liquidações de ISV em discussão respeitam a viaturas provenientes de outros Estados Membro da União Europeia;

g)            A 27 de Abril de 2020 foi proferido despacho para alegações sucessivas das Partes;

h)           Em 5 de Maio de 2020, a Requerente apresentou novo pedido de ampliação do pedido, considerando os actos supervenientes de indeferimento das reclamações graciosas de 20 de Fevereiro de 2020 relativamente aos actos de liquidação de ISV pelas Declarações Aduaneiras de Veículos com os n.º 2019/..., 2019/..., 2019/..., 2019/... ,2019/..., 2019/..., 2020/..., 2020/..., 2929/..., 2020/..., 2020/..., 2019/..., 2020/..., 2020/..., 2019/..., 2020/..., 2019/..., 2020/..., 2020/..., 2019/..., 2020/..., 2020/..., 2020/..., 2020/..., 2020/..., 2019/... e 2020/... identificados no referido requerimento, no valor total de €9.116,40;

i)             Os fundamentos da impugnação dos actos identificados em L são os mesmos do que o dos actos identificados em c) e d).

j)             A 18 de Junho de 2020, a Requerente requereu a correcção do pedido quanto ao acto de liquidação de ISV-DAV n.º 2019/..., de 23.09.2019.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos aos autos, tendo sido selecionada de acordo com o disposto no artigo 123.º, n.º 2 do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) e artigo 607.º, n.º 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.

Não se considerou provado que a Requerente tenha liquidado e pago o liquidação de ISV- DAV n.º 2019/..., de 23.09.2019, não sendo possível admitir a correcção da indicação do acto de liquidação, conforme requerido pela Requerente, após a apresentação pela Requerida das suas Alegações, sob pena de violação do princípio do contraditório.

 

3. Matéria de direito

 

A. QUESTÃO-PRÉVIA – ALARGAMENTO DO PEDIDO

 

Vem a AT nas suas alegações alegar que o requerimento de ampliação do pedido, de 5 de Maio de 2020, apresentado pela Requerente não deve ser aceite, porquanto, não obstante o mesmo ter sido apresentado após a notificação para as partes apresentarem as suas alegações escritas, o pedido não constitui o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, pelo que a sua admissibilidade contraria o disposto no artigo 265.º, n.º 2 do Código do Processo Civil (CPC) aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1 a) do RJAT.

Não obstante entende o Tribunal que não assiste razão à Requerida, uma vez que no âmbito do processo arbitral tributário, o encerramento da instância só se verifica com a apresentação das alegações de facto e de direito (cfr. artigo 29.º do RJAT, artigo 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), artigo 91.º-A do CPTA e artigo 604.º do CPC), considerando-se, por isso, o pedido de ampliação de 5.05.2020 atempado. Ademais, os actos tributários objecto do pedido de ampliação dependem da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação dos mesmos princípios ou regras de Direito, como resulta claro das alegações das Partes. Na verdade, os actos tributários que integram o pedido inicial da Requerente constituem actos de liquidação de ISV, que são contestados com fundamento na ilegalidade da não dedução da componente ambiental aos veículos importados. Por sua vez, os actos tributários que integram o pedido de ampliação de 5.05.2020 constituem actos de indeferimento de reclamações graciosas apresentadas relativamente a actos de liquidação de ISV, que são contestados com fundamento na ilegalidade da não dedução da componente ambiental aos veículos importados.

Sendo certo que os actos objecto de ampliação não constituem o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, entende-se que, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 104.º do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º do RJAT, é “admitida a cumulação de pedidos, ainda que relativos a diferentes atos, e a coligação de autores, desde que, cumulativamente:  a) Aos pedidos corresponda a mesma forma processual; e (Redação da Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro) b) A sua apreciação tenha por base as mesmas circunstâncias de facto ou o mesmo relatório de inspeção tributária, ou sejam suscetíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo tipo.” (Redação da Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro).

No caso em apreço, verifica-se que aos pedidos apresentados corresponde a mesma forma processual e os pedidos são suscetíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo tipo, como se verá infra.

A AT pôde pronunciar-se sobre os actos objecto de ampliação em sede de Alegações, (para além de ter em sede administrativo exercício o seu direito de decisão, visto que os actos em causa constituem actos de indeferimento expresso de reclamação graciosa) não se encontrando-se, portanto, beliscado o princípio do contraditório. Também não se entende que exista qualquer inconveniente processual na ampliação do pedido, uma vez que foi assegurado o direito de defesa da AT, em sede de Alegações, permitindo a ampliação do pedido administrar a justiça de forma mais eficaz e célere.

A cumulação de pedidos relativa aos actos tributários de liquidação objecto do presente pedido de pronúncia arbitral mostra-se, assim, admissível em face do artigo 3.º, n.º 1 do RJAT, uma vez que a procedência dos pedidos depende, essencialmente, da aplicação das mesmas regras de direito, pelo que se indefere a exceção de cumulação ilegal de pedidos, formulada pela Requerida.

 

B. DAS EXCEPÇÕES

 

Para além da questão material controvertida, a AT invoca a ilegitimidade da Requerente quanto à liquidação de ISV referente à DAV n.º 2019/..., de 23.09.2019, no montante de €1.028,77 e a caducidade do direito de acção relativamente às DAV n.º 2019/..., de 5.09.2019 e n.º 2019/..., de 6.09.2019.

Vejamos:

 

•             Excepção de Ilegitimidade – acto de liquidação subjacente à DAV n.º 2019/..., de 23.09.2019

 

De acordo com a AT, a DAV n.º 2019/..., de 23.09.2019, é atinente a veículo declarado pela B..., S.A., enquanto operador de registo, da qual consta como adquirente a empresa C... S.A, sendo, por isso, a Requerente parte ilegítima relativamente ao pedido de anulação da liquidação identificada.

 

Sucede que a alegada ilegitimidade não é demonstrada pela Requerida, não tendo sido junto aos autos qualquer documento que evidencie o facto referido.

 

Em consequência, indefere-se a procedência da excepção de ilegitimidade.

 

•             Caducidade do direito de acção - acto de liquidação subjacente à DAV n.º 2019/..., de 6.09.2019

 

Alega a AT, na sua Resposta, que, relativamente às liquidações, da Alfândega de Braga, resultantes das DAV n.º 2019/..., de 05.09.2019 e n.º 2019/..., de 06.09.2019, o presente pedido de pronúncia arbitral, foi deduzido extemporaneamente relativamente às liquidações n.ºs 2019/..., de 04.09.2019, e 2019/..., de 05.09.2019.

 

A este propósito, constata-se que, de acordo com a informação constante das DAV, junto ao PAT, a Requerente foi notificada das DAV, em 05.09.2019 e 06.09.2019, respectivamente, sendo que o termo de prazo para pagamento se verificou em 18.09.2019 e 19.09.2019.

 

Nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, em conjugação com o n.º 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o prazo para apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral é de 90 dias, contados a partir do termo do prazo para pagamento da prestação tributária, que, no caso vertente, ocorreu, em 18.09.2019 e em 19.09.2019.

 

Face à omissão, no Regime da Arbitragem Tributária, de norma que disponha sobre as regras de contagem dos prazos, haverá que recorrer ao direito subsidiário, conforme o disposto no artigo 29.º, n.º 1, do mesmo regime, designadamente nos termos da alínea a) do mesmo preceito, às normas do CPPT aplicáveis à interposição de impugnação judicial, uma vez que a arbitragem tributária constitui um meio processual de natureza alternativa em relação à impugnação judicial (veja-se nesse sentido o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 210/2011, que aprovou o Regime, bem como o n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que autorizou o Governo a instituir a arbitragem tributária).

 

Assim, dispõe o artigo 20.º, n.º 1 do CPPT que à interposição de impugnação judicial é aplicável o disposto no artigo 279.º do Código Civil.

 

Deste modo, sendo o prazo para dedução de pedido de constituição de tribunal arbitral um prazo contínuo, que não sofre qualquer suspensão ou interrupção em virtude de férias judiciais, o mesmo terminou em 17.12.2019, quanto à liquidação resultante da DAV 2019/..., e em 18.12.2019, quanto à liquidação resultante da DAV 2019/..., de 06.09.2019.

 

Tendo o pedido de constituição de tribunal arbitral sido apresentado, por transmissão electrónica de dados, em 19.12.2019, o mesmo é intempestivo, verificando-se, pois, a excepção de caducidade do direito de acção relativamente ao acto de liquidação n.º 2019/... e n.º 2019/..., no valor de €405,54 e de €45,83.

 

Vejamos agora a apreciação de mérito quanto aos restantes actos tributários impugnados.

 

C. DO MÉRITO

 

Discute-se nos presentes autos se as liquidações do ISV realizadas violam ou não o disposto no artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), mediante a aplicação da norma do artigo 11.º do Código do Imposto sobre os Veículos (Código do ISV).

 

A este propósito alega a Requerente que a referida norma, aplicável aos veículos portadores de matrículas comunitárias com vista a contemplar no cálculo do imposto devido a desvalorização comercial média dos veículos usados no mercado nacional, prevê uma redução percentual pelo número de anos de uso do veículo, mas apenas na componente cilindrada, deixando de lado a componente ambiental.

 

Segundo a Requerente, a norma aplicada nas liquidações que contesta conduz a que seja cobrado sobre os veículos “importados” de outros Estados Membros da União Europeia um imposto determinado com base em valor superior ao valor real do veículo onerando-os com uma tributação superior à que é aplicada aos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional.

 

Com a fundamentação acima sumariada, conclui a Requerente que deve o presente Tribunal declarar a ilegalidade dos actos tributários identificados e ser restituída à Requerente o montante de €24.244, 94, pago indevidamente, por ilegal.

 

Por sua vez, defende a Requerida, após delinear um quadro geral da legislação nacional aplicável na área da incidência, objectiva e subjectiva, na determinação da base tributável, taxas aplicáveis, facto gerador e exigibilidade do tributo, no tocante à compatibilidade daquela norma do artigo 11.º do Código do ISV com o direito comunitário, que: 

“O actual modelo de fiscalidade automóvel tem, pois, em vista assegurar a coerência entre a tributação de veículos novos e usados, na medida em que a aquisição de uns e de outros se rege pelos mesmos princípios, de justiça fiscal e respeito pelo meio ambiente.”

 

Não obstante, entende a AT que, no âmbito da tributação automóvel, relativamente aos elementos sobre os quais assenta tal tributação, existe uma confusão de conceitos, que são, por natureza, distintos, não podendo estabelecer-se uma equiparação entre a componente cilindrada e a componente ambiental, nem, por isso, consequentemente, ver-lhe aplicados os mesmos critérios, até porque no caso da vertente ambiental, as razões que lhe estão subjacentes não coincidem com as que determinam a tributação que atende à cilindrada do veículo.

 

No que concerne aos automóveis usados, não existem dúvidas que, quanto mais antigos, mais poluentes se tornam, e maiores serão as consequências nefastas para o meio ambiente, pretendendo-se orientar os consumidores na escolha de veículos com menores emissões de dióxido de carbono.

 

Assim, a interpretação do disposto no artigo 110.º do TFUE não poderá deixar de ter em consideração os objectivos ambientais acima referidos, sob pena de se gerarem incoerências insustentáveis entre a política fiscal e a política ambiental.

 

Mais acrescendo que o n.º 2 do artigo 191.º enfatiza o princípio do poluidor pagador ao postular que “A política da União no domínio do ambiente terá por objetivo atingir um nível de proteção elevado, tendo em conta a diversidade das situações existentes nas diferentes regiões da União. Basear-se-á nos princípios da precaução e da ação preventiva, da correção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do poluidor-pagador”.

 

Assim, da interpretação do artigo 110.º do TFUE, em conjugação com a que resulta do artigo 191.º do mesmo tratado, claramente se conclui que o modelo de tributação automóvel português, ao fazer incidir sobre os veículos ligeiros de passageiros, novos e usados, a componente ambiental, não pretende restringir a entrada de veículos em território nacional para proteger a produção nacional, mas tão só direcionar as escolhas dos consumidores para a aquisição de veículos com menores emissões de dióxido de carbono, isto é, mais “amigos do ambiente” tendo por fim último a proteção do ambiente, no estrito cumprimento dos princípios consagrados no artigo 191.º do TFUE.

 

Defende, assim, a AT que a aplicação do disposto no artigo 11.º do Código do ISV não obsta à admissão de veículos usados em território nacional, nem tampouco visa impedir a realização de negócios jurídicos de compra e venda de veículos automóveis, pois, são processadas, diariamente, inúmeras declarações aduaneiras de veículos (DAV), de regularização fiscal de veículos em território nacional, provenientes de outros Estados-membros.

 

Em consequência, defende a AT a legalidade dos actos de liquidação impugnados.

 

Não sendo os actos impugnados legais, então, defende a AT que a interpretação do artigo 11.º do Código do ISV pugnada pelo Requerente sempre terá que se reputar de inconstitucional, pois que, ao atribuir, em resultado de tal aplicação, um desagravamento, que, no caso, redunda na atribuição de um verdadeiro benefício fiscal, tal interpretação deve considerar-se inconstitucional face ao disposto no n.º 2 do artigo 103.º da CRP.

 

E, estando em causa matéria de elevada relevância social, e bem assim, a existência de disposições legais e objectivos de defesa ambiental definidos ao nível da União Europeia, internacional e nacional, não deve ser aplicada à componente ambiental a mesma redução que é aplicada à componente cilindrada no âmbito da tributação automóvel, concretamente no que se refere ao cálculo do imposto.

 

Concluindo a AT que as liquidações de ISV, que aplicaram o artigo 11.º do Código do ISV, foram efetuadas em conformidade com a lei nacional e o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE e nos artigos 66.º e 103.º da Constituição da República Portuguesa.

 

Destarte, tendo os actos impugnados sido efectuados de acordo com o direito nacional e comunitário, não enfermam de qualquer vício, devendo, consequentemente, as liquidações, na parte que vem impugnada, manter-se na ordem jurídica.

 

C. DECISÃO

 

O pedido de pronúncia arbitral alicerça-se em alegado vício de ilegalidade das liquidações de ISV no que respeita ao cálculo da componente ambiental, por se entender que “foram pagos [os impostos] sem que fosse aplicada a percentagem ambiental do imposto”, defendendo a Requerente a aplicação das percentagens de redução por número de anos do veículo sob o valor da componente ambiental.

 

Considerando a posição das partes, os documentos juntos aos autos e os factos apurados, importa considerar antes de mais a legislação aplicável à questão decidenda.

 

Dispõem os artigos 7.º e 11.º do Código do ISV, aplicáveis aos actos de liquidação objecto do pedido arbitral, o seguinte:

 

Artigo 7.º

Taxas normais – automóveis

1 – A tabela A, a seguir indicada, estabelece as taxas de imposto, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, e é aplicável aos seguintes veículos: (Redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro):

a) aos automóveis de passageiros; (Redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro)

b) aos automóveis ligeiros de utilização mista e aos automóveis ligeiros de mercadorias, que não sejam tributados pelas taxas reduzidas nem pela taxa intermédia. (Redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro)

TABELA A

Componente cilindrada

Escalão de cilindrada (em centímetros cúbicos) Taxas por centímetros cúbicos (em euros)           Parcela a abater (em euros)

Até 1000              0,99        769,80

Entre 1001 e 1250            1,07       771,31

Mais de 1250     5,08        5.616,80

(Redação dada pela Lei n.º 2/2020, de 31 de Março de 2020)                     

Componente ambiental

Aplicável a veículos com emissões de CO2 resultantes dos testes realizados ao abrigo do Novo Ciclo de Condução Europeu Normalizado (New European Driving Cycle — NEDC)

Veículos a gasolina

Escalão de CO2 (em gramas por quilómetro)      Taxas (em euros)             Parcela a abater (em euros)

Até 99   4,19       387,16

De 100 a 115      7,33        680,91

De 116 a 145      47,65     5.353,01

De 146 a 175      55,52     6.473,8

De 176 a 195      141,42   21.422,47

Mais de 195        186,47   30.274,29

(Redação dada pela Lei n.º 2/2020 de 31 de Março de 2020)                      

Veículos a gasóleo                         

Escalão de CO2 (em gramas por quilómetro)                     

Taxas (em euros)                           

Parcela a abater (em euros)                      

Até 79   5,24       398,07

De 80 a 95           21,26     1.676,08

De 96 a 120        71,83     6.524,16

De 121 a 140      159,33   17.158,92

De 141 a 160      177,19   19.694,01

Mais de 160        243,38   30.326,67

Componente ambiental               

Aplicável a veículos com emissões de CO2 resultantes dos testes realizados ao abrigo do Procedimento Global de Testes Harmonizados de Veículos Ligeiros (Worldwide Harmonized Light Vehicle Test Procedure — WLTP)                         

Veículos a gasolina                        

Escalão de CO2 (em gramas por quilómetro)      Taxas (em euros)             Parcela a abater (em euros)

Até 110 0,40       39,00

De 111 a 115      1,00        105,00

De 116 a 120      1,25        134,00

De 121 a 130      4,78        561,40

De 121 a 145      5,79        691,5

De 146 a 175      37,66     5.276,50

De 176 a 195      46,58     6.571,10

De 196 a 235      175,00   31.000,00

Mais de 235        212,00   38.000,00

(Redação dada pela Lei n.º 2/2020 de 31 de Março de 2020)                      

Veículos a gasóleo                         

Escalão de CO2 (em gramas por quilómetro)                     

Taxas (em euros)                           

Parcela a abater (em euros)                      

Até 110 1,56       10,43

De 111 a 120      17,20     1.728,32

De 121 a 140      58,97     6.673,96

De 141 a 150      115,50   14.580,00

De 151 a 160      145,80   19.200,00

De 161 a 170      201,00   26.500,00

De 171 a 190      248,50   33.536,42

Mais de 190        256,00   34.700,00

(Redação dada pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro)                        

2 – A tabela B, a seguir indicada, tem em conta exclusivamente a componente cilindrada, sendo aplicável aos seguintes veículos: (Redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro)

a) na totalidade do imposto, aos automóveis ligeiros de mercadorias, de caixa fechada, com lotação máxima de três lugares, incluindo o do condutor, e altura interior da caixa de carga inferior a 120 cm; (Redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro)

b) na totalidade do imposto, aos automóveis ligeiros de mercadorias, de caixa fechada, com lotação máxima de três lugares, incluindo o do condutor, e tração às quatro rodas, permanente ou adaptável; (Redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro)

c) aos automóveis abrangidos pelos n.os 2 e 3 do artigo seguinte, nas percentagens aí previstas; (Redação dada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro)

d) aos automóveis abrangidos pelo artigo 9.º, nas percentagens aí previstas. (Redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro)

TABELA B

Componente cilindrada

Escalão de cilindrada (em centímetros cúbicos) Taxas por centímetros cúbicos (em euros)           Parcela a abater (em euros)

Até 1 250             4,81        3 020,78

Mais de 1 250    11,41     11 005,76

(Redação dada pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro)

3 – Os veículos ligeiros, equipados com sistema de propulsão a gasóleo ficam sujeitos a um agravamento de 500 € no total do montante do imposto a pagar, sendo esse valor reduzido para 250 € relativamente aos veículos ligeiros de mercadorias referidos no n.º 2 do artigo 9.º, com exceção dos veículos que apresentarem nos respetivos certificados de conformidade ou, na sua inexistência, nas homologações técnicas, um valor de emissão de partículas inferior a 0,001 g/km. (Redação dada pela Lei n.º 2/2020 de 31 de Março)

4 – Sempre que o imposto relativo à componente ambiental apresentar um resultado negativo, será o mesmo deduzido ao montante do imposto da componente cilindrada, não podendo o total do imposto a pagar ser inferior a € 100, independentemente do cálculo que resultar da aplicação da tabela A ou da tabela B. (Redação dada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março)

5 – A cilindrada dos automóveis movidos por motores Wankel corresponde ao dobro da cilindrada nominal, calculada nos termos do Regulamento das Homologações CE de Veículos, Sistemas e Unidades Técnicas Relativo às Emissões Poluentes, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 202/2000, de 1 de setembro.

6 – Nas situações previstas na alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º, o montante do imposto a pagar é o que resulta da diferença entre o imposto incidente sobre o veículo após a respetiva operação, atento o tempo de uso entretanto decorrido, e o imposto originariamente pago, exceto nos casos de mudança de chassis, em que o imposto é devido pela totalidade.

7 – (Revogado)

8 – Os veículos que se apresentem equipados com motores preparados para o consumo, no seu sistema de propulsão, exclusivamente de gás de petróleo liquefeito (GPL), gás natural ou bioetenol, são tributados, na componente ambiental, pelas taxas correspondentes aos veículos a gasolina. (Redação dada pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro)

9 – Os veículos que se encontrem equipados com motores preparados para o consumo, no seu sistema de propulsão, de biodiesel são tributados, na componente ambiental, pelas taxas correspondentes aos veículos a gasóleo. (Aditado pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro).

Por sua vez, o artigo 11.º do Código do ISV estabelece o seguinte:

Artigo 11.º

Taxas – veículos usados

1 – O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional: (Redação dada pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro).

 

TABELA D

Tempo de uso   Percentagem de redução

Até 1 ano(1)      10

Mais de 1 a 2 anos          20

Mais de 2 a 3 anos          28

Mais de 3 a 4 anos          35

Mais de 4 a 5 anos          43

Mais de 5 a 6 anos          52

Mais de 6 a 7 anos          60

Mais de 7 a 8 anos          65

Mais de 8 a 9 anos          70

Mais de 9 a 10 anos        75

Mais de 10 anos               80

(Redação dada pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro)

2 – Para efeitos de aplicação do número anterior, entende-se por «tempo de uso» o período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respetivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos.

3 – Sem prejuízo da liquidação provisória efetuada, sempre que o sujeito passivo entenda que o montante do imposto apurado nos termos do n.º 1 excede o imposto calculado por aplicação da fórmula a seguir indicada, pode requerer ao diretor da alfândega, mediante o pagamento prévio de taxa a fixar por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, e até ao termo do prazo de pagamento a que se refere o n.º 1 do artigo 27.º, que a mesma seja aplicada à tributação do veículo, tendo em vista a liquidação definitiva do imposto:

ISV = (V ÷ VR × Y) + C)

em que:

ISV representa o montante do imposto a pagar;

V representa o valor comercial do veículo, tomando por base o valor médio de referência determinado em função da marca, do modelo e respetivo equipamento de série, da idade, do modo de propulsão e da quilometragem média de referência, constante das publicações especializadas do setor, apresentadas pelo interessado; (Redação dada pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro)

VR é o preço de venda ao público de veículo idêntico no ano da primeira matrícula do veículo a tributar, tal como declarado pelo interessado, considerando-se como tal o veículo da mesma marca, modelo e sistema de propulsão, ou, no caso de este não constar de informação disponível, de veículo similar, introduzido no mercado nacional, no mesmo ano em que o veículo a introduzir no consumo foi matriculado pela primeira vez;

Y representa o montante do imposto calculado com base na componente cilindrada, tendo em consideração a tabela e a taxa aplicável ao veículo, vigente no momento da exigibilidade do imposto;

C é o custo de impacte ambiental’, aplicável a veículos sujeitos à tabela A, vigente no momento da exigibilidade do imposto, e cujo valor corresponde à componente ambiental da referida tabela.

4 – Na falta de pedido de avaliação formulado nos termos do número anterior presume-se que o sujeito passivo aceita como definitiva a liquidação do imposto feita por aplicação da tabela constante do n.º 1.

5 – (Revogado).”

 

Como fundamento da ilegalidade da liquidação impugnada encontra-se o artigo 110.º do TFUE, na medida em que a tributação em causa seria mais gravosa para os veículos introduzidos no consumo em Portugal, provenientes de outros Estados Membros de União Europeia do que a que recai sobre veículos usados transacionados no mercado nacional.

 

Com efeito, estabelece aquele preceito - correspondente ao anterior artigo 90.º do TCE – que “Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados- Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares. Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções.”

 

No presente caso, as liquidações de ISV em discussão respeitam a viaturas provenientes de outros Estados Membro da União Europeia, tendo sido considerada as reduções aplicáveis na componente cilindrada. Na componente ambiental não foi considerada qualquer redução em função do número de anos de uso dos veículos, em conformidade com o disposto naquele preceito.

 

Está, assim, em causa determinar-se se a referida norma do artigo 11.º do Código do ISV, na medida em que não considera qualquer redução de imposto em função do número de anos de uso do veiculo na componente ambiental viola ou não o direito comunitário, em especial o já referido artigo 110.º do TFUE e, consequentemente, se a liquidação impugnada se encontra, ou não, ferida de ilegalidade.

 

A questão da conformidade com o direito comunitário das normas nacionais relativas à tributação de veículos usados “importados” de outro Estado Membro tem vindo, de forma recorrente, a ser objecto de apreciação no Tribunal de Justiça da União Europeia.

 

Assim, por exemplo, no caso Nunes Tadeu (Acórdão do TJUE, de 09.03.1995, proc. C-345/03), entendeu o Tribunal que A cobrança por um Estado-Membro de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-Membro é contrária ao artigo 95.° do Tratado CEE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional.

 

Também no caso Gomes Valente (Acórdão do TJUE, de 22-02-2001, proc. C-393/98), foi entendido que “A cobrança por um Estado-Membro de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-Membro é contrária ao artigo 95.° do Tratado CEE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional”.

 

Para além dos referidos casos, indicam-se a título de exemplo de decisões do TJUE no mesmo sentido, o acórdão de 20.09.2007, proc. C-74/06, Comissão das Comunidades Europeias vs República Helénica e o Acórdão de 05.10.2006, processos apensos C-290/05 e C-33/05, Akos Nadasdi.

 

Assim, contrariamente ao defendido pela AT, encontra-se sedimentado na jurisprudência comunitária o entendimento de que “Para efeitos da aplicação do artigo 110.° TFUE e, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados comprados no mercado nacional, que constituem produtos similares ou concorrentes, deve tomar-se em consideração não apenas a taxa da imposição interna que incide direta ou indiretamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados mas também a matéria coletável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.os 27 e 28 e jurisprudência referida).

“27 No caso em apreço, o artigo 11.°, n.° 1, do Código do Imposto sobre Veículos prevê, para efeitos do cálculo do imposto aplicável aos veículos usados importados de outros Estados-Membros, a tomada em consideração de uma desvalorização em função de uma tabela de percentagens fixas que estabelece, designadamente, em 20% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado durante um período de um a dois anos e em 52% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado há mais de cinco anos.

“28 Daqui resulta que a República Portuguesa aplica aos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação no qual, por um lado, o imposto devido por um veículo utilizado há menos de um ano é igual ao imposto que incide sobre um veículo novo similar posto em circulação em Portugal e, por outro, a desvalorização dos veículos automóveis utilizados há mais de cinco anos é limitada a 52%, para efeitos do cálculo do montante deste imposto, independentemente do estado geral real desses veículos.

“30 Deste modo, a regulamentação nacional em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo a pagar pelos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros para Portugal e utilizados há menos de um ano ou há mais de cinco anos é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos.

“31 Por conseguinte, a regulamentação nacional em causa não garante que, nos casos referidos no número anterior do presente acórdão, os veículos usados importados de outro Estado-Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares disponíveis no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110. ° TFUE”. Em conclusão, viria o Tribunal a declarar que “1) A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.° TFUE.”(Ac. de 16-06- 2016, proc. C-200/15, Comissão Europeia vs República Portuguesa).

 

Na sequência da jurisprudência do TJUE, o artigo 11.º do Código do ISV, foi alterado pela Lei n.º 42/2016, de 28/12 passando a ser considerada a desvalorização do veículo, mas tão-somente quanto à componente cilindrada, ficando excluída qualquer redução no tocante à componente ambiental.

 

Contudo, tal como o TJUE tem repetidamente declarado, a tributação automóvel pode assentar em critérios objectivos, como sejam o tipo de motor, a cilindrada e, inclusivamente, uma classificação assente em considerações ambientais. Porém, quando aplicados a veículos usados importados de outros Estados-Membros, o montante de imposto cobrado não pode exceder o montante que se contém no valor residual de veículos usados similares já registados no Estado-Membro de importação. É, pois, constante a orientação do Tribunal de Justiça, no que concerne à interpretação daquele artigo 110.º quando referido a tributação automóvel: um imposto automóvel não deve onerar mais os produtos provenientes de outros Estados‑Membros do que os produtos nacionais similares.

 

Dada a desconformidade do direito nacional com a referida norma comunitária, conforme comunicado de 24.01.2019, a Comissão Europeia deu início a acção judicial contra o Estado Português “por este Estado-Membro não ter em conta a componente ambiental do imposto de matrícula aplicável aos veículos usados importados de outros Estados-Membros para fins de depreciação. A Comissão considera que a legislação portuguesa não é compatível com o artigo 110.º do TFUE, na medida em que os veículos usados importados de outros Estados-Membros são sujeitos a uma carga tributária superior em comparação com os veículos usados adquiridos no mercado português, uma vez que a sua depreciação não é plenamente tida em conta. Se Portugal não atuar no prazo de dois meses, a Comissão poderá enviar um parecer fundamentado sobre esta matéria às autoridades portuguesas.”

 

Têm sido proferidas várias decisões arbitrais no sentido de que o artigo 11.º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no artigo 110.º do TJUE porquanto aquele artigo não pode, em conformidade com o que este artigo dispõe, calcular o imposto sobre veículos usados oriundos de outro EM sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, neste caso, o imposto calculado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no EM de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais (cfr. Decisão Arbitral n.º 572/2019-T, de 30.04.2019, n.º 346/2019, de 2.11.2019, n.º 348/2019, de 31.01.2020, n.º 350/2019, de 27.01.2020, n.º n.º 498/2019, de 31.01.2020).

 

Na verdade, tal como se defende na Decisão n.º 572/2018, de 30.04.2019, “com a alteração legislativa verificada em 2016, com efeitos desde 1 de Janeiro de 2017 e à revelia do disposto no artigo 110.º do TFUE, Portugal deixou de considerar as percentagens de redução de ISV relativas à depreciação das viaturas no que diz respeito à componente ambiental pretendendo-se com isso, segundo a Requerida, “(…) imprimir coerência entre a tributação dos veículos novos e usados” porquanto “(…) o modelo de tributação dos veículos usados, alterado através da Lei do OE/2017, não pretende contrariar o direito comunitário, mas sim respeitar as orientações comunitárias em matéria de reduções das emissões de CO2, tendo em vista o cumprimento das responsabilidade ambientais assumidas no âmbito do Protocolo de Quioto”.

6.84. E, reitera a Requerida que “(…) o princípio da protecção do ambiente está (…) consagrado no artigo 191º do TFUE ao estipular que a política da União contribuirá para a prossecução da preservação, protecção e melhoria da qualidade do ambiente”, pelo que “(…) a interpretação do artigo 110º do TFUE tem de ser efectuada à luz do disposto no artigo 191º do mesmo tratado, sob pena de conflitualidade entre as duas normas”.[17]

6.85. Não obstante a Requerida referir que “(…) o conteúdo do artigo 110º deste tratado proveio do artigo 90º do tratado CE, ao qual ainda não estavam subjacentes as preocupações ambientais, com a acuidade que hoje se colocam”, tal afirmação não será de todo correcta porquanto o artigo 191º do TFUE teve origem no artigo 174º daquele Tratado e também a jurisprudência do TJUE se referiu em diversos momentos às questões ambientais na interpretação do referido artigo 90º, nomeadamente, no já citado processo C-290/05. 6.86. E, recorde-se, em conformidade com o que é defendido pelo Requerente, o Acórdão do TJUE (C-200/15), de 16-06-2016, refere que “este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam (…) a uma imposição superior do produto importado (…)”, sendo que “(…) um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional (…)”.

6.87. Nestes termos, entende este Tribunal Arbitral que, o que deverá aqui relevar é que o artigo 11º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no artigo 110º do TFUE porquanto aquele artigo não pode, em conformidade com o que este artigo dispõe, calcular o imposto sobre veículos usados oriundos de outro EM sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, neste caso, o imposto calculado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no EM de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais.[18]

6.88. Em consequência, será negativa a resposta a dar à questão a decidir, enunciada no ponto 6.28.1., porquanto de entende que a actual legislação portuguesa vertida no artigo 11º do Código do ISV não estão em conformidade com o direito comunitário, designadamente com o disposto no

artigo 110º do TFUE (aplicável por força do artigo 8º, nº 4 da CRP), pelo que determina este Tribunal Arbitral que será de anular parcialmente o acto tributário de ISV objecto do pedido porquanto o mesmo padece de ilegalidade na parte em que não considerou aplicável a redução de ISV relativa à componente ambiental, em conformidade com o disposto no artigo 110º do TFUE.[19]

Questão do reenvio prejudicial

6.89. Para o efeito, analisadas as matérias em presença e considerando a questão a decidir, o Tribunal Arbitral entendeu não ser necessário promover o reenvio prejudicial ao TJUE, nos termos e fundamentos a seguir enunciados.

6.90. O reenvio prejudicial é um mecanismo fundamental do direito da União Europeia, que tem por finalidade fornecer aos órgãos jurisdicionais dos EM o meio de assegurar uma interpretação e uma aplicação uniformes deste direito em toda a União.

6.91. Por força do disposto no artigo 19º, nº 3, alínea b), do Tratado da União Europeia e do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o TJUE é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a interpretação do direito da União e sobre a validade dos actos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

6.92. Os Tribunais nacionais são considerados como Tribunais comuns da ordem jurídica da União Europeia, dado o número considerável de normas e de actos comunitários, constituídos por disposições directamente aplicáveis ou com efeito directo, cabendo aos Tribunais nacionais dos Estados Membros aplica-las nos litígios que lhes sejam submetidos para apreciação, nem como o dever de aplicar o direito comunitário, mesmo contra disposições de direito interno.

6.93. Os Tribunais Arbitrais integram o conjunto de Tribunais nacionais, como expressamente resulta do previsto no artigo 209º da CRP e, enquanto tal, no desempenho activo da sua função arbitral, e atendendo à natureza excepcional do recurso da decisão dos Tribunais Arbitrais em matéria tributária, o legislador nacional deixou expresso no preâmbulo do diploma que aprovou o RJAT que “nos casos em que o tribunal arbitral seja a última instância de decisão de litígios tributários, a decisão é suscetível de reenvio prejudicial em cumprimento do §3 do artigo 267º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”, pelo que se entende que, em caso de dúvida sobre a interpretação de normas jurídicas de Direito Europeu, o Tribunal Arbitral pode recorrer ao mecanismo de reenvio prejudicial.

6.94. Assim, para se recorrer ao processo de reenvio de uma ou mais questões a título prejudicial, para interpretação de uma ou mais normas jurídicas de direito comunitário, originário ou derivado, é necessário que subsistam dúvidas sobre a interpretação do texto em causa, porquanto se o texto a interpretar é perfeitamente claro, não se trata já de interpretar, mas sim de o aplicar, o que é competência do Tribunal incumbido da competência de julgar o caso concreto (aplicando a lei, nacional e/ou comunitária, se for esse o caso).

6.95. Com efeito, o que se impõe a este Tribunal Arbitral é decidir em conformidade com a lei aplicável (nacional e/ou comunitária), dando plena aplicação a ambas, bem assim como aos princípios do sistema do ISV em presença, tendo em linha de conta a jurisprudência do TJUE, relevante no tratamento das matérias em questão.

6.96. Nesta conformidade, face ao acima exposto, e dado que entendeu este Tribunal Arbitral não subsistirem dúvidas quanto à interpretação do artigo 110º do TFUE, foi decidido que não era necessário promover o reenvio prejudicial ao TJUE (para interpretação de qualquer questão prejudicial), por ter à sua disposição todos os elementos necessários para proferir a presente decisão.”

 

No Acórdão de 19.03.2009, do TJUE, que opôs a Comissão Europeia à Finlândia, o Tribunal considerou que o artigo 110.º do TFUE visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de um modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.

Considerando que, nos termos do disposto no artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), “as disposições dos tratados que regem a UE e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito democrático” (sublinhado nosso), entende-se que o direito internacional prevalece sobre o direito interno português e é directamente aplicável em território nacional.

Ora, resulta claro do artigo 110.º do TFUE que Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares, sendo certo que a posição já assumida pela Comissão Europeia e pelo TJUE segue no sentido de resultar da referida base legal a obrigação legal de ser tido em conta a redução sobre a componente ambiental do ISV no cálculo do imposto incidente sobre veículos usados “importados” de outros EM.

Na verdade, o TJUE tem sido claro relativamente ao entendimento que deve ser dado ao artigo 110.º do TFUE, nomeadamente quando defende que o mesmo é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam (…) a uma imposição superior do produto importado (…)”, sendo que “(…) um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional (…)” - Acórdão do TJUE (C-200/15), de 16-06-2016.

Acompanhando o sentido generalizado das decisões arbitrais já proferidas sobre a questão decidenda entende-se que o artigo 11.º do Código do ISV é ilegal quando interpretado e aplicado sem consideração da desvalorização do veículo até o veículo ter mais de um ano de tempo de uso, para efeitos de determinação da componente ambiental.

Nestes termos, entende-se que o artigo 11.º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no artigo 110.º do TFUE porquanto ali se prevê a discriminação sobre veículos usados oriundos de outro EM quanto ao cálculo do imposto, de tal forma que, neste caso, o imposto calculado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no EM de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais

Verifica-se, no caso concreto em análise, que aos actos tributários impugnados foi aplicado o artigo 11.º do código do ISV, que é ilegal atento o disposto no artigo 110.º do TFUE.

Resultando dos documentos juntos aos autos que o Requerente liquidou imposto a mais, por força da aplicação do disposto no artigo 11.º do código do ISV, devem tais actos ser parcialmente anulados, porquanto aqueles padecem de ilegalidade na parte em que não considera aplicável a redução de ISV relativa à componente ambiental, em conformidade com o disposto no artigo 110.º do TFUE.

 

Exceptua-se o acto de liquidação de ISV respeitante à DAV n.º 2019/..., de 23.09.2019 pois, não foi junto qualquer documento que ateste aquele acto ou o seu pagamento.

 

Alega, ainda, a Requerida que o desagravamento fiscal correspondente à componente ambiental redunda na atribuição de um verdadeiro benefício fiscal, pelo que tal interpretação deve considerar-se inconstitucional face ao disposto no n.º 2 do artigo 103.º da CRP, conduzindo a uma desaplicação do artigo 66.º da CRP.

 

Ora, a interpretação desenvolvida por este Tribunal, no caso concreto, relativamente à aplicação do artigo 11.º do Código do ISV não determina a criação de nenhum benefício fiscal, mas sim o cumprimento do disposto no artigo 110.º do TFUE, conforme argumentado acima.

 

Conclui-se, assim, que tendo em conta o disposto no artigo 110.º do TFUE, o artigo 11.º do Código do ISV não padece de inconstitucionalidade por violação do princípio da legalidade tributária no sentido de reserva de lei formal.

 

- Dos Juros Indemnizatórios

De acordo com o disposto no n.º 5, do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, daqui resultando que uma decisão arbitral não se limita à apreciação da legalidade do acto tributário.

De igual modo, de acordo com o disposto no artigo 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, deverá ser entendido que o pedido de juros indemnizatórios é uma pretensão relativa a actos tributários (v.g. de liquidação), que visa explicitar/concretizar o conteúdo do dever de “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”.

Nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.ºs 1 e 2, e 100.º da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

Na sequência da declaração de ilegalidade parcial dos actos de liquidação de ISV identificados, na medida do peticionado pela Requerente e nos termos do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 24.º do RJAT (em conformidade com o que aí se estabelece), “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, pelo que terá de haver lugar ao reembolso parcial do montante pago pelo Requerente, relativos ao ISV na parte em que a liquidação se deve considerar anulada, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade já assinalada.

Nos termos do disposto no artigo 61.º do CPPT, o Requerente tem direito a juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre a quantia de ISV paga indevidamente, os quais serão contados de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 61.º do CPPT, ou seja, desde a data do pagamento do imposto indevido até à data da emissão da respectiva nota de crédito.

Termos em que este Tribunal Arbitral decide:

a) não declarar a inconstitucionalidade do artigo 11.º do Código do ISV;

 

b)  julgar procedente a excepção de caducidade do direito de acção relativamente ao acto de liquidação n.º 2019/... e n.º 2019/..., no valor de €405,54 e de €45,83.

b) julgar improcedente o pedido de anulação do acto de liquidação de ISV- DAV n.º 2019/..., de 23.09.2019;

c) julgar procedente a anulação parcial dos restantes actos tributários de ISV objecto do pedido;

d) Condenar a Administração Tributária e Aduaneira a restituir à Requerente o montante de imposto pago a mais, acrescido de juros indemnizatórios.

 

4. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 305.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de €24.244,94 (vinte e quatro mil, duzentos e quarenta e quatro Euros e noventa e quatro cêntimos)

 

5. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €1.530, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, 15% a cargo da Requerente e o restante a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

               

Lisboa, 25.06.2020

 

A Árbitro,

(Magda Feliciano)