Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 787/2020-T
Data da decisão: 2021-12-07  IVA  
Valor do pedido: € 316.548,00
Tema: IVA - Taxas. Princípio do inquisitório. Falta de fundamentação. Errónea qualificação: ónus da prova. Errónea quantificação: método de cálculo.
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SUMÁRIO

 

I – A impugnação judicial ou a decisão arbitral não estão limitadas ou condicionadas pelos fundamentos invocados na reclamação graciosa, podendo ter como fundamento qualquer ilegalidade do ato tributário.

II - No cumprimento do princípio do inquisitório, recai sobre a AT o dever de realizar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade. Em contraponto, impende sobre os sujeitos passivos um dever de colaboração consagrado no artigo 59.º da Lei Geral Tributária.

III - No caso sub judice, a Requerida teria de provar porque aplicou a taxa normal de 23% e a Requerente de provar porque considera que a taxa correcta a aplicar é a taxa intermédia ou reduzida.

 

DECISÃO ARBITRAL

1. RELATÓRIO

 

1.1  A..., S.A. com o número único de pessoa colectiva e matrícula ... e sede na ..., n.º..., ...-... Lisboa, veio, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº1 dos artigos 2º e 10º do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, pedir a constituição de Tribunal Arbitral a 28 de Dezembro de 2020.

1.2  É Requerida nos autos a Autoridade Tributária e Aduaneira.

1.3  O Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou os signatários para formarem o Tribunal Arbitral Colectivo, disso notificando as partes, e o Tribunal foi constituído a 21 de Maio de 2021.

1.4  O pedido de pronúncia arbitral tem por objecto imediato a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2020..., e por objecto mediato a declaração da ilegalidade dos actos tributários de liquidação adicional do IVA relativos ao ano de 2016 que vão melhor identificados na peça da Requerente e a sua correspondente anulação.

A Requerente invoca, como fundamentos daqueles pedidos, o incumprimento do ónus de prova, quanto à utilização de taxas reduzidas e intermédias de IVA, a violação dos princípios da descoberta da verdade material e do inquisitório, a falta de fundamentação e a ilegalidade da quantificação do imposto em dívida por referência ao enquadramento nas taxas aplicáveis.

1.5  A Requerida respondeu, a 22 de junho de 2021 e juntou nessa mesma data aos autos o processo administrativo.

 

Na sua resposta, a Requerida alega que o valor económico do processo atribuído pela Requerente não se encontra correcto por um lado, porque a Requerente não reclamou de parte das correcções efectuadas, por outro, porque a Requerida deferiu parcialmente a reclamação graciosa e, finalmente, no que respeita ao valor dos juros compensatórios, que a Requerente não os inclui no pedido como, entende a AT, devia.

 

A consequência é, entende a AT por exceção, a inimpugnabilidade da parte já deferida pela AT, bem como a incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar a ilegalidade total dos actos de liquidação adicional de IVA e juros compensatórios, porquanto as mesmas se encontrarem influenciadas por correcções que não foram contestadas pela Requerente e que agora não podem ser repristinadas, atenta a existência de caso julgado e, bem assim, por intempestividade.

Mais se defende impugnando o alegado no pedido de pronúncia arbitral relativamente à suposta violação da descoberta da verdade material e inquisitório, falta de fundamentação e da errada quantificação – “IVA por dentro”.

1.6  O Tribunal proferiu, a 25 de junho de 2021, despacho arbitral convidando a Requerente a pronunciar-se quanto àquela matéria de exceção.

1.2  Em resposta, a Requerente veio, por requerimento de 5 de Julho de 2021, apresentar alegações escritas.

Nestas, sustenta que a tese da (in) divisibilidade do acto tributário que a Requerida invoca para sustentar a incompetência do Tribunal Arbitral não é correcta e invoca o Acórdão do STA de 12 de junho de 2016, proferido no nº 0427/16, para defender que a decisão arbitral não está limitada ou condicionada pelos fundamentos invocados na reclamação graciosa e pode ter como fundamento qualquer ilegalidade do acto tributário.

Quanto ao valor económico do processo, a Requerente pugna no sentido de que os juros compensatórios não fazem parte do valor económico, uma vez que são liquidados autonomamente.

Ademais, defende, não se verifica a inimpugnabilidade do acto pois o valor de 8.899,70€, que foi deferido na reclamação graciosa, não está abrangido pelo pedido de declaração de ilegalidade.

Quanto à matéria da quantificação do imposto, sustenta que o ónus de prova não recai sobre si, dado que o elevado número de elementos que teria de inserir manualmente numa folha de excel representaria um excesso do dever normal de colaboração entre as partes.

Também a inspecção tributária, defende, incumpriu com o seu dever de apuramento da verdade material, já que a inspecção se limitou a exigir elementos informático aquando do decurso do procedimento e que tudo isto, no seu entender, levou a que a Requerente não pudesse exercer o seu direito de audição, por ser demasiado oneroso.

Mantém a sua posição quanto à falta de fundamentação e, por fim, continua a sustentar que o IVA deve ser calculado por dentro, já que o preço final não pode ser alterado e o IVA a apurar tem de estar abrangido no preço final exigido e suportado pelo consumidor final, que consubstancia despesa sujeita a imposto.

1.8  O Tribunal, em face das alegações apresentadas pela Requerente, proferiu despacho arbitral aos 6 de Julho de 2021, no qual, atendendo a que nenhuma das partes requerera a produção de prova adicional, dispensou a reunião prevista no art. 18.º do RJAT, e convidou a Requerida a juntar, querendo, as suas alegações escritas.

1.9  A Requerida juntou alegações escritas 3 de Setembro de 2021, limitando-se a remeter para o aduzido em sede de Resposta.

 

 

2. SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas.

O processo não sofre de quaisquer vícios que o invalidem.

A Requerida invoca, na sua resposta, matéria de exceção que o Tribunal, porém, entende não ter condições para decidir sem uma análise e um julgamento prévio acerca da matéria de facto, pelo que se relega a apreciação e decisão para essa fase.

 

 

3. MATÉRIA DE FACTO

 

Com relevância para a decisão de mérito, o Tribunal considera provada a seguinte factualidade:

 

  1. A Requerente é uma sociedade anónima de direito português, constituída a 2 de Agosto de 1991, que desenvolve a sua principal actividade económica no sector do comércio a retalho de artigos alimentares e outros em supermercados e hipermercados, sendo sujeito passivo de IRC no regime especial de tributação de grupos.
  2. Encontra-se também inscrita como sujeito passivo de IVA, enquadrada no regime normal de periocidade mensal.
  3. Em cumprimento da Ordem de Serviço nº OI2019..., os Serviços de Inspecção Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes – Divisão de Inspecção a Empresas Não Financeiras, desencadearam uma acção inspectiva externa, de âmbito parcial, em sede de IRC e IVA, tendo a mesma visado a verificação da situação tributária da Requerente e incidido sobre os elementos contabilísticos e fiscais da Requerente referentes ao ano de 2016.
  4. Na sequência da acção inspectiva em apreço, a Requerente foi notificada através do Ofício nº... para exercer o seu direito de audição relativamente às propostas de correcção fiscais constantes do Projecto de Relatório da Inspecção Tributária.
  5. A Requerente não exerceu o direito de audição.         
  6. No Relatório de Inspecção Tributária (RIT), da qual foi notificada através do Ofício nº... de 27 de Dezembro de 2019, foram mantidas as correcções propostas pela AT.
  7. As correcções efectuadas tiveram como fundamento o facto de a AT entender que determinados bens, identificados no RIT, foram “indevidamente comercializados às taxas reduzida e intermédia” do IVA devendo, a sua tributação ter sido efectuada à taxa normal a que se refere a al. c), do n.º 1 do artigo 18.º do CIVA, ou seja, à taxa de 23%.
  8. Como tal, a AT procedeu a correcções pela alegada falta de entrega de IVA nos cofres do Estado respeitante a 392 produtos. 
  9. Correcções que correspondem à diferença entre o IVA liquidado pelo sujeito passivo e o valor apurado após reenquadramento na taxa normal de imposto prevista na al. c) do nº1 do artigo 18.º do CIVA.
  10. Em consequência, foram efectuadas as liquidações adicionais de IVA, num total de 316.548,63€, e de juros compensatórios, num total de 41.802,50€, constantes do quadro infra:

Uma imagem com mesa

Descrição gerada automaticamente

 

  1. A Requerente procedeu ao pagamento daqueles valores em causa dentro do prazo de pagamento voluntário.
  2. A Requerente, em 22 de junho de 2020, apresentou reclamação graciosa contra aqueles actos de liquidação, que foi autuada com o n.º ...2020..., no valor de € 317,818, 90, cujas cópias se encontram juntas como documento 1, e respetivas liquidações de juros compensatórios no montante total de € 41.802, 50, cujas cópias se juntam como documento 2.
  3. A Requerente na reclamação junta 54 anexos de suporte, que incluem fichas técnicas que caracterizam os produtos e informações vinculativas, documentos que se dão por reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos (ver reclamação graciosa e RIT).
  4. A reclamação graciosa foi deferida parcialmente em € 8.899,70, no que toca aos produtos enquadrados na verba 1.4.7. da Lista I, anexa ao CIVA “leites achocolatados, aromatizados, vitaminados ou enriquecidos” (pontos 51º a 54º da petição da reclamação graciosa).
  5. A Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa por carta registada remetida a 16 de Setembro de 2020.

 

Factos não provados

 

Não foram alegados pelas partes quaisquer outros factos, com relevo para a apreciação do mérito da causa, que não se tenham provado.

 

Fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto

 

A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se nas alegações da Requerente e da Requerida nas suas várias peças processuais, não contraditadas pela parte contrária, sustentadas na prova documental junta quer por ambas e, bem assim, pelo Processo Administrativo, cuja autenticidade e correspondência à realidade também não foram questionadas.

 

 

4. MATÉRIA DE DIREITO - QUESTÕES DECIDENDAS

 

 

Conforme referido supra, a pretensão da Requerente tem como objecto imediato, nos termos da petição inicial apresentada, a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2020... .

A Requerente invocou, para o efeito, um conjunto de vícios contra os atos tributários materializados em liquidações adicionais de IVA que se mantêm na ordem jurídica (exceto quanto ao montante de € 8.899,70, que corresponde à parcela da reclamação que foi deferida pela Requerida AT).

 

4.1. Por exceção, a Requerida AT alegou:

 

  1. Incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar a ilegalidade total dos actos de liquidação adicional de IVA e juros compensatórios;
  2. Existência de revogação parcial e consequente inimpugnabilidade do acto;

 

A Requerente sustenta a propósito da formação dos actos de liquidação:

 

  1. Violação dos princípios da verdade material e do inquisitório;
  2. Falta de fundamentação do acto;

 

E, ainda, a propósito dos actos propriamente ditos:

 

  1. Ilegalidade, por errónea qualificação – quanto à taxa aplicável - e quantificação - quanto à forma de apuramento ou cálculo - do imposto;

 

Havendo, finalmente, que decidir a questão da:

 

  1. Utilidade económica do pedido e do valor da acção.

 

Cumpre, portanto, apreciar e decidir

 

  1. Da alegada incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar a ilegalidade total dos actos de liquidação adicional de IVA e juros compensatórios

 

A Requerida invoca na sua resposta, como exceção dilatória, que o Tribunal Arbitral não é competente para apreciar a ilegalidade total dos actos de liquidação adicional de IVA e juros compensatórios.

Contextualizando, entende a Requerida AT que, em sede de reclamação graciosa, a Requerente, procedeu ao pagamento das liquidações adicionais e correspondentes juros compensatórios e aceitou correcções no valor de 113.594,33€, tendo confessado que, de facto, 197 produtos deveriam ter sido tributados à taxa normal de 23% e que tal não sucedeu por mero lapso na parametrização dos produtos em sistema, gerador na incorrecta liquidação a taxas reduzidas.

Nessa decorrência, a Requerente terá vindo, agora, colocar em causa as restantes correcções efectuadas pela inspecção tributária, relativas a 195 produtos, no valor de 204.224,57€.[1]

Assim, entende a Requerida AT que a parte das correcções que a Requerente não reclamou constitui uma renúncia expressa, o que, por sua vez, constitui caso julgado o que, no seu entender, retira competência ao Tribunal para apreciar o pedido de pronúncia arbitral.

 

Por outro lado

 

  1. Da alegada existência de revogação parcial e inimpugnabilidade consequente do acto:

 

A Requerida também invoca, na mesma resposta, como exceção dilatória, que os actos tributários de liquidação (imposto e respectivos juros compensatórios) foram revogados parcialmente por força da decisão de deferimento parcial prolatada no procedimento de reclamação graciosa, pelo que, nessa parte, também não podem ser objecto de pronúncia por parte do Tribunal Arbitral, sendo inimpugnáveis.

 

Vejamos.

A Requerente apresentou Reclamação Graciosa contra os atos tributários materializados em identificadas liquidações adicionais de IVA, efetuadas na sequência de um procedimento de inspeção em que foram feitas correções no montante de € 317 818,90.

Mais tarde, e face ao indeferimento da reclamação graciosa, a Requerente propôs pedido de pronúncia arbitral no qual contestou a decisão de indeferimento da reclamação com base em vícios que alega padecerem os mesmos atos tributários materializados nas mesmas liquidações adicionais que se mantêm na ordem jurídica (exceto quanto ao montante de € 8.899,70, que corresponde à parcela da reclamação que foi deferida).

Como se decidiu no Acórdão do STA de 12-10-2016, no Processo n.º 0427/16 e constitui jurisprudência consolidada, “a impugnação judicial de indeferimento de reclamação graciosa tem por objecto imediato a decisão da reclamação e por objecto mediato os vícios imputados ao acto de liquidação”, e, assim, também “ cabe ao tribunal conhecer dos restantes vícios imputados ao acto tributário, uma vez que este é competente para conhecer em tal impugnação, quer do indeferimento da reclamação, quer dos vícios imputados ao acto tributário”.

Com efeito, de acordo com o artigo 99.º do CPPT, constitui fundamento de impugnação qualquer ilegalidade do ato, não se fazendo aí qualquer restrição relativamente aos vícios do ato de liquidação que podem ser invocados, isto é, qualquer limitação aos vícios invocados na reclamação graciosa.

Não é pelo facto de a reclamação graciosa poder ser deduzida com os mesmos fundamentos previstos para a impugnação judicial (artigo 70.º, n.º 1 do CPPT) que a impugnação judicial tem de ficar condicionada ou limitada aos fundamentos invocados naquela, como resulta do Acórdão do TCAN, de 17-12-2015, no Processo n.º 369/04.8BEPRT, que aqui se transcreve: “2- Não incorre em excesso de pronúncia, a sentença que apreciou e decidiu uma ilegalidade do acto tributário invocada na impugnação judicial e que não havia sido suscitada no âmbito da fase graciosa. 3 – Na impugnação judicial subsequente a decisão da AT que recaia sobre reclamação graciosa podem e devem, os órgãos jurisdicionais conhecer de todas as ilegalidades de substância que afectem o acto tributário impugnado, quer essas ilegalidades tenham ou não sido suscitadas na fase graciosa do litígio”.

Esta questão foi igualmente objeto de apreciação e decisão no Acórdão do STA (Pleno) de 03-06-2015, no Processo n.º 0793/14, onde ficou expressamente consignado que “Na impugnação judicial subsequente a decisão da AT que recaia sobre reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa do acto tributário, podem, e devem, os órgãos jurisdicionais conhecer de todas as ilegalidades de substância que afectem o acto tributário em crise, quer essas ilegalidades tenham ou não sido suscitadas na fase graciosa do litígio, impondo-se-lhes um dever acrescido quando se tratem de questões de conhecimento oficioso.”

Não pode, por isso, deixar de se acompanhar o Requerente no raciocínio que empreendeu nas alegações apresentadas.

Com efeito a anuência da então Reclamante quanto ao enquadramento de certos produtos em termos de taxas de IVA aplicáveis, não significa que se tenha constituído “caso julgado quanto a estas correções”, porque podem (ainda) ser alegadas quaisquer ilegalidades ainda que não tenham sido suscitadas na fase graciosa do litígio.

Acresce que nunca podia tal anuência ser equiparada à renúncia ao direito de impugnação ou recurso prevista no artigo 96.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária que, como resulta da lei, “só é válida se constar de declaração ou outro instrumento formal” o que, claramente, não ocorreu na situação sub judice.

          Na verdade, como se reconhece no Acórdão do TCAS, de 27-04-2017, Processo 08958/15, “As impugnações administrativas constituem formas de tutela do contribuinte perante o Fisco, de forma que a instauração do seu procedimento reabre a apreciação da situação subjacente ao acto tributário, o qual não se consolida até ao trânsito em julgado da decisão judicial incidente sobre a sua impugnação”.

Com efeito, sendo os atos tributários impugnados os materializados em todas as identificadas liquidações adicionais de IVA, líquidas do montante anulado, devem ser conhecidas todas as ilegalidades de substância que as afetem, ainda que não tenham sido suscitadas na fase graciosa do litígio, e que foram agora invocadas pela Requerente.

Como se refere no Acórdão do TCS de 27-04-2017, no Processo 08958/15 “Associar o efeito preclusivo da competência do tribunal à não invocação na sede administrativa de certo vício fundamento do pedido de pronúncia arbitral colide com o regime das impugnações administrativas como garantias dos contribuintes no quadro do direito à tutela jusrisdicional efectiva”

Portanto, no caso sub judice, não está em causa a questão da divisibilidade do ato, como pretende a Requerida AT, que é relevante para saber se, relativamente a uma liquidação de imposto, o Tribunal pode ou não determinar a sua anulação parcial, mas saber que vícios podem ser invocados na impugnação judicial relativamente a um ato tributário, contestado em reclamação graciosa.

Por isso, deve concluir-se que a impugnação judicial ou a decisão arbitral não estão limitadas ou condicionadas pelos fundamentos invocados na reclamação graciosa, podendo ter como fundamento qualquer ilegalidade do ato tributário.

Razão pela qual entende-se não estarem verificadas as duas exceções dilatórias invocadas pela Requerida.

Cumpre, por isso, apreciar os vícios invocados pela Requerente relativamente à totalidade das liquidações adicionais sub judice.

 

  1. Da alegada violação dos princípios da descoberta da verdade material e do inquisitório:

 

A Requerente alega que a Requerida não procedeu, na inspecção externa a que a submeteu, de acordo com o princípio do inquisitório que deve nortear a sua actuação e não respeitou o fim da inspecção, que é a descoberta da verdade material.

Sustenta que essa finalidade foi frustrada quando, em face da impossibilidade manifestada pela Requerente de fazer constar no ficheiro, para cada produto, a identificação das verbas correspondentes às Tabelas I e II do CIVA, em vez de a Requerida, em obediência ao referido princípio do inquisitório, procurar saber quais os elementos de prova que a Requerente tinha para o enquadramento dos controvertidos produtos, optou simplesmente por considerar que um conjunto de produtos estava sujeito à taxa normal.

Vejamos.

O princípio do inquisitório encontra-se consagrado no artigo 58.º da Lei Geral Tributária e consubstancia-se no dever na AT de realização oficiosa de todas as diligências necessárias para a descoberta da verdade material. O artigo 6.º do RCPITA, que a Requerente também invoca, é uma concretização, em sede de inspecção tributária, deste mesmo princípio.

O inquisitório é um princípio conformador da actividade da AT, na formação do acto lesivo dos interesses legalmente protegidos dos administrados e é, por isso, uma garantia não impugnatória do sujeito passivo.

Está aquém do ónus da prova, pelo que a verdade material ínsita no supracitado artigo se consubstancia numa verdade extraprocessual, que não é aquela que se afere pela prova ou não prova de factos.

No cumprimento do princípio do inquisitório, recai sobre a AT o dever de realizar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade. Em contraponto, impende sobre os sujeitos passivos um dever de colaboração consagrado no artigo 59.º da Lei Geral Tributária.

Contudo, perante um contribuinte não colaborante, a AT não está obrigada a repetir as tentativas de obter a sua colaboração para a investigação de um determinado facto. Pode legitimamente abandonar a busca da colaboração do contribuinte sem que tal implique qualquer violação do seu dever de inquirir.

No caso concreto, a Requerente não colaborou aquando da solicitação da Requerida de fazer constar num ficheiro informático, para cada produto, a identificação das verbas correspondentes às Tabelas I e II do CIVA, alegando que isso lhe seria demasiado exigente e oneroso.

E, sendo certo que a AT continua vinculada à investigação que a leva à descoberta da verdade material, mesmo sem a colaboração da Requerente, consultando os elementos disponíveis no processo ou diligenciando a descoberta de novos elementos, também é verdade que a Requerente podia e devia ter indicado à AT os meios de que esta poderia lançar mão com vista à descoberta da verdade material e dos quais o sujeito passivo não dispusesse ou que lhe fosse demasiado oneroso organizar e dos quais a AT dispusesse com maior facilidade, o que não fez.

Com a sua escolha em não colaborar e em não exercer o direito de audição, a Requerente introduziu na procura pela verdade material durante o procedimento inspectivo um desequilíbrio contra si própria, pelo que refugiar-se numa suposta violação do princípio do inquisitório constituiria um abuso de direito, sobre a forma de venire contra factum proprium, com a qual o Tribunal não deve pactuar.

            Este abuso, ainda que não invocado pela Requerida, é do conhecimento oficioso, podendo aqui ser conhecido e declarado e determina que deva improceder o pedido de anulação com base na violação dos princípios da descoberta da verdade material e do inquisitório.

            Prosseguindo na análise dos argumentos da Requerente,

 

  1. Da alegada falta de fundamentação dos actos de liquidação:

 

A Requerente alega que a Requerida terá violado o dever de fundamentação que lhe assistia no âmbito da inspecção tributária, já que, segunda ela, o RIT se limitava a elencar os produtos que entendia terem de ser tributados à taxa normal de IVA de 23% e a apresentar o apuramento do alegado imposto em dívida sem a fundamentação devida.

É verdade que o artigo 62.º do RCPITA impõe que o RIT tenha de conter os meios de prova utilizados e a fundamentação de todas as correcções que tiverem sido feitas.

Mais. O próprio artigo 77.º da LGT prevê que o procedimento deve sempre ser fundamentado e que a fundamentação se baseie em razões de facto e de direito, que devem ser sucintamente expostas.

A razão de ser dessa necessidade de fundamentação é assegurar que as razões factuais e jurídicas sejam cognoscíveis pelo interessado de forma clara, para que este possa exercer o seu direito de defesa.

Ou seja – como a própria Requerente admitiu - a melhor ou pior fundamentação é essencialmente aferida segundo aquilo que o interessado entende e segundo a defesa que consegue apresentar.

Ora, no caso em apreço, a forma como a Requerente exerceu o seu direito de defesa demonstra que compreendeu perfeitamente todos os pontos do RIT, que, aliás, teve o cuidado de contradizer de forma especificada. É de senso comum que se, efectivamente, a Requerente não conseguisse entender o que lhe estava a ser apontado, não se conseguiria defender.

Mais, a Requerente reconheceu parte das correcções feitas pela Autoridade Tributária, admitindo que, foi ela própria, quem cometeu um erro na parametrização dos produtos, o que demonstra que o acto estava suficientemente fundamentado. Estava de tal forma fundamentado que conseguiu “convencer” a Requerente das correcções feitas no valor de 113.594,33 €. Parece óbvio que, se tais correcções não estivessem suficientemente bem justificadas e demonstradas, a Requerente jamais daria razão à AT.

Não se afigura, pois, ao Tribunal que tenha havido preterição do dever de fundamentação. A Requerente foi capaz de compreender e de cabalmente reagir contra o RIT, pelo que confunde a falta de fundamentação com aquilo que é, na verdade, a sua discordância com os fundamentos da liquidação adicional efectuada pela Autoridade Tributária.

Deve, portanto, improceder o pedido de anulação dos actos de liquidação que tem por causa a respectiva falta de fundamentação.

 

Aqui chegados,

 

  1. Da ilegalidade dos actos de liquidação por errónea qualificação (aplicação da taxa) e respectiva errónea quantificação (método de cálculo) da matéria colectável e do tributo:

 

e demonstrando que bem percebeu a fundamentação dos actos de liquidação, a Requerente divide a questão da ilegalidade daqueles actos em duas.

Numa primeira, coloca em causa a qualificação, i.e., a decisão de aplicar a taxa normal de IVA aos produtos em causa e, a esse propósito, na maioria dos casos nada de concreto oferece em sua defesa, limitando-se a afirmar que o ónus de prova de aplicação da taxa específica a aplicar a cada um dos produtos recai sobre a Requerida.

Numa segunda, põe em causa a quantificação. i.e., o método de cálculo do imposto a pagar.

Começando pela questão da qualificação, i.e., da taxa a aplicar, a Requerente não explica, na grande maioria dos casos, a sua decisão de não aplicar a taxa normal aos produtos em causa, antes se limita a colocar a questão em sede de ónus da prova e entende que este pertence à Requerida.

Melhor dizendo, a Requerente entende que é a Requerida quem tem de provar por que razão, no caso em apreço, não se poderia aplicar a taxa intermédia ou reduzida de IVA.

O artigo 74.º, n.º 1, da LGT prescreve que o ónus da prova sobre os factos constitutivos dos direitos recai sobre quem os invoque. Isto significa que há uma repartição do ónus da prova: a Requerente tem de provar os factos constitutivos do direito que se arroga e, por sua vez, a Requerida tem de provar os factos impeditivos da verdade presumida que resulta da declaração dos contribuintes, já que as declarações dos contribuintes, nos termos do artigo 75º da Lei Geral Tributária, gozam da presunção de veracidade.

Ora, transpondo a regra para o caso sub judice, a Requerida teria de provar porque aplicou a taxa normal de 23% e a Requerente teria de provar porque acha que a taxa correcta a aplicar é a taxa intermédia ou reduzida.

Acontece que as Listas I e II do CIVA têm carácter excepcional, sendo a regra a do enquadramento na taxa normal.

Face a este carácter excepcional, não pode deixar de se considerar que é ao sujeito passivo que cabe a prova dos pressupostos do respectivo enquadramento.

Ainda que assim não fosse, no caso em apreço a presunção de veracidade das declarações da Requerente não podia deixar de ceder face à sua recusa de esclarecimento da sua situação tributária, que foi patente na sua falta de entrega de listagem com a identificação das verbas nas quais se integrava cada produto.

Note-se, aliás, que a Requerente aceita que é sobre si, ao menos inicialmente, que tal ónus impende.

Veja-se o que a esse propósito diz no ponto 14 do pedido de pronúncia arbitral: “A Requerente não desconhece que, estando perante a utilização de taxas reduzidas em sede de IVA, nos termos do artigo 74.º da LGT, recai sobre si o ónus de prova da utilização dessas taxas.”.

O que a Requerente sustenta é que “essa prova pode ser feita por todos os meios admitidos em direito, não tendo necessariamente de ser materializada num ficheiro informático”, “o que poderá conduzir adicionalmente a recolha de informação adicional sobre a composição do produto, recolha de informação fiscal e inclusive o pedido de parecer fiscal ou informação vinculativa sobre o seu enquadramento” e que “a Requerente não foi notificada para apresentar estes elementos como prova da sujeição dos controvertidos produtos às taxas reduzida ou intermédia”.

Acontece que, como é óbvio, a Requerente, se tinha outos meios de prova, que não o ficheiro informático que a inspecção pedia, não estava impedida de os juntar na inspecção, apesar de não estar expressamente notificada para o efeito.

Não estava, bem assim, se a obtenção da prova lhe fosse difícil ou excessivamente onerosa, impedida de pedir à equipa inspectiva que efectuasse diligências de obtenção de prova ou de indicar onde tal prova poderia se obtido, à luz dos princípios da colaboração e do inquisitório e com vista à descoberta da verdade material.

Tendo-se colocado numa postura passiva, limitando-se a alegar que não foi notificada para juntar prova diversa, que aquela que foi notificada para juntar não era competente e que outra lhe seria demasiado onerosa, a Requerente não cumpriu o ónus que, reconhece, impendia sobre ela.

Nenhuma das circunstâncias alegadas pela Requerente tem, à luz da lei, o efeito de inverter o ónus da prova. A lei não prevê exceção à regra em função da maior ou menor dimensão dos sujeitos e o recurso às regras de bom senso, aliás, não sustenta a conclusão que a Requerente pretende.

O grupo A..., S.A, enquanto empresa com a actividade principal no âmbito de supermercados e hipermercados e com um capital social na ordem dos milhões de euros, por certo terá meios humanos mais do que suficientes e beneficiará do apoio de um sistema informático sofisticado que lhe permita identificar os produtos em causa e as razões que determinaram o seu enquadramento nas taxas de imposto que lhes aplicou em vez da taxa normal. Não se pode aceitar que organizar uma folha de excel seja tarefa demasiadamente onerosa de tal modo que fique invertido, como pretende a Requerente, o ónus da prova.

Por tudo isto, o Tribunal entende que é a Requerente quem tem o ónus de provar a aplicação da taxa específica aos produtos em causa. 

Ora, a esse respeito, a Requerente não oferece propriamente prova, para além da referenciada no RIT e nos factos dados como provados. Na verdade, o que a Requerente faz é, fundamentalmente, repetir a argumentação jurídica já aduzida na reclamação graciosa e, aliás, o mesmo faz a Requerida.

Porém, em bom rigor, a subsunção a conceitos de produtos constantes de cada uma das tabelas de IVA é matéria que já vinha assente antes de chegar a este Tribunal.

Não foi atacada pela Requerida a veracidade das fichas técnicas dos produtos em causa e a Requerente, que não os fabrica, não pode asseverar a respectiva composição.

Tão pouco a Requerida, na reclamação, atacou a veracidade dos demais documentos juntos pela Requerente.

Nesta sede a questão já não é, portanto, de facto, que cumpra ainda ao Tribunal julgar, sendo, pois, irrelevante a questão do ónus da prova.

Trata-se tão só matéria de direito, cabendo ao Tribunal apenas analisar a argumentação jurídica aduzida pelas partes e emitir pronúncia.

 

Vejamos, então:

 

Da correcção ao montante de IVA liquidado relativamente aos produtos enquadrados na verba 1.1.3 da Lista I, anexa ao CIVA “Farinhas, incluindo as lácteas e não lácteas", por incorrecta aplicação da taxa reduzida de IVA:

 

            Os produtos "...: ..."; "...”; "..."; "..."; "...: " são compostos por farinhas, conforme resulta das fichas técnicas anexas à reclamação graciosa e à informação disponível nos sites dos fornecedores em causa.

            A definição de farinha consta dos artigos 2.º e 3.º da Portaria n.º 254/2003, de 19 de março.

É entendimento da AT que se enquadra na verba 1.1.3 da Lista I anexa ao IVA “qualquer tipo de farinha de cereais estreme, mistura, composta, corrigida ou autolevedante, bem como as farinhas lácteas e não lácteas, na condição de que os produtos, na sua apresentação comercial, respeitem as normas de rotulagem e quantidades estabelecidas na Portaria n.º 254/2003.” Este entendimento encontra-se vertido, inter alia, na ficha doutrinária referente ao processo n.º 16.979. A Requerente invoca ainda outras informações vinculativas da AT similares, na parte final do artigo 61.º da petição inicial.

Sucede que, no caso dos produtos "...: ..." e "...", estes contém farinhas não lácteas, conforme decorre das fichas técnicas e da informação disponível, sendo comercializadas de forma a ficar evidente, perante o consumidor final, que estão em causa farinhas pelo que não pode deixar de se considerar que respeitam a formal apresentação de farinha.

O mesmo sucede relativamente aos restantes quatro produtos, conforme resulta da consulta das respetivas fichas técnicas ou informações disponíveis.

Assiste, por isso, razão à Requerente, podendo estes produtos ser tributados à taxa reduzida de IVA.

 

Da correcção ao montante de IVA liquidado relativamente aos produtos enquadrados na verba 1.1.5 da Lista I, anexa ao CIVA “pão", por incorrecta aplicação da taxa reduzida de IVA:

 

Os produtos "...", "..." e "...: ..." não cumprem os requisitos, que são os da Portaria n.º 52/2015, independentemente da sua composição, atendendo à denominação sob a qual são comercializados, pelo que assiste razão à Requerida e é-lhes aplicável a taxa normal de IVA.            

Da correcção ao montante de IVA liquidado relativamente aos produtos enquadrados na verba 1.4.1. da Lista I, anexa ao CIVA "leite em natureza, concentrado, esterilizado, evaporado, pasteurizado, ultrapasteurizado, condensado, fermentado, em blocos, em pó ou granulado e natas", por incorrecta aplicação da taxa reduzida de IVA:

 

Os "Proteína ...", "..." e "Proteína ..." atendendo às respetivas fichas técnicas, que não foram controvertidas, não são produtos lácteos para efeitos do disposto no Regulamento n.º 1308/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de Dezembro de 2013, antes “suplementos alimentares”, enquadrados na definição do Decreto-Lei n.º 136/2003, de 28 de junho, pelo que devem ser tributados à taxa normal, como sustenta a Requerida.

 

Da correcção ao montante de IVA liquidado relativamente aos produtos enquadrados na verba 1.4.6. da Lista 1, anexa ao CIVA "ovos de aves, frescos, secos ou conservados", por incorrecta aplicação da taxa reduzida de IVA:

 

Quanto aos produtos "...: ..." e "...: ..., não compreende o Tribunal as razões pelas quais a Requerida se opõe a que estes sejam considerados “ovos conservados” e o que quer dizer com “utilização de um modo exclusivo” que justifique a sua exclusão na verba 1.4.6 da lista I.

Pelo contrário, afigura-se que se trata de uma forma de conservação de ovos, através de um processo de pasteurização e filtração, visando eliminar a "salmonela" ou outras bactérias nocivas à saúde humana, o que, aliado ao método de acondicionamento, além da utilização de conservantes, permite o incremento do respectivo período de validade, pelo que se enquadram claramente na previsão legal, podendo ser-lhes aplicada, como fez a Requerente, a taxa mínima.

 

Da correcção ao montante de IVA liquidado relativamente aos produtos enquadrados na verba 1.6.1. da Lista I, anexa ao CIVA "legumes e produtos hortícolas frescos ou refrigerados, secos ou desidratados", por incorrecta aplicação da taxa reduzida de IVA:

 

o produto em causa, açafrão, é, de facto, um condimento, pelo que não se lhe pode ser aplicada a taxa mínima, assistindo razão à Requerida.

 

Da correcção ao montante de IVA liquidado relativamente aos produtos enquadrados na verba 1.6.4. da Lista I, anexa ao CIVA "frutas, no estado natural ou desidratado", por incorrecta aplicação da taxa reduzida de IVA:

 

sempre se dirá que, embora o chocolate seja (normalmente) feito a partir de cacau, isto não equivale a dizer que o cacau seja chocolate.

A Requerida não parece ter objecções a que a, por exemplo, nibs de banana desidratada seja aplicada a taxa mínima, pelo que, sendo o cacau indubitavelmente um fruto, improcedem os seus argumentos.

 

Da correcção ao montante de IVA liquidado relativamente aos produtos enquadrados na verba 1.6.5. da Lista l, anexa ao CIVA "algas vivas, frescas ou secas", por incorrecta aplicação da taxa reduzida de IVA:

 

No que se refere aos produtos "...  ..." a Requerida considera que não se trata de alga seca, já que a embalagem refere "roasted seaweed' no que lhe assiste razão.

No que respeita ao produto “...”, tratando-se de um subproduto da alga, que se apresenta em flocos, não podendo ser consumido per se, também lhe assiste razão.

A ambos devia ter sido aplicada a taxa normal.

 

Da correcção ao montante de IVA liquidado relativamente aos produtos enquadrados na verba 1.11. da Lista I, anexa ao CIVA "sumos e néctares de frutos e de algas ou de produtos hortícolas e bebida de cereais, amêndoas, caju e avelã sem teor alcoólico', por incorrecta aplicação da taxa reduzida de IVA:

 

Quanto às várias “Polpas de Frutas...”, a Requerida alega que, tratando-se de “um produto não fermentado, não concentrado, não diluído, obtido de frutos polposos, através de processo tecnológico adequado, com um teor de sólidos totais, proveniente a parte comestível do fruto”, em nada diferem de sumos de fruta e que, como tal, deve ser-lhes aplicável a taxa mínima, no que lhe assiste razão, a isso não obstando o facto de se apresentarem congeladas, improcedendo, portanto, os argumentos da Requerida.

 

Da correcção ao montante de IVA liquidado relativamente aos produtos enquadrados na verba 1.12. da Lista I, anexa ao CIVA "produtos dietéticos destinados à nutrição entérica e produtos sem glúten para doentes celíacos", por incorrecta aplicação da taxa reduzida de IVA:

 

Os produtos em questão estão certificados, alguns com o selo CGT "Crossed Grain Trademark", “símbolo é internacionalmente reconhecido par todas as pessoas com doença celíaca ou que devem seguir uma dieta isenta de glúten, transmite confiança e é uma referência de fácil identificação aquando da aquisição do produto", pelo que a Requerente não tinha que, ao contrário do que alega a Requerida, especificar qual o "ingrediente" da receita que compõe os diversos produtos em causa que, originariamente continha a proteína do glúten, e que sofreu alteração de modo a deixar de a conter.

Não lhe cabia fazê-lo nem tinha condições de o fazer, cabendo essa tarefa às entidades certificadoras. Por conseguinte, no que respeita a produtos que contenham certificação que garanta que se destinam à nutrição entérica e/ou a ser consumidos por doente celíacos, andou bem a Requerente quando aplicou a estes produtos a taxa reduzida de IVA.

 

Da correcção ao montante de IVA liquidado relativamente aos produtos enquadrados na verba 3.7. da Lista I, anexa ao CIVA "plantas vivas de espécies florestais, frutíferas e algas", por incorrecta aplicação da taxa reduzida de IVA:

 

O produto planta aquática natural (i.e., viva) para aquários e terrários fechados não se enquadra no conjunto de "Bens utilizados normalmente no âmbito das actividades de produção agrícola e aquícola", pelo que assiste razão à Requerida e deve-lhe ser aplicada a taxa normal de IVA.

 

Da correcção ao montante de IVA liquidado relativamente aos produtos enquadrados na verba 1.8. da Lista lI, anexa ao CIVA "refeições prontas a consumir, nos regimes de pronto a comer e levar ou com entrega no domicílio", por incorrecta aplicação da taxa intermédia de IVA:

 

Embora os produtos em causa sejam alimentos pré confeccionados e embalados, a Requerida entende que não podem ser considerados refeições para efeitos de aplicação da taxa intermédia na medida em que, por um lado, os bens transmitidos não são confeccionados pela Requerente e, por outro, não são exactamente destinados ao consumo imediato.

O facto de não serem confeccionados pela Requerente - o que esta não nega – não permite, é certo, classificá-los como prestação de serviços, mas enquadra-os na transmissão de bens que permite, ela própria, a aplicação da taxa intermédia.

No que respeita ao facto de não serem exactamente “refeições”, antes alimentos confeccionados, que não se destinam a consumo imediato, a Requerida entende que considerá-los “refeição” consistiria em integração analógica ou em aplicação de um benefício fiscal, violadores, em ambos os casos, do princípio da legalidade.

No que não lhe assiste razão.

Pelo contrário, é o conceito de refeição a que a Requerida adere, que consta do Oficio-circulado 30181, de 06.06.2016, que cita, mas que, é sabido, como acontece com todo o chamado direito-circulatório, só a ela obriga, que corresponde a uma interpretação restritiva da norma.

Como bem alega a Requerente, estando em causa uma transmissão de bens, não se pode concluir, face ao princípio da neutralidade, que, por exemplo, uma sopa feita e vendida pela Requerente seja tributada à taxa intermédia e uma sopa feita por um terceiro, seja adquirida ao fornecedor à taxa intermédia e deva ser vendida ao consumidor final à taxa normal, porque supostamente não foi acabada de preparar (facto que só se pode presumir por ter sido adquirida a um terceiro) embora esteja pronta para consumo imediato.

Pelo contrário, a verba inclui todo e qualquer produto alimentar confeccionado (a condição “acabado de preparar”, não consta da norma) tendo em vista o seu consumo imediato, seja vendido quente ou frio e, independentemente de o cliente o consumir ou não de imediato e, de igual modo, independentemente, de quem o confeccionou.

Pelo que bem andou a Requerente ao aplicar aos produtos em causa a taxa intermédia de 13%.

 

Dito isto,

 

Da errónea quantificação (método de cálculo) da matéria colectável e do tributo:

 

Sustenta a Requerente que, no retalho, onde opera, a esmagadora maioria das transacções são feitas com consumidores finais, sendo muitas das respectivas facturas emitidas sem número de contribuinte, o que significa que não é possível saber a quem foi vendido determinado produto.

Ainda assim, é certo que todos os bens destinados à venda a retalho devem exibir o respectivo preço de venda ao consumidor e que esse preço deve incluir todos os impostos, taxas e outros encargos que nele sejam repercutidos, de modo que o consumidor possa conhecer o montante exacto que tem a pagar, nos termos do artigo 1º do DL nº 138/90, de 26 de Abril, com as alterações introduzidas pelo DL nº162/99, de 13 de Maio.

Desta maneira, é claro que, em cumprimento da referida legislação, a Requerente comercializa produtos em que, no preço de venda ao consumidor, estão incluídos todos os impostos. É por força da referida legislação que o artigo 39º do CIVA permite que, nas facturas emitidas por retalhistas, possa ser indicado o preço com inclusão do imposto e a taxa ou taxas aplicáveis.

Consequentemente, ao abrigo do disposto no artigo 49.º CIVA, a base tributável e o imposto devido são determinados “por dentro”, partindo sempre do valor pago pelo consumidor final, até porque o IVA visa “(...) onerar unicamente o consumidor final. Consequentemente, a matéria colectável do IVA a cobrar pelas autoridades fiscais não pode ser superior à contrapartida efectivamente paga pelo consumidor final, sobre a qual foi calculado o IVA que recai sobre esse consumidor”, como resulta do Ac. do Tribunal de Justiça de 24/10/1996, proc. nº C-317/94.

O mesmo entendimento foi acolhido no Ac. do TJUE de 22/11/2018, proc. nº C-295/17, do qual resulta que “Por outro lado, dado que o sistema do IVA tem como objectivo onerar unicamente o consumidor final, o valor tributável do IVA a cobrar pelas autoridades fiscais não pode ser superior à contraprestação efectivamente paga pelo consumidor final, sobre a qual foi calculado o IVA que recai em definitivo sobre esse consumidor”.

Acontece que, como foi analisado anteriormente, em alguns produtos, a errada quantificação do IVA que sobre aqueles incide deveu-se à Requerente, não sendo a esta possível recuperar o IVA junto dos consumidores finais.

Consequentemente, a AT procedeu à liquidação do imposto em falta, tendo em consideração a diferença entre a taxa praticada e a que devia ter ocorrido.

Assim, e nos casos em que a Requerente procedeu a uma errada qualificação do IVA aplicável assiste razão à Requerida AT não tendo havido, consequentemente, erro no cálculo do imposto em falta.

 

4.2. Quanto ao valor da causa:

 

Nos termos do disposto no artigo 12.º, n.º 1, do RJAT “[p]ela constituição de tribunal arbitral é devida taxa de arbitragem, cujo valor, fórmula de cálculo, base de incidência objetiva e montantes mínimo e máximo são definidos nos termos de Regulamento de Custas a aprovar, para o efeito, pelo Centro de Arbitragem Administrativa.”.

O princípio em matéria de tributação ou de custas do processo de arbitragem é o da correspondência do valor da causa ao da utilidade económica do pedido – cfr artigo 10.º-2/e), do RJAT.

É pela pretensão concreta da tutela jurisdicional – i.e., o pedido formulado pelo Requerente – que se define o valor da causa, e não pelo resultado decisório a que se chegou.

A Requerente mencionou no formulário, no campo “valor económico do pedido”, a quantia de 316.548,00€ e identificou esse mesmo valor no ponto 1 do pedido de pronúncia arbitral, valor que corresponderia ao total das liquidações realizadas pela AT.

Sucede que não foi considerado o valor dos juros compensatórios, no montante de 41.802,50€ que fazem parte das liquidações ora impugnadas de harmonia com o disposto no artigo 35.º, n.º 8 da Lei Geral Tributária.

Por esse motivo, o valor económico do pedido corresponde, neste caso, a 358.350.50€, montante que corresponderá ao valor do processo.

 

            4.3. Juros indemnizatórios:

 

O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2. Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

 

O erro que afecta parte das liquidações efectuadas é imputável à Administração Tributária.

Consequentemente, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios sobre a parte em que lhe assiste razão, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT.

Os juros indemnizatórios são devidos à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1, e 35.º, n.º 10 da LGT, do artigo 24.º, n.º 1, do RJAT, do artigo 61.º, n.ºs 3 e 4, do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (ou outras que alterem a taxa legal) e, desde a data do pagamento, até ao integral reembolso.

 

5. DECISÃO

 

Nestes termos e com a fundamentação supra, decide-se:

  1. Julgar improcedentes as invocadas excepções suscitadas pela Requerida;
  2. Julgar parcialmente procedente o pedido de anulação dos actos de liquidação, por errónea qualificação (aplicação da taxa de IVA), no que se refere aos produtos referentes às seguintes verbas da Lista I do Código do IVA: 1.1.3; 1.4.6; 1.6.4.; 1.11 e 1.12, no montante total de 153.594,33€;
  3. Condenar a Requerida AT no pagamento de juros indemnizatórios relativos à parte procedente do pedido de anulação;
  4. Julgar improcedente o pedido de anulação da parte remanescente dos actos de liquidação, incluindo os correspondentes juros compensatórios, por errónea qualificação (aplicação da taxa), nomeadamente no que se refere aos restantes produtos elencados no pedido de pronúncia arbitral, referentes às seguintes verbas da Lista I do Código do IVA: 1.1.5.; 1.4.1.; 1.6.1.; 1.6.5.; 3.7. em montante a apurar em sede de liquidação de sentença;
  5. Condenar a Requerente e a Requerida AT nas custas do processo, de acordo com o respetivo decaimento;

 

6.VALOR DA CAUSA

 

Fixa-se o valor do processo em 358.350.50€ (trezentos e cinquenta e oito mil trezentos e cinquenta euros cinquenta cêntimos) de harmonia com o disposto nos artigos 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT) e 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT.

 

7. CUSTAS

Fixa-se o montante das custas em 6.120,00€ (seis mil cento e vinte euros) ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, repartidas da seguinte forma: a) A Requerente suporta a quantia de 3.497,58€ (três mil quatrocentos e noventa e sete euros e cinquenta e oito cêntimos) e a Requerida, a quantia de 2.622,42€ (dois mil seiscentos e vinte e dois euros e quarenta e dois cêntimos), de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.

 

Notifique-se.

 

          Lisboa, aos sete dias do mês de dezembro de 2021

 

Os Árbitros

 

 

(Fernanda Maçãs)

 

 

(Nuno Cunha Rodrigues)

 

 

(Eva Dias Costa)

 

 

 



[1] Este valor de 204.224,57€ resulta corresponde a 317.818,90€ - 113.594,33€. Na verdade, o montante das correcções efectuadas em sede de procedimento inspectivo foi de 317.819,27€, mas o valor de imposto a pagar importou apenas em 316.548,90€, uma vez que a liquidação referente ao período de Janeiro de 2016 foi objecto de compensação com crédito a favor da Requerente disponível em conta corrente de 1.270,64€.