Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 786/2019-T
Data da decisão: 2020-09-14  IRS  
Valor do pedido: € 41.536,39
Tema: IRS - Mais-valias imobiliárias em sede de IRS de residentes e não residentes; artigos 43.º e 72.º do Código do IRS; pedido de reenvio prejudicial; juros indemnizatórios.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I.             RELATÓRIO

 

1.            No dia 22 de Novembro de 2019 A..., solteiro, residente em ..., ..., Áustria (Requerente), apresentou requerimento de constituição de tribunal arbitral (Pedido de Pronúncia Arbitral - PPA), nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT).

2.            Pretendia que fosse parcialmente declarada a ilegalidade do acto tributário de liquidação do IRS com o n.º 2019..., de 26 de Julho de 2019, referente ao período de rendimentos de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro de 2018, no montante de €83.072,78, “na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da consideração total da mais-valia imobiliária em lugar de 50%”.

3.            Nomeado o presente árbitro e não tendo a Requerente, nem a Requerida, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objecção, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 17 de Fevereiro de 2019.

4.            Seguindo-se os normais trâmites, em 16 de Março a AT apresentou resposta em que defendeu a legalidade do acto de liquidação impugnado, mais solicitando, se isso não correspondesse ao entendimento do tribunal arbitral, o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) da questão da conformidade do regime de tributação de mais-valias com o Direito da União, atento o disposto nos (então) ns. 9 e 10 do artigo 72.º do Código do IRS, e juntando o Processo Administrativo.

5.            Em 7 de Julho, terminada a suspensão dos prazos decorrente da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, foi proferido despacho a dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, a dispensar condicionalmente as alegações (concedendo prazo para as Partes a isso se oporem), a dar prazo ao Requerente para se pronunciar, querendo, sobre o pedido de reenvio prejudicial e a remeter para depois das opções tomadas pelas Partes quanto à dispensa das alegações a fixação do prazo limite para a pronúncia da decisão arbitral.

6.            Só o Requerente se pronunciou, e unicamente sobre o pedido de reenvio prejudicial.

7.            Assim, no dia 4 de Setembro foi proferido novo Despacho arbitral fixando o dia 14 de Setembro de 2020 como data limite para a prolação da decisão arbitral.

 

II.            PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

8.            O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições.

9.            As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.

10.          Como referido, a AT invocou – ainda que só supletivamente, embora isso não seja relevante  – uma questão de reenvio prejudicial. Na medida em que, nos termos do disposto no penúltimo parágrafo do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE),  estivesse em causa uma obrigação de reenvio, teria o presente tribunal arbitral singular de se abster de conhecer da questão que lhe foi colocada enquanto o TJUE se não pronunciasse sobre ela.

11.          O STA, que, em 28 de Setembro de 2006, no âmbito do proc. 0439/06 , determinou o reenvio prejudicial que levou ao Acórdão Hollmann , e que, em 16 de Janeiro de 2008, se pronunciou em conformidade com o aí decidido , veio a decidir um caso idêntico em 20 de Fevereiro de 2019 , face ao novo regime resultante da Lei n.º 67-A/2007, sem fazer qualquer menção à eventual necessidade de colocar previamente ao TJUE uma qualquer nova questão esclarecedora do alcance do Direito da União.

12.          Em contrapartida, em processo análogo, a questão de reenvio foi decidida favoravelmente no proc. n.º 598/2018-T do CAAD (decisão de 30 de Abril de 2019). A ser renovado nestes autos um juízo de obrigatoriedade de reenvio isso implicaria – mesmo que não a renovação do pedido de apreciação prévia ao abrigo do disposto no artigo 267.º do TFUE – ao menos a suspensão da instância nos termos do artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC).

13.          Os argumentos da AT a favor do reenvio podem ser resumidos assim:

a)            A alteração introduzida no artigo 72.º do Código do IRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (novos ns. 7 e 8, ns. 9 e 10 à data dos factos, actuais ns. 13 e 14 ), repôs a conformidade do Direito nacional com o Direito da União;

b)           Isto porque qualquer sujeito passivo passou a poder optar pelo englobamento dos seus rendimentos em Portugal, caso em que ficará abrangido pela mesma redução na tributação das mais-valias imobiliárias conferida aos residentes;

c)            Sendo o actual quadro jurídico nacional diverso daquele que esteve na origem do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (Acórdão Hollmann), não poderia esta decisão ser vinculativa; 

d)           Ainda assim, a subsistirem dúvidas sobre o acerto da posição da AT, devia ser consultado o TJUE nos termos do penúltimo parágrafo do artigo 267.º do TFUE, para reapreciação da oposição do actual quadro jurídico nacional ao Direito da União.

14.          Na sua resposta ao pedido de reenvio prejudicial, o Requerente limitou-se a transcrever os pontos 27 e 28 do acórdão arbitral proferido no proc. n.º 590/2018-T do CAAD, que afastaram categoricamente a necessidade de reenvio prejudicial num caso idêntico.

 

Decidindo:

15.          Como tem sido reiteradas vezes decidido na jurisprudência e adiante melhor se verá, não parece que a possibilidade, concedida aos não residentes, de fazerem englobar todos os seus rendimentos em Portugal como condição para beneficiarem do mesmo regime de redução da tributação de mais-valias mobiliárias aplicável aos residentes constitua uma forma legítima de contornar a proibição de não discriminação resultante das regras e princípios do Direito da União. Assim sendo, a invocada alteração introduzida no artigo 72.º do Código do IRS pela Lei n.º 67-A/2007, fornecendo embora um novo enquadramento jurídico para a anterior desconformidade com esse Direito, não é susceptível de a evitar.

16.          Diferente questão é a de saber se essa desconformidade, nesse novo enquadramento, é clara ou assenta em jurisprudência bem assente, sendo certo que qualquer uma dessas duas condições isenta o presente tribunal singular da obrigação de reenvio (na medida em que as suas decisões são, em princípio, definitivas) .

17.          Considerando as decisões que adiante serão referidas – do CAAD, do STA e, sobretudo, do TJUE (uma vez que lhe compete garantir a interpretação e a aplicação uniformes do Direito da União) – pode certamente considerar-se que existe uma jurisprudência bem assente na matéria . Parte dela considera que a questão, na configuração resultante da alteração introduzida no artigo 72.º do Código do IRS pela Lei n.º 67-A/2007, é clara, havendo bons argumentos nesse sentido – sendo que um deles é a existência de decisões do TJUE em casos análogos ao que resulta da actual configuração diferenciada de tributação para residentes e não residentes do regime nacional de tributação de mais-valias.

18.          Assim, no Acórdão proferido em 18 de Março de 2010 no Proc. n.º C-440/08, F. Gielen contra Staatssecretaris van Financiën , o litígio era entre um holandês, residente na Alemanha, e a administração fiscal holandesa, mas o Governo Português interveio no processo em defesa da posição de que a questão, dependendo de uma específica interpretação da legislação holandesa, era meramente hipotética. No caso, o TJUE considerou que “o litígio no processo principal e a questão prejudicial têm essencialmente por objecto a interpretação do artigo 49.° TFUE face a uma regulamentação nacional que, potencialmente, discrimina os contribuintes não residentes, no que diz respeito a um benefício fiscal como a dedução concedida aos trabalhadores independentes, apesar de os referidos contribuintes poderem exercer, no que se refere ao referido benefício, a opção de equiparação conferida pela referida regulamentação.” Desta configuração da questão infere-se o interesse do Governo português em tal remoto litígio: estava em causa uma decisão que constituiria um inevitável precedente para a questão dos autos .

19.          As conclusões do advogado-geral Dámaso Colomer nesse processo , na esteira das observações do Governo alemão, chamavam a atenção para a natureza sucessiva das questões colocadas: se o regime em causa não fosse discriminatório, não faria sentido a pronúncia sobre a sua natureza opcional. Vistas as coisas desta forma, o efeito neutralizador da opção dada ao sujeito passivo não poderia operar, porque não removeria a discriminação, e a intervenção do legislador da Lei n.º 67-A/2007, como as de outros legisladores nacionais nos processos a seguir indicados, ao criarem um regime alternativo, não seriam aptas a resolver problema algum .

20.          No Acórdão proferido em 28 de Fevereiro de 2013 no Proc. n.º C-168/11, Beker contra Finanzamt Heilbronn , estava em causa a diferente relevância de deduções aos rendimentos gerados fora e no interior da Alemanha para efeitos da tributação dos seus residentes. O TJUE considerou então (§62) que

“Mesmo admitindo que tal sistema seja compatível com o direito da União, resulta contudo da jurisprudência que um regime nacional restritivo das liberdades de circulação pode permanecer incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa (v., neste sentido, acórdão de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n. 162, e de 18 de março de 2010, Gielen, C-440/08, Colet., p. I-2323, n. 53). A este respeito, a existência de uma opção que permitiria eventualmente tornar uma situação compatível com o direito da União não tem assim por efeito sanar, por si só, o carácter ilegal de um sistema, como o previsto pela regulamentação controvertida, que compreende um mecanismo de tributação não compatível com este direito. Importa acrescentar que tal ocorre por maioria de razão no caso em que, como no caso em apreço, o mecanismo incompatível com o direito da União é aquele que é automaticamente aplicado na inexistência de escolha efetuada pelo contribuinte.”

21.          No Acórdão proferido em 8 de Junho de 2016 no Proc. n.º C-479/14, Hünnebeck contra Finanzamt Krefeld , estava em causa a isenção diferenciada concedida a residentes e não residentes na Alemanha em caso de doações de imóveis aí situados. E, sublinhando a proximidade com o caso dos autos, também aí o Governo alemão tinha tentado contornar uma anterior decisão do TJUE no sentido dessa incompatibilidade com a regra da livre circulação de capitais através da criação de um mecanismo de opção , levando o Tribunal a reafirmar a anterior posição (§42):

“Relativamente ao caráter facultativo do referido mecanismo de tributação, há que sublinhar que, mesmo admitindo que esse mecanismo seja compatível com o direito da União, é jurisprudência constante que um regime nacional restritivo das liberdades de circulação pode continuar a ser incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa. A existência de uma opção que permitisse eventualmente tornar uma situação compatível com o direito da União não tem por efeito sanar, por si só, o caráter ilegal de um sistema, como o que está em causa, que continua a comportar um mecanismo de tributação não compatível com este direito. Importa acrescentar que tal ocorre por maioria de razão no caso de, como no processo em apreço, o mecanismo incompatível com o direito da União ser aquele que é automaticamente aplicado na falta de escolha efetuada pelo contribuinte (v., neste sentido, acórdão de 28 de fevereiro de 2013, Beker, C 168/11, EU:C:2013:117, n.° 62 e jurisprudência referida).”

 

22.          Isso é mais do que suficiente para dispensar o reenvio, mas podem ainda invocar-se outros indícios corroborantes de que a consulta ao TJUE seria inadequada à situação dos autos.

23.          Em primeiro lugar, mesmo em relação a uma situação que pareceria mais distante do núcleo problemático ora em discussão, como é o caso de a discriminação negativa dos não residentes em matéria de mais-valias imobiliárias ser imposta a residentes em Estados terceiros (nem em Estados-Membros, nem em outros Estados do Espaço Económico Europeu), o Tribunal de Justiça decidiu, em 6 de Setembro de 2018, um pedido de reenvio prejudicial formulado por um tribunal nacional através de Despacho Fundamentado  – uma forma de decisão que, segundo o artigo 99.º do Regulamento de Processo no Tribunal de Justiça , só pode ser usada quando a questão submetida a título prejudicial for “idêntica a uma questão sobre a qual o Tribunal de Justiça já se tenha pronunciado, quando a resposta a essa questão possa ser clara¬mente deduzida da jurisprudência ou quando a resposta à ques¬tão submetida a título prejudicial não suscite nenhuma dúvida razoável”. Quer dizer que o próprio TJUE já considerou – e, repete-se, num caso mais distante da anterior jurisprudência  – que o reenvio era dispensável (para não dizer inadequado).

24.          Em segundo lugar, em Janeiro de 2019 a Comissão Europeia enviou um Parecer Fundamentado a Portugal pondo em causa a solução encontrada para ultrapassar as decisões do TJUE sobre a discriminação negativa de não residentes pelo legislador da Lei n.º 67-A/2007 (e, portanto, censurando o quadro actual que a AT considera conforme com as exigências da livre circulação de capitais). Na Ficha Informativa da Comissão Europeia sobre o Pacote de procedimentos de infração de janeiro: principais decisões, de 24 de Janeiro de 2019  escrevia-se o seguinte:

“A Comissão Europeia decidiu hoje enviar um parecer fundamentado a Portugal, solicitando a alteração das disposições restritivas em matéria de tributação das mais-valias à saída, alinhando-as com os acórdãos relevantes do Tribunal de Justiça da UE. Portugal tributa as mais-valias de contribuintes não residentes a uma taxa fixa de 28 %, enquanto os residentes estão sujeitos a um imposto progressivo sobre o rendimento. Em dois processos (C-443/06, Hollmann versus Fazenda Pública e C-184/18, Fazenda Pública contra Teixeira), o Tribunal de Justiça considerou este tratamento diferenciado incompatível com a livre circulação de capitais garantida pelo artigo 63.º do TFUE e pelo Acordo EEE. Portugal introduziu uma opção segundo a qual os não residentes podem ser equiparados a contribuintes residentes e 50 % dessas mais-valias de fontes portuguesas possam ser tributadas a taxas progressivas de imposto sobre o rendimento. No entanto, a jurisprudência da UE considera que a mera existência de uma opção de tratamento equivalente ao dos contribuintes residentes não corrige a infração se, por defeito, a tributação continuar a impor um encargo mais elevado aos contribuintes não residentes. Se Portugal não der uma resposta satisfatória no prazo de dois meses, a Comissão pode decidir remeter a questão para o Tribunal de Justiça da UE.”

 

25.          A jurisprudência nacional, a jurisprudência da União e – o que é o menos – a Comissão convergem assim no entendimento de que a discriminação anteriormente censurada pelo TJUE não foi removida com a intervenção da Lei n.º 67-A/2007. Nesses termos não há fundamento para se suscitar uma (nova) questão de reenvio prejudicial.

26.          Sem obrigação de reenvio que vincule o presente tribunal arbitral singular não há, também, qualquer razão para suspender a instância nos termos do n.º 1 do artigo 272.º do CPC durante a pendência do pedido de reenvio prejudicial formulado no proc. n.º 598/2018-T do CAAD.

27.          Estão preenchidos, portanto, todos os requisitos para uma decisão sobre a questão de fundo.

 

III.          MATÉRIA DE FACTO

III.1. FACTOS PROVADOS

a)            O Requerente é um cidadão nacional, nascido em Arroios e residente na Áustria desde 15 de Janeiro de 2018 (Doc. 1, junto com o PPA);

b)           No dia 24 de Agosto de 2018 o Requerente celebrou uma escritura de permuta de um prédio rústico, sito em ..., Odemira, descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., que tinha aquisição registada a seu favor de 14 de Agosto de 2008 (Doc. 2, junto com o PPA);

c)            Conforme resulta dessa escritura, o Requerente recebeu em troca do referido prédio, a que foi atribuído o valor de €300.000,00, uma quota da Sociedade B..., Lda., a que foi atribuído o valor de €80.000,00, e dois cheques, somando estes o valor de €220.000,00 (Doc. 2, junto com o PPA);

d)           Em 20 de Junho de 2019 o Requerente entregou a declaração Modelo 3 do IRS relativa ao ano de 2018, do qual constava o seu estatuto de não residente e a opção pela tributação segundo o regime geral (Doc. 3, junto com o PPA);

e)           Do Anexo G a essa declaração (Mais-valias e outros incrementos patrimoniais) constava o valor envolvido na permuta (€300.000,00 – que representavam, na prática, a totalidade do rendimento auferido pelo Requerente nesse ano ) e o valor de aquisição do imóvel permutado (€1.474,57) - (Doc. 3, junto com o PPA);  

f)            Em Agosto de 2019 o Requerente foi notificado do acto tributário de liquidação do IRS com o n.º 2019..., de 26 de Julho de 2019, referente ao ano de 2018, no montante de €83.072,78 (Doc. 4, junto com o PPA );

g)            Em 22 de Agosto de 2019 o Requerente procedeu ao pagamento integral do montante liquidado (Doc. 5, junto com o PPA).

 

III.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Não há outros factos necessários à decisão da causa que não tenham sido estabelecidos.

 

III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO EM MATÉRIA DE FACTO

Os factos dados como provados resultam directamente dos documentos juntos aos autos e anteriormente identificados.

 

IV.          DIREITO

IV.1. Questão de mérito

A única questão de mérito que foi colocada ao Tribunal foi a da disparidade de tratamento entre residentes e não residentes no território nacional (sendo que, no caso, essa não residência no território nacional se traduzia na residência num outro Estado-membro da União Europeia) no que diz respeito à tributação de mais-valias imobiliárias.

 

IV.2. Posição do Requerente

O Requerente entendeu que a liquidação era ilegal, essencialmente porque:

a)            A aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS a mais-valias geradas em transmissões imobiliárias efectuadas apenas por residentes constitui uma violação do artigo 63.º do TFUE enquanto discrimine residentes em outro Estado-membro;

b)           Isso mesmo já foi decidido pelo TJUE que, no Acórdão Hollmann (de 11 de Outubro de 2007), se pronunciou sobre a incompatibilidade dessa restrição com a liberdade de circulação de capitais entre os Estados-membros;

c)            Tal como o fez a jurisprudência nacional, quer a do STA (Acórdãos de 30 de Abril de 2013, Proc. n.º 1374/12; de 2 de Dezembro de 2015, Proc. n.º 754/15; e de 3 de Fevereiro de 2016, Proc. n.º 1172/14), quer a do Tribunal Central Administrativo Sul (Acórdão de 5 de Agosto de 2019, Proc. n.º 1358/08.9BESNT), quer a do CAAD (decisões de 5 de Julho de 2012, Proc. n.º 45/2012-T; de 14 de Maio de 2013, Proc. n.º 127/2012-T; de 27 de Julho de 2016, Proc. n.º 748/2015-T; de 5 de Julho de 2017, Proc. n.º 89/2017-T; de 4 de  Junho de 2018, Proc. n.º 520/2017-T; de 22 de Junho de 2018, Proc. n.º 617/2017-T; de 22 de Maio de 2019, Proc. n.º 74/2019-T; de 30 de Maio de 2018, Proc. n.º 644/2017-T; e de 8 de Julho de 2019, Proc. n.º 590/2018-T); 

d)           A alteração introduzida pela Lei do Orçamento do Estado para 2008 (Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro), criando nos (então) ns. 7 e 8 do artigo 72.º do Código do IRS um regime opcional de equiparação para os não residentes em Portugal, mas residentes em outro Estado-membro, cria um ónus suplementar para os contribuintes não residentes;

e)           Sendo que estes não podem ter a obrigação de optar entre um regime legal e outro ilegal;  

f)            Como, aliás, já foi entendido, designadamente nas decisões do CAAD proferidas nos processos ns. Proc. ns. 45/2012-T, 127/2012-T, 748/2015-T e 89/2017-T.

 

IV.3. Posição da Requerida

Em contrapartida a Requerida entendeu, na sua Resposta, que:

a)            Muito embora o TJUE se tivesse pronunciado em 2007 pela contrariedade com o Direito Comunitário da disciplina da tributação das mais-valias imobiliárias de não-residentes já então consagrada no artigo 43°, n.º 2, do Código do IRS; e

b)           muito embora o STA tivesse seguido esse mesmo entendimento no Acórdão de  16 de Janeiro de 2008, no Proc. n.º 0439/06,

c)            a Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, aditou duas novas disposições ao artigo 72.º do Código do IRS cujo teor, à data dos factos, era o seguinte:

«9 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.

10 - Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.»

 

d)           Em consequência dessas inovações, as declarações de rendimentos respeitantes aos anos fiscais de 2008 e seguintes passaram a incluir um campo para o exercício da opção pela taxa do artigo 68.º do Código do IRS;

e)           Na declaração de rendimentos do Requerente referente ao ano de 2018 foi assinalado o campo 4 (não residente), o campo 6 (residência em país da UE) e o campo 7 (pretende a tributação pelo regime geral aplicável aos não residentes); quer isso dizer que o Requerente optou pelo regime que entendeu;

f)            Os residentes em Portugal têm, para efeitos de IRS, de englobar os seus rendimentos, incluindo os obtidos no estrangeiro; logo, exigir o mesmo aos não residentes é colocá-los em posição de igualdade com os residentes;

g)            Assim, o quadro legal actualmente existente é diferente do que existia à data do referido acórdão do TJUE; 

h)           E a norma que o Requerente pretende que lhe seja aplicável (a do artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS) consta do seu Capítulo II, que tem como epígrafe “Determinação do rendimento coletável”;

i)             Pelo que, para efeitos de incidência (no que toca à matéria das mais-valias), as normas relevantes são as dos artigos 9.º e 10.º do Código do IRS,

j)             não podendo o disposto no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS ser aplicável ao caso. 

 

IV.4. Ponderação

A norma de controlo que é invocada é a do n.º 1 do artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (ex-artigo 56.º do Tratado CE), sendo dado como adquirido que a alienação de um imóvel em Estado diferente do da residência, com a obtenção e transferência das correspondentes mais-valias, constitui um movimento de capitais :

“1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados- Membros e países terceiros.”

A AT parece admitir a inicial desconformidade do regime nacional de tributação de mais-valias imobiliárias auferidas por não residentes, mas considera que tal desconformidade foi sanada com a intervenção do legislador da Lei n.º 67-A/2007, na medida em que, face à nova redacção dada ao artigo 72.º do Código do IRS, qualquer não residente em Portugal (desde que residente num país do Espaço Económico Europeu) pode requerer o englobamento dos seus rendimentos para beneficiar da mesma redução de tributação que é conferida aos residentes.

A questão da desconformidade inicial desse regime quando confrontado com as exigências do Direito da União – quer quando aplicado a residentes em países do Espaço Económico Europeu (incluindo, desde logo, os Estados-membros da União Europeia), quer quando aplicado a residentes em países terceiros – está juridicamente ultrapassada: houve pronúncias do TJUE, vinculativas para os Estados, seguidas pela jurisprudência nacional, e até a AT parece hoje reconhecer que tal regime não era sustentável face ao Direito da União. Por outro lado, a legislação interna mudou. Quer dizer que importa apurar se a questão da desconformidade que ora se coloca é a mesma – ou um seu prolongamento – ou é uma questão nova. Evidentemente, só no caso de se tratar de uma questão nova faz sentido equacionar a sua resolução de modo diverso da anterior. 

Em momento anterior – ao decidir sobre a questão do reenvio – já se deixou antecipar que há uma continuidade essencial, para o efeito em vista nos presentes autos, entre o regime pré- e pós-lei orçamental para 2008 (Lei n.º 67-A/2007) e, mais, que a natureza da mudança introduzida na legislação era inapta para resolver o problema original. Portanto, atendendo aos elementos jurisprudenciais disponíveis, o juízo a fazer sobre um e outro regime não deve divergir.

 Descontando as especificidades do caso e dos parâmetros invocados, a questão geral respondida pelo acórdão Hollmann foi sobre se o Direito da União se opunha, ou não, à sujeição nacional de não residentes a uma tributação menos favorável do que a incidente sobre residentes . Mas fez mais: contrariando o argumento do Governo português de que

“A limitação da tributação a 50% só pode respeitar a residentes, uma vez que estes se encontram sujeitos a uma tabela de taxas progressivas sobre o seu rendimento global. Ao invés, aos não residentes são apenas tributados os rendimentos auferidos no território português. Por outras palavras, o mecanismo previsto por uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal visa não penalizar os residentes que se encontram sujeitos a um imposto progressivo, contrariamente aos não residentes.” ,

o referido acórdão Hollmann entendeu (§53) que

“não existe objectivamente nenhuma diferença de situação que justifique a desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais-valias entre as duas categorias de sujeitos passivos.”

                Pode certamente duvidar-se de que inexistam diferenças entre a situação contributiva global dos residentes e não-residentes, mas o facto é que o TJUE tem entendido que tal diferença existe e é inadmissível, e foi essa exacta diferença que o legislador da Lei n.º 67-A/2007 entendeu continuar a manter através da possibilidade de opção que introduziu no artigo 72.º do Código do IRS. Nessa medida, há uma continuidade essencial entre o que foi decidido no acórdão Hollmann e o que está em causa nos presentes autos. Claramente, o legislador nacional (e a AT) considera(m)-se vencido(s) mas não convencido(s).

                Acontece que, a mais de a mais alta instância da jurisdição da União Europeia já se ter pronunciado, dessa forma, sobre a ilegitimidade do fim, pronunciou-se igualmente sobre a ilegitimidade do meio . No já referido Acórdão Gielen, escreveu-se o seguinte sobre a possibilidade de opção, invocada pela AT como a bala de prata que erradicava o mal do anterior regime :

“importa recordar que a opção de equiparação permite a um contribuinte não residente, como F. Gielen, escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório.

51      Ora, cumpre frisar a este respeito que, no presente caso, essa escolha não é susceptível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.

52      Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência, como é essencialmente observado pelo advogado geral no n.° 52 das suas conclusões, validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.° TFUE em razão do seu carácter discriminatório.

53      Por outro lado, como o Tribunal de Justiça já teve ocasião de precisar, um regime nacional que limite a liberdade de estabelecimento é incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa (v., neste sentido, acórdão de 12 de Dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C 446/04, Colect., p. I 11753, n.° 162).

54      Decorre do exposto que a escolha concedida, no âmbito do litígio em causa no processo principal, ao contribuinte não residente, através da opção de equiparação, não neutraliza a discriminação constatada no n.° 48 do presente acórdão.”

 

28.          Não admira, assim, que a subsequente jurisprudência nacional tenha desconsiderado a alteração introduzida pela Lei n.º 67-A/2007 no anterior quadro legal, continuando a considerar inadmissível, face ao princípio da liberdade de circulação consagrado no Direito da União, o regime dual de tratamento das mais-valias imobiliárias. Sirva de exemplo, a mais das outras decisões enumeradas pelo Requerente, o que o STA decidiu, em 20 de Fevereiro de 2019, no já citado proc. 0901/11.0BEALM 0692/17 , face ao novo regime resultante da Lei n.º 67-A/2007:

“O art. 56.º do TCE (actual 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia) proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais, entre Estados-Membros - são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros -.

O TJUE em acórdão de 11/10/2007, proferido no processo C-443/06, declarou que: “O artigo 56.° CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no litígio no processo principal, que sujeita as mais-valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado-Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efectuada por um residente noutro Estado-Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais-valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel..”.

Seguindo a jurisprudência do TJUE a operação de liquidação de um investimento imobiliário, como a que está em causa neste processo, constitui um movimento de capitais, à face da jurisprudência daquele Tribunal cfr. Acórdão de 16 de Março de 1999, Trummer e Mayer, C-222/97, Colect., p. I-1661, n.º 24., sendo, por isso, abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 56.º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia.

Por imperativo constitucional as disposições do Tratado que rege a União Europeia prevalecem sobre as normas de direito ordinário nacional, nos termos definidos pelos órgãos de direito da União, desde que respeitem os princípios fundamentais do Estado de direito democrático. Nos termos do art. 8.º, n.º 4, da CRP «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».

Tendo Portugal competência para legislar quanto ao imposto sobre o rendimento, por tal não ser matéria de competência exclusiva da EU, não pode incluir nessa regulamentação normas que, em concreto, sejam violadoras dos Tratados, na interpretação que deles faça, como fez, o Tribunal de Justiça da EU.

Contrariamente ao alegado pela recorrente, em face do que se expôs apenas pode concluir-se que o acto impugnado, que aplicou o referido art. 43.º, n.º 2 do CIRS, incompatível com o referido art. 56.º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia, enferma de vício de violação deste último normativo, o que consubstancia ilegalidade, que justifica a sua anulação (artº 135.º do Código de Procedimento Administrativo).”

 

No CAAD, com a excepção da decisão singular proferida no proc. n.º 539/2018-T, também a jurisprudência retoma a já referida lógica da colocação sucessiva dos problemas: há um regime discriminatório (e já se viu que a própria AT assim o parece entender) e há uma intervenção legislativa que, criando embora uma opção para se afastar dele, não resolve problema algum. Nas palavras da decisão proferida no proc. n.º 590/2018-T,

“como bem se refere nas decisões arbitrais nº 45/2012-T e 127/2012-T, considerando o disposto no artigo 43º, nº2 do CIRS, deparamo-nos, com um regime discriminatório e incompatível com o Direito Comunitário, por violação do artigo 63.º do TFUE. Este entendimento tem sido mantido em diversas decisões arbitrais posteriores, como vem invocado pelos Requerentes. Entendimento esse, por sua vez, confirmado pela jurisprudência do STA. É que, aos olhos da jurisprudência arbitral citada pelos Requerentes e corroborada pelos nossos tribunais superiores a opção de equiparação, introduzida no sistema tributário português, após a prolação do Acórdão Hollmann, constante dos n.ºs 8 a 10 do artigo 72.º do Código do IRS, vigentes à data do facto tributário, não permite afastar o juízo de discriminação do TJUE sobre a previsão restritiva do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS a sujeitos passivos residentes.

Desde logo, há que registar que a solução introduzida pelo legislador para obviar à discriminação contida na supramencionada norma nacional, não garante que o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, respeitante às transmissões efetuadas por não residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, seja apenas considerado em 50% do seu valor, tal como acontece com os residentes, por força do disposto no art.º 43.º/1 e 2 do CIRS.

Efectivamente, o regime dos n.ºs 9 e 10 do art.º 72.º do CIRS não dispõe sobre a base da incidência, mas apenas sobre a taxa aplicável aos rendimentos referidos nos n.ºs 1 e 2 do mesmo art.º 72.º, sendo por isso verdade, como reitera a Requerida em sede arbitral, que aquele regime não implica a tributação de todos os rendimentos auferidos pelos não residentes, mas apenas da mais valia.

Com efeito, do regime em questão, não resulta uma alteração da base de incidência, sendo os rendimentos tributados os mesmos, e estando apenas prevista uma alteração da taxa aplicável, que deixa de ser a dos n.ºs 1 e 2 daquele art.º 72.º, e passa a ser a que resulta do art.º 68.º, nº1 do CIRS (o que quer dizer, desde logo, que tal taxa pode ser inferior à consagrada nos n.ºs 1 e 2 daquele art.º 72.º - desde que a taxa média seja inferior a 28% - ou superior).

Todavia, assim sendo, como é, continua a verificar-se a discriminação proscrita pelo Acórdão Hollmann, entre residentes e não residentes.

É que, se os n.ºs 9 e 10 do art.º 72.º dispõem sobre a taxa, e não sobre a base de incidência, a mesma não é alterada pela opção consagrada nos mesmos, ou seja: a base de incidência será - quer seja exercida a opção prevista naquelas normas, quer não - a mesma, o que quer dizer que quer exerçam aquela ou opção, quer não, os não residentes não verão, em qualquer caso, o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias por si realizadas no mesmo ano, respeitante às transmissões previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, ser  considerado apenas em 50% do seu valor.

Assim, se como entendeu a AT no acto tributário sub iudice, não for aplicável o art.º 43.º, nº 2 do CIRS aos não residentes, para efeitos da sua tributação nos termos do n.º 1 do art.º 72.º, a mesma norma continuará a não ser aplicável, caso os mesmos exerçam a opção consagrada no n.º 9 e 10 do mesmo artigo 72.º, porquanto estas normas, como se referiu, não alteram a base de incidência do imposto, mas apenas a taxa a aplicar àquela.

Concretizando, como o n.º 10 do art.º 72.º apenas releva a aplicação das normas aplicáveis aos residentes, para efeitos da determinação da taxa, e não para efeitos da determinação da base tributável, a mais-valia, nos termos desse regime, relevará, em 50% unicamente para efeitos do cômputo dos rendimentos que determinará a taxa a aplicar nos termos do art.º 68.º nº 1 do CIRS, mas a taxa assim determinada continuará a ser aplicada a 100% das mais valias, uma vez que, segundo a AT, o art.º 43.º, nºs 1 e 2, do CIRS não será aplicável aos não residentes, por se reportar apenas a residentes, e não resulta, como se viu, dos n.ºs 9 e 10 do art.º 72.º a aplicação daquelas normas (nºs 1 e 2 do art.º 43.º do CIRS) , para efeitos da determinação da base tributável.

Ora, este entendimento, traduz, precisamente, a discriminação de tratamento entre residente e não residente censurada pelo acórdão Hollmann, já que os residentes pagarão sempre a taxa que resulta do art.º 68.º, nº 1 sobre 50% das mais valias, enquanto que os não residentes pagarão ou aquela taxa, determinada de acordo com as regras aplicáveis aos residentes, ou 28%, sempre sobre 100% das mais valias.

A isto acresce um outro reparo que resulta da complexidade de funcionamento do imposto, agravado pela “opção pelo englobamento” de todos os rendimentos obtidos no outro país, para além de outras questões relevantes associadas ao princípio da territorialidade previsto artigo 15º do CIRS, às condições de pessoalização e à progressividade do imposto, dificilmente compatível com uma adequada consideração dos valores auferidos noutro estado membro, no estado atual do direito comunitário. O que vale por dizer que a alteração legislativa operada assenta em pressupostos inquinados pela intenção de manter uma tributação mais onerosa sobre os não residentes, mesmo que estes residam no espaço da EU, o que se afigura inaceitável aos olhos da referida jurisprudência do TJUE.

Dito de outro modo, a AT não demonstrou (nem conseguiria) que a opção pelo englobamento, como forma de equiparação, tal qual foi introduzida nos nºs 9 e 10 do artigo 72º do CIRS, seja suficiente para excluir a discriminação em causa.

Acresce ainda, como dissemos supra, que sempre ficaria a dúvida de sobre a razão que levou o legislador a não optar pela via da eliminação direta da discriminação contida na norma do artigo 43º, nº2 do CIRS. Alega a AT que a solução adotada no artigo 72º, nºs 8 a 10 é bastante, porquanto também para os residentes em território português, estes rendimentos estão sujeitos ao englobamento. Ora, tal argumento não parece adequado porquanto não leva em linha de conta todas as outras condições de tributação inerentes ao funcionamento de um imposto com as características do imposto sobre os rendimentos das pessoas singulares e evidencia uma intenção de tributação em função dos rendimentos auferidos no outro país (quando englobados) bem sabendo que se trata de realidades incomparáveis, facilmente falseadas por toda uma realidade de base que escapa à soberania fiscal do estado português.

Não temos, pelo exposto, dúvida que a solução adotada pelo legislador português não elimina o caráter discriminatório no tratamento de residentes e não residentes, em matéria de mais-valias decorrentes de alienação de imóveis.”

 

V.           JUROS

O Requerente solicitou o reembolso do montante indevidamente pago, “acrescido, nos termos do artigo 43.º (Pagamento indevido de prestação tributária) da Lei Geral Tributária, dos juros indemnizatórios que sejam devidos até à data desse reembolso.”, sendo verdade que as diversas decisões do CAAD nesta matéria, onde tivesse havido pagamentos indevidos , foram unânimes na atribuição de juros indemnizatórios.

Vejamos então.

O artigo 43.º da LGT, na sua actual redacção (resultante, por último, da Lei n.º 9/2019, de 1 de Fevereiro, que lhe aditou a nova alínea d)), estabelece que

 

“1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 - Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

4 - A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

5 - No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.”

 

Nos termos das duas primeiras disposições deste artigo, a obrigação de pagamento de juros está ligada à existência de “erro imputável aos serviços”. Quer dizer que a lei impõe que, quando por erro na determinação dos factos ou na aplicação do Direito, o que foi exigido ao sujeito passivo exceder o que legalmente lhe era exigível, deve a AT indemnizar quem pagou o que não devia, ou mais do que devia. Foi nessa base que foram determinados os anteriores pagamentos de juros indemnizatórios. 

O n.º 3, embora não fazendo referência a um erro singular e concreto (como no n.º 1) ou a um erro geral e abstracto (como no n.º 2) imputável aos serviços, continuava, até à intervenção do legislador de 2019, a fazer depender a obrigação de indemnização de um quadro de culpa da AT: esta tinha de indemnizar porque excedia os prazos legalmente previstos ou aqueles que se poderiam ter como razoáveis. Com o aditamento da alínea d) ao n.º 3 desse artigo ficou pela primeira vez consagrada na LGT a indemnização assente, não nalguma forma de culpa sua, mas naquilo que, para quem cobra tributos, constitui uma espécie de responsabilidade objectiva: mesmo obedecendo escrupulosamente àquilo que o criador de normas legislativas ou regulamentares determinou, pode a AT (em sentido lato) ser obrigada a pagar juros indemnizatórios. Ou seja: pode ser chamada a pagá-los mesmo inexistindo da sua parte qualquer desvio em relação às normas aplicáveis – ie: mesmo inexistindo erro dos serviços.

Noutro prisma, o que a alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º fez foi introduzir na LGT um outro erro, o erro do legislador (lato sensu), e, com isso, ampliar o leque de responsáveis pela obrigação de ressarcimento a cargo de quem cobra: não apenas quem executa fica sujeito a indemnizar quando executa mal, como fica também sujeito a indemnizar quando o que executa bem foi mal concebido. 

Neste último caso, porém, isso só acontece quando a norma aplicada for julgada (ou declarada) inconstitucional ou ilegal e, portanto, só a partir do trânsito em julgado de tal decisão.

No caso, o pagamento indevido não resultou de erro imputável aos serviços da Administração Tributária: resultou do cumprimento de uma norma em relação à qual a AT não está autorizada a desviar-se, mas que é desconforme com o Direito da União –  que goza de prevalência sobre o Direito interno nos termos do artigo 8.º, n.º 4, da Constituição, e que incumbe a este Tribunal (como aos que o antecederam nesta matéria) fazer respeitar. Isso resulta, desde logo, da vinculação a suscitar as questões de reenvio prejudicial que sejam necessárias para a “interpretação e a aplicação uniformes” do Direito da União Europeia , mas decorre também do disposto no artigo 204.º da Constituição (apesar da sua epígrafe: “Apreciação da inconstitucionalidade”) . Uma vez que tal norma é, por essa via, ilegal, os juros são devidos, mas apenas desde o trânsito da presente decisão.

Como o Requerente procedeu ao pagamento da totalidade da importância em parte indevidamente liquidada, tem direito, segundo a jurisprudência uniforme do CAAD, e como pediu, à devolução do montante pago em excesso.

Tem também direito ao recebimento dos correspondentes juros indemnizatórios, nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, a partir do trânsito da presente decisão – não por erro dos seus serviços , mas por erro do legislador.

 

VI.          CONCLUSÕES

a)            A primeira conclusão a retirar é a de que os termos em que foi colocada a questão da conformidade do regime interno de tributação de mais-valias imobiliárias com o princípio de livre circulação de capitais, antes e depois da introdução de novos números no artigo 72.º do Código de IRS pela Lei n.º 67-A/2007 (e, com base neles, de novas opções nos modelos de declaração de rendimentos), não se alteraram: as razões que justificaram essa alteração no Direito interno já tinham sido avaliadas e excluídas pelo TJUE no Acórdão Hollmann;

 

b)           Só por si, esta razão seria suficiente para excluir a necessidade de reenvio prejudicial, ainda que não houvesse nesse sentido jurisprudência estabilizada interna e indícios claros de que a questão não requeria nova apreciação por parte do TJUE: por um lado isso resultava da própria desvalorização – através de decisão deste por Despacho Fundamentado – de um subsequente pedido de pronúncia prévia sobre a mesma questão; por outro lado, inferia-se da emissão de um Parecer Fundamentado da Comissão, instando o Governo português a rever a legislação nacional actualmente em vigor nesta matéria;  

 

c)            A mais da recusa de relevância da diferenciação (que ficou estabelecida no Acórdão Hollmann e foi reafirmada no Despacho Fundamentado proferido no processo Patrício Teixeira), o TJUE recusou igualmente – desde logo no processo Gielen, que opôs um holandês residente na Alemanha à autoridade tributária do seu país, e em que o Governo português interveio (e certamente porque estava ciente do seu potencial para constituir um indesejado precedente para a avaliação da sua estratégia de defesa do regime que instituíra para tentar tornear a censura anterior) – que uma possibilidade de opção entre dois regimes fosse uma forma adequada de remover uma discriminação ilegítima;

 

d)           Quer dizer que nem a fundamentação da dualidade de tratamento entre residentes e não residentes foi aceite pela jurisprudência da União, nem o foi a forma escolhida para a tentar tornar sustentável. Assim, tanto pelo fundo como pela forma, deve entender-se que o Direito da União se opõe ao actual regime dual (para residentes e não residentes) do artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS, conjugado com o disposto no seu artigo 72.º, ns. 9 e 10 (à data dos factos);

 

e)           Em todo o caso, deve reconhecer-se que não poderia a AT fazer coisa diversa do que aplicar o regime legal e que, portanto, não se lhe pode imputar erro de serviço. Desde a introdução da alínea d) no n.º 3 do artigo 43.º da LGT, porém, a obrigação de pagamento de juros indemnizatórios deixou de estar ligada a uma conduta inadequada dos serviços, passando a contemplar também as situações de desconformidade com normas de grau superior das normas em que se baseou a conduta desses serviços;

f)            Resulta agora da lei que, onde a conduta dos serviços foi pautada pelo estrito cumprimento das normas, e só por deficiência destas foram exigidas importâncias indevidas aos contribuintes, só na data de trânsito da decisão jurisdicional que assim o determina são devidos juros indemnizatórios (sem prejuízo, eventualmente, da responsabilidade civil do legislador, nos termos do artigo 22.º da Constituição e do artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro). 

 

VII.         DECISÃO

Em face do exposto, julga-se procedente o pedido formulado pela Requerente e, consequentemente, decide-se

a)            Anular parcialmente, por ilegalidade resultante de oposição ao Direito originário da União, o acto tributário de liquidação do IRS com o n.º 2019..., no valor de €83.072,78;

b)           Condenar a AT à devolução da quantia indevidamente paga e ao pagamento dos correspondentes juros indemnizatórios desde a data do trânsito da presente decisão até integral pagamento;

c)            Condenar a AT nas custas do processo, nos termos indicados infra.

 

VIII.       VALOR DO PROCESSO

Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) deve ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT). Uma vez que está em causa metade do montante de €83.072,78 (oitenta e três mil, setenta e dois euros e setenta e oito cêntimos) pago pelo Requerente, aceita-se o valor indicado pelo Requerente (e não discutido pela AT), fixando-se o valor do processo em €41.536,39 (quarenta e um mil, quinhentos e trinta e seis euros e trinta e nove cêntimos).

 

IX.          CUSTAS

Custas a cargo da Requerida (AT), no montante de € 2.142,00 (dois mil cento e quarenta e dois euros), nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, dado que o presente pedido foi julgado inteiramente procedente (mesmo em relação ao pedido de juros não houve decaimento, uma vez que foi requerido o pagamento “dos juros indemnizatórios que sejam devidos até à data desse reembolso”).

 

Lisboa, 14 de Setembro de 2020

                                                                            

O Árbitro Singular

Victor Calvete

 

A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.