Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 77/2021-T
Data da decisão: 2023-11-30  ISV  
Valor do pedido: € 50.243,14
Tema: ISV – Importação de veículo usado da UE – Componente Ambiental – artigo 11.º do CISV
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CAAD: Arbitragem Tributária

Processo n.º: 77/2021-T

Tema: ISV – Importação de veículo usado da UE – Componente Ambiental – artigo 11.º do CISV – Reforma da decisão arbitral (anexa à decisão).

 

*Substitui a decisão arbitral de 15 de outubro de 2021.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Sumário:

  1. É incompatível com o Direito da União Europeia qualquer prática administrativa que tenha por consequência a diminuição da eficácia do direito comunitário pelo que compete a todas as autoridades do Estado-Membro dar pleno efeito às normas comunitárias.
  2. A Requerida AT, à semelhança dos tribunais nacionais, tem a prerrogativa – e o dever – de desaplicar normas de direito nacional com base na desconformidade com o direito comunitário.
  3. Na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional, a norma do artigo 11.º do CISV, na redação dada pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, mostra-se incompatível com o Direito da União Europeia, por violação do artigo 110.º do TFUE.

 

DECISÃO ARBITRAL

I. Relatório

1. A..., Unipessoal, Lda., com sede na..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa, apresentou 04/02/2021, um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com a alínea a) do artigo 99.º do CPPT, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida AT).    

2. A Requerente pede a anulação parcial das liquidações de ISV por si realizadas, de forma a aplicar-se a redução prevista no artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos à componente ambiental, no montante de € 50.243,14.

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD a 05-02-2021 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data.

 

4. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5. Em 03-05-2021 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 21-05-2021.

 

7. Por despacho de 22 de junho de 2021, foi determinada a suspensão da pronúncia arbitral dos presentes autos, nos termos do artigo 272.º do Código de Processo Civil, até comunicação da decisão que viesse a ser proferida pelo TJUE, no âmbito do pedido de reenvio prejudicial feito pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 711/2020.

 

8. Por despacho de 13 de outubro de 2021 foi determinada a cessação da suspensão da instância, bem como a dispensada da reunião do tribunal arbitral a que se refere o artigo 18.º desse Regime e da apresentação de alegações escritas pelas partes.

 

9. Após a prolação da decisão em 15/10/2021 pelo árbitro singular Exmo. Prof. Doutor Nuno Cunha Rodrigues, o Ministério Público interpôs, em 21/10/2021, recurso da decisão para o Tribunal Constitucional.

 

10. A 22/10/2021, o árbitro singular Exmo. Prof. Doutor Nuno Cunha Rodrigues proferiu despacho arbitral de admissão do recurso de constitucionalidade.

 

11. Nos termos e com os fundamentos constantes da Decisão Sumária n.º 444/2023 (Proc. n.º 1129/2021), proferida em 6/6/2023 pela Exma. Juíza Conselheira Relatora Maria Benedita Urbano (Decisão que se encontra apensa aos presentes autos), decidiu-se “não conhecer do objecto do recurso interposto nos presentes autos.”

 

12. A 9/6/2023, a AT veio aos presentes autos requerer a Rectificação da Decisão Arbitral com os seguintes fundamentos: “1. O pedido de constituição de tribunal arbitral veio interposto para declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de Imposto Sobre Veículos, praticados pela Chefe da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, resultantes da apresentação de 84 Declarações Aduaneiras de Veículos. 2. Sucede que o recurso à instância arbitral só foi possível, sob pena de o mesmo ser intempestivo, porquanto a Requerente apresentou, em 17.12.2020, um pedido de revisão oficiosa junto da mesma Delegação Aduaneira, vindo na sequência do indeferimento desse pedido, ocorrido em 28.01.2021 por despacho da, então, Diretora da Alfândega de Aveiro, impugnar as liquidações do imposto. 3. Tais factos sustentam a pretensão da Requerente, conforme teor do PPA, constando, igualmente do elenco dos “Factos” da Resposta da Requerida AT, encontrando-se expressa e devidamente demonstrados, quer pelos documentos entregues com o pedido, quer pelos elementos Processo Administrativo, junto pela AT aquando da apresentação da Resposta. 4. Ora, tais factos não constam da Decisão arbitral, na parte referente à matéria de facto dada como provada (de págs. 9 a 10), tendo ainda sido declarado que não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral. 5. Assim, além de a AT não ter podido exercer a faculdade de o requerer de imediato, em virtude de o MP ter apresentado, após a prolação da decisão, recurso para o Tribunal Constitucional, entende-se que a inexatidão em causa, da decisão, configura uma omissão que pode ser corrigida por simples despacho. 6. Nestes termos, ao abrigo dos artigos 613.º e seguintes do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 29.º do RJAT, se requer a retificação da decisão arbitral de forma a que inclua na matéria de facto dada como provada, os factos suprarreferidos.”

 

13. Tendo, entretanto, o Exmo. Prof. Doutor Nuno Cunha Rodrigues, que era árbitro-singular no presente processo, suspendido as funções arbitrais, invocando para tanto razões que foram consideradas como justificativas, o Sr. Presidente do Conselho Deontológico, Exmo. Senhor Conselheiro Manuel Fernando dos Santos Serra, determinou, a 19/6/2023 (e após Declaração de aceitação do encargo pelo Exmo. Prof. Doutor Miguel Patrício), nos termos e ao abrigo do disposto no Regulamento de Seleção e Designação de Árbitros em Matéria Tributária (artigo 6.º, n.º 5), a substituição, como árbitro-singular no presente processo, do Exmo. Prof. Doutor Nuno Cunha Rodrigues pelo Exmo. Prof. Doutor Miguel Patrício.

 

14. A 27/6/2023, a Requerente pronunciou-se sobre o referido requerimento da Requerida, tendo defendido, em síntese, que “a eventual procedência do requerido [...] não conduziria nunca à possibilidade de impugnação da decisão, pois esses factos nada têm a ver com os referidos fundamentos”, pelo que a “procedência do requerido traduzir-se-ia sempre num acto inútil no processo, logo, inadmissível face ao princípio da economia processual e consequente proibição da prática de atos inúteis – art. 137.º do CPC.”

 

15. A 30/11/2023, foi proferido despacho arbitral informando as partes da prolação (nessa mesma data) da decisão arbitral rectificada. A rectificação visou, apenas, a inclusão dos factos solicitados pela Requerida no requerimento de 9/6/2023. Por essa razão, a presente Decisão arbitral rectificada é praticamente igual, no seu conteúdo, à que foi prolatada em 15/10/2021 – apenas com a diferença da inclusão dos actuais pontos 1 e 5 da factualidade provada (inclusão que em nada interfere na apreciação de mérito – aqui reafirmada – da Decisão de 15/10/2021).

 

16. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

17. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

18. O processo não enferma de nulidades e não se suscita qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

II. Do pedido da Requerente

 

A Requerente solicita a anulação parcial de oitenta e quatro liquidações de ISV (Imposto sobre Veículos), no valor total de € 342.015,21, por entender que foi desconsiderada a redução na vertente relativa à componente ambiental do ISV.

 

Entende a Requerente, em síntese, que:

a) A AT procedeu a oitenta e quatro liquidações de ISV pelo valor total de € 342.015,21 do qual € 205.827,56 correspondiam à componente cilindrada e € 136.187,73 à componente ambiental;

b) No caso da componente cilindrada o valor foi deduzido da redução resultante do número de anos de uso do veículo;

c) Entende a Requerente que a redação do artigo 11.º do CISV vigente à época, limitava a aplicação das percentagens de redução à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental, violando o artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE);

d) Consequentemente, as oitenta e quatro liquidações efetuadas do ISV estão feridas de um vício de ilegalidade, no que diz respeito ao cálculo da componente ambiental ou CO2, pelo que a Requerente peticiona a devolução do imposto, no montante total de 50.243,14€, acrescido de juros indemnizatórios.

 

III. Da resposta da Requerida AT

 

Em resposta, a Requerida AT considerou, em síntese:

i) A caducidade do direito de ação, enquanto excepção perentória, obsta ao prosseguimento do processo, nos termos do disposto no artigo 576.º, número 3 do Código de Processo Civil, atendendo a que a administração tributária se limitou a fazer a interpretação das normas aplicáveis aos factos, sempre sob o espectro do princípio da legalidade, e não tendo a prerrogativa de poder desaplicar normas com base num julgamento de pretensa desconformidade com o direito comunitário (atribuição reservada aos tribunais);

ii) As taxas de imposto previstas no artigo 7.º e 11.º do CISV são aplicadas de igual forma, na componente cilindrada e ambiental, a um veículo com matrícula nacional e a um veículo usado admitido no território nacional.

iii) O modelo de fiscalidade automóvel tem em vista assegurar a coerência entre a tributação de veículos novos e usados, na medida em que a aquisição de uns e de outros se rege pelos mesmos princípios, de justiça fiscal e respeito pelo meio ambiente.

iv) A interpretação, pugnada pela Requerente, pressupõe a desaplicação do direito europeu e internacional - do artigo 191º do TFUE, do Protocolo de Quioto e do Acordo de Paris - que vincula o Estado Português, por força do artigo 8.º da CRP, bem como uma violação do disposto no n.º 1, e alíneas a), f) e h), do n.º 2, do artigo 66.º e do n.º 2 do artigo 103.º da CRP.

v) A aplicação do artigo 11.º do CISV foi efetuada em conformidade com a lei nacional e o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE e nos artigos 66.º e 103.º da Constituição, não existindo a invocada discriminação da tributação dos veículos usados nacionais relativamente aos admitidos de outros Estados-membros, não se verificando, consequentemente, a alegada violação do artigo 110.º do TFUE.

vi) Conclui a Requerente que a questão da desconformidade do direito nacional, em concreto das normas dos artigos 7.º e 11.º do CISV, aplicáveis às liquidações impugnadas, deve ser suscitada junto do TJUE, conforme já decidido pelo Tribunal Constitucional designadamente nos autos de recurso n.º 173/20 e n.º 649/20.

IV. Da excepção perentória de caducidade do direito de ação

 

Na resposta, a Requerida AT invocou a caducidade do direito de ação, enquanto excepção perentória, que obsta ao prosseguimento do processo, nos termos do disposto no artigo 576.º, número 3 do Código de Processo Civil, atendendo a que a AT se teria limitado a fazer uma interpretação das normas aplicáveis aos factos, “sempre sob o espectro do princípio da legalidade, e não tendo a prerrogativa de poder desaplicar normas com base num julgamento de pretensa desconformidade com o direito comunitário (atribuição reservada aos tribunais)”.

 

Vejamos.

 

A Requerida considera que que os tribunais nacionais estão obrigados a desaplicar o direito nacional caso este se revele desconforme com o Direito da União Europeia.

 

Este entendimento pacífico encontra-se vertido em inúmera jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e decorre do princípio do primado ou primazia do Direito da União Europeia – historicamente reconhecido pelo TJUE desde o acórdão Costa/Enel, processo 6/64, de 15 de julho de 1964, o qual implica que, em caso de conflito, o Direito da União Europeia seja aplicado com preferência sobre o direito nacional dos Estados-membros.

 

O princípio do primado vincula, naturalmente, o juiz nacional, como reconhece a Requerida AT de harmonia, porventura, da inúmera jurisprudência que, a este propósito, foi proferida, entre a qual se destacam o acórdão Simmenthal, processo 106/77, de 9 de março de 1978, no qual o TJUE considerou que “o juiz nacional responsável, no âmbito das suas competências, por aplicar disposições de direito comunitário, tem obrigação de assegurar o pleno efeito de tais normas, decidindo, por autoridade própria, se necessário for, da não aplicação de qualquer norma de direito interno que as contrarie, ainda que tal norma seja posterior, sem que tenha de solicitar ou esperar a prévia eliminação da referida norma por via legislativa ou por qualquer outro processo constitucional.” e o acórdão Factortame I, processo C-213/89, de 19 de junho de 1990, ECLI:EU:C:1990:257. Neste último acórdão o TJUE concluiu afirmando que o “direito comunitário deve ser interpretado no sentido de que, quando o órgão jurisdicional nacional ao qual foi submetido um litígio que se prende com o direito comunitário considere que o único obstáculo que se opõe a que ele conceda medidas provisórias é uma norma do direito nacional, deve afastar a aplicação dessa norma.”

 

Esta jurisprudência foi, mais tarde, reforçada por inúmeros outros acórdãos do TJUE que visaram, dessa forma, assegurar o princípio da efectividade do Direito da União Europeia, como sejam o acórdão Marshall, processo C-271/91, de 2 de agosto de 1993.

 

Sucede que, no entender da Requerida AT, a interpretação das normas aplicáveis aos factos deve ser feita “sempre sob o espectro do princípio da legalidade, e não tendo a prerrogativa de poder desaplicar normas com base num julgamento de pretensa desconformidade com o direito comunitário (atribuição reservada aos tribunais)”.

 

Neste ponto não assiste razão à Requerida AT.

 

Note-se, prima facie, que não se trata, nem se discute aqui, a possibilidade de a Requerida AT recusar-se a aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade como, aparentemente, decorre da decisão tomada no processo n.º 362/2020-T do CAAD, invocada pela Requerida AT.

 

De forma diversa, deve observar-se que o princípio da legalidade a que a Requerida AT está adstrita abrange, naturalmente, o Direito da União Europeia ou direito comunitário.

 

Na verdade, as características próprias do sistema jurídico da União Europeia determinam que este integre um bloco de legalidade que enforma o conjunto global da ordem jurídica nacional e comunitária que compete, inter alia, ao juiz nacional respeitar e aplicar, como vimos anteriormente, atento o princípio do primado e o princípio da efectividade do Direito da União Europeia.

Mas este bloco de legalidade onde se insere, naturalmente, o Direito da União Europeia, deve igualmente ser respeitado e aplicado pela administração pública de qualquer Estado-membro[1], incluindo, portanto, a Requerida AT.

 

Na verdade, os Estados-Membros (incluindo as respetivas administrações públicas) estão vinculados ao princípio da cooperação leal, pelo que devem facilitar à União o cumprimento da sua missão e abster-se de qualquer medida suscetível de pôr em perigo a realização dos objetivos da União (cfr. artigo 4.º, n.º 3, 3.º parágrafo do Tratado da União Europeia).

 

Mais. As “administrações públicas nacionais – e, assim, a administração pública Portuguesa – são a administração da União de direito comum sendo-lhes confiada, em primeira linha, a execução do direito da União enquanto missão “essencial para o bom funcionamento da União” e “matéria de interesse comum” (cfr. artigos 197.º e 291.º do TFUE).[2]

 

Recorde-se, a este propósito, o acórdão do TJUE Larsy, proc. C-118/00, de 28 de junho de 2001, no qual o Tribunal considerou ser “incompatível com as exigências inerentes à própria natureza do direito comunitário qualquer norma da ordem jurídica interna ou qualquer prática legislativa, administrativa ou judicial que tenha por consequência a diminuição da eficácia do direito comunitário (…)” (cfr. parágrafo 51).

 

Mais adiante entendeu o TJUE, no mesmo aresto e com particular importância para o caso sub judice, que o “princípio do primado do direito comunitário obriga não somente os órgãos jurisdicionais, mas todas as autoridades do Estado-Membro, a dar pleno efeito às normas comunitárias (v., neste sentido, acórdãos de 13 de Julho de 1972, Comissão/Itália, 48/71, Colect., p. 181, n.º 7, e de 19 de Janeiro de 1993, Comissão/Itália, C-101/91, Colect., p. I-191, n.º 24).”

Este entendimento foi reiterado em inúmera jurisprudência do TJUE tal como os acórdãos Henkel, 12 de fevereiro de 2004, Proc. C-218/01, EU:C:2004:88, parágrafo 60 e Impact, 15 de abril de 2008, Proc. C-268/06, EU:C:2008:223, parágrafo 85.

 

Também no acórdão Gavieiro, 22 de dezembro de 2010, Procs. C-444/09 e C-456/09, EU:C:2010:819, parágrafo 73, o TJUE reiterou que, “não sendo possível efectuar uma interpretação e uma aplicação da regulamentação nacional conformes com as exigências do direito da União, os tribunais nacionais e os órgãos da administração têm o dever de o aplicar integralmente e de proteger os direitos que ele confere aos particulares, deixando de aplicar, se necessário, qualquer disposição contrária de direito interno (v., neste sentido, acórdãos de 22 de Junho de 1989, Costanzo, 103/88, Colect., p. 1839, n.º 33, e de 14 de Outubro de 2010, Fuß, C‑243/09, ainda não publicado na Colectânea, n.º 63).”

 

Por outras palavras, entende o TJUE que é incompatível com o Direito da União Europeia qualquer prática administrativa que tenha por consequência a diminuição da eficácia do direito comunitário pelo que compete a todas as autoridades do Estado-Membro dar pleno efeito às normas comunitárias. A esta luz, a Requerida AT, à semelhança dos tribunais nacionais, tem a prerrogativa – e o dever – de desaplicar normas de direito nacional com base na desconformidade com o direito comunitário.

 

Ora, no caso sub judice, e como veremos adiante, a Requerida AT aplicou uma disposição legal nacional em violação do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

 

Ao fazê-lo, procedeu de forma errada podendo assim concluir-se que houve, in casu¸ erro imputável aos serviços que legitima o subsequente pedido de revisão das liquidações operado pelo Requerente que foi feito dentro do prazo previsto no artigo 78.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária: 4 anos.

 

Não procede, assim, a exceção invocada pela Requerida AT, pelo que este Tribunal Arbitral é competente para conhecer do pedido.

V. Matéria de facto

 

A. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

1. O pedido de constituição de tribunal arbitral veio interposto para declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de Imposto Sobre Veículos, praticados pela Chefe da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, resultantes da apresentação de 84 Declarações Aduaneiras de Veículos.

 

2. Com efeito, no referido período, que mediou entre 2017 e 2020, a Requerente procedeu à importação de um conjunto de veículos automóveis em território nacional que deram origem a introduções no consumo efetuadas através das seguintes oitenta e quatro Declarações Aduaneiras de Veículos:

 

 

 

2. Nas datas que constam nas DAV como data de aceitação, a Requerente procedeu à regularização fiscal dos oitenta e quatro veículos ligeiros de passageiros, usados, provenientes de outros Estado-membros.

3. A AT procedeu a oitenta e quatro liquidações de ISV pelo valor total de € 342.015,21 do qual € 205.827,56 correspondiam à componente cilindrada e € 136.187,73 à componente ambiental;

4. O ISV liquidado na componente ambiental não beneficiou de qualquer redução, nos termos previstos no artigo 11.º do CISV vigente no momento das liquidações.

5. A Requerente apresentou, em 17.12.2020, um pedido de revisão oficiosa junto da referida Delegação Aduaneira, vindo, na sequência do indeferimento desse pedido, ocorrido em 28.01.2021 por despacho da então Diretora da Alfândega de Aveiro, impugnar as liquidações do imposto.

 

B. Factos não provados

 

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.

 

C. Fundamentação da matéria de facto

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

A convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas partes e no acervo probatório (em particular o incluído no processo administrativo) carreado para os autos, o qual foi objeto de uma análise crítica e de adequada ponderação à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

 

 

VI. Do Direito

 

            a. Da ilegalidade das liquidações de ISV

 

Conforme resulta do pedido arbitral, a Requerente manifestou a sua inconformidade com os atos de liquidação impugnados, por entender que, ao não levar em consideração o número de anos do veículo na sua componente ambiental, o artigo 11.º do CISV, na redação então em vigor, violava o disposto no artigo 110.º do TFUE, o que inquinaria as liquidações de ilegalidade.

 

Cumpre, por isso, analisar as normas mais relevantes previstas no CISV vigente no momento em que ocorreram os atos de liquidação sub judice.

 

De harmonia com o Código do ISV, estão sujeitos ao imposto, designadamente, «os veículos automóveis ligeiros de passageiros», sendo «sujeitos passivos do imposto os operadores registados, os operadores reconhecidos e os particulares (…) que procedam à introdução no consumo dos veículos tributáveis, considerando -se como tais as pessoas em nome de quem seja emitida a declaração aduaneira de veículos» [artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e 3.º, n.º 1]

 

E, como estabelece o artigo 5.º do mesmo código, «constitui facto gerador do imposto o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal», sendo que, para este efeito, de acordo com o n.º 3 alínea a) do mesmo artigo, entende-se por «admissão, a entrada de um veículo originário ou em livre prática noutro Estado-Membro da União Europeia em território nacional» (sublinhados nossos).

 

Por sua vez, «a introdução no consumo e a liquidação do imposto são tituladas pela declaração aduaneira de veículos (DAV)», sendo, «para efeitos de matrícula, os veículos automóveis ligeiros (…) são sujeitos ao processamento da DAV» (art. 17.º, n.os 1 e 3, do CISV).

Para efeitos de cálculo do ISV, as taxas aplicáveis têm por base tributável uma componente cilindrada e uma componente ambiental, sendo que a primeira estipula uma taxa consoante a cilindrada e o tipo de veículo e a segunda uma discriminação entre os veículos a gasolina e os veículos a gasóleo, (de forma positiva relativamente aos primeiros) prevendo uma tributação progressiva em função do nível de CO2 g/km.

 

De modo particular, e no que aos veículos usados provenientes de outros Estados membros da União Europeia respeita – como no caso em apreço –, estabelecia o artigo 11.º do CISV, na redacção então em vigor resultante da Lei do Orçamento do Estado para 2017 (Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro), o seguinte:

 

                 “1 – O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:

 

TABELA D

 

2 – Para efeitos de aplicação do número anterior, entende-se por «tempo de uso» o período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respectivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos.”

 

Ambas as partes – Requerente e Requerida AT – suscitaram, nos presentes autos, questões relacionadas com a compatibilidade do CISV e, em particular, do artigo 11.º acima referido, com o Direito da União Europeia e a sua aplicação a veículos usados provenientes de veículos matriculados em Estados Membros da União Europeia.

 

A este propósito foi emitida abundante jurisprudência pelo CAAD que aqui seguimos de perto, nomeadamente as decisões proferidas nos processos n.os 474/2020-T; 457/2020-T e 572/2018-T.

 

Atente-se, em particular, no historial que a esse se fez constar da decisão arbitral de 30.04.2019, proferida no processo n.º 572/2018-T:

 

- «(…) Essa legalidade foi muito cedo questionada pela Comissão Europeia, ainda no âmbito do Imposto Automóvel, porquanto esta entendia que as normas portuguesas então vigentes não observavam o disposto no artigo 95.º do Tratado de Roma e, sendo necessário que Portugal perdesse o seu carácter proteccionista, era imprescindível que o montante de imposto fosse idêntico ao remanescente do imposto incorporado no preço dos veículos usados similares, comercializados no mercado português, remanescente esse a calcular a partir da percentagem da depreciação do valor desses veículos.

 

Não obstante, em 2001, o Acórdão do TJCE (de 22.02.01) denominado «Gomes Valente», proferido a título prejudicial, veio criar as condições para se romper, a nível nacional, com o quadro clássico de tributação dos veículos usados, assente exclusivamente em reduções fixas em função do n.º de anos de uso.

 

Neste âmbito, embora tenha sido referido que a aplicação de uma tabela de taxas para os veículos usados fundada num critério de depreciação único não seria contrário ao referido artigo 95.º do Tratado de Roma, foi sublinhado que era importante que fossem tomados em conta outros factores de depreciação que não apenas a antiguidade, de forma a garantir que a referida tabela reflectisse de modo mais preciso a depreciação real dos veículos e permitisse alcançar de uma forma mais fácil o objectivo da tributação dos veículos usados, de modo a que, em nenhum caso, esta pudesse ser superior ao montante da taxa residual incorporada no valor dos veículos usados já matriculados em território nacional.

 

Esta jurisprudência veio a ser reforçada com o Acórdão do TJCE n.º 101/00, proferido em 19 de Setembro de 2002, num processo que então envolveu o Governo Finlandês e Antti Sillin, no qual foi considerado que o artigo referido artigo 95.º, primeiro parágrafo do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 90.º, primeiro parágrafo) permitia a um EM aplicar aos veículos usados importados de outro EM um sistema de tributação em que o valor tributável é determinado por referência ao valor aduaneiro definido, mas obsta a que o valor tributável varie em função da fase de comercialização quando daí possa resultar, pelo menos, em determinados casos, que o montante do imposto que incide sobre um veículo usado importado exceda o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no território nacional.

 

Refira-se ainda que, na sequência do designado Acórdão «Gomes Valente», a jurisprudência tem entendido que para que um sistema de tributação dos veículos usados seja compatível com o disposto no Tratado é necessário que se adopte ou um modelo de tributação baseado na avaliação de cada veículo ou um modelo de tributação baseado em tabelas fixas que exclua todo e qualquer efeito discriminatório.

 

Por outro lado, o actual artigo 110.º do TFUE opõe-se a que um EM aplique aos veículos usados importados de outro EM um sistema de tributação em que o imposto que incide sobre esses veículos não atenda à depreciação real do veículo e não permita garantir sempre que o montante do imposto que fixa não excede o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no território nacional.

 

Mais se considerou que, quando um EM aplica aos veículos usados importados de outros Estados membros um sistema de tributação em que a depreciação real dos veículos é definida de modo geral e abstracta com base em critérios determinados pelo direito nacional, o disposto no Tratado exige que esse sistema de tributação seja organizado de forma a excluir todo e qualquer efeito discriminatório.

 

Pode assim afirmar-se que o Acórdão do TJCE proferido no caso «Gomes Valente» abriu a porta para uma nova forma de tributação dos veículos usados admitidos de outros Estados membros.

 

Mas, ao que ao presente caso interessa, refira-se que em 2006, no âmbito do sistema de tributação húngaro, no Acórdão do TJUE de 5 de Outubro de 2006 (C-290/05), no caso Nádasdi, foi analisada pela primeira vez a questão ambiental face aos impostos automóveis aplicáveis dentro do espaço da União Europeia.

 

Com efeito, o sistema fiscal húngaro ignorava a desvalorização do veículo e tratava de forma igualitária todos os veículos que tivessem a mesma motorização e comportamento ambiental.

 

Contudo, o referido Acórdão veio declarar que «o artigo 90.º, primeiro parágrafo, CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um imposto como o instituído pela lei relativa ao imposto automóvel, na medida em que seja cobrado sobre os veículos usados quando da sua primeira colocação em circulação no território de um Estado-Membro e em que o seu montante, exclusivamente determinado em função das características técnicas dos veículos (tipo de motor, cilindrada) e da sua classificação ambiental, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados-Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado-Membro de importação. Não é relevante proceder a uma comparação com os veículos usados postos em circulação no Estado-Membro em questão antes da introdução desse imposto».

 

Adicionalmente, considerou-se que os Estados-Membros (EM) têm liberdade para seleccionar os critérios a utilizar no cálculo do imposto e estabelecer um sistema de tributação diferenciado para certos produtos, em função de critérios objectivos aplicados, sendo que tais diferenciações só serão consideradas compatíveis com o direito da UE se, por um lado, prosseguirem objectivos compatíveis, também eles, com as exigências do Tratado e do direito derivado e, se por outro, as formas que vierem a revestir sejam de molde a evitar qualquer forma de discriminação, directa ou indirecta, das «importações» provenientes dos outros EM, ou de protecção em favor de produções nacionais concorrentes.

 

Assim, ainda que, em termos gerais, no âmbito de um regime fiscal relativo à tributação automóvel, critérios como o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em factores ambientais constituem critérios objectivos e possam ser utilizados no sistema de tributação, da sua utilização não poderá resultar discriminação e o imposto que vier a ser apurado não poderá onerar mais os produtos provenientes de outros EM do que os produtos nacionais similares, implicando que a cobrança por um EM de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro EM é contrária ao artigo 110º do TFUE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional.

 

Em 2009, interpretando o mesmo artigo 110.º do TFUE, o TJUE, no Acórdão de 19 de Março de 2009 (que opôs a Comissão Europeia à Finlândia), considerou que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de um modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.

 

Ora, relevando que, nos termos do disposto no artigo 8º da Constituição da República Portuguesa (CRP), o direito internacional prevalece sobre o direito interno português e é directamente aplicável em território nacional, sem desenvolver qualquer fundamentação, fez eco uma comunicação da Comissão Europeia em que se informava que esta tinha encetado, no TJUE, um processo contra Portugal, no sentido de defender que era censurável o artigo 11º do Código do ISV não contabilizasse no cálculo do ISV incidente sobre veículos usados nenhuma desvalorização até o veículo ter mais de um ano de tempo de uso, nem é considerada nenhuma diminuição do valor real para os veículos com mais de cinco anos de utilização, processo que culminou com a prolação do Acórdão to TJUE (C-200/15), de 16.06.2016, acima já referido.

Por entender que as alterações legislativas ao artigo 11.º do CISV não traduzem consonância com a legislação comunitária, continua a mesma decisão arbitral:

 

- Contudo, como não foi comtemplada, com a referida alteração legislativa, a questão da desvalorização dos veículos usados, oriundos de outro EM, com menos de um anos e mais de cinco, surge então o já citado Acórdão do TJUE n.º C–200/15, de 16 de Junho de 2016 (referido e citado pelo Requerente), visando directamente a legislação nacional, consubstanciada no artigo 11.º do Código do ISV (na redacção em vigor até 2016), nos termos do qual se veio considerar que «a República Portuguesa ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro EM, introduzidos no território nacional, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º do TFUE.

 

E assim, o legislador nacional foi forçado a alterar o referido artigo 11.º do Código do ISV, no sentido de nele incluir a desvalorização referida no ponto anterior, através da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, mas excluindo de novo da redacção do artigo a questão da desvalorização incidente sobre a componente ambiental do ISV.

 

Assim, os actuais contornos da legislação nacional ignoram, no artigo 11.º, n.º 1 Tabela D, o previsto no artigo 110.º do TFUE e a posição que o TJUE tem assumido (e que já assumia face ao disposto no artigo 90 do Tratado de Roma) de que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.

 

A situação descrita levou (de novo) a Comissão Europeia, na sua busca de justiça comunitária, a dar início a um procedimento contra Portugal por este não ter em conta a componente ambiental no cálculo do ISV aplicável aos veículos usados «importados» de outros EM, gerando efeitos discriminatórios nestas viaturas face às viaturas usadas adquiridas em território nacional».

 

Resulta do exposto evidente a orientação constante do TJUE sobre a incompatibilidade de normas nacionais que tributem mais gravosamente os veículos “importados” de outros Estados Membros, como se extrai tanto das decisões referidas como de tributações de similares contornos vigentes noutros países da União Europeia.

 

Recorde-se, a este propósito, o Acórdão de 20.09.2007, proferido no processo C-74/06, Comissão das Comunidades Europeias vs República Helénica, no qual se refere o seguinte: «O artigo 95.º, primeiro parágrafo, do Tratado, só permite a um Estado-Membro aplicar aos veículos usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação em que a depreciação do valor efectivo dos referidos veículos é calculada de modo geral e abstracto, com base em critérios ou tabelas fixas determinados por uma disposição legislativa, regulamentar ou administrativa, se esses critérios ou tabelas forem susceptíveis de garantir que o montante do imposto devido não excede, ainda que apenas em certos casos, o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados no território nacional».

 

Ou, como estabelece o Acórdão de 05.10.2006, processos C-290/05 e C-33/05 Ap., Ákos Nádasdi: «No âmbito de um regime relativo ao imposto automóvel, critérios como o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em considerações ambientais constituem critérios objectivos. Daí poderem ser utilizados num regime desses. Em compensação, não é exigível que o montante do imposto esteja relacionado com o preço do veículo.

 

Contudo, um imposto automóvel não deve onerar mais os produtos provenientes de outros Estados-Membros do que os produtos nacionais similares.

 

Ora, um veículo novo relativamente ao qual o imposto automóvel foi pago na Hungria perde, com o decorrer do tempo, uma parte do seu valor de mercado.

Assim, diminui, na mesma medida, o montante do imposto automóvel compreendido no valor residual do veículo. Sendo um veículo usado, só pode ser vendido por uma percentagem do valor inicial, percentagem que engloba o montante residual do imposto automóvel.

 

Resulta dos autos remetidos ao Tribunal de Justiça pelos órgãos jurisdicionais de reenvio que um veículo do mesmo modelo e de antiguidade, quilometragem e outras características idênticas, comprado em segunda mão noutro Estado-Membro e registado na Hungria será, contudo, sujeito a 100% do imposto automóvel aplicável a um veículo dessa categoria. Por conseguinte, o referido imposto onera mais os veículos usados importados do que os veículos usados similares já registados na Hungria e sujeitos ao mesmo imposto. 56. Assim, não obstante o carácter ambiental do objectivo e do fundamento do imposto automóvel e mesmo não tendo estes qualquer relação com o valor de mercado do veículo, o artigo 90.º, primeiro parágrafo, CE exige que seja tida em conta a depreciação dos veículos usados que são objecto de tributação, visto que esse imposto se caracteriza por ser apenas cobrado uma vez quando do primeiro registo do veículo para efeitos da sua utilização no Estado-Membro em causa e por ser desta forma incorporado no referido valor

 

Com base nestes considerandos, o Tribunal viria a declarar que «2 - O artigo 90.º, primeiro parágrafo, CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um imposto como o instituído pela lei relativa ao imposto automóvel, na medida:

 

– em que seja cobrado sobre os veículos usados quando da sua primeira colocação em circulação no território de um Estado-Membro e

 

– em que o seu montante, exclusivamente determinado em função das características técnicas dos veículos (tipo de motor, cilindrada) e da sua classificação ambiental, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados-Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado-Membro de importação».

E, de forma indiscutível e de forma direta relativamente ao CISV, mais propriamente no que respeita a alteração ao artigo 11.º do CISV, veio o TJUE, por Acórdão de 16.06.2016, proferido no processo C-200/15, Comissão Europeia vs República Portuguesa, a considerar:

 

- «Para efeitos da aplicação do artigo 110.º TFUE e, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados comprados no mercado nacional, que constituem produtos similares ou concorrentes, deve tomar-se em consideração não apenas a taxa da imposição interna que incide directa ou indirectamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados, mas também a matéria colectável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve reflectir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de Setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida).

 

No caso em apreço, o artigo 11.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre Veículos previa, para efeitos do cálculo do imposto aplicável aos veículos usados importados de outros Estados-Membros, a tomada em consideração de uma desvalorização em função de uma tabela de percentagens fixas que estabelece, designadamente, em 20% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado durante um período de um a dois anos e em 52% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado há mais de cinco anos.

 

Daqui resulta que a República Portuguesa aplica aos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação no qual, por um lado, o imposto devido por um veículo utilizado há menos de um ano é igual ao imposto que incide sobre um veículo novo similar posto em circulação em Portugal e, por outro, a desvalorização dos veículos automóveis utilizados há mais de cinco anos é limitada a 52%, para efeitos do cálculo do montante deste imposto, independentemente do estado geral real desses veículos.

 

Ora, é facto assente que o valor de mercado de um veículo automóvel começa a diminuir a partir da data da sua compra ou da sua entrada em circulação e que esta diminuição continua para além do quinto ano da sua utilização (v., neste sentido, acórdão de 19 de Setembro de 2002, Tulliasiamies e Siilin, C-101/00, EU:C:2002:505, n.º 78).

 

Deste modo, a regulamentação nacional em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo a pagar pelos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros para Portugal e utilizados há menos de um ano ou há mais de cinco anos é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos.

 

Por conseguinte, a regulamentação nacional em causa não garante que, nos casos referidos no número anterior do presente acórdão, os veículos usados importados de outro Estado-Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares disponíveis no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE».

 

Em conclusão, viria o Tribunal a declarar que «1) A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.»

 

Para, pretensamente, ir ao encontro desta última decisão judicial foi dada nova redação ao artigo 11.º do CISV, através da Lei n.º 42/2016, de 28/12, incluindo-se a desvalorização dos veículos quanto à componente cilindrada, mas excluindo-se, de modo declarado, a desvalorização relativa à componente ambiental.

 

Do que resulta que a legislação nacional em vigor à data – no aludido artigo 11.º do CISV – continuava a não ser compatível com o disposto no artigo 110.º do TFUE, permanecendo uma tributação mais onerosa para os veículos provenientes de outros Estados Membros, quando comparados com os adquiridos no território nacional.

 

Não se conseguindo vislumbrar em que medida a aplicação do artigo 191.º do TJUE fosse incompatível ou pudesse prevalecer à aplicação do artigo 110.º, como defende a Requerida. Quer dizer, continuava o artigo 11.º do CISV a ser contrário ao artigo 110.º do TFUE e à interpretação conjugada, uniforme e reiterada que dos mesmos tem o TJUE dado a conhecer.

 

É, aliás, com base neste entendimento que a Comissão Europeia deu início, em 23.04.2020, no TJUE, a uma acção por incumprimento contra o Estado português, processo a que foi atribuído o n.º C-169/20.

 

Neste contexto, as dúvidas que ainda podiam ser suscitadas, e que motivaram a suspensão da instância dos presentes autos, vieram a ser totalmente dissipadas pelo TJUE no recente acórdão proferido no processo C-169/20.

 

Nesse acórdão, emitido em 2 de setembro de 2020, o TJUE concluiu da seguinte forma:

 

Ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.”

 

A esta luz não há lugar à manutenção de qualquer dúvida: o artigo 11.º do CISV, na redação em vigor à data dos factos, é contrário ao artigo 110.º do TFUE e à interpretação conjugada, uniforme e reiterada que o TJUE deu a conhecer.

 

Aqui chegados, observe-se que a Requerida AT entende que a questão da desconformidade do direito nacional, em concreto das normas dos artigos 7.º e 11.º do CISV, aplicáveis às liquidações impugnadas, deve ser suscitada junto do TJUE, conforme já decidido pelo Tribunal Constitucional.

 

Porém, e a este propósito, sempre se poderá reiterar o já afirmado em despacho arbitral proferido em 13 de outubro de 2021 nos presentes autos:

 

O instituto do reenvio prejudicial, previsto no artigo 267.º do TFUE, pode ser utilizado por este Tribunal Arbitral como, aliás, já foi reconhecido pelo TJUE no processo C-377/13, de 12 de junho de 2014.

 

Nestes termos, e de acordo com o referido artigo 267.º, sempre que uma questão sobre a interpretação dos Tratados ou sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.

 

Dito de outra forma, os tribunais nacionais – onde se inclui, naturalmente, este Tribunal – devem proceder ao reenvio de questões prejudiciais, conforme previsto no artigo 267.º do TFUE - em consequência de questões ou dúvidas relativas à validade ou interpretação de normas de direito da União Europeia.

 

Tal significa que, não se suscitando quanto às normas em questão quaisquer dúvidas ou tendo as mesmas sido já esclarecidas pelo TJUE – considerando, nomeadamente a chamada “teoria do acto claro” (cfr. acórdão do TJUE CILFIT, de 6 de outubro de 1982, processo C-283/81) –, não devem os tribunais nacionais proceder ao reenvio prejudicial.

 

Assim, se já existir (i) jurisprudência na matéria (e quando o quadro eventualmente novo não suscite nenhuma dúvida real quanto à possibilidade de aplicar essa jurisprudência ao caso concreto); ou (ii) quando o modo correto de interpretar a regra jurídica em causa seja inequívoco, um órgão jurisdicional nacional pode “decidir ele próprio da interpretação correta do direito da União e da sua aplicação à situação factual de que conhece”.[3]

 

No caso sub judice, e em face da decisão proferida pelo TJUE no dia 2 de setembro de 2020 no processo C-169/20, não se considera necessário manter a suspensão da instância em ordem a aguardar pela decisão a proferir pelo TJUE no âmbito do processo de reenvio determinado pelo acórdão n.º 711/2020 do Tribunal Constitucional.

 

Na verdade, entende-se que a jurisprudência existente e disponível do TJUE, em particular a formulada no âmbito do processo C-169/20, que tem por objeto matéria de facto essencialmente idêntica, é suficientemente esclarecedora em termos de se poder decidir da interpretação correta do Direito da União Europeia e da sua aplicação à situação factual que se conhece.

           

Em conclusão, subscrevendo a posição que o TJUE tem expressamente assumido, e que foi recentemente reiterada no processo C-169/20, não se nos afiguram dúvidas quanto à incompatibilidade do artigo 11.º do CISV, na redação em vigor à data da emissão das liquidações em crise, com o artigo 110.º do TFUE, ao fazer impender uma carga tributária agravada sobre os veículos usados provenientes de outros Estados Membros, comparativamente com os nacionais que não tinha em conta a necessária redução do montante do imposto na componente ambiental.

 

b. Da Inconstitucionalidade da interpretação do artigo 11.º do CISV em conformidade com o artigo 110.º do TFUE

 

Entende ainda a Requerida AT que está coartada no seu direito de reação quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia.

 

Sucede que este Tribunal, ao decidir desaplicar uma norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia, está a respeitar o princípio do primado ou primazia do Direito da União Europeia, acolhido na Constituição Portuguesa através da norma de receção contida no artigo 8.º, n.º 4.

 

Na verdade, quando as normas de direito ordinário interno não são compatíveis com o direito da União Europeia, o Tribunal não as pode aplicar suspendendo a sua força vinculativa no caso concreto como aliás resulta do acórdão Simmenthal do TJUE (Acórdão de 09.03.1978, proferido no processo C-106/77): «O juiz nacional, encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito comunitário, tem a obrigação de assegurar o pleno efeito dessas normas, deixando se necessário inaplicadas, por sua própria autoridade, qualquer disposição contrária da legislação nacional, ainda que posterior, sem que tenha de pedir ou aguardar a eliminação prévia desta por via legislativa ou por qualquer outro processo constitucional».

 

Caso não se procedesse dessa forma podia até, em abstrato, ser suscitada a responsabilidade do Estado por violação do Direito da União Europeia.

 

Entende-se, consequentemente, que este Tribunal, ao decidir desaplicar o artigo 11.º do CISV em vigor na data das liquidações sub judice com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia, não ofendeu quaisquer princípios constitucionais – como os do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva - contrariamente ao alegado pela Requerida AT.

Ainda no que respeita a esta alegação da Requerida AT, que considera a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 11.º do CISV em conformidade com o artigo 110.º do TFUE acompanha-se as decisões arbitrais proferidas nos processos n.º 293/2020-T e 456/2020-T no sentido de que, “relativamente à invocação da limitação dos recursos em sede da arbitragem tributária, tal resulta da vinculação da Administração Tributária à jurisdição do CAAD resultante da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, com as alterações resultantes da Portaria 287/2019, de 3 de Outubro, e ao regime instituído no RJAT que este Tribunal tem que observar. É por isso que tem o dever de apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação de ISV aqui em causa, limitado e no âmbito da competência que lhe é conferida pelo artigo 2.º n.º s 1 e 2 do RJAT, não se verificando qualquer inconstitucionalidade nessa sua competência. Na verdade, a existência de tribunais arbitrais é reconhecida pelo art. 209.º, n.º 2, da Constituição”.

 

Consequentemente, os atos de liquidação em causa, ao desconsiderarem a redução na vertente relativa à componente ambiental do ISV, encontram-se feridos de ilegalidade devendo ser parcialmente anulados na parte correspondente ao excesso de tributação, pelo que deve ser devolvido à Requerente o imposto indevidamente pago no valor total de € 2.010,04 (dois mil e dez euros e quatro cêntimos).

 

            c. Do pedido de juros indemnizatórios

 

A Requerente procedeu ao integral pagamento da quantia resultante da liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral.

 

Acontece, como vimos supra, que a liquidação está inquinada uma vez que se julgou o artigo 11.º do ISV, no qual se basearam os atos de liquidação impugnados, incompatível com o artigo 110.º do Tratado da União Europeia.

 

Nos termos do disposto no artigo 100.º da LGT a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.

 

Dispõe o artigo 43.º, n.º 3, da LGT que “são também devidos juros indemnizatórios (...) d) em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.

 

Consequentemente, os juros indemnizatórios são devidos, desde a data do pagamento sendo calculados com base no respetivo valor, até à integral devolução à Requerente, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 3, alínea d) e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º do CPPT e 559.º do Código Civil, à taxa legal em vigor.

 

VII. Decisão

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

 

a) Julgar improcedente a exceção perentória invocada pela Requerida AT;

b) Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral na parte referente à anulação parcial das oitenta e quatro liquidações de ISV sub judice, com a consequente restituição à Requerente do valor total de € 50.243,14;

c) Condenar a Requerida AT no pagamento de juros indemnizatórios, desde a data em que a Requerente efectuou o pagamento da liquidação, até ao integral pagamento do montante que deve ser reembolsado;

d) Condenar a Requerida AT no pagamento das custas do processo.

 

 

VIII. Valor do processo

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 50.243,14 (cinquenta mil duzentos e quarenta e três euros e catorze cêntimos).

 

IX. Custas

Nos termos do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.142 (dois mil cento e quarenta e dois euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida AT.

 

Notifique-se, nos termos da lei, o Ministério Público.

 

Notifique-se.

Lisboa, 30 de Novembro de 2023.

 

O Árbitro

 

 

(Miguel Patrício)

 

 

 

 

CAAD: Arbitragem Tributária

Processo n.º: 77/2021-T

Tema: ISV – Importação de veículo usado da UE – Componente Ambiental – artigo 11.º do CISV.

 

*Substituída pela decisão arbitral de 30 de novembro de 2023.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sumário

I – É incompatível com o Direito da União Europeia qualquer prática administrativa que tenha por consequência a diminuição da eficácia do direito comunitário pelo que compete a todas as autoridades do Estado-Membro dar pleno efeito às normas comunitárias.

II – A Requerida AT, à semelhança dos tribunais nacionais, tem a prerrogativa – e o dever - de desaplicar normas de direito nacional com base na desconformidade com o direito comunitário.

III - Na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional, a norma do artigo 11.º do CISV, na redação dada pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, mostra-se incompatível com o Direito da União Europeia, por violação do artigo 110.º do TFUE.

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Nuno Cunha Rodrigues, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 03.05.2021, decide nos termos que seguem:

I. Relatório:

1. A..., unipessoal, Lda., NIPC..., com sede na ..., n.º..., ..., ..., ...-... Lisboa, apresentou 04/02/2021, um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com a alínea a) do artigo 99.º do CPPT, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida AT).

2. A Requerente pede a anulação parcial das liquidações de ISV por si realizadas, de forma a aplicar-se a redução prevista no artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos à componente ambiental, no montante de € 50.243,14.

4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD a 05-02-2021 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data.

5. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

6. Em 03-05-2021 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

7. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 21-05-2021.

8. Por despacho de 22 de junho de 2021, foi determinada a suspensão da pronúncia arbitral dos presentes autos, nos termos do artigo 272.º do Código de Processo Civil, até comunicação da decisão que viesse a ser proferida pelo TJUE, no âmbito do pedido de reenvio prejudicial feito pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 711/2020.

9. Por despacho de 13 de outubro de 2021 foi determinada a cessação da suspensão da instância, bem como a dispensada da reunião do tribunal arbitral a que se refere o artigo 18.º desse Regime e da apresentação de alegações escritas pelas partes.

10. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

11. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

12. O processo não enferma de nulidades e não se suscita qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

II. Do pedido da Requerente:

A Requerente solicita a anulação parcial de oitenta e quatro liquidações de ISV (Imposto sobre Veículos), no valor total de € 342.015,21, por entender que foi desconsiderada a redução na vertente relativa à componente ambiental do ISV.

Entende a Requerente, em síntese, que:

  1. A AT procedeu a oitenta e quatro liquidações de ISV pelo valor total de € 342.015,21 do qual € 205.827,56 correspondiam à componente cilindrada e € 136.187,73 à componente ambiental;
  2. No caso da componente cilindrada o valor foi deduzido da redução resultante do número de anos de uso do veículo;
  3. Entende a Requerente que a redação do artigo 11.º do CISV vigente à época, limitava a aplicação das percentagens de redução à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental, violando o artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE);
  4. Consequentemente, as oitenta e quatro liquidações efetuadas do ISV estão feridas de um vício de ilegalidade, no que diz respeito ao cálculo da componente ambiental ou CO2, pelo que a Requerente peticiona a devolução do imposto, no montante total de 50.243,14€, acrescido de juros indemnizatórios.

 

III. Da resposta da Requerida AT:

Em resposta, a Requerida AT considerou, em síntese:

  1. A caducidade do direito de ação, enquanto excepção perentória, obsta ao prosseguimento do processo, nos termos do disposto no artigo 576.º, número 3 do Código de Processo Civil, atendendo a que a administração tributária se limitou a fazer a interpretação das normas aplicáveis aos factos, sempre sob o espectro do princípio da legalidade, e não tendo a prerrogativa de poder desaplicar normas com base num julgamento de pretensa desconformidade com o direito comunitário (atribuição reservada aos tribunais);
  2. As taxas de imposto previstas no artigo 7.º e 11.º do CISV são aplicadas de igual forma, na componente cilindrada e ambiental, a um veículo com matrícula nacional e a um veículo usado admitido no território nacional.
  3. O modelo de fiscalidade automóvel tem em vista assegurar a coerência entre a tributação de veículos novos e usados, na medida em que a aquisição de uns e de outros se rege pelos mesmos princípios, de justiça fiscal e respeito pelo meio ambiente.
  4. A interpretação, pugnada pela Requerente, pressupõe a desaplicação do direito europeu e internacional - do artigo 191º do TFUE, do Protocolo de Quioto e do Acordo de Paris - que vincula o Estado Português, por força do artigo 8º da CRP, bem como uma violação do disposto no n.º 1, e alíneas a), f) e h), do n.º 2, do artigo 66º e do n.º 2 do artigo 103º da CRP.
  5. A aplicação do artigo 11.º do CISV foi efetuada em conformidade com a lei nacional e o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE e nos artigos 66.º e 103.º da Constituição, não existindo a invocada discriminação da tributação dos veículos usados nacionais relativamente aos admitidos de outros Estados-membros, não se verificando, consequentemente, a alegada violação do artigo 110.º do TFUE.
  6. Conclui a Requerente que a questão da desconformidade do direito nacional, em concreto das normas dos artigos 7.º e 11.º do CISV, aplicáveis às liquidações impugnadas, deve ser suscitada junto do TJUE, conforme já decidido pelo Tribunal Constitucional designadamente nos autos de recurso n.º 173/20 e n.º 649/20;

 

 

IV - Da excepção perentória de caducidade do direito de ação:

Na resposta, a Requerida AT invocou a caducidade do direito de ação, enquanto excepção perentória, que obsta ao prosseguimento do processo, nos termos do disposto no artigo 576.º, número 3 do Código de Processo Civil, atendendo a que a AT se teria limitado a fazer uma interpretação das normas aplicáveis aos factos, “sempre sob o espectro do princípio da legalidade, e não tendo a prerrogativa de poder desaplicar normas com base num julgamento de pretensa desconformidade com o direito comunitário (atribuição reservada aos tribunais)”.

Vejamos.

A Requerida considera que que os tribunais nacionais estão obrigados a desaplicar o direito nacional caso este se revele desconforme com o Direito da União Europeia.

Este entendimento pacífico encontra-se vertido em inúmera jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e decorre do princípio do primado ou primazia do Direito da União Europeia – historicamente reconhecido pelo TJUE desde o acórdão Costa/Enel, processo 6/64, de 15 de julho de 1964, o qual implica que, em caso de conflito, o Direito da União Europeia seja aplicado com preferência sobre o direito nacional dos Estados-membros.

O princípio do primado vincula, naturalmente, o juiz nacional, como reconhece a Requerida AT de harmonia, porventura, da inúmera jurisprudência que, a este propósito, foi proferida, entre a qual se destacam o acórdão Simmenthal, processo 106/77, de 9 de março de 1978, no qual o TJUE considerou que “o juiz nacional responsável, no âmbito das suas competências, por aplicar disposições de direito comunitário, tem obrigação de assegurar o pleno efeito de tais normas, decidindo, por autoridade própria, se necessário for, da não aplicação de qualquer norma de direito interno que as contrarie, ainda que tal norma seja posterior, sem que tenha de solicitar ou esperar a prévia eliminação da referida norma por via legislativa ou por qualquer outro processo constitucional.” e o acórdão Factortame I, processo C-213/89, de 19 de junho de 1990, ECLI:EU:C:1990:257. Neste último acórdão o TJUE concluiu afirmando que o “direito comunitário deve ser interpretado no sentido de que, quando o órgão jurisdicional nacional ao qual foi submetido um litígio que se prende com o direito comunitário considere que o único obstáculo que se opõe a que ele conceda medidas provisórias é uma norma do direito nacional, deve afastar a aplicação dessa norma.”

Esta jurisprudência foi, mais tarde, reforçada por inúmeros outros acórdãos do TJUE que visaram, dessa forma, assegurar o princípio da efectividade do Direito da União Europeia, como sejam o acórdão Marshall, processo C-271/91, de 2 de agosto de 1993,

Sucede que, no entender da Requerida AT, a interpretação das normas aplicáveis aos factos deve ser feita “sempre sob o espectro do princípio da legalidade, e não tendo a prerrogativa de poder desaplicar normas com base num julgamento de pretensa desconformidade com o direito comunitário (atribuição reservada aos tribunais)”.

Neste ponto não assiste razão à Requerida AT.

Note-se, prima facie, que não se trata, nem se discute aqui, a possibilidade de a Requerida AT recusar-se a aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade como, aparentemente, decorre da decisão tomada no processo n.º 362/2020-T do CAAD, invocada pela Requerida AT.

De forma diversa, deve observar-se que o princípio da legalidade a que a Requerida AT está adstrita abrange, naturalmente, o Direito da União Europeia ou direito comunitário.

Na verdade, as características próprias do sistema jurídico da União Europeia determinam que este integre um bloco de legalidade que enforma o conjunto global da ordem jurídica nacional e comunitária que compete, inter alia, ao juiz nacional respeitar e aplicar, como vimos anteriormente, atento o princípio do primado e o princípio da efectividade do Direito da União Europeia.

Mas este bloco de legalidade onde se insere, naturalmente, o Direito da União Europeia, deve igualmente ser respeitado e aplicado pela administração pública de qualquer Estado-membro[4], incluindo, portanto, a Requerida AT.

Na verdade, os Estados-Membros (incluindo as respetivas administrações públicas) estão vinculados ao princípio da cooperação leal, pelo que devem facilitar à União o cumprimento da sua missão e abster-se de qualquer medida suscetível de pôr em perigo a realização dos objetivos da União (cfr. artigo 4.º, n.º 3, 3.º parágrafo do Tratado da União Europeia).

Mais. As “administrações públicas nacionais – e, assim, a administração pública Portuguesa – são a administração da União de direito comum sendo-lhes confiada, em primeira linha, a execução do direito da União enquanto missão “essencial para o bom funcionamento da União” e “matéria de interesse comum”” (cfr. artigos 197.º e 291.º do TFUE).[5]

Recorde-se, a este propósito, o acórdão do TJUE Larsy, proc. C-118/00, de 28 de junho de 2001, no qual o Tribunal considerou ser “incompatível com as exigências inerentes à própria natureza do direito comunitário qualquer norma da ordem jurídica interna ou qualquer prática legislativa, administrativa ou judicial que tenha por consequência a diminuição da eficácia do direito comunitário (…)” (cfr. parágrafo 51).

Mais adiante entendeu o TJUE, no mesmo aresto e com particular importância para o caso sub judice, que o “princípio do primado do direito comunitário obriga não somente os órgãos jurisdicionais, mas todas as autoridades do Estado-Membro, a dar pleno efeito às normas comunitárias (v., neste sentido, acórdãos de 13 de Julho de 1972, Comissão/Itália, 48/71, Colect., p. 181, n.° 7, e de 19 de Janeiro de 1993, Comissão/Itália, C-101/91, Colect., p. I-191, n.° 24).”

Este entendimento foi reiterado em inúmera jurisprudência do TJUE tal como os acórdãos Henkel, 12 de fevereiro de 2004, Proc. C-218/01, EU:C:2004:88, parágrafo 60 e Impact, 15 de abril de 2008, Proc. C-268/06, EU:C:2008:223, parágrafo 85.

Também no acórdão Gavieiro, 22 de dezembro de 2010, Procs. C-444/09 e C-456/09, EU:C:2010:819, parágrafo 73, o TJUE reiterou que ”não sendo possível efectuar uma interpretação e uma aplicação da regulamentação nacional conformes com as exigências do direito da União, os tribunais nacionais e os órgãos da administração têm o dever de o aplicar integralmente e de proteger os direitos que ele confere aos particulares, deixando de aplicar, se necessário, qualquer disposição contrária de direito interno (v., neste sentido, acórdãos de 22 de Junho de 1989, Costanzo, 103/88, Colect., p. 1839, n.° 33, e de 14 de Outubro de 2010, Fuß, C‑243/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 63).”

Por outras palavras, entende o TJUE que é incompatível com o Direito da União Europeia qualquer prática administrativa que tenha por consequência a diminuição da eficácia do direito comunitário pelo que compete a todas as autoridades do Estado-Membro dar pleno efeito às normas comunitárias. A esta luz, a Requerida AT, à semelhança dos tribunais nacionais, tem a prerrogativa – e o dever - de desaplicar normas de direito nacional com base na desconformidade com o direito comunitário.

Ora, no caso sub judice, e como veremos adiante, a Requerida AT aplicou uma disposição legal nacional em violação do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

Ao fazê-lo, procedeu de forma errada podendo assim concluir-se que houve, in casu¸ erro imputável aos serviços que legitima o subsequente pedido de revisão das liquidações operado pelo Requerente que foi feito dentro do prazo previsto no artigo 78.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária: 4 anos.

Não procede, assim, a exceção invocada pela Requerida AT, pelo que este Tribunal Arbitral é competente para conhecer do pedido.

 

V. Matéria de facto:

A. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

  1. No período que mediou entre 2017 e 2020 a Requerente procedeu à importação de um conjunto de veículos automóveis em território nacional que deram origem a introduções no consumo efetuadas através das seguintes oitenta e quatro Declarações Aduaneiras de Veículo:

 

 

  1. Nas datas que constam nas DAV como data de aceitação, a Requerente procedeu à regularização fiscal dos oitenta e quatro veículos ligeiros de passageiros, usados, provenientes de outros Estado-membros.
  2. A AT procedeu a oitenta e quatro liquidações de ISV pelo valor total de € 342.015,21 do qual € 205.827,56 correspondiam à componente cilindrada e € 136.187,73 à componente ambiental;
  3. O ISV liquidado na componente ambiental não beneficiou de qualquer redução, nos termos previstos no artigo 11.º do CISV vigente no momento das liquidações.

 

B. Factos não provados

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.

C. Fundamentação da matéria de facto

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

A convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas partes e no acervo probatório (em particular o incluído no processo administrativo) carreado para os autos, o qual foi objeto de uma análise crítica e de adequada ponderação à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

 

VI. Do Direito:

  1. Da ilegalidade das liquidações de ISV:

Conforme resulta do pedido arbitral, a Requerente manifestou a sua inconformidade com os atos de liquidação impugnados, por entender que, ao não levar em consideração o número de anos do veículo na sua componente ambiental, o artigo 11.º do CISV, na redação então em vigor, violava o disposto no artigo 110.º do TFUE, o que inquinaria as liquidações de ilegalidade.

Cumpre, por isso, analisar as normas mais relevantes previstas no CISV vigente no momento em que ocorreram os atos de liquidação sub judice.

De harmonia com o Código do ISV, estão sujeitos ao imposto, designadamente, «os veículos automóveis ligeiros de passageiros», sendo «sujeitos passivos do imposto os operadores registados, os operadores reconhecidos e os particulares (…) que procedam à introdução no consumo dos veículos tributáveis, considerando -se como tais as pessoas em nome de quem seja emitida a declaração aduaneira de veículos» [artigo 2º, n.º 1, alínea a) e 3º, n.º 1]

E, como estabelece o artigo 5º do mesmo código, «constitui facto gerador do imposto o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal», sendo que, para este efeito, de acordo com o n.º 3 alínea a) do mesmo artigo, entende-se por «admissão, a entrada de um veículo originário ou em livre prática noutro Estado-Membro da União Europeia em território nacional» (sublinhados nossos).

Por sua vez, «a introdução no consumo e a liquidação do imposto são tituladas pela declaração aduaneira de veículos (DAV)», sendo, «para efeitos de matrícula, os veículos automóveis ligeiros (…) são sujeitos ao processamento da DAV» (art. 17º, n.º 1 e 3 do CISV).

Para efeitos de cálculo do ISV, as taxas aplicáveis têm por base tributável uma componente cilindrada e uma componente ambiental, sendo que a primeira estipula uma taxa consoante a cilindrada e o tipo de veículo e a segunda uma discriminação entre os veículos a gasolina e os veículos a gasóleo, (de forma positiva relativamente aos primeiros) prevendo uma tributação progressiva em função do nível de CO2 g/km.

De modo particular, e no que aos veículos usados provenientes de outros Estados membros da União Europeia respeita – como no caso em apreço -, estabelecia o artigo 11º do CISV, na redacção então em vigor resultante da Lei do Orçamento do Estado para 2017 (Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro), o seguinte:

“1 – O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:

TABELA D

2 - Para efeitos de aplicação do número anterior, entende-se por «tempo de uso» o período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respectivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos.”

Ambas as partes – Requerente e Requerida AT – suscitaram, nos presentes autos, questões relacionadas com a compatibilidade do CISV e, em particular, do artigo 11.º acima referido, com o Direito da União Europeia e a sua aplicação a veículos usados provenientes de veículos matriculados em Estados Membros da União Europeia.

A este propósito foi emitida abundante jurisprudência pelo CAAD que aqui seguimos de perto, nomeadamente as decisões proferidas nos processos 474/2020-T; 457/2020-T e 572/2018-T.

Atente-se, em particular, no historial que a esse se fez constar da decisão arbitral de 30.04.2019, proferida no processo n.º 572/2018-T:

- «(…) Essa legalidade foi muito cedo questionada pela Comissão Europeia, ainda no âmbito do Imposto Automóvel, porquanto esta entendia que as normas portuguesas então vigentes não observavam o disposto no artigo 95º do Tratado de Roma e, sendo necessário que Portugal perdesse o seu carácter proteccionista, era imprescindível que o montante de imposto fosse idêntico ao remanescente do imposto incorporado no preço dos veículos usados similares, comercializados no mercado português, remanescente esse a calcular a partir da percentagem da depreciação do valor desses veículos.  

Não obstante, em 2001, o Acórdão do TJCE (de 22.02.01) denominado «Gomes Valente», proferido a título prejudicial, veio criar as condições para se romper, a nível nacional, com o quadro clássico de tributação dos veículos usados, assente exclusivamente em reduções fixas em função do n.º de anos de uso.

Neste âmbito, embora tenha sido referido que a aplicação de uma tabela de taxas para os veículos usados fundada num critério de depreciação único não seria contrário ao referido artigo 95º do Tratado de Roma, foi sublinhado que era importante que fossem tomados em conta outros factores de depreciação que não apenas a antiguidade, de forma a garantir que a referida tabela reflectisse de modo mais preciso a depreciação real dos veículos e permitisse alcançar de uma forma mais fácil o objectivo da tributação dos veículos usados, de modo a que, em nenhum caso, esta pudesse ser superior ao montante da taxa residual incorporada no valor dos veículos usados já matriculados em território nacional.

Esta jurisprudência veio a ser reforçada com o Acórdão do TJCE n.º 101/00, proferido em 19 de Setembro de 2002 num processo que então envolveu o Governo Finlandês e Antti Sillin, no qual foi considerado que o artigo referido artigo 95º, primeiro parágrafo do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 90º, primeiro parágrafo) permitia a um EM aplicar aos veículos usados importados de outro EM um sistema de tributação em que o valor tributável é determinado por referência ao valor aduaneiro definido, mas obsta a que o valor tributável varie em função da fase de comercialização quando daí possa resultar, pelo menos, em determinados casos, que o montante do imposto que incide sobre um veículo usado importado exceda o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no território nacional.

Refira-se ainda que, na sequência do designado Acórdão «Gomes Valente», a jurisprudência tem entendido que para que um sistema de tributação dos veículos usados seja compatível com o disposto no Tratado é necessário que se adopte ou um modelo de tributação baseado na avaliação de cada veículo ou um modelo de tributação baseado em tabelas fixas que exclua todo e qualquer efeito discriminatório.

Por outro lado, o actual artigo 110º do TFUE opõe-se a que um EM aplique aos veículos usados importados de outro EM um sistema de tributação em que o imposto que incide sobre esses veículos não atenda à depreciação real do veículo e não permita garantir sempre que o montante do imposto que fixa não excede o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no território nacional.

Mais se considerou que, quando um EM aplica aos veículos usados importados de outros Estados membros um sistema de tributação em que a depreciação real dos veículos é definida de modo geral e abstracta com base em critérios determinados pelo direito nacional, o disposto no Tratado exige que esse sistema de tributação seja organizado de forma a excluir todo e qualquer efeito discriminatório.

Pode assim afirmar-se que o Acórdão do TJCE proferido no caso «Gomes Valente» abriu a porta para uma nova forma de tributação dos veículos usados admitidos de outros Estados membros.

Mas, ao que ao presente caso interessa, refira-se que em 2006, no âmbito do sistema de tributação húngaro, no Acórdão do TJUE de 5 de Outubro de 2006 (C-290/05), no caso Nádasdi, foi analisada pela primeira vez a questão ambiental face aos impostos automóveis aplicáveis dentro do espaço da União Europeia.

Com efeito, o sistema fiscal húngaro ignorava a desvalorização do veículo e tratava de forma igualitária todos os veículos que tivessem a mesma motorização e comportamento ambiental.

Contudo, o referido Acórdão veio declarar que «o artigo 90.º, primeiro parágrafo, CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um imposto como o instituído pela lei relativa ao imposto automóvel, na medida em que seja cobrado sobre os veículos usados quando da sua primeira colocação em circulação no território de um Estado-Membro e em que o seu montante, exclusivamente determinado em função das características técnicas dos veículos (tipo de motor, cilindrada) e da sua classificação ambiental, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados-Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado-Membro de importação. Não é relevante proceder a uma comparação com os veículos usados postos em circulação no Estado-Membro em questão antes da introdução desse imposto».

Adicionalmente, considerou-se que os Estados-Membros (EM) têm liberdade para seleccionar os critérios a utilizar no cálculo do imposto e estabelecer um sistema de tributação diferenciado para certos produtos, em função de critérios objectivos aplicados, sendo que tais diferenciações só serão consideradas compatíveis com o direito da UE se, por um lado, prosseguirem objectivos compatíveis, também eles, com as exigências do Tratado e do direito derivado e, se por outro, as formas que vierem a revestir sejam de molde a evitar qualquer forma de discriminação, directa ou indirecta, das «importações» provenientes dos outros EM, ou de protecção em favor de produções nacionais concorrentes.

Assim, ainda que, em termos gerais, no âmbito de um regime fiscal relativo à tributação automóvel, critérios como o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em factores ambientais constituem critérios objectivos e possam ser utilizados no sistema de tributação, da sua utilização não poderá resultar discriminação e o imposto que vier a ser apurado não poderá onerar mais os produtos provenientes de outros EM do que os produtos nacionais similares, implicando que a cobrança por um EM de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro EM é contrária ao artigo 110º do TFUE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional.

Em 2009, interpretando o mesmo artigo 110º do TFUE, o TJUE, no Acórdão de 19 de Março de 2009 (que opôs a Comissão Europeia à Finlândia), considerou que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de um modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.

Ora, relevando que, nos termos do disposto no artigo 8º da Constituição da República Portuguesa (CRP), o direito internacional prevalece sobre o direito interno português e é directamente aplicável em território nacional, sem desenvolver qualquer fundamentação, fez eco uma comunicação da Comissão Europeia em que se informava que esta tinha encetado, no TJUE, um processo contra Portugal, no sentido de defender que era censurável o artigo 11º do Código do ISV não contabilizasse no cálculo do ISV incidente sobre veículos usados nenhuma desvalorização até o veículo ter mais de um ano de tempo de uso, nem é considerada nenhuma diminuição do valor real para os veículos com mais de cinco anos de utilização, processo que culminou com a prolação do Acórdão to TJUE (C-200/15), de 16.06.2016, acima já referido.

Por entender que as alterações legislativas ao artigo 11º do CISV não traduzem consonância com a legislação comunitária, continua a mesma decisão arbitral:

- Contudo, como não foi comtemplada, com a referida alteração legislativa, a questão da desvalorização dos veículos usados, oriundos de outro EM, com menos de um anos e mais de cinco, surge então o já citado Acórdão do TJUE n.º C–200/15, de 16 de Junho de 2016 (referido e citado pelo Requerente), visando directamente a legislação nacional, consubstanciada no artigo 11º do Código do ISV (na redacção em vigor até 2016), nos termos do qual se veio considerar que «a República Portuguesa ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro EM, introduzidos no território nacional, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110º do TFUE.

E assim, o legislador nacional foi forçado a alterar o referido artigo 11º do Código do ISV, no sentido de nele incluir a desvalorização referida no ponto anterior, através da Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, mas excluindo de novo da redacção do artigo a questão da desvalorização incidente sobre a componente ambiental do ISV.

Assim, os actuais contornos da legislação nacional ignoram, no artigo 11º, n.º 1 Tabela D, o previsto no artigo 110º do TFUE e a posição que o TJUE tem assumido (e que já assumia face ao disposto no artigo 90 do Tratado de Roma) de que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.

A situação descrita levou (de novo) a Comissão Europeia, na sua busca de justiça comunitária, a dar início a um procedimento contra Portugal por este não ter em conta a componente ambiental no cálculo do ISV aplicável aos veículos usados «importados» de outros EM, gerando efeitos discriminatórios nestas viaturas face às viaturas usadas adquiridas em território nacional».

Resulta do exposto evidente a orientação constante do TJUE sobre a incompatibilidade de normas nacionais que tributem mais gravosamente os veículos “importados” de outros Estados Membros, como se extrai tanto das decisões referidas como de tributações de similares contornos vigentes noutros países da União Europeia.

Recorde-se, a este propósito, o Acórdão de 20.09.2007, proferido no processo C-74/06, Comissão das Comunidades Europeias vs República Helénica, no qual se refere o seguinte: «O artigo 95°, primeiro parágrafo, do Tratado, só permite a um Estado-Membro aplicar aos veículos usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação em que a depreciação do valor efectivo dos referidos veículos é calculada de modo geral e abstracto, com base em critérios ou tabelas fixas determinados por uma disposição legislativa, regulamentar ou administrativa, se esses critérios ou tabelas forem susceptíveis de garantir que o montante do imposto devido não excede, ainda que apenas em certos casos, o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados no território nacional».

Ou, como estabelece o Acórdão de 05.10.2006, processos C-290/05 e C-33/05 Ap., Ákos Nádasdi: «No âmbito de um regime relativo ao imposto automóvel, critérios como o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em considerações ambientais constituem critérios objectivos. Daí poderem ser utilizados num regime desses. Em compensação, não é exigível que o montante do imposto esteja relacionado com o preço do veículo.

Contudo, um imposto automóvel não deve onerar mais os produtos provenientes de outros Estados-Membros do que os produtos nacionais similares.

Ora, um veículo novo relativamente ao qual o imposto automóvel foi pago na Hungria perde, com o decorrer do tempo, uma parte do seu valor de mercado.

Assim, diminui, na mesma medida, o montante do imposto automóvel compreendido no valor residual do veículo. Sendo um veículo usado, só pode ser vendido por uma percentagem do valor inicial, percentagem que engloba o montante residual do imposto automóvel.

Resulta dos autos remetidos ao Tribunal de Justiça pelos órgãos jurisdicionais de reenvio que um veículo do mesmo modelo e de antiguidade, quilometragem e outras características idênticas, comprado em segunda mão noutro Estado-Membro e registado na Hungria será, contudo, sujeito a 100% do imposto automóvel aplicável a um veículo dessa categoria. Por conseguinte, o referido imposto onera mais os veículos usados importados do que os veículos usados similares já registados na Hungria e sujeitos ao mesmo imposto. 56. Assim, não obstante o carácter ambiental do objectivo e do fundamento do imposto automóvel e mesmo não tendo estes qualquer relação com o valor de mercado do veículo, o artigo 90°, primeiro parágrafo, CE exige que seja tida em conta a depreciação dos veículos usados que são objecto de tributação, visto que esse imposto se caracteriza por ser apenas cobrado uma vez quando do primeiro registo do veículo para efeitos da sua utilização no Estado-Membro em causa e por ser desta forma incorporado no referido valor.»

Com base nestes considerandos, o Tribunal viria a declarar que «2 - O artigo 90°, primeiro parágrafo, CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um imposto como o instituído pela lei relativa ao imposto automóvel, na medida:

– em que seja cobrado sobre os veículos usados quando da sua primeira colocação em circulação no território de um Estado-Membro e

– em que o seu montante, exclusivamente determinado em função das características técnicas dos veículos (tipo de motor, cilindrada) e da sua classificação ambiental, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados-Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado-Membro de importação».

E, de forma indiscutível e de forma direta relativamente ao CISV, mais propriamente no que respeita a alteração ao artigo 11º do CISV, veio o TJUE, por Acórdão de 16.06.2016, proferido no processo C-200/15, Comissão Europeia vs República Portuguesa, a considerar:

- «Para efeitos da aplicação do artigo 110° TFUE e, em especial, para efeitos da comparação entre o regime de tributação dos veículos usados importados e o dos veículos usados comprados no mercado nacional, que constituem produtos similares ou concorrentes, deve tomar-se em consideração não apenas a taxa da imposição interna que incide directa ou indirectamente sobre os produtos nacionais e os produtos importados, mas também a matéria colectável e as modalidades do imposto em causa. Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve reflectir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de Setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida).

No caso em apreço, o artigo 11°, n.º 1, do Código do Imposto sobre Veículos previa, para efeitos do cálculo do imposto aplicável aos veículos usados importados de outros Estados-Membros, a tomada em consideração de uma desvalorização em função de uma tabela de percentagens fixas que estabelece, designadamente, em 20% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado durante um período de um a dois anos e em 52% a desvalorização de um veículo automóvel utilizado há mais de cinco anos.

Daqui resulta que a República Portuguesa aplica aos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros um sistema de tributação no qual, por um lado, o imposto devido por um veículo utilizado há menos de um ano é igual ao imposto que incide sobre um veículo novo similar posto em circulação em Portugal e, por outro, a desvalorização dos veículos automóveis utilizados há mais de cinco anos é limitada a 52%, para efeitos do cálculo do montante deste imposto, independentemente do estado geral real desses veículos.

Ora, é facto assente que o valor de mercado de um veículo automóvel começa a diminuir a partir da data da sua compra ou da sua entrada em circulação e que esta diminuição continua para além do quinto ano da sua utilização (v., neste sentido, acórdão de 19 de Setembro de 2002, Tulliasiamies e Siilin, C-101/00, EU:C:2002:505, n.º 78).

Deste modo, a regulamentação nacional em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo a pagar pelos veículos automóveis usados importados de outros Estados-Membros para Portugal e utilizados há menos de um ano ou há mais de cinco anos é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos.

Por conseguinte, a regulamentação nacional em causa não garante que, nos casos referidos no número anterior do presente acórdão, os veículos usados importados de outro Estado-Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares disponíveis no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110° TFUE».

Em conclusão, viria o Tribunal a declarar que «1) A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110° TFUE.»

Para, pretensamente, ir ao encontro desta última decisão judicial foi dada nova redação ao artigo 11º do CISV, através da Lei n.º 42/2016, de 28/12, incluindo-se a desvalorização dos veículos quanto à componente cilindrada, mas excluindo-se, de modo declarado, a desvalorização relativa à componente ambiental.

Do que resulta que a legislação nacional em vigor à data – no aludido artigo 11º do CISV – continuava a não ser compatível com o disposto no artigo 110º do TFUE, permanecendo uma tributação mais onerosa para os veículos provenientes de outros Estados Membros, quando comparados com os adquiridos no território nacional.

Não se conseguindo vislumbrar em que medida a aplicação do artigo 191º do TJUE fosse incompatível ou pudesse prevalecer à aplicação do artigo 110º, como defende a Requerida. Quer dizer, continuava o artigo 11º do CISV a ser contrário ao artigo 110º do TFUE e à interpretação conjugada, uniforme e reiterada que dos mesmos tem o TJUE dado a conhecer.

É, aliás, com base neste entendimento que a Comissão Europeia deu início, em 23.04.2020, no TJUE, a uma acção por incumprimento contra o Estado português, processo a que foi atribuído o n.º C-169/20.

Neste contexto, as dúvidas que ainda podiam ser suscitadas, e que motivaram a suspensão da instância dos presentes autos, vieram a ser totalmente dissipadas pelo TJUE no recente acórdão proferido no processo C-169/20.

Nesse acórdão, emitido em 2 de setembro de 2020, o TJUE concluiu da seguinte forma:

 “Ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.”

A esta luz não há lugar à manutenção de qualquer dúvida: o artigo 11.º do CISV, na redação em vigor à data dos factos, é contrário ao artigo 110.º do TFUE e à interpretação conjugada, uniforme e reiterada que o TJUE deu a conhecer.

Aqui chegados, observe-se que a Requerida AT entende que a questão da desconformidade do direito nacional, em concreto das normas dos artigos 7.º e 11.º do CISV, aplicáveis às liquidações impugnadas, deve ser suscitada junto do TJUE, conforme já decidido pelo Tribunal Constitucional.

Porém, e a este propósito, sempre se poderá reiterar o já afirmado em despacho arbitral proferido em 13 de outubro de 2021 nos presentes autos:

O instituto do reenvio prejudicial, previsto no artigo 267.º do TFUE, pode ser utilizado por este Tribunal Arbitral como, aliás, já foi reconhecido pelo TJUE no processo C-377/13, de 12 de junho de 2014.

Nestes termos, e de acordo com o referido artigo 267.º, sempre que uma questão sobre a interpretação dos Tratados ou sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.

Dito de outra forma, os tribunais nacionais – onde se inclui, naturalmente, este Tribunal – devem proceder ao reenvio de questões prejudiciais, conforme previsto no artigo 267.º do TFUE - em consequência de questões ou dúvidas relativas à validade ou interpretação de normas de direito da União Europeia.

Tal significa que, não se suscitando quanto às normas em questão quaisquer dúvidas ou tendo as mesmas sido já esclarecidas pelo TJUE – considerando, nomeadamente a chamada “teoria do acto claro” (cfr. acórdão do TJUE CILFIT, de 6 de outubro de 1982, processo C-283/81) –, não devem os tribunais nacionais proceder ao reenvio prejudicial.

Assim, se já existir (i) jurisprudência na matéria (e quando o quadro eventualmente novo não suscite nenhuma dúvida real quanto à possibilidade de aplicar essa jurisprudência ao caso concreto); ou (ii) quando o modo correto de interpretar a regra jurídica em causa seja inequívoco, um órgão jurisdicional nacional pode “decidir ele próprio da interpretação correta do direito da União e da sua aplicação à situação factual de que conhece”.[6]

No caso sub judice, e em face da decisão proferida pelo TJUE no dia 2 de setembro de 2020 no processo C-169/20, não se considera necessário manter a suspensão da instância em ordem a aguardar pela decisão a proferir pelo TJUE no âmbito do processo de reenvio determinado pelo acórdão n.º 711/2020 do Tribunal Constitucional.

Na verdade, entende-se que a jurisprudência existente e disponível do TJUE, em particular a formulada no âmbito do processo C-169/20, que tem por objeto matéria de facto essencialmente idêntica, é suficientemente esclarecedora em termos de se poder decidir da interpretação correta do Direito da União Europeia e da sua aplicação à situação factual que se conhece.

Em conclusão, subscrevendo a posição que o TJUE tem expressamente assumido, e que foi recentemente reiterada no processo C-169/20, não se nos afiguram dúvidas quanto à incompatibilidade do artigo 11.º do CISV, na redação em vigor à data da emissão das liquidações em crise, com o artigo 110.º do TFUE, ao fazer impender uma carga tributária agravada sobre os veículos usados provenientes de outros Estados Membros, comparativamente com os nacionais que não tinha em conta a necessária redução do montante do imposto na componente ambiental.

 

  1. Da Inconstitucionalidade da interpretação do artigo 11.º do CISV em conformidade com o artigo 110.º do TFUE:

Entende ainda a Requerida AT que está coartada no seu direito de reação quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia.

Sucede que este Tribunal, ao decidir desaplicar uma norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia, está a respeitar o princípio do primado ou primazia do Direito da União Europeia, acolhido na Constituição Portuguesa através da norma de receção contida no artigo 8.º, n.º 4.

Na verdade, quando as normas de direito ordinário interno não são compatíveis com o direito da União Europeia, o Tribunal não as pode aplicar suspendendo a sua força vinculativa no caso concreto como aliás resulta do acórdão Simmenthal do TJUE (Acórdão de 09.03.1978, proferido no processo C-106/77): «O juiz nacional, encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito comunitário, tem a obrigação de assegurar o pleno efeito dessas normas, deixando se necessário inaplicadas, por sua própria autoridade, qualquer disposição contrária da legislação nacional, ainda que posterior, sem que tenha de pedir ou aguardar a eliminação prévia desta por via legislativa ou por qualquer outro processo constitucional»

Caso não se procedesse dessa forma podia até, em abstrato, ser suscitada a responsabilidade do Estado por violação do Direito da União Europeia.

Entende-se, consequentemente, que este Tribunal, ao decidir desaplicar o artigo 11.º do CISV em vigor na data das liquidações sub judice com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia, não ofendeu quaisquer princípios constitucionais – como os do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva - contrariamente ao alegado pela Requerida AT.

Ainda no que respeita a esta alegação da Requerida AT, que considera a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 11.º do CISV em conformidade com o artigo 110.º do TFUE acompanha-se as decisões arbitrais proferidas nos processos n.º 293/2020-T e 456/2020-T no sentido de que, “relativamente à invocação da limitação dos recursos em sede da arbitragem tributária, tal resulta da vinculação da Administração Tributária à jurisdição do CAAD resultante da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, com as alterações resultantes da Portaria 287/2019, de 3 de Outubro, e ao regime instituído no RJAT que este Tribunal tem que observar. É por isso que tem o dever de apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação de ISV aqui em causa, limitado e no âmbito da competência que lhe é conferida pelo artigo 2.º n.º s 1 e 2 do RJAT, não se verificando qualquer inconstitucionalidade nessa sua competência. Na verdade, a existência de tribunais arbitrais é reconhecida pelo art. 209º, nº2, da Constituição”.

Consequentemente, os atos de liquidação em causa, ao desconsiderarem a redução na vertente relativa à componente ambiental do ISV, encontram-se feridos de ilegalidade devendo ser parcialmente anulados na parte correspondente ao excesso de tributação, pelo que deve ser devolvido à Requerente o imposto indevidamente pago no valor total de € 2.010,04 (dois mil e dez euros e quatro cêntimos).

 

  1. Do pedido de juros indemnizatórios:

A Requerente procedeu ao integral pagamento da quantia resultante da liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral.

Acontece, como vimos supra, que a liquidação está inquinada uma vez que se julgou o artigo 11.º do ISV, no qual se basearam os atos de liquidação impugnados, incompatível com o artigo 110.º do Tratado da União Europeia.

Nos termos do disposto no artigo 100.º da LGT a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.

Dispõe o artigo 43.º, n.º 3 da LGT que “são também devidos juros indemnizatórios (...) d) em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.

Consequentemente, os juros indemnizatórios são devidos, desde a data do pagamento sendo calculados com base no respetivo valor, até à integral devolução à Requerente, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 3, alínea d) e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º do CPPT e 559.º do Código Civil, à taxa legal em vigor.

 

VII – Decisão:

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

  1. Julgar improcedente a exceção perentória invocada pela Requerida AT;
  2. Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral na parte referente à anulação parcial das oitenta e quatro liquidações de ISV sub judice, com a consequente restituição à Requerente do valor total de € 50.243,14;
  3. Condenar a Requerida AT no pagamento de juros indemnizatórios, desde a data em que a Requerente efectuou o pagamento da liquidação, até ao integral pagamento do montante que deve ser reembolsado;
  4. Condenar a Requerida AT no pagamento das custas do processo.

 

VIII - Valor do processo:

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 50.243,14 (cinquenta mil duzentos e quarenta e três euros e catorze cêntimos).

 

IX - Custas:

Nos termos do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.142 (dois mil cento e quarenta e dois euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida AT.

 

Notifique-se, nos termos da lei, o Ministério Público.

 

Registe-se e notifique-se.

Lisboa, 15 de outubro de 2021

O Árbitro Singular

 

Nuno Cunha Rodrigues

 

 

 



[1] A este propósito cfr., John Temple Lang, The Duties of National Authorities Under Community Constitutional Law, in European Law Review, 23 (2), 1998, 109-131; e Maartje Verhoeven, The Costanzo Obligation. The Obligation of National Administrative Authorities in the Case of Incompatibility between National Law and European Law, disponível em https://intersentia.com/en/the-costanzo-obligation.html

[2] Assim, v. Sophie Perez Fernandes, O dever de anulação administrativa previsto no artigo 168.º, n.º 7, CPA – em busca de uma solução eurocompatível, in UNIO- EU law jornal, vol. 3, n.º 2, Julho 2017, p. 161.

[3] Cfr. pontos 12 e 13 das recomendações aos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2012/C 338/01), do TJUE, disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2012:338:0001:0006:PT:PDF.

[4] A este propósito cfr., John Temple Lang, The Duties of National Authorities Under Community Constitutional Law, in European Law Review 23 (2) (1998): 109-131; e Maartje Verhoeven, The Costanzo Obligation. The Obligation of National Administrative Authorities in the Case of Incompatibility between National Law and European Law, disponível em https://intersentia.com/en/the-costanzo-obligation.html

[5] Assim, v. Sophie Perez Fernandes, O dever de anulação administrativa previsto no artigo 168.º, n.º 7, CPA – em busca de uma solução eurocompatível, in UNIO- EU law jornal, vol. 3, n.º 2, Julho 2017, p. 161.

[6] Cfr. pontos 12 e 13 das recomendações aos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (2012/C 338/01), do TJUE, disponível em http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2012:338:0001:0006:PT:PDF.