Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 750/2020-T
Data da decisão: 2021-12-22  IRC  
Valor do pedido: € 14.761,04
Tema: IRC – Desconsideração do Custo das Mercadorias vendidas e das matérias Consumidas subsumível no art.º 23º do CIRC; Perdas por imparidades em inventários; Princípio da especialização dos exercícios; Desconsideração de perdas por imparidade subsumíveis no n.º 7 do art.º 31.º-B do CIRC
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DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

SUMÁRIO:

 

1.            Em termos contabilísticos, a estimativa do valor realizável líquido (VRL) baseia-se nas provas mais fiáveis disponíveis no momento.

2.            Já para efeitos fiscais, tal estimativa do valor realizável líquido (VRL) corresponde ao preço de venda estimado no decurso normal da atividade do sujeito passivo (art.º 28º nº 2 do CIRC), determinado nos termos do art.º 26º nº 4 do CIRC, ou seja, em preços de venda constantes de elementos oficiais ou aos últimos que em condições normais tenham sido praticados pelo sujeito passivo, ou ainda os que, no termo do período de tributação, forem correntes no mercado, desde que sejam considerados idóneos ou de controlo inequívoco.

3.            Das exigências fiscais explicitadas no n.º 4 do art.º 26º do CIRC, por remissão do n.º 2 do art.º 28º do mesmo normativo, resulta que o valor realizável líquido é de difícil demonstração, sendo até mais específico e mais objectivo do que o relevante para o ordenamento jurídico-contabilístico.

4.            Desde logo, porquanto, não existe cotação e mercado regulado para a grande maioria dos inventários e, por outro lado, porque os últimos preços que em condições normais tenham sido praticados podem não refletir o VRL correto, em caso de danificação ou obsolescência do inventário, ou, mesmo, pode não haver termo de referência ou ainda por não existirem vendas daqueles inventários.

5.            Além de que, em conformidade ainda com o n.º 4 do art.º 26.º do CIRC, in fine, quanto aos preços correntes no mercado, estes têm de ser considerados idóneos ou de controlo inequívoco, introduzindo-se ali mais uma outra salvaguarda que simplesmente inexiste no ordenamento jurídico-contabilístico.  

6.            Intuindo-se daqui que o legislador fiscal foi bastante mais restritivo na aceitação das perdas por imparidade em inventários como gasto fiscal.

7.            A Requerente só ficou em condições de determinar, para efeitos fiscais, o valor realizável líquido dos sapatos que estavam obsoletos, quando, em 2015, tomou a decisão de vender aqueles inventários, fixando-lhes um preço, para o qual existissem compradores, tendo-se apurado tão-só através da venda (evento de realização) o valor dos produtos vendidos.

8.            E assim sendo, independentemente de para efeitos meramente contabilísticos e em função das respectivas regras de determinação do VRL, poder aquela ter violado a obrigação contabilística de constituição da correspondente imparidade, para efeitos estritamente fiscais, essa constituição estava-lhe vedada por inverificação do determinado no n.º 4 do art.º 26º do CIRC.

9.            Não pode deixar de cair a tese sufragada pela Requerida, ou seja, tem de prevalecer o reconhecimento do custo associado à transmissão dos sapatos no exercício de 2015, i.e., atento o princípio do balanceamento entre custos e proveitos, o gasto com relevância fiscal relativo a estes inventários tem de ser reconhecido aquando da venda desses mesmos inventários por subsunção no art.º 23.º do CIRC e não no momento da suposta redução do valor escriturado do inventários ao VRL que inexistiu do ponto de vista contabilístico e que jamais poderia existir para efeitos fiscais por inverificação do determinado no n.º 4 do art.º 26º do CIRC.      

10.          Mas ainda que tivesse ocorrido desrespeito pelo princípio da periodização do lucro tributável, sempre teríamos de concluir que o procedimento seguido pela Requerente não terá determinado prejuízo à receita tributária, havendo ainda que atender à jurisprudência recorrente do STA no sentido de que a rigidez do princípio da periodização dos exercícios tem de ser ponderada com o princípio da justiça.

 

I. RELATÓRIO:

 

1. A..., LDA.,  pessoa  colectiva  n.º ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... BRAGA (doravante, Requerente), apresentou, em 10.12.2020, um pedido de pronúncia arbitral, invocando o disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 2.º, o n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do art.º 5.º, o n.º 1 do art.º 6.º e a alínea a) do n.º 1 do art.º 10º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, de ora em diante apenas designado por RJAT) em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

2. No pedido de pronúncia arbitral (doravante PPA), a Requerente optou por não designar árbitro.

 

3. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou árbitro singular que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

4. Em 1.2.2021, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, por aplicação conjugada da alínea a) e b) do n.º 1 do art.º 11º do RJAT e dos art.º 6º e 7º do Código Deontológico.

 

5. Em conformidade com o estatuído na alínea c), do n.º 1, do art.º 11º do RJAT, na redacção que lhe foi introduzida pelo art.º 228.º da lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 3.5.2021 para apreciar e decidir o objecto do processo.

 

6. A pretensão objecto do pedido de pronúncia arbitral consiste: i) Na declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento proferida no âmbito do Recurso Hierárquico n.º ...2019... que a Requerente apresentou dirigido à decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2019... e que tinham por objecto a demonstração de liquidação de Imposto sobre o rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), de 2015, com o n.º 2018 ..., emitida em 18.7.2018 e a demonstração de liquidação de juros n.º 2018 ... e 2018 ..., bem como a correspondente demonstração e acerto de contas n.º 2018 ...; e ainda por objecto a demonstração de liquidação de IRC, de 2016, com o n.º 2018 ..., emitida em 18.7.2018 e a demonstração de liquidação de juros n.º 2018 ... e 2018 ..., bem como a correspondente demonstração e acerto de contas n.º 2018 ...; e finalmente na consequente declaração de ilegalidade daqueles actos tributários de liquidação, respeitantes aos anos de 2015 e 2016, por desconsideração indevida de parte do Custo das Mercadorias vendidas e das Matérias Consumidas (CMVMC) subsumível no art.º 23º do CIRC e ainda por desconsideração indevida de perdas por imparidade subsumíveis no n.º 7 do art.º 31.º-B do CIRC; ii) Em consequência do eventual decretamento da ilegalidade dos actos de liquidação referidos, na restituição à Requerente do valor pago indevidamente a título de IRC e de juros compensatórios na parte correspondente ao valor das correcções ao lucro tributável de 2015 e de 2016 contestada na presente acção; iii) No pagamento à Requerente de juros indemnizatórios, por estarem preenchidos os pressupostos previstos no n.º 5 do art.º 24º do RJAT, por remissão para o art.º 43.º da LGT, contados desde a data do pagamento indevido até à restituição do imposto pago em excesso com referência àquele período de tributação (Cfr. n.º 5 do art.º 61º do CPPT).

 

7. Fundamentando o seu pedido, a Requerente alegou, em síntese, o seguinte:

 

I.A) BREVE SÍNTESE DAS ALEGAÇÕES DA REQUERENTE NO PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL:

 

7.1. Por não se conformar com as correcções ao lucro tributável dos exercícios de 2015 e de 2016, por desconsideração indevida do CMVMC, no montante de 31.113,09 €; e ainda por desconsideração indevida de perdas por imparidade subsumíveis no n.º 7 do art.º 31.º-B do CIRC, no montante de 5.197,14 €, a aqui Requerente apresentou oportunamente o pedido de revisão da matéria colectável fixada por métodos indirectos que terminou com acordo entre o representante da Fazenda e o perito nomeado pela Requerente.

 

7.2 Deduziu ainda, em 28.12.2018, o correspondente procedimento de reclamação graciosa que tomou o n.º ...2019....

 

7.3. Apreciada a reclamação, a Autoridade Tributária e Aduaneira indeferiu-a, mantendo as correcções a que acima nos reportávamos e aqui sindicadas.

 

7.4 Subsequentemente, a Requerente apresentou Recurso Hierárquico da aludida decisão de indeferimento da Reclamação graciosa n.º ...2019....

 

7.5 O Recurso Hierárquico n.º ...2019... foi igualmente indeferido, por despacho de 3.9.2020 da Exmª Senhora Chefe de Divisão da Divisão Administrativa da Direcção de Serviços do Imposto Sobre o rendimento das Pessoas Colectivas, em regime de substituição, por subdelegação de competências.

 

7.6 Não se conformando com a aludida decisão de indeferimento que recaiu sobre o Recurso Hierárquico apresentou, em 10.12.2020, 19:42, o presente pedido de pronúncia arbitral. 

 

7.7. Fundamentando tal discordância, começa, desde logo por aduzir como segue: “[A] Requerente dedica-se ao exercício da atividade de comércio a retalho de calçado, em estabelecimentos especializados, a que corresponde o CAE 47721.”

 

7.8 Prossegue dizendo que vendeu 1.221 unidades (pares de sapatos) pelo valor de 4.044,91 €.

 

7.9 E ainda que eram pares de sapatos de temporadas passadas e, por isso, infere-se, fora de moda,  desvalorizados, obsoletos.

 

7.10 Concretizando essa ideia, aduz: “Passado algum tempo, os sapatos comercializados pela Requerente passam de moda e perdem o seu valor, por vezes de forma acentuada.”

 

7.11 Prossegue a Requerente dizendo: “A quantidade de pares de sapatos não vendidos e que passaram de moda vai aumentando ao longo do tempo e esses produtos vão ficando em armazém.”

 

7.12 E ainda o seguinte: “[D]e modo a escoar o stock de sapatos que passaram de moda, a Requerente vende-os, mais tarde, a um preço inferior.”

 

7.13 Quanto à mensuração do inventário que estava a consubstanciar as 1221 unidades de pares de sapatos fora de moda, diz a Requerente que se encontravam registados na contabilidade pelo preço de custo.

 

7.14 Enunciando de seguida o cerne do argumentário esgrimido pela AT no Relatório de Inspecção para fundamentar a correcção aqui em causa, dizendo a Requerente que “[A] AT considerou que a Requerente deveria ter registado perdas por imparidade em inventários, em anos anteriores, relativamente a estes sapatos fora de moda, dado que o valor realizável líquido previsível seria inferior ao preço de custo das aludidas unidades já em anos anteriores.” 

 

7.15 Pelo que, consequentemente, “(...) a AT considerou não ser de aceitar como gasto no exercício de 2015 o valor de 31.113,09€, correspondente ao diferencial entre o valor do custo de aquisição registado na contabilidade no inventário de 31/12/2014 (35.158,00 €) para estes 1221 pares de sapatos, e o valor obtido na sua venda em 2015 (4.044,91 €).” Ou seja, a AT desconsiderou, in limine, o Custo das Mercadorias Vendidas e das Matérias Consumidas (CMVMC) que a Requerente havia relevado com a venda (evento de realização) dos pares de sapatos aqui em causa, fundando essa desconsideração no facto de, em momento anterior àquele evento de realização, a Requerente não haver relevado perdas por imparidade em inventários nos anos anteriores a 2015, na medida em que o valor realizável líquido estimado para tais pares de sapatos ser já (nesses exercícios) inferior ao custo dos mesmos registado na contabilidade, violando aquela, por isso, infere-se, o princípio da especialização dos exercícios previsto no art.º 18.º do CIRC.  

 

7.16 E àquela construção contrapunha a Requerente como segue: “i) O reconhecimento de imparidades em existências, fiscalmente relevante nos termos do artigo 28º do CIRC, tem a dificuldade de, à priori, exigir a determinação de um valor realizável líquido em condições de objetividade e comprovação que permitam a sua aceitação fiscal; ii) Em certas atividades, como é o caso da atividade da venda de sapatos de moda pela Requerente, a estimativa do valor realizável de venda de um par de sapatos fora de moda é sempre muito difícil, salvo no momento em que estrategicamente é tomada a decisão de forçar a venda dos stocks parados e fixação de um preço de liquidação suscetível de, pelo preço, encontrar comprador; iii) A Requerente não tinha, nos anos anteriores, como estimar o valor realizável de venda dos sapatos; iv) A Requerente só ficou em condições de determinar o valor realizável quando, em 2015, tomou a decisão de vender os stocks parados fixando um preço, para o qual existissem compradores, tendo-se apurado através da venda o valor dos produtos vendidos em causa; v) Estes produtos, insuscetíveis de devolução ao fornecedor, não tem qualquer cotação oficial e fora do seu tempo (moda), tem um valor de venda imprevisível, sendo quase invendáveis salvo nas condições em que foram liquidados.”

 

7.17 Não se detendo, prossegue a Requerente aduzindo no sentido de que as “(...) 1.221 unidades, foram alienadas em fevereiro de 2015, pelo preço de 5 € a unidade, como “monos” e face à perspetiva já existente de liquidação do negócio.”

 

7.18 E assim sendo, defende a Requerente que “(...) não tinha forma de saber, antes, a que preço poderia vender aqueles artigos, nem referências objetivas para criar imparidades credíveis.” E ainda que “[S]ó em 2015 foi possível, pela venda, a determinação de um valor de realização que satisfizesse as condições exigidas para um valor realizável líquido, conforme previsto no artigo 28º do Código do IRC. (...). Esta é a posição mais conservadora, mas, normalmente é a recomendada pela AT, avessa ao reconhecimento de gastos (imparidades) por estimativas aleatórias, mesmo que recomendáveis do ponto de vista económico com vista à imagem fiel da contabilidade.”

 

7.19 Retirando a aqui Requerente a seguinte asserção: “[A]tendendo a que os sapatos foram vendidos abaixo do preço de custo e que a Requerente, não tinha, até ao momento em que tomou a decisão de vender os stocks parados fixando um preço para o qual surgissem compradores, como prever o valor realizável líquido, a única forma de repor a justiça fiscal seria, como fez a Requerente, reconhecer como custo o montante correspondente ao diferencial entre o valor do custo de aquisição registado na contabilidade no inventário de 31/12/2014 (35.158,00 €) e o valor obtido na sua venda em 2015 (4.044,91 €).”

 

7.20 A Requerente traz ainda à colação a vigência do princípio da tributação do lucro real consagrado no n.º 2 do art.º 104.º da CRP e alguns apontamentos doutrinários que desenvolvem o indicado princípio constitucional e que aqui se devem considerar reiterados, retirando a seguinte conclusão: “[D]este modo, atendendo a que os sapatos foram vendidos abaixo do preço de custo, em respeito pelo princípio da tributação do rendimento real, sempre deverá ser considerado custo o montante de €31.113,00 correspondente à diferença entre o valor do custo de aquisição registado na contabilidade no inventário de 31/12/2014 (35.158,00 €) e o valor obtido na sua venda em 2015 e, consequentemente, deverá ser anulada a correção efetuada pela AT.”

 

7.21 Quanto à correcção relativa ao exercício de 2016, ou seja, quanto à desconsideração de perdas por imparidade subsumíveis no n.º 7 do art.º 31.º-B do CIRC, começa a aqui Requerente por dar nota de que “(...) a inspeção alude ao facto de a Requerente ter terminado, no mês de agosto de 2016, a atividade relacionada com o CAE 47721 – comércio a retalho de calçado, que desenvolvia no espaço arrendado em Braga, o que corresponde à realidade, por não ter conseguido viabilizar este projeto.” E ainda que “[A] inspeção também refere que a Requerente procedeu ao abate dos bens do ativo fixo relacionados com a atividade cessada, com exceção de “instalações não especificadas (janelas, alarme, (…)) e “licença de exploração”.” Já no que tange aos bens não totalmente depreciados, aduz a aqui Requerente no sentido de que “(...) reconheceu uma perda por imparidade prevista no artigo 31º-B do Código do IRC, acrescendo o gasto contabilizado na modelo 22 do ano de 2016, deduzido dos gastos eventualmente aceites durante o período de vida útil restante dos bens, de acordo com o artigo 31º n.º 7 do Código do IRC.”

 

7.22 E daqui parte a Requerente para a apresentação do entendimento que a AT defendeu em sede de Relatório de Inspecção ao dizer: “i) considerando que os bens relativamente aos quais foi considerada a perda por imparidade se relacionam com a loja arrendada e cujo arrendamento terminou em agosto de 2016, os factos que determinaram a desvalorização excecional dos ativos e o abate físico, o desmantelamento, abandono ou inutilização correram no mesmo período de tributação do encerramento; ii) Pelo que não há, para a AT, período de vida útil restante dos ativos, não sendo de aplicar o artigo 31º-B n.º 7 do Código do IRC; iii) Não sendo, portanto, dedutíveis as perdas por imparidade de ativos ainda não totalmente depreciados, durante o período de vida útil restante desses bens; iv) O valor não aceite pela AT, quanto a esta correção, é de 5.197,14 €, no ano de 2016.”

 

7.23 Mais uma vez, rebatendo a interpretação sustentada pela Inspecção Tributária, começa a Requerente por advogar que “(...) os elementos patrimoniais em causa, ainda não totalmente amortizados no momento do encerramento e abandono das instalações, são essencialmente constituídos por benfeitorias não recuperáveis no arranjo da loja, cujo abandono era mais barato para a Requerente do que a inexistente hipótese da sua recuperação.” E ainda que: “Trata-se de elementos incorporados na loja e que a Requerente entendeu estarem extintos e serem irrecuperáveis no momento da cessação.”

 

7.24 A Requerente diz reconhecer “(...) não terem sido cumpridas as formalidades previstas do artigo 37º do CIRC para os abates, pela razão de não haver quaisquer bens corpóreos a abater, pois o imobilizado desreconhecido era constituído por arranjos em edifícios alheios, irrecuperáveis e invendáveis.”

 

7.25 Trazendo aquela ainda à colação a jurisprudência firmada no Acórdão do TCA-Sul de 04.06.2020, processo n.º 2742/10.3BELRS, cujo sumário diz: “A não aceitação dos custos relativos a amortizações extraordinárias de bens do ativo corpóreo imobilizado, com base na mera preterição de obrigação de comunicação prévia, no prazo de 15 dias anterior ao abate dos bens constitui uma consequência excessiva e desproporcionada”.”

 

7.26 Retirando a Requerente a asserção de que, assim sendo, “[C]onstituíram um gasto efetivo que, a não serem aceites, desvirtuam do mesmo modo o objetivo constitucional de tributação do lucro real.”

 

7.27 A Requerente arguiu ainda a insuficiência da fundamentação esgrimida no Relatório de Inspecção e fez considerações de direito que aqui se devem para os devidos efeitos considerar reiteradas.

 

7.28 Peticiona, ademais, juros indemnizatórios em conformidade com o estatuído no art.º 43.º da LGT. 

 

7.29. Em 19.10.2021, a Requerente apresentou alegações escritas repristinando ali a hermenêutica sustentada no PPA e que, no essencial, defendia a ilegalidade das correcções empreendidas pela AT por desconsideração indevida de parte do Custo das Mercadorias vendidas e das Matérias Consumidas (CMVMC) subsumível no art.º 23º do CIRC e ainda por desconsideração indevida de perdas por imparidade subsumíveis no n.º 7 do art.º 31.º-B do CIRC. De novo diz ali a Requerente: “[A] testemunha B..., contabilista certificada da Requerente nos anos em questão, justificou o facto de não ter sido feita a comunicação a que se refere o artigo 37.º do CIRC porque “O Código diz que quando há desvalorização extraordinária tem de haver comunicação à AT, mas pelos bens em causa, não estão em causa bens que se pudessem levar, que não podiam ser retirados e iam ser entregues ao senhorio, pareceu-me que não era necessário fazer essa comunicação”. E ainda que “[C]om efeito, dada a natureza dos bens em causa que não seriam suscetíveis de serem retirados do edifício, não se vislumbra que existisse necessidade de cumprir as formalidades do artigo 37.º do CIRC para os abates, pela razão de não haver quaisquer bens corpóreos a abater.” Concluindo a Requerente no sentido de que “(...) não deverá a falta da comunicação prevista no artigo 37.º do CIRC, atenta a natureza dos bens em causa, servir de fundamento bastante para que não se aceite as depreciações e amortizações relativamente aqueles bens.”

 

8. Em 6.7.2021, a Requerida apresentou Resposta, na qual, em escorço, alega:

 

I.B) BREVE SÍNTESE DAS ALEGAÇÕES DA REQUERIDA:

 

8.1. A Requerida remete para a fundamentação de direito subjacente ao PA, considerando a mesma integralmente reproduzida para todos os efeitos legais, destacando, não obstante, o que segue de modo a evitar repetições inúteis.

 

8.2 Quanto às correções em presença, verifica-se que todos os argumentos invocados pela Requerente no presente pedido arbitral são os mesmos que invocou em sede de petição de recurso hierárquico, tendo os mesmos sido plenamente analisados nessa fase, dizendo ainda a Requerida que da análise à petição que consubstanciou o recurso hierárquico se concluiu que aquele não deu cumprimento às normas fiscais em vigor.

 

8.3 E quanto à correcção que se consubstanciou na desconsideração do CMVMC, aduz a Requerida no sentido de que: “(...) relativamente à mercadoria qualificada como estando fora de moda (sapatos), existiam em anos anteriores a 2015, evidências de que os mesmos já não tinham valor de mercado, pois como se encontra mencionado no RIT, a páginas 18 e 19, a Requerente em resposta a notificação para prestação de esclarecimentos, reconheceu que o valor realizável líquido desses artigos era bastante inferior há já alguns anos, tendo referido que: «Tratam-se de artigos de moda que implicam uma desvalorização rápida no tempo; Os produtos apresentam-se deteriorados, considerando a sua exposição à luz solar nas montras, e a humidade no acondicionamento no armazém; Os produtos em causa pertencem a coleções de anos que retroagem entre 2000 e 2011 e informa que os mesmos haviam sido colocados várias vezes em saldos.»”

 

8.4 E partindo dali, aduz a Requerida no sentido de que se tais bens já tinham sido colocados várias vezes em saldo, então, o contribuinte já lhes tinha atribuído um preço e, assim sendo, já era conhecida há muito tempo a perda incorrida com tais bens, rejeitando a ideia de que a Requerente não tinha, nos anos anteriores, como estimar o valor realizável líquido sapatos, só ficando em condições de o fazer, em 2015, quando tomou a decisão de vender os stocks parados fixando um preço para o qual existissem compradores.

 

8.5 Intuindo daí a Requerida que, nessa conformidade, as imparidades verificadas nos artigos em causa, deviam ter sido registadas pela Requerente, nos termos do artigo 28.º n.º 1 do Código do IRC em anos anteriores a 2015 e não o tendo feito, “(...) não podia o custo em presença (€ 31.113,00), ser imputado ao ano de 2015, pelo que, assim, foi bem efetuada esta correção pelos SIT.”

 

8.6 Quanto à desconsideração das perdas por imparidade subsumíveis no n.º 7 do art.º 31.º-B do CIRC, ou seja, quanto às reintegrações e amortizações não aceites fiscalmente no montante de € 5.197,17, começa a Requerida por defender que “(...) os fundamentos que estiveram na base desta correção, não se basearam somente no facto de não terem sido cumpridas as formalidades impostas pelo disposto no n.º 3 do artigo 31.º - B do Código do IRC, mas também no facto de tais gastos terem sido contabilizados no ano em que cessou a sua atividade (2016).

 

8.7 Traz a Requerida de seguida à colação a letra do n.º 7 do art.º 31.º-B do CIRC, na sua redacção reportada à data dos factos e aduz ainda no sentido de que “[E]sta situação foi referenciada quer no procedimento de inspeção tributária (vide Pontos 106 e 107 do respetivo RIT), quer na apreciação à petição de recurso hierárquico (vide início da página 9).”, defendendo que, também aqui, não devem prevalecer as razões apontadas pela Requerente no sentido de dever proceder a anulação da correção em apreço.

 

8.8 Quanto à insuficiência da fundamentação advoga a Requerida que “(...) não se verificam quaisquer dos vícios de fundamentação mencionados no presente pedido arbitral, pois as correções em apreço encontram-se todas baseadas de acordo com os normativos legais em vigor, não estando a AT a aproveitar-se de quaisquer ambiguidades da lei para conseguir tributar lucros ficcionados, conforme refere a requerente no presente pedido arbitral.”

 

8.9. Em face do aduzido, peticiona a Requerida seja julgado totalmente improcedente o Pedido de Pronúncia Arbitral sub judice, com as devidas e legais consequências, ou seja, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação na parte em que foram sindicados, absolvendo-se, em conformidade, a Requerida de todos os pedidos. 

 

8.10 A Requerida não apresentou alegações finais.

 

9. Em 7.10.2021 teve lugar a reunião do tribunal com as partes a que se reporta o artigo 18.º do RJAT e a produção da prova requerida, ou seja, a inquirição da testemunhas arroladas. Antes de iniciada a inquirição do senhor C... constatou-se que o mesmo não era parte e que, como tal, não poderia prestar declarações de parte nos termos do art.º 466.º do CPC. A representante da Requerente declarou pretender que o Senhor C... fosse inquirido como testemunha. Ouvido o representante da Requerida e com a sua concordância, o Tribunal, deferindo o peticionado, permitiu que aquele fosse inquirido como testemunha. O Tribunal, em cumprimento do disposto no art.º 18.º, n.º 2 do RJAT, deliberou ainda no sentido de que a decisão final fosse proferida até ao fim do prazo fixado no art.º 21.º, n.º 1 do RJAT, advertindo ainda a Requerente de que até à data da prolação da decisão deveria proceder ao pagamento da taxa de arbitragem subsequente, nos termos do n.º 3 do art.º 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e comunicar o mesmo pagamento ao CAAD.

 

10. Em 3.11.2021, foi proferido o seguinte despacho arbitral inserido na mesma data no Sistema de Gestão Processual do CAAD: “Na reunião prevista no art.º 18.º do RJAT que se realizou em 7.10.2021, o Tribunal Arbitral Singular, em cumprimento do disposto no n.º 2 do art.º 18.º do RJAT, deliberou que a decisão arbitral seria prolatada até ao final do prazo previsto no n.º 1 do art.º 21º do RJAT. Tal prazo termina em 03.11.2021. Considerando que não é ainda possível disponibilizar a decisão arbitral em preparação e no uso da prerrogativa prevista no artigo 21º, nº 2 do RJAT, prorroga-se o prazo para prolação da decisão arbitral por dois meses, não obstante aquela poder vir a ser disponibilizada a qualquer momento. A prorrogação vai fundamentada na complexidade que encerra as questões submetidas a julgamento. Notifiquem-se as partes. Lisboa, 3 de Novembro de 2021. Ass.”

 

II. THEMA DECIDENDUM:

 

11. A questão de fundo a apreciar no presente processo é a de saber se a decisão de indeferimento que recaiu sobre o Recuso Hierárquico (n.º ...2019...) que a Requerente apresentou, nos termos e em conformidade com o disposto no art.º 66.º do CPPT, dirigido à decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2019..., está eivada de ilegalidade e ainda a de saber se os actos de liquidação que foram objecto daqueles meios de discussão da legalidade das liquidações aqui sindicadas, respeitantes aos anos de 2015 e 2016, estão enfermados de ilegalidade por desconsideração indevida de parte do Custo das Mercadorias vendidas e das Matérias Consumidas (CMVMC) subsumível no art.º 23º do CIRC e ainda por desconsideração indevida de perdas por imparidade subsumíveis no n.º 7 do art.º 31.º-B do CIRC

 

12. Cumpre, então, agora, proferir decisão.

 

III. SANEAMENTO:

 

13. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer da eventual ilegalidade parcial dos actos tributários de liquidação de IRC e JC, respeitantes aos exercícios de 2015 e 2016, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

14. Quanto à competência do CAAD para apreciação da (i)legalidade de actos de primeiro, segundo e terceiro grau, considera o Tribunal Arbitral Singular que é actualmente entendimento pacífico tanto na Jurisprudência como na Doutrina, que os actos de indeferimento de pretensões dos sujeitos passivos – ou seja, actos de segundo grau -  poderão ser arbitráveis junto do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), na condição de, eles próprios, terem apreciado a legalidade de um acto de liquidação de imposto - i.e., de um acto de primeiro grau.

 

15. Naquele sentido, adequado se mostra trazer à colação jurisprudência arbitral (concretamente a Decisão Arbitral proferida no processo n.º 272/2014-T do CAAD que pode ser lida in https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listOrder=Sorter_data&listDir=DESC&listPage=180&id=614 ) e doutrina (Jorge Lopes de Sousa que, no seu “Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária” e Carla Castelo Trindade, in “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado”), que sustenta que a jurisdição arbitral é competente para arbitrar pretensões relativas à declaração da legalidade de actos de liquidação de tributos - actos de primeiro grau - quando, num acto de segundo grau, a AT se tenha pronunciado relativamente à legalidade de tal acto.

 

16. Assim sendo, o Tribunal Arbitral Singular considera-se competente para a apreciação da pretensão da Requerente, em virtude de esta respeitar também à apreciação da legalidade da decisão de indeferimento proferida no âmbito do Recuso Hierárquico n.º ...2019... despoletado pela Requerente com referência aos actos tributários de liquidação de IRC e JC, respeitantes aos anos de 2015 e 2016, tendo a AT, nessa mesma decisão de indeferimento, apreciado a legalidade daqueles actos de liquidação.

 

17. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (Cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

18. A ação é tempestiva, porque apresentada no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”). O prazo para apresentação do PPA deve contar-se do conhecimento do despacho de indeferimento que recaiu sobre o Recurso Hierárquico apresentado. O Ofício a coberto do qual foi dada a conhecer à Requerente a referida decisão está datado de 8.9.2020 (Cfr. Doc. n.º 1 junto ao PPA). Nos termos do n.º 1 do art.º 39.º do CPPT a Requerente presume-se notificada da decisão de indeferimento acima referida no terceiro dia posterior ao do registo ou no primeiro dia útil seguinte e esse, quando esse dia não seja útil. A Requerente presume-se notificada no dia 11.9.2020, data a partir da qual se conta o prazo de 90 dias para a interposição do pedido de pronúncia arbitral nos termos do n.º 1 do art.º 10º do RJAT, pelo que, o mesmo se revelou efectivamente tempestivo, na medida em que se iniciou a sua contagem em 12.9.2020 e o seu dies ad quem em 10.12.2020, ou seja, quod erat demonstrandum, tendo sido apresentado em 10.12.2020, considera-se tempestivamente interposto.

 

19. O processo não enferma de nulidades.

 

20. Não existem excepções a apreciar.

 

IV. DECISÃO:

 

IV.A) FACTOS QUE SE CONSIDERAM PROVADOS:

 

21. Antes de entrarmos na apreciação do mérito, cumpre fixar a matéria factual que é relevante para a respectiva decisão:

 

A)           A Requerente encontra-se registada desde 17.3.1999 e dedica-se ao exercício das seguintes actividades: i) CAE principal 47721 – Com. Ret. Calçado Estab. Espec., com data de início de 2.1.2008; ii) CAE Secundário 070220 – Outras Actividades Consultoria para os Negócios e a Gestão, com data de início de 28.2.2008. (Cfr. ponto II.C, subponto 8, a fls. 2 do Relatório de Inspecção junto aos autos como Doc. n.º 2 anexo ao PPA e constante de fls. 43 e seguintes do PA; Cfr. ainda art.º 7 da Resposta).

B)           A Requerente encontra-se registada no regime geral de determinação do lucro tributável em sede de IRC. (Cfr. ponto II.C, subponto 8, a fls. 2 do Relatório de Inspecção junto aos autos como Doc. n.º 2 anexo ao PPA e constante de fls. 43 e seguintes do PA).

C)           No âmbito das ordens de serviço nºs OI2017... e OI2017..., ambas emitidas em 15.11.2017 e com despacho do Chefe de Divisão da mesma data, dealbou acção inspectiva externa dirigida à Requerente que teve por âmbito de aplicação temporal os exercícios de 2015 e de 2016, tendo dado origem à liquidação de Imposto sobre o rendimento das Pessoas Colectivas, de 2015, com o n.º 2018 ..., emitida em 18.7.2018 e à demonstração de liquidação de juros n.º 2018 ... e 2018 ..., bem como à correspondente demonstração de acerto de contas n.º 2018 ... que notificava a Requerente a pagar 7.855,76 €; e ainda à demonstração de liquidação de IRC, de 2016, com o n.º 2018 ..., emitida em 18.7.2018 e à demonstração de liquidação de juros n.º 2018 ... e 2018 ..., bem como à correspondente demonstração de acerto de contas n.º 2018 ... que notificava a Requerente a pagar 7.121,35 €, ora contestadas. (Acordo das partes).

D)           Foi elaborado o Relatório de Inspecção Tributária (doravante RIT) que está junto aos autos como Doc. n.º 2 anexo ao PPA e ainda junto ao PA a fls. 43 e seguintes e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

E)            De entre as correcções ali efectuadas, incluem-se as seguintes com relevo para a apreciação do mérito das questões submetidas a julgamento: “III. DESCRIÇÃO DOS FACTOS E DAS CORRECÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS À MATÉRIA COLETÁVEL: III. A. PERIODO DE 2015: III.A.1 GASTOS: (...) III. A.5. 61.1 CUSTO DAS MERCADORIAS VENDIDAS: 53. Dos ficheiros SAF-T da facturação retirou-se que, em termos globais, o SP vendeu 3.287 unidade, sendo que no quadro Infra encontram-se discriminados as quantidades vendidas por mês: (...) Total geral 3.287. 54. Como podemos constatar pela distribuição das quantidades vendidas por mês, no mês de fevereiro venderam-se 11.390 unidades representando 42% das unidades vendidas no ano 2015, contudo em termos de valor, das vendas do mês de fevereiro representam 8,9% do total do ano, sendo o preço médio unitário de 14,66€ quando a média anual do preço unitário é de 55,56€. Perante estes factos procedeu-se a análise das vendas do mês de fevereiro e verificou-se que estes valores devem-se as seguintes faturas:

Quadro 26 – faturas com vendas de grandes quantidades

N.º Fatura             Data Fatura           Quantidade          Valor (Euros)

   ...-.../...               19-02-2015                   189                      566,13    

   ...-.../...               10-02-2015                   167                      447,97   

   ...-.../...               09-02-2015                   141                      563,41

   ...-.../...               16-02-2015                   119                      364,23

  ...-.../...               06-02-2015                   119                      349,59

  ...-.../...               18-02-2015                   117                      313,33

 ...-.../...                16-02-2015                   115                      467,48

 ...-.../...               10-02-2015                   167                      447,97   

 ...-.../...               14-02-2015                   104                      394,72

 ...-.../...               20-02-2015                    67                       272,36

...-.../...               06-02-2015                    50                       203,25

...-.../...               06-02-2015                    33                      102,44

                                                                   1.221                  4.044,91

56. Nas faturas acima identificadas (Folhas 3 a 14 do Anexo V) foram vendidas 1221 unidades (37,15% do total de unidades vendidas no ano de 2015) a preços muito abaixo do custo, influenciando a margem bruta de vendas. (...).” Foram solicitados ao SP esclarecimentos e este prestou-os.

“59. Os presentes esclarecimentos levam-nos a concluir que os inventários vendidos pelas faturas em causa, no total de 1.221 unidades e pelo valor de 4.044,91 € encontram-se registados na contabilidade pelo preço de custo, não obstante o SP reconhecer que o seu valor realizável líquido fosse bastante inferior há já alguns anos, conforme se afere pela informação prestada pelo sujeito passivo quando refere que:

a) Trata-se de artigos de moda que implicam uma desvalorização rápida no tempo;

b) Os produtos apresentam-se deteriorados, considerando a sua exposição à luz solar nas montras, e a humidade no acondicionamento do armazém;

c) Os produtos em causa pertencem a coleções de anos que retroagem a 2000 a 2011 e informa que os mesmos haviam sido colocados em saldos várias vezes.

A fls. 19 a 21 do Relatório, pontos 61 a 76, fazem-se considerações sobre perdas por imparidade em inventários, trazendo-se essencialmente à colação a NCRF 18 e discorre-se ainda sobre o art.º 28.º do CIRC. Concluem como segue: “Face à definição de critérios objetivos de aceitação fiscal das perdas por imparidade em inventários definidas no artigo 28.º do Código do IRC e à periodização do lucro tributável definida no n.º 1 do artigo 18.º do Código do IRC, o ajustamento dos inventários é obrigatório para efeitos fiscais, pelo que quando o sujeito passivo não proceda ao ajustamento, de acordo com os critérios definidos, originará a não aceitação para efeitos fiscais, no exercício em que se vier a efetivar, do gasto não objeto de imparidade.”

77. Relativamente ao gasto (CMV) registado em 2015

78. No caso em apreço, estamos em face das vendas de mercadorias cujo custo (CMV) encontrava-se registado na contabilidade pelo preço de custo, mas cujo valor realizável líquido é inferior, situação enquadrável na definição prevista no n.º 1 do artigo 28.º do Código do IRC.

79. Relativamente a estas mercadorias vendidas pelas faturas em causa, no total de 1221 unidades e pelo valor de 4.044,91 €, o SP reconhece que o seu valor realizável líquido é bastante inferior há já alguns anos, conforme se afere pela informação prestada pelo SP quando identifica os respetivos anos da aquisição (2000 a 2011) e informa que as referidas mercadorias haviam sido colocadas em saldos várias vezes.

80. Não obstante não procedeu ao ajustamento do valor dos inventários conforme decorre da NCRF 18 em cada um dos anos pelo valor realizável líquido referido à data do balanço de cada período.

81. Em face do exposto, conclui-se que no cumprimento do princípio da especialização dos exercícios e do princípio da representação fidedigna deveria, em cada um dos períodos, ter refletido o ajustamento do valor dos inventários para o valor realizável líquido.

82. Considerando a definição dos critérios objetivos do reconhecimento de imparidade de inventários previstas no artigo 28.º do Código do IRC e a periodização do lucro tributável definido no n.º 1 do artigo 18.º, o reconhecimento da imparidade em inventários é obrigatório para efeitos fiscais.

83. Sendo que o reconhecimento da perda por imparidade, era obrigatória, nos exercícios anteriores (2000 a 2011), no cumprimento do princípio Contabilístico da especialização e da representação fidedigna, não será de aceitar a dedução ao resultado líquido de 2015 do gasto registado na conta 611 – CMVC – Mercadorias, no montante de 31.113,09 EUR correspondente ao diferencial entre o valor do custo de aquisição registado na contabilidade destas mercadorias (conhecido pelo valor constante os inventários iniciais de 2014 no total de 35.158,00 EUR conforme folhas 2 a 6 do Anexo VI e o valor realizável líquido destas mercadorias obtido pelo valor de venda (4.044,91 EUR) na medida em que se trata de um gasto que deveria ter sido reconhecido em períodos anteriores, não tendo sido efetuado pelo sujeito passivo.

Quadro 27 – “Correções aos gastos com “Custos das mercadorias vendidas”

Conta    Gastos

Contabilizados  Correção aos gastos       Gastos corrigidos

61.1. “CMVC – Mercadorias”      136.397,09 €      31.113,09 €        105.284,00 €

 

(...)

 

“103. No ano de 2016 o SP termina a atividade relacionada com o CAE 47721 – Comercio a retalho de calçado que desenvolvia no espaço arrendado localizado na Avenida da ... n.º ... em Braga. A última renda é paga no mês de agosto e as últimas vendas registadas datam também do mês de agosto.

104. o SP procedeu ao abate dos bens do ativo fixo relacionados com atividade cessada. A maioria dos bens encontrava-se totalmente depreciada, com exceção dos bens identificados no mapa de depreciações com “Outros” “Instalações não especificadas (janelas, alarme)” e “Licença de exploração”.

  105. Relativamente àqueles bens que ainda não se encontravam totalmente depreciados o SP reconheceu uma imparidade prevista no artigo 31.º-B do CIRC, contudo não tendo cumprido com os requisitos exigidos no mesmo artigo, acresceu os mesmos na Modelo 22 deduzido dos gastos eventualmente aceites nos termos do n.º 7 do referido artigo conforme quadro que se apresenta:

    

(...)

107. Considerando que os bens relativamente aos quais foi considerada a perda por imparidade relacionam-se com a loja arrendada e cujo arrendamento terminou em agosto de 2016, significa que os factos que determinaram a desvalorização excecional destes ativos e o abate físico, o desmantelamento o abandono ou utilização ocorreram no mesmo período de tributação, pelo que não há período de vida útil restante destes ativos logo o disposto no n.º 7 do artigo 31.º-B do CIRC não encontra aplicabilidade ao caso em apreço.

108. Consequentemente são propostas correções à declaração modelo 22 do IRC entregue pelo SP, referente ao período de 2016: 

 

F)            A Requerente não cumpriu as formalidades impostas pelo n.º 3 do art.º 31.º-B do CIRC (Cfr. Acordo das partes e testemunho de B... que na qualidade de Contabilista Certificada admite que não fez qualquer comunicação à AT por a considerar desnecessária atenta a tipologia de activos fixos ali em causa que eram benfeitorias não recuperáveis). 

G)           Por não se conformar com as correcções ao lucro tributável dos exercícios de 2015 e de 2016, por desconsideração do CMVMC, no montante de 31.113,09 €; e ainda por desconsideração de perdas por imparidade subsumíveis no n.º 7 do art.º 31.º-B do CIRC de 5.197,14 €, a Requerente deduziu, em 28.12.2018, o correspondente procedimento de reclamação graciosa que tomou o n.º ...2019... (Acordo das partes: art.º 13º da Resposta e ponto 10 do PPA).

H)           A presente acção cinge-se à discussão das correcções ao lucro tributável que se cifram em 31.113,09 € e em 5.197,14 €, num total de matéria colectável sindicado de a 36.310,23 €.

I)             Apreciada a reclamação, a Autoridade Tributária e Aduaneira indeferiu-a, mantendo as correcções (Cfr. Doc. n.º 9 junto ao PPA e fls. 31 e seguintes do PA).

J)            A Requerente apresentou Recurso Hierárquico da aludida decisão de indeferimento da Reclamação graciosa. (Cfr. fls. 16 do PA)

K)           O Recurso Hierárquico n.º ...2019... foi igualmente indeferido, por despacho de 3.9.2020 da Exmª Senhora Chefe de Divisão da Divisão Administrativa da Direcção de Serviços do Imposto Sobre o rendimento das Pessoas Colectivas, em regime de substituição, por subdelegação de competências. (Cfr. Doc. n.º 1 junto ao PPA e fls. 3 e seguintes do PA).

L)            Não se conformando com a aludida decisão de indeferimento que recaiu sobre o recurso hierárquico, apresentou, em 10.12.2020, 19:42, o presente pedido de pronúncia arbitral (Sistema de Gestão Processual do CAAD). 

M)          A Requerente procedeu ao pagamento das liquidações impugnadas objecto da presente acção (Cfr. Docs n.ºs 11 e 12 juntos ao PPA).

 

IV.B) FACTOS NÃO PROVADOS:

 

22. Não se provaram outros factos com relevância para a decisão das questões submetidas a julgamento.

 

IV.C) FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO:

 

23. Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

24. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. art.º 596.º do CPC).

 

25. A convicção sobre os factos assim dados como provados (acima explicitados) fundou-se nas posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados; na prova documental junta aos autos e no Processo Administrativo Tributário junto aos autos pela entidade demandada, nos termos e em conformidade com o disposto no n.º 2 do art.º 17º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que não foram impugnadas pela parte contrária; e ainda na prova testemunhal produzida em audiência e nas alegações finais aduzidas pela Requerente.

 

IV.D.1) DO DIREITO:

 

IV.D.1) APRECIAÇÃO DO MÉRITO DA CAUSA:

 

IV.D.1.1) NÃO ACEITAÇÃO DO CUSTO DAS MERCADORIAS VENDIDAS E DAS MATÉRIAS CONSUMIDAS (CMVMC) INCORRIDO NO EXERCÍCIO DE 2015, DE 31.113,09 €, CORRESPONDENTE AO DIFERENCIAL ENTRE O CUSTO DE AQUISIÇÃO REGISTADO NA CONTABILIDADE NO INVENTÁRIO DE 31.12.2014 (35.158,00 €) PARA OS 1221 PARES DE SAPATOS E O VALOR OBTIDO COM A SUA VENDA EM 2015 (4.044,91 €):  

 

26. O Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), acolhe o modelo de dependência parcial entre a fiscalidade e a contabilidade para efeitos de apuramento do lucro tributável.

 

27. A dado passo, no seu Preambulo, concretamente no seu n.º 10, diz-se “Dado que a tributação incide sobre a realidade económica constituída pelo lucro, é natural que a contabilidade, como instrumento de medida e informação dessa realidade, desempenhe um papel essencial como suporte da determinação do lucro tributável.

As relações entre contabilidade e fiscalidade são, no entanto, um domínio que tem sido marcado por uma certa controvérsia e onde, por isso, são possíveis diferentes modos de conceber essas relações. Afastadas uma separação absoluta ou uma identificação total, continua a privilegiar-se uma solução marcada pelo realismo e que, no essencial, consiste em fazer reportar, na origem, o lucro tributável ao resultado contabilístico ao qual se introduzem, extra contabilisticamente, as correções - positivas ou negativas - enunciadas na lei para tomar em consideração os objetivos e condicionalismos próprios da fiscalidade.

Embora para concretizar a noção ampla de lucro tributável acolhida fosse possível adotar como ponto de referência o resultado apurado através da diferença entre os capitais próprios no fim e no início do exercício, mantém-se a metodologia tradicional de reportar o lucro tributável ao resultado líquido do exercício constante da demonstração de resultados líquidos, a que acrescem as variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo e não refletidas naquele resultado.

Nas demais regras enunciadas a propósito dos aspetos que se entendeu dever regular refletiu-se, sempre que possível, a preocupação de aproximar a fiscalidade da contabilidade.

É assim que, quanto a reintegrações e amortizações, se dá uma maior flexibilidade ao respetivo regime, podendo o contribuinte, relativamente à maior parte do ativo imobilizado corpóreo, optar pelo método das quotas constantes ou pelo método das quotas degressivas, o que constituirá, por certo, um fator positivo para o crescimento do investimento.

No domínio particularmente sensível das provisões para créditos de cobrança duvidosa e para depreciação das existências acolhem-se as regras contabilísticas geralmente adotadas, o que permite um alinhamento da legislação fiscal portuguesa com as soluções dominantes ao nível internacional.”

 

28. O aludido modelo de tributação vindo de explicitar está, no essencial, consagrado no art.º 17º do respectivo Código, que estatui: “1 — O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.

2 — Para efeitos do disposto no número anterior, os excedentes líquidos das cooperativas consideram-se como resultado líquido do período.

3 — De modo a permitir o apuramento referido no n.º 1, a contabilidade deve:

a) Estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código;

b) Reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes.”

 

29. Daquele normativo pode inferir-se a existência manifesta de uma correlação entre o lucro contabilístico e o lucro tributável, pesa-embora os respectivos conceitos se não sobreponham.

 

30. Efectivamente e quanto às pessoas colectivas e outras entidades residentes que exerçam a título principal uma actividade comercial, industrial ou agrícola, o ponto de partida para a determinação do lucro tributável é, como visto, o resultado contabilístico ao qual se introduzem extra-contabilisticamente as correções fiscais impostas pelo CIRC.

 

31. A organização da contabilidade passa pelo cumprimento do sistema de normalização previsto no SNC, aprovado pelo DL n.º 158/2009, de 13 de Julho.

 

32. Determinando o n.º 1 do art.º 123º do CIRC que “1 — As sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais entidades que exerçam, a título principal, uma actividade comercial, industrial ou agrícola, com sede ou direcção efectiva em território português, bem como as entidades que, embora não tendo sede nem direcção efectiva naquele território, aí possuam estabelecimento estável, são obrigadas a dispor de contabilidade organizada nos termos da lei que, além dos requisitos indicados no n.º 3 do artigo 17.º, permita o controlo do lucro tributável.” Dizendo ainda o n.º 2 do mesmo normativo que “Na execução da contabilidade deve observar-se em especial o seguinte: a) Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e susceptíveis de serem apresentados sempre que necessário;  b) As operações devem ser registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras, devendo quaisquer erros ser objecto de regularização contabilística logo que descobertos.”

 

33. Ademais, o CIRC aceita o regime de acréscimo (periodização económica) como critério de determinação do lucro tributável.

 

34. O n.º 1 do art.º 18 do CIRC estatui no sentido de que “Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.”, inferindo-se dali que a imputação dos rendimentos e gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, deve ser efectivada de acordo com o critério económico em detrimento da aplicação de critérios financeiros ou de caixa. 

 

35. Com a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE), em 1986, o POC sofreu diversas alterações até à aprovação do DL n.º 158/2009, de 13 de julho, que aprovou o Sistema de Normalização Contabilística (SNC), revogando o POC.

 

36. O SNC entrou em vigor em Portugal em 1 de Janeiro de 2010.

 

37. O DL n.º 98/2015, de 2 de Junho, entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2016 e transpõe para o normativo interno a Diretiva n.º 2013/34/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de junho de 2013, relativa às demonstrações financeiras anuais, às demonstrações consolidadas e aos relatórios conexos de certas formas de empresas.

 

38. Relevando um conjunto de instrumentos, descritos no anexo ao DL 98/2015, de 2 de Junho, relativos ao referencial contabilístico com vista à normalização contabilística . São eles: i) Bases para a apresentação de demonstrações financeiras (BADF); ii) Modelos de demonstrações financeiras (MDF); iii) Código de contas (CC); iv) Normas contabilísticas e de relato financeiro (NCRF);Normas contabilísticas e de relato financeiro para pequenas entidades (NCRF PE); v) Normas contabilísticas e de relato financeiro para entidades do sector não lucrativo (NCRF-ESNL); vi) Normas contabilísticas para microempresas (NC-ME); vii) Normas interpretativas; viii) A estrutura conceptual [EC], baseada no anexo 5 das «Observações relativas a certas disposições do Regulamento (CE) n.º 1606/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Julho», publicado pela Comissão Europeia em Novembro de 2003, que enquadra aqueles instrumentos, constitui um documento autónomo.

 

39. A actual Estrutura Conceptual  do SNC foi publicada pelo Aviso n.º 8254/2015 do Diário da República, n.º 146, Série II, de 29 de Julho de 2015. O § 2º da estrutura conceptual diz: “Esta Estrutura estabelece conceitos que estão subjacentes à preparação e apresentação das demonstrações financeiras para utentes externos, seja pelas entidades que preparam um conjunto de demonstrações financeiras, seja pelas pequenas entidades (…)”.

 

40. Em perfeita consonância com o disposto no CIRC, a EC do Sistema de Normalização Contabilística, publicada no Aviso n.º 8254/2015, de 29 de Julho, no seu § 22, diz:  “A fim de satisfazerem os seus objetivos, as demonstrações financeiras são preparadas de acordo com o regime contabilístico do acréscimo. Através deste regime, os efeitos das transações e de outros acontecimentos são reconhecidos quando eles ocorram (e não quando caixa ou equivalentes de caixa sejam recebidos ou pagos) sendo registados contabilisticamente e relatados nas demonstrações financeiras dos períodos com os quais se relacionem. As demonstrações financeiras preparadas de acordo com o regime de acréscimo informam os utentes não somente das transações passadas envolvendo o pagamento e o recebimento de caixa mas também das obrigações de pagamento no futuro e de recursos que representem caixa a ser recebida no futuro. Deste modo, proporciona -se informação acerca das transações passadas e outros acontecimentos que seja mais útil aos utentes na tomada de decisões económicas.”

 

41. Em termos declarativos, a conversão do resultado líquido do exercício no lucro tributável é feita no Quadro 07 da Declaração Modelo 22, sendo que a 1ª linha desse Quadro recebe o saldo da conta que apura o resultado líquido do exercício ao qual são adicionadas as variações patrimoniais positivas e negativas que não foram consideradas no apuramento do RLE mas que nos termos do CIRC deverão influenciar o lucro tributável, bem como as correcções positivas e negativas impostas pelo mesmo CIRC.

42. No que estritamente respeita a imparidades em inventários, adequado se mostra reiterar aqui o já acima transcrito e constante do n.º 10 do Preâmbulo do CIRC: “(…) No domínio particularmente sensível das provisões (...) para depreciação das existências acolhem-se as regras contabilísticas geralmente adotadas, o que permite um alinhamento da legislação fiscal portuguesa com as soluções dominantes ao nível internacional.”

 

43. Quanto à constituição ou reforço de perdas por imparidade, não aceites fiscalmente, dever-se-ão acrescer ao lucro tributável, no aludido Quadro 07, da Declaração Modelo 22, concretamente no seu Campo 718 “Ajustamentos em inventários para além dos limites legais (art.º 28º) e perdas por imparidade em créditos não fiscalmente dedutíveis ou para além dos limites legais (art.º 35º)”. Correspectivamente, quando as perdas por imparidade são anuladas, reduzidas, revertidas ou quando passam a ser aceites fiscalmente , terão de ser deduzidas ao lucro tributável, no aludido Quadro 07, da Declaração Modelo 22 , concretamente no seu Campo 762 “Reversão de ajustamentos em inventários tributados (art.º 28º n.º 3) e de perdas por imparidade tributadas (art.º 35º, n.º 3)”.

 

44. A EC do Sistema de Normalização Contabilística, publicada no Aviso n.º 8254/2015, de 29 de Julho, no seu § 37, diz: “Os preparadores das demonstrações financeiras têm, porém, de lutar com as incertezas que inevitavelmente rodeiam muitos acontecimentos e circunstâncias, tais como a cobrabilidade duvidosa de dívidas a receber, a vida útil provável de instalações e equipamentos e o número de reclamações de garantia que possam ocorrer. Tais incertezas são reconhecidas através da divulgação da sua natureza e extensão e pela aplicação de prudência na preparação das demonstrações financeiras. A prudência é a inclusão de um grau de precaução no exercício dos juízos necessários ao fazer as estimativas necessárias em condições de incerteza, de forma que os ativos ou os rendimentos não sejam sobreavaliados e os passivos ou os gastos não sejam subavaliados. Porém, o exercício da prudência não permite, por exemplo, a criação de reservas ocultas ou provisões excessivas, a subavaliação deliberada de ativos ou de rendimentos, ou a deliberada sobreavaliação de passivos ou de gastos, porque as demonstrações financeiras não seriam neutras e, por isso, não teriam a qualidade de fiabilidade, materializando-se ali uma das caraterísticas qualitativas das demonstrações financeiras consubstanciada na vigência do princípio da prudência.”

 

45. O reconhecimento de imparidades em activos (de entre eles também em inventários), por via da concretização dos acima referidos princípios da prudência e do acréscimo (da especialização dos exercícios) tem de ser relevado contabilisticamente no momento da ocorrência dos acontecimentos de incerteza e a determinação do seu quantum não pode deixar de ser rigorosa por forma a não se comprometer a qualidade e fiabilidade das informação contabilística que resulta da leitura das demonstrações financeiras.

 

46. O tratamento contabilístico dos inventários encontra essencialmente respaldo na NCRF 18.

 

47. Não obstante, importará ainda trazer à colação o disposto no § 14 da NCRF 1 que diz que um activo (e de entre eles também os inventários) deve ser classificado, no balanço, como corrente, se satisfizer qualquer um dos seguintes critérios: a) Se espere que seja realizado, ou que seja detido ou consumido no decurso normal do ciclo operacional da empresa; ou b) Seja detido fundamentalmente com a finalidade de negociação; c) Se espere que seja realizado dentro de doze meses a partir da data do Balanço; ou d) Seja um ativo de caixa ou seu equivalente, que não esteja restringido na sua utilização, durante pelo menos doze meses após a data do balanço. Todos os outros activos devem ser classificados como não correntes.

 

48. Ademais e de acordo com a definição constante do § 6 da acima referida NCRF 18, inventários, são ativos: “(...) a) Detidos para venda no decurso ordinário da atividade empresarial; b) No processo de produção para tal venda; ou c) Na forma de materiais ou consumíveis a serem aplicados no processo de produção ou na prestação de serviços.”

 

49. Nos termos do § 8 da NCRF 18, “(...) Os inventários englobam bens comprados e detidos para revenda incluindo, por exemplo, mercadorias compradas por um retalhista e detidas para revenda ou terrenos e outras propriedades detidas para revenda. Os inventários também englobam produtos acabados, ou trabalhos em curso que estejam a ser produzidos pela entidade e incluem materiais e consumíveis aguardando o seu uso no processo de produção. Consequentemente, as classificações comuns de inventários são: mercadorias, matérias-primas, consumíveis de produção, materiais, trabalhos em curso e produtos acabados. (...).”

 

50. Assim, os inventários integram: mercadorias, matérias-primas, subsidiárias e de consumo, produtos acabados e intermédios, subprodutos, desperdícios, resíduos e refugos, produtos e trabalhos em curso e ativos biológicos, devendo a respectiva classificação ser efectuada de acordo com o fim a que se destinam. No entanto, se a intenção subjacente à aquisição se transmutar, os inventários devem ser reclassificados.

 

51. Em conformidade com o disposto no § 9 da NCRF 18, “Os inventários devem ser mensurados pelo custo ou valor realizável líquido, dos dois o mais baixo.”.  A mensuração inicial, pelo custo, deve incluir todos os custos de compra, custos de conversão e outros custos incorridos para colocar os inventários no seu local e na sua condição atuais. Neste sentido veja-se o § 10 da NCRF 18.

 

 52. A determinação do custo far-se-á em observância das regras constantes dos §§ 10 a 22 da NCRF 18.

 

53. As fórmulas de custeio estão previstas nos §§ 23 a 27 da NCRF 18. Destacam-se as seguintes fórmulas de custeio: i) FIFO (first in first out); e o ii) custo médio ponderado, previstas no § 25 da NCRF 18.

 

54. Quanto ao reconhecimento como gastos dos inventários, estatuem os §§ 34 a 36 da NCRF 18. Diz o § 34: “[Q]uando os inventários forem vendidos, a quantia escriturada desses inventários deve ser reconhecida como um gasto do período em que o respetivo rédito seja reconhecido. A quantia de qualquer ajustamento dos inventários para o valor realizável líquido e todas as perdas de inventários devem ser reconhecidas como um gasto do período em que o ajustamento ou perda ocorra. A quantia de qualquer reversão do ajustamento de inventários, proveniente de um aumento no valor realizável líquido, deve ser reconhecida como uma redução na quantia de inventários reconhecida como um gasto no período em que a reversão ocorra.” E ainda o § 35: “[A] quantia de inventários reconhecida como um gasto durante o período, que é muitas vezes referida como o custo de venda, consiste nos custos previamente incluídos na mensuração do inventário agora vendido, nos gastos gerais de produção não imputados e nas quantias anormais de custos de produção de inventários. As circunstâncias da entidade também podem admitir a inclusão de outras quantias, tais como custos de distribuição.”

 

55. Intuindo-se do que vem de ser transcrito que a aquisição ou detenção de inventários não implica, por si, o reconhecimento de qualquer gasto. O gasto, correspondente ao valor da mensuração (inicial) do inventário, e tal como está no § 34 da NCRF 18, apenas é reconhecido quando é relevado o rédito, por ocorrência de um evento de realização, como seja, v.g. a venda do respectivo inventário. O momento do reconhecimento do gasto (sempre no ano em que ocorra o evento que o determine), pode também diferir de acordo com o tipo de inventário utilizado: inventário permanente ou inventário periódico ou intermitente.

 

56. Não obstante o acima afirmado, o gasto correspondente ao valor da mensuração do inventário pode/deve, excepcionalmente, ser reconhecido por perdas por imparidade em inventários.

 

57. A NCRF 12 - “Imparidade de activos”, não se aplica às imparidades em inventários (NCRF 12 §2 a)), encontrando-se o seu tratamento previsto na NCRF 18.

 

58. No que ao tratamento das imparidades em inventários respeita, dispõem os §§ 28 a 33 da NCRF 18. Estatui o § 28 como segue: “[O] custo dos inventários pode não ser recuperável se esses inventários estiverem danificados, se se tornarem total ou parcialmente obsoletos ou se os seus preços de venda tiverem diminuído. O custo dos inventários pode também não ser recuperável se os custos estimados de acabamento ou os custos estimados a serem incorridos para realizar a venda tiverem aumentado. A prática de reduzir o custo dos inventários (write down) para o valor realizável líquido é consistente com o ponto de vista de que os ativos não devem ser escriturados por quantias superiores àquelas que previsivelmente resultariam da sua venda ou uso.”

 

59. Assim sendo, deve proceder-se ao ajustamento da mensuração, por constituição de imparidades em inventários, quando se verifique que o seu custo não pode ser recuperado, pela venda ou uso, por estarem danificados, total ou parcialmente obsoletos ou se os preços de venda tiverem diminuído, por redução do valor contabilístico para o valor realizável líquido (VRL) estimado (Cfr. § 28 da NCRF 18). Nos termos do que refere o § 6 da NCRF 18, por valor realizável líquido (VRL) deve entender-se: “(...) o preço de venda estimado no decurso ordinário da atividade empresarial menos os custos estimados de acabamento e os custos estimados necessários para efetuar a venda.”

 

60. Face ao disposto no § 30 da NCRF 18, a estimativa do valor realizável líquido (VRL) deve assentar no seguinte: “As estimativas do valor realizável líquido são baseadas nas provas mais fiáveis disponíveis no momento em que sejam feitas as estimativas quanto à quantia que se espera que os inventários venham a realizar. Estas estimativas tomam em consideração as variações nos preços ou custos diretamente relacionados com acontecimentos que ocorram após o fim do período, na medida em que tais acontecimentos confirmem condições existentes no fim do período.” Tais provas não podem deixar de ser internas ou externas e sempre as mais fiáveis disponíveis no momento, devendo levar-se em consideração a finalidade para a qual o inventário é detido (Cfr. § 31 da NCRF 18).

 

61. Ainda que reconhecidas imparidades em inventários, determinando-se a redução do valor do custo para o valor realizável líquido, o valor dos inventários a considerar para apuramento do Custo das Mercadorias Vendidas e das Matérias Consumidas (CMVMC) é o custo consubstanciado na mensuração inicial. Além de que, em conformidade com o acima transcrito § 34 da NCRF 18, o reconhecimento da imparidade não implica o desreconhecimento do ativo, devendo a sua diminuição ser relevada numa conta específica de inventários (não sendo, pois, de anular diretamente o saldo onde os inventários se encontram reconhecidos ao custo), porquanto, se num período posterior ocorrer um evento que determine a diminuição da quantia de perda por imparidade, a mesma deve ser revertida.

 

62. As perdas por imparidade refletidas na contabilidade deverão ser analisadas ao abrigo do CIRC e deverão ser regularizadas, extra-contabilisticamente, as situações necessárias, com vista à determinação do lucro tributável.

 

63. O art.º 23º n.º 1 alínea h) do CIRC estabelece que as perdas por imparidade são consideradas gastos do período, já que são indispensáveis para a realização de rendimentos ou para a manutenção da fonte produtora.

 

64. O art.º 28º do CIRC define as perdas por imparidade em inventários, estatuindo: “1 – São dedutíveis no apuramento do lucro tributável as perdas por imparidade em inventários, reconhecidas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores, até ao limite da diferença entre o custo de aquisição ou de produção dos inventários e o respetivo valor realizável líquido referido à data do balanço, quando este for inferior àquele. 2 — Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por valor realizável líquido o preço de venda estimado no decurso normal da actividade do sujeito passivo nos termos do n.º 4 do artigo 26.º, deduzido dos custos necessários de acabamento e venda. 3— A reversão, parcial ou total, das perdas por imparidade previstas no n.º 1 concorre para a formação do lucro tributável. (...).” Por outro lado e na parte que aqui nos interessa enfocar, o art.º 26.º do CIRC dispõe: “1— Para efeitos da determinação do lucro tributável, os rendimentos e gastos dos inventários são os que resultam da aplicação dos critérios de mensuração previstos na normalização contabilística em vigor que utilizem: a) Custos de aquisição ou de produção; b) Custos padrões apurados de acordo com técnicas contabilísticas adequadas; c) Preços de venda deduzidos da margem normal de lucro; d) Preços de venda dos produtos colhidos de activos biológicos no momento da colheita, deduzidos dos custos estimados no ponto de venda, excluindo os de transporte e outros necessários para colocar os produtos no mercado; e) (Revogada). 2 (...). 3 (...). 4 — Consideram-se preços de venda os constantes de elementos oficiais ou os últimos que em condições normais tenham sido praticados pelo sujeito passivo ou ainda os que, no termo do período de tributação, forem correntes no mercado, desde que sejam considerados idóneos ou de controlo inequívoco.”

 

65. Podendo inferir-se da aplicação conjugada do disposto no art.º 28º do CIRC e do n.º 4 do art.º 26.º do mesmo normativo o seguinte: i) o conceito fiscal de valor realizável líquido (VRL) difere do conceito contabilístico acima detalhado com sobejo desenvolvimento; ii) O CIRC detalha e é mais objectivo na conceituação do VRL aceite fiscalmente, na comparação com o que a tal propósito estatui o ordenamento jurídico-contabilístico. É que, como visto, nos termos do parágrafo 30 da NCRF 18, o VRL baseia-se em provas fiáveis disponíveis no momento em que sejam feitas estimativas quanto à quantia que se espera que os inventários venham a realizar, nomeadamente em variações em preços ou custos que sejam relacionados com acontecimentos que se esperam que ocorram após o fim do período contabilístico em que se está a relevar a imparidade, na medida em que tais acontecimentos confirmem condições existentes no fim desse período; aludindo ainda o parágrafo 31 da NCRF 18 como segue: “As estimativas do valor realizável líquido também tomam em consideração a finalidade pela qual é detido o inventário. Por exemplo, o valor realizável líquido da quantidade de inventário detida para satisfazer contratos de vendas ou de prestações de serviços firmes é baseado no preço do contrato. Se os contratos de venda disserem respeito a quantidades inferiores às quantidades de inventário detidas, o valor realizável líquido do excesso basear-se-á em preços gerais de venda. (…) ”.

 

66. Ora, como visto, o n.º 4 do art.º 26º do CIRC, na conceituação que faz de preços de venda, é muito mais específico e objectivo (retirando-se, assim, daquela conceituação, subjectivismos que facilmente pudessem redundar em condutas evasivas) quando considera que os preços de venda são os constantes de elementos oficiais (como sejam, v.g., as cotações oficiais de mercado disponibilizadas pela sistema de informação de mercados agrícolas – Cfr. § 20 da NCRF 18); os últimos que em condições normais tenham sido praticados pelo sujeito passivo; e finalmente os que, no termo do período de tributação, forem correntes no mercado. Claro está que a norma impõe que os preços de venda que relevam para determinação do VRL sejam considerados “idóneos ou de controlo inequívoco.”

 

67. Como certeiramente aponta Tomás Cantista Tavares, in “Da relação de dependência parcial entre a contabilidade e o direito fiscal na determinação do rendimento tributável das pessoas colectivas: algumas reflexões ao nível dos custos”, CTF n.º 396, 1999, pp. 82 e seguintes: “[N]o rigor dos princípios, o rendimento societário só se apuraria no final da vida da empresa, por comparação entre o capital inicialmente arriscado e o que se viesse a obter na fase de liquidação. Todavia, por ponderosas exigências do ordenamento mercantil e fiscal (por razões de certeza, segurança e praticabilidade, com vista ao periódico apuramento da performance da gestão, em face da remuneração dos detentores das partes sociais e na conveniência da tesouraria do Estado), convencionou-se uma artificial, mas necessária, divisão da vida empresarial em intervalos temporais (regra geral, pelo ano solar), com a imputação, em cada período, das componentes positivas e negativas do rendimento. O apuramento do lucro (contabilístico e fiscal) resulta, pois, da tensão entre dois vectores basilares: o da continuidade e o da periodização. Um e outro impelem à introdução de opostos princípios operacionais intermédios. Do primeiro brota o princípio da solidariedade dos exercícios que, no domínio tributário, permite a dedução dos prejuízos fiscais aos lucros tributáveis dos anos subsequentes (cfr. art.º 46° e art.º 15.º, n° 1, al. a), 1), ambos do CIRC). Do segundo, por sua via, nasce o princípio da especialização dos exercícios, por instituição de rígidas regras de imputação dos proveitos e dos custos ao período temporal a que digam respeito (cfr. art.º 18°, do CIRC), mediante a institucionalização de um exaustivo conjunto de técnicas sobre a imputação, num dado exercício, dos proveitos e custos empresariais. A especialização dos exercícios trespassa, portanto, a globalidade do sistema fiscal de determinação do rendimento, por isolamento de regras concretas sobre a afectação temporal de todos os movimentos económico-financeiros da empresa. O conteúdo do princípio da especialização dos exercícios emerge, “prima facie”, do Direito Contabilístico. A eleição do momento económico (em detrimento do financeiro) como a batuta da revelação dos fluxos empresariais é determinada, desde logo, pelo princípio contabilístico da especialização dos exercícios. Ora, como o rendimento colectável se apoia fortemente nas regras daquela natureza, então, será óbvio, que no aspecto central que agora curamos, também se siga, a par e passo, essa referida dependência. No universo fiscal, porém, esses contornos assumem uma major radicalidade, por forma a prevenir e impedir a elusão do imposto (e frustração dos direitos do credor tributário), efectivável, sobretudo, pelo diferimento na revelação dos ganhos e antecipação no registo dos custos (ou, em termos mais precisos, por uma astuta gestão dos gastos e dos proveitos, por preferencial imputação dos custos nos exercícios lucrativos e dos proveitos nos anos em que se verifiquem prejuízos fiscais).

A lei fiscal -  no claro intuito de prevenir e reprimir eventuais tentações deste calibre -  além da expressa definição deste princípio, estabelece, outrossim, um conjunto de regras precisas e concretas sobre a identificação do momento elegível para o registo das diversas componentes do rendimento.

Efectivamente, na importação fiscal dos diversos princípios contabilísticos, somente o da especialização merece uma expressa e autónoma formulação fiscal (ao passo que os outros se bastam com uma mera remissão implícita). A duplicidade definitória corresponde, pois, à importância primacial deste princípio no domínio fiscal (cfr. art.º 18° CIRC (...). Os princípios contabilístico e fiscal da especialização dos exercícios possuem, portanto, uma matriz de base comum. As divergências situam-se, apenas, ao nível da densidade vinculativa, especialmente nos casos patológicos de omissão, por mero lapso, na inscrição de determinadas rubricas (positivas ou negativas) no balanço competente. Com efeito, a reparação desse erro merece uma diferente solução para cada um dos ordenamentos. A contabilidade consente o registo nas demonstrações financeiras do exercício em que se constata o erro, mediante a inscrição numa conta especifica que agrega os custos e proveitos de exercícios anteriores. O Direito Fiscal, na sua major radicalidade, não tolera esta solução contabilística (verdadeira violação do princípio da especialização), compelindo, então, o contribuinte a reportar esse registo ao período temporal correspondente, mediante a apresentação de prévia reclamação graciosa necessária e, eventualmente, de posterior impugnação judicial (cfr. art.º 151°, do CPT).

 

68. Deixámos acima amplos desenvolvimentos sobre a relevação contabilística no âmbito da constituição e reversão das imparidades e princípios aplicáveis, nomeadamente, o princípio contabilístico da especialização ou do acréscimo (sendo que o SNC adoptou aquele princípio contabilístico que é, aliás, um princípio basilar da técnica contabilística, adoptado igualmente a nível internacional pelas normas internacionais de contabilidade), bem como o princípio da prudência.

 

69. Enunciados os princípios contabilísticos da especialização e da prudência importará questionar se a constituição de imparidades se disciplina, (por ora numa perspectiva estritamente contabilística), em ordem mais a um ou a outro dos princípios explicitados ou até aos dois cumulativamente?

 

70. A resposta parece evidente: a constituição de imparidades está, indiscutível e essencialmente, ligada ao princípio da prudência, sem que com isto se queira dizer que tal constituição/reforço não possa igualmente submeter-se ao princípio da especialização, como adiante melhor se explicitará.

 

71. Utilizando a linguagem das Normas Internacionais de Contabilidade, a constituição de imparidades tem por escopo fazer face a contingências negativas (que, neste caso, resultavam da perda de valor dos inventários) cuja probabilidade de ocorrência é verosímil, resultando (caso ocorra) numa perda para a empresa.

 

72. Nestes casos, é prudente reconhecer essa perda potencial nas demonstrações financeiras, constituindo-se ou reforçando-se a imparidade.

 

73. A constituição de imparidades, no pressuposto de que a contingência negativa existe, não é mormente determinada pelo princípio da especialização dos exercícios.

 

74. Subjacente à constituição de imparidades encontra-se o princípio do balanceamento dos custos com os inerentes proveitos e o já sobejamente analisado supra princípio da prudência.

 

75. O princípio de prudência conduz, como visto, à necessidade de inserção nas contas de um determinado grau de precaução para fazer face a situações de incerteza, de tal forma que os activos e os resultados não sejam sobredimensionados.

 

76. A constituição de imparidades tem como finalidade essencial possibilitar a inclusão de custos ou perdas de dado exercício de montantes que de outro modo nele não figurariam, por lhe faltar justificação documental para a respectiva movimentação; é, exactamente, essa falta de justificação documental que a constituição da imparidade vem suprir. Ou seja, as contas de provisões/imparidades são aquelas onde se inscrevem as verbas destinadas a contrabalançar encargos ou prejuízos estimados e actuais, de provável processamento futuro, ou, sendo certa a sua ocorrência futura, apenas o seu montante é actualmente incerto.

 

77. Podemos então definir imparidades como sendo custos estimados e actuais (do exercício) correspondentes a despesas cujo montante ainda não é certo ou que são de eventual ocorrência futura.

 

78. A necessidade de constituição de imparidades surge porque a tributação do rendimento se processa anualmente, obrigando as empresas a fazer paragens teóricas da sua actividade para a periodização do lucro tributável, concretizada de acordo com o princípio da especialização dos exercícios.

 

79. E o princípio da prudência adoptado pelo SNC determina que as diminuições do activo, ainda que potenciais, deverão ser relevadas contabilisticamente.

 

80. Estamos perante possíveis futuras perdas de rendimentos da empresa.

 

81. Haverá, todavia, a considerar que a integração de um grau de precaução nas contas não pode conduzir à criação de reservas ocultas ou provisões excessivas ou à deliberada quantificação de activos e proveitos por defeito ou de passivos e custos por excesso.

 

82. Tal como acima sobejamente se deixou, o SNC prevê, entre outras, a constituição de imparidades em inventários.

 

83. No entanto, e porque a constituição abusiva de imparidades em inventários poderia conduzir a uma distorção dos resultados duma empresa, para efeitos fiscais, o legislador introduziu normas tipificando as situações que são passíveis de constituir custos para efeitos fiscais.

 

84. Efectivamente, do ponto de vista fiscal e tal como sobejamente explicitado acima, consagra-se, como regra geral, no artigo 23°, n° 1, alínea h), do CIRC, dedutibilidade fiscal das imparidades.

 

85. Todavia, essa regra não pode deixar de ser concatenada com as acima transcritas e previstas no n.º 4 do art.º 26.º do CIRC e art.º 28.º do mesmo normativo.

 

86. Tais normativos e nomeadamente a conceituação de preços de venda com relevância para efeitos de determinação do Valor Realizável Líquido (VRL) conduzem ao facto de poder não existir coincidência entre os critérios contabilísticos e os critérios fiscais que disciplinam a constituição e reforço das imparidades em inventários.

 

87. Assim, o CIRC estabelece as situações em que as imparidades constituídas pelos contribuintes podem ser consideradas para efeitos de apuramento do lucro tributável, enunciando de forma taxativa um elenco fechado de tipologias de provisões/imparidades com tal relevância.

 

88. Foi, claramente, objectivo do legislador não deixar a constituição das imparidades/provisões ao livre arbítrio dos contribuintes.

 

89. A periodização do rendimento das sociedades é imposta, como visto, pelo ordenamento jurídico contabilístico que determina que as demonstrações financeiras, a fim de darem a conhecer a posição financeira aos interessados, devem ser apresentadas anualmente. Sendo que, tal normativo impõe ainda que aquelas demonstrações financeiras devem ser elaboradas de acordo com os seguintes pressupostos: i) o da continuidade; e ainda ii) o da periodização económica, o qual estabelece uma clara distinção entre a ótica financeira (tesouraria) e a ótica de gestão, determinando o reconhecimento dos gastos e rendimentos no ano a que correspondem, independentemente do seu pagamento ou recebimento.

 

90. O acolhimento do princípio da especialização na ordem jurídico-tributária vigente, resultava já e independentemente da sua efectiva consagração expressa na letra da lei (Cfr. art.º 18.º do CIRC) da adoção do modelo de dependência parcial a que, sobejamente, nos reportávamos acima.

 

91. Dispõe aquele normativo como segue: “1 — Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica. 2 — As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas. 3 — Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 1: a) Os réditos relativos a vendas consideram-se em geral realizados, e os correspondentes gastos suportados, na data da entrega ou expedição dos bens correspondentes ou, se anterior, na data em que se opera a transferência de propriedade; b) Os réditos relativos a prestações de serviços consideram-se em geral realizados, e os correspondentes gastos suportados, na data em que o serviço é concluído, excepto tratando-se de serviços que consistam na prestação de mais de um acto ou numa prestação continuada ou sucessiva, que são imputáveis proporcionalmente à sua execução; c) Os réditos e os gastos de contratos de construção devem ser periodizados tendo em consideração o disposto no artigo 19.º (...).”

 

92. E de entre as componentes negativas que relevam para efeitos de apuramento do lucro tributável a que se reporta o n.º 1 do art.º 18º do CIRC acima transcrito, estão expressamente referidas na alínea h) do n.º 1 do art.º 23º do mesmo normativo, as perdas por imparidade.

 

 

93. Um inventário está em imparidade quando, estando relevado ao custo, se verifique que este não pode ser recuperado, pela venda ou uso, por estar danificado, total ou parcialmente obsoleto ou se o respectivo preço de venda tiver diminuído.

 

94. Nessa circunstância, o inventário em imparidade deve ver reduzido o seu valor contabilístico para o valor realizável líquido (VRL) estimado (Cfr. § 28 da NCRF 18).

 

95. Tal como visto acima e do ponto de vista estritamente fiscal, reconhecida uma perda por imparidade em inventários, por subsunção na alínea h) do n.º 1 do art.º 23.º do CIRC, tem aquela de relevar como componente negativa tendente ao apuramento do lucro tributável, desde que, enfoque-se, a aludida relevância para efeitos fiscais não seja expressamente afastada ou inviabilizada pelo CIRC.

 

96. Não podendo olvidar-se que, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 18.º do CIRC, essa perda por imparidade não pode deixar de ser, atento o princípio da especialização dos exercícios, imputável ao período de tributação em que é suportada, independentemente do momento da sua realização, ou seja, independentemente do momento em que venha a efectivar-se a venda desse inventário objectivamente desvalorizado.

 

97. E tal como está na nota 678 da anotação ao artigo 28 do CIRC, in “Código do IRC, Anotado e Comentado”, de Rui Marques, Almedina, 2019, pág. 258, “A não consideração de perdas por imparidade e provisões num determinado período ou a sua constituição por montantes insuficientes poderá determinar a sua não aceitação para efeitos fiscais, no período em que vierem a ser reconhecidas.”

 

98. Justificada objectivamente a constituição da imparidade num concreto exercício, a sua não constituição ou reforço será, em princípio, violadora do princípio da especialização dos exercícios previsto no n.º 1 do art.º 18,º do CIRC, porquanto terá como efeito deslocar para outros exercícios custos que não podiam deixar de relevar no exercício relativamente ao qual a perda deveria ser reconhecida e não no momento em que a venda do inventário se viesse a materializar.

 

99. Por isso, a argumentação da Autoridade Tributária e Aduaneira no sentido de que, in casu, as perdas em inventários já vinham de anos anteriores, na medida em que a aqui Requerente foi tentando vender os pares de sapatos que estavam obsoletos em períodos anteriores com significativas baixas de preço, não pode deixar de ser devidamente relevada e convenientemente ponderada.

100. É que se durante os exercícios anteriores a 2015, fossem verificadas todas as condições necessárias ao reconhecimento de imparidades, para efeitos contabilísticos (sendo mais lassos os requisitos legais a verificar), rectius, especialmente as relevantes para efeitos fiscais, o reconhecimento dos correspondentes gastos associados à imparidade em inventários não podia deixar de ser imputado ao lucro tributável do exercício da constituição da imparidade, pois o regime de reconhecimento das perdas por imparidade visa, precisamente, dar relevância fiscal a perdas incorridas antes da realização que decorram da alienação dos correspondentes inventários.

 

101. As perdas por imparidade consideram-se componente negativa do lucro tributável do exercício em que objectivamente devessem ser reconhecidas, considerando-se, em antecipação, suportadas nesse exercício e não naquele em que venha a concretizar-se a realização daqueles activos por venda dos mesmos.

 

102. E tal como acima se aduzia, as perdas por imparidade têm justificação exactamente no princípio da especialização dos exercícios e na característica qualitativa da prudência, donde, a sua não consideração (ou a sua consideração por montantes inferiores aos legalmente permitidos, v.g., por insuficiente determinação do seu quantum, radicada num valor realizável líquido desajustado) num determinado exercício em que já se encontrassem firmadas as razões que determinariam a sua constituição face ao ordenamento jurídico-contabilístico ou até, melhor dizendo e até mais restritivamente, face ao ordenamento jurídico-tributário, não poderia deixar de determinar a sua não aceitação para efeitos fiscais no período em que viessem (tais imparidades) a ser inicialmente reconhecidas ou reforçadas.

 

103. Sendo que, em princípio, uma vez verificados os requisitos legais (previstos no ordenamento jurídico-contabilístico) para a constituição ou reforço da imparidade para inventários, somente no exercício correspondente ao que o reconhecimento da perda por imparidade que devesse ser relevado é que também do ponto de vista do ordenamento jurídico-tributário lhe poderia ser atribuída relevância fiscal, ou seja, só nesse exercício os correspondentes custos, associados à constituição ou reforço da provisão, poderiam relevar, por dedução, para efeitos de determinação do lucro tributável por aplicação conjugada do n.º 1 do art.º 23º e alínea h) do n.º 2 do art.º 23 do CIRC.

 

104. Não obstante, a Requerida vai mais longe: não só parece entender que a constituição ou reforço de uma eventual imparidade que viesse a ser relevada pela Requerente não poderia relevar como custo para efeitos da determinação do lucro tributável, na medida em que já antes se tinham verificado os requisitos legais para a sua constituição ou reforço; como, atenta a circunstância da Requerente não haver constituído qualquer imparidade em inventários (podendo fazê-lo por se haver constatado que o VRL dos inventários estava abaixo do custo de aquisição dos mesmos), parece entender também que no momento da alienação daqueles activos, a perda correspondente (o CMVMC), já que a venda é necessariamente concretizada por valor abaixo do custo por obsolescência das existências alienadas, não pode também relevar como custo para efeitos fiscais.  

 

105. Terá a requerida Razão?

 

106. Propende-se o Tribunal Arbitral Singular a considerar que as pretensões correctivas da Requerida não podem colher. 

 

107. É que, não obstante o regime de dependência parcial entre a contabilidade e a fiscalidade a que acima nos reportávamos com desenvolvimento, relativamente às imparidades em inventários, importará averiguar se há normas do CIRC que obstem a que a perda por imparidade relevada contabilisticamente (notando-se que, in casu, a Requerente nem sequer constituiu qualquer imparidade) possa ter relevância fiscal.

 

108. Dizendo de outro modo: após o reconhecimento contabilístico do gasto por relevação de uma imparidade em inventários em conformidade com o disposto na NCRF 18, há que verificar se o correspondente custo se mantém como aceite fiscalmente.

 

109. E a este respeito não pode o tribunal Arbitral Singular deixar de dizer que quanto aos acontecimentos que determinam o ajustamento, existe absoluta coincidência entre o ordenamento jurídico-tributário e o contabilístico. Vejamos,

 

110. E a tal propósito, estatui o n.º 1 do art.º 28.º do CIRC no sentido de que “São dedutíveis no apuramento do lucro tributável as perdas por imparidade em inventários, reconhecidas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores, até ao limite da diferença entre o custo de aquisição ou de produção dos inventários e o respetivo valor realizável líquido referido à data do balanço, quando este for inferior àquele.”

 

111. Já o tratamento dos inventários tem consagração na NCRF 18, que integra o Sistema de Normalização Contabilística (SNC). De acordo com aquela norma, os inventários devem, no reconhecimento inicial, ser mensurados ao custo (sendo produzidos pela própria entidade, ao custo de produção), devendo, subsequentemente, e em conformidade com o § 9 da norma, ser mensurados pelo custo ou valor realizável líquido (VRL), dos dois o mais baixo.

 

112. Como visto acima, refere o § 34 da NCRF 18 que “Quando os inventários forem vendidos, a quantia escriturada desses inventários deve ser reconhecida como um gasto do período em que o respetivo rédito seja reconhecido. A quantia de qualquer ajustamento dos inventários para o valor realizável líquido e todas as perdas de inventários devem ser reconhecidas como um gasto do período em que o ajustamento ou perda ocorra.”. Assim, o gasto relativo aos inventários deve ser reconhecido aquando da venda; aquando da perda de inventários; ou, ainda, aquando da redução do valor escriturado dos inventários ao VRL, por reconhecimento de uma perda por imparidade. Dispõe, ainda, o § 28, que “O custo dos inventários pode não ser recuperável se esses inventários estiverem danificados, se se tornarem total ou parcialmente obsoletos ou se os seus preços de venda tiverem diminuído. O custo dos inventários pode também não ser recuperável se os custos estimados de acabamento ou os custos estimados a serem incorridos para realizar a venda tiverem aumentado. A prática de reduzir o custo dos inventários (write down) para o valor realizável líquido é consistente com o ponto de vista de que os ativos não devem ser escriturados por quantias superiores àquelas que previsivelmente resultariam da sua venda ou uso.”. Inferindo-se do que vem de ser dito que quanto aos acontecimentos que determinam o ajustamento e a eventual constituição e reforço de imparidades em inventários a coincidência entre ordenamento jurídico contabilístico e fiscal é total, tal como acima se afirmava, mas essa coincidência não se verifica quanto à conceituação do valor realizável líquido (VRL).

 

113. Em termos contabilísticos, a estimativa do valor realizável líquido (VRL) baseia-se nas provas mais fiáveis disponíveis no momento. Já para efeitos fiscais, tal estimativa do valor realizável líquido (VRL) corresponde ao preço de venda estimado no decurso normal da atividade do sujeito passivo (art.º 28º nº 2 do CIRC), determinado nos termos do art.º 26º nº 4 do CIRC, ou seja, em preços de venda constantes de elementos oficiais ou aos últimos que em condições normais tenham sido praticados pelo sujeito passivo, ou ainda os que, no termo do período de tributação, forem correntes no mercado, desde que sejam considerados idóneos ou de controlo inequívoco.

 

114. Das exigências fiscais explicitadas no n.º 4 do art.º 26º do CIRC, por remissão do n.º 2 do art.º 28º do mesmo normativo, resulta que o valor realizável líquido é de difícil de demonstração, sendo até, tal como acima aduzido, mais específico e mais objectivo do que o relevante para o ordenamento jurídico-contabilístico. Desde logo, porquanto, não existe cotação e mercado regulado para a grande maioria dos inventários e, por outro lado, porque os últimos preços que em condições normais tenham sido praticados podem não refletir o VRL correto, em caso de danificação ou obsolescência do inventário, ou, mesmo, pode não haver termo de referência ou ainda por não existirem vendas daqueles inventários. Além de que, em conformidade ainda com o n.º 4 do art.º 26.º do CIRC, in fine, quanto aos preços correntes no mercado, estes têm de ser considerados idóneos ou de controlo inequívoco, introduzindo-se ali mais uma outra salvaguarda que simplesmente inexiste no ordenamento jurídico-contabilístico.  

 

115. Intuindo daqui o Tribunal Arbitral Singular que o legislador fiscal foi bastante mais restritivo na aceitação das perdas por imparidade em inventários, como gasto fiscal.

 

116. Acompanhamos a Requerente quando aduz no sentido de que, in casu, não tinha, nos anos anteriores, como estimar o VRL dos sapatos, desde logo, porquanto: “(...) o reconhecimento de imparidades em existências, fiscalmente relevante nos termos do artigo 28º do CIRC, tem a dificuldade de, à priori, exigir a determinação de um valor realizável líquido em condições de objetividade e comprovação que permitam a sua aceitação fiscal.” E ainda que “Em certas atividades, como é o caso da atividade da venda de sapatos de moda pela Requerente, a estimativa do valor realizável de venda de um par de sapatos fora de moda é sempre muito difícil, salvo no momento em que estrategicamente é tomada a decisão de forçar a venda dos stocks parados e fixação de um preço de liquidação suscetível de, pelo preço, encontrar comprador.

 

117. Assim sendo, não deixa de ser verdade que a Requerente só ficou em condições de determinar, para efeitos fiscais, o valor realizável líquido dos sapatos que estavam obsoletos, quando, em 2015, tomou a decisão de vender aqueles inventários, fixando-lhes um preço, para o qual existissem compradores, tendo-se apurado tão-só através da venda (evento de realização) o valor dos produtos vendidos e aqui em causa.

 

118. E assim sendo, independentemente de para efeitos meramente contabilísticos e em função das respectivas regras de determinação do VRL, poder aquela ter violado a obrigação contabilística de constituição da correspondente imparidade, para efeitos estritamente fiscais, essa constituição estava-lhe vedada por inverificação do determinado no n.º 4 do art.º 26º do CIRC, donde, não pode deixar de cair a tese sufragada pela Requerida, ou seja, tem de prevalecer o reconhecimento do custo associado à transmissão dos sapatos no exercício de 2015, i.e., atento o princípio do balanceamento entre custos e proveitos, o gasto com relevância fiscal relativo a estes inventários tem de ser reconhecido aquando da venda desses mesmos inventários por subsunção no art.º 23.º do CIRC e não no momento da suposta redução do valor escriturado do inventários ao VRL que inexistiu do ponto de vista contabilístico e que jamais poderia existir para efeitos fiscais por inverificação do determinado no n.º 4 do art.º 26º do CIRC.      

 

119. Mas ainda que tivesse ocorrido desrespeito pelo princípio da periodização do lucro tributável, sempre teríamos de concluir que o procedimento seguido pela Requerente não terá determinado prejuízo à receita tributária, havendo ainda que atender à jurisprudência recorrente do STA no sentido de que a rigidez do princípio da periodização dos exercícios tem de ser ponderada com o princípio da justiça.

 

120. A este propósito importará trazer à colação a jurisprudência que dimana do Acórdão do STA de  14 de Março 2018, proferida no processo número 0716/13, apontando-se ainda os ensinamentos de Diogo Leite Campos, Benjamin Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª Edição, Lisboa,  Encontro da Escrita, 2012, pp.452 e 454.

 

121. A tal propósito diga-se desde já que se podem identificar duas correntes jurisprudenciais: i) uma, que, in limine, não admite a derrogação ao princípio da periodização económica, exceptuado o caso previsto expressamente no n.º 2 do art.º 18.º do CIRC (que dispõe no sentido de que: “[A]s componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.); ii) uma outra, que admite violação do princípio da anualidade, por cedência a outros princípios e de entre eles, nomeadamente, o da justiça.

 

122. Subsumíveis na corrente jurisprudencial identificada em i) do ponto precedente desta decisão, identificam-se as seguintes decisões arbitrais tiradas nos processo arbitrais n.ºs: i) 239/2015-T, de 19.02.2016; ii) 429/2017-T, de 21.5.2018; iii) e 442/2017-T, de 26.1.2018.

 

123. Na decisão de improcedência proferida no âmbito do processo nº 239/2015-T, de 19.2.2016, o Requerente invocou que as correções efetuadas pela Requerida, aos rendimentos (juros de suprimentos) de 2010 e 2011, enfermavam de vício de duplicação de coleta, uma vez que os rendimentos corrigidos haviam sido incluídos no lucro tributável de 2012. O Tribunal entendeu que o que importava analisar era se o Requerente deveria, ou não, relevar os respectivos rendimentos nos exercícios de 2010 e de 2011 e, sopesando convenientemente o teor da NCRF 20 e ainda o disposto nos artºs 17.º e 18.º do CIRC, decidiu no sentido de que as correções promovidas pela AT, em obediência ao disposto no art.º 18.º do CIRC, deveriam manter-se, julgando assim improcedente o Pedido de Pronúncia Arbitral, porquanto, os rendimentos ali em causa respeitavam aos anos de 2010 e 2011.

 

124. A invocação da suposta violação do princípio da justiça não mereceu acolhimento nem foi bastante para levar o Tribunal a julgar procedente o PPA.

 

125. Na decisão de improcedência proferida no âmbito do processo nº 442/2017-T, de 26.1.2018, o Requerente pretendia que fosse considerado gasto relevante no exercício de 2015 o montante titulado por facturas e notas de débito respeitantes ao ano de 2012 e 2013, pagas ao respectivo fornecedor na sequência da decisão judicial que emergiu no âmbito de um processo de injunção instaurado (pelo fornecedor) em Abril de 2013, influenciando, por isso, tais gastos, o lucro tributável de 2015, invocando que a não consideração do gasto naquele ano de 2015, violava os princípios da periodização do lucro tributável, da capacidade contributiva e da justiça.

 

126. Fundamentando a decisão de improcedência das pretensões da Requerente, o tribunal aduziu no sentido de que o Requerente em nenhum momento alegou que os serviços que lhe foram faturados não foram prestados, donde, apesar de questionar o respectivo montante, deveria ter deduzido os gastos nos exercícios de 2012 e de 2013, uma vez que, de acordo com o princípio da especialização dos exercícios e o disposto no n.º 2 do art.º 18.º do CIRC, os mesmos não eram desconhecidos ou imprevisíveis, ou, pelo menos, por prudência, poderia ter registado uma provisão. O tribunal aduziu ainda no sentido de que não tendo sido registado o gasto, o Requerente deveria ter apresentado reclamação graciosa necessária (Cfr. art.º 131.º do CPPT) das autoliquidações de 2012 e 2013. O Tribunal Arbitral referiu que era compreensível que, do incumprimento das exigências legais de natureza formal e do princípio da especialização dos exercícios (cujos objetivos são: o “controlo da atividade do contribuinte”, a “promoção da realidade” e a “proteção do interesse público no combate à fuga e à evasão fiscal”), resultasse o estabelecimento pela lei da sanção da não dedutibilidade dos gastos, daí concluindo: “Considera-se então que o princípio da especialização dos exercícios, assente no interesse público da prevenção e combate da evasão fiscal, deve prevalecer sobre o princípio constitucional da tributação das empresas pelo rendimento real consagrado no art.º 104º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Em suma, no entender deste Tribunal e nos termos do art.º 18º, nº 1 do CIRC, o gasto em causa nos presentes autos deveria ter sido deduzido no exercício de 2013, uma vez que, de acordo com o princípio da especialização dos exercícios e o disposto no art.º 18, nº 2 do CIRC, o gasto em causa não era desconhecido pela Requerente e não era imprevisível.

De facto, pelo menos a partir do momento que lhe foi instaurado o processo de injunção (abril de 2013), o gasto em causa deixou de ser imprevisível e manifestamente desconhecido como pugna a Requerente! Ainda assim, a Requerente sempre podia ter lançado mão de outro mecanismo contabilístico fiscal: discordando, com razão ou não, com os valores que lhe eram exigidos na injunção, devia ter efetuado, por cautela, uma provisão, nos termos do art.º 39º, nº 1 a) do CIRC.

O referido dispositivo permite a realização de provisões, fiscalmente dedutíveis, para fazer face a obrigações e encargos derivados de processos judiciais em curso por factos que determinariam a inclusão daqueles entre os gastos do período de tributação.

A Requerente invoca em sua defesa a prevalência dos princípios da justiça e da tributação pelo rendimento real e da capacidade contributiva, previstos nos artºs. 266º, nº 2 e 104º, nº 2 da CRP, respetivamente, sobre o princípio da especialização dos exercícios.

O Acórdão do CAAD, proferido a 31-03-2017, no processo nº 422/2016-T esclarece a este propósito que “(…) o princípio da justiça é imposto à globalidade da atividade da Administração Tributária (…). Da observância concomitante dos princípios da legalidade e da justiça conclui-se que o dever de a Administração Tributária aplicar o princípio da legalidade não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente regulam determinadas situações, abrangendo também o dever de a administração ter em conta as consequências da sua atividade e abster-se da aplicação estrita de normas quando dela decorra um resultado manifestamente injusto. A aplicação do princípio da justiça sobrepondo-se ao princípio da especialização dos exercícios tem sido efetuada em situações deste tipo, conduzindo a que não seja efetuada qualquer correção quando não é possível imputar os gastos ao exercício a que deveriam ser imputados, à face daquele princípio, e os sujeitos passivos não atuaram intencionalmente com o objetivo de obterem alguma vantagem. O Supremo Tribunal Administrativo tem adotado este entendimento, tendo decidido, relativamente ao princípio da especialização dos exercícios, que «esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.” E ainda que: “(...) Em suma, se por um lado, os princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo lucro real não são absolutos antes tendo como limites outros valores constitucionalmente protegidos, por outro, o princípio da justiça não pode dar cobertura a situações como a dos autos, numa ponderação global dos interesses em presença, mediada pelo princípio da proporcionalidade: deve, no entendimento deste Tribunal, dar-se prevalência ao interesse público de prevenção e combate à fraude fiscal, sendo que neste juízo de ponderação deve ser tido igualmente em conta o princípio da justiça na perspetiva dos contribuintes que cumprem as suas obrigações fiscais, que de outra forma seriam discriminados face aos que sistematicamente não as cumprem.

No caso em concreto, decidir no sentido do pretendido pela Requerente, corresponderia também a ignorar a obrigação que sobre ela impende quanto às exigências de contabilidade organizada.”

 

127. Na decisão de improcedência proferida no âmbito do processo nº 429/2017-T, de 21.5.2018, o Requerente pretendia que fosse considerado gasto relevante no exercício de 2013 o montante pago nesse ano, relativamente a liquidações oficiosas efetuadas pela AT e pela Segurança Social, na sequência de ações inspetivas, nas quais foi apurada a não entrega de impostos e de contribuições devidas em 2007, 2009 e 2010, invocando que a não consideração do gasto (no ano de 2013) violava os princípios da justiça e da capacidade contributiva.

 

128. Também neste caso o Tribunal Arbitral considerou que não existia fundamento para afastamento do regime-regra previsto no art.º 18º nº 1 do CIRC, uma vez que os gastos não eram, ou pelo menos não deveriam ser, desconhecidos ou imprevisíveis, concluindo que os mesmos tinham que ter sido registados no exercício em que os impostos e as contribuições deveriam ter sido entregues nos Cofres do Estado e não em 2013 (ano das liquidações oficiosas, na sequência de ações inspetivas promovidas pelas entidades competentes). No que tange à violação do princípio da justiça invocada pelo Requerente e contraditada pela Requerida, o Tribunal Arbitral considerou que tal princípio não é, ele próprio, absoluto, devendo ser equacionado em cada situação concreta em confronto com outros. Ancorando esta posição de principio e meramente conclusiva, traz-se à discussão o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/2001, 13.10.2001 e que pode ser consultado in https://dre.pt/home/-/dre/850194/details/maximized e que a dado passo se diz: “O princípio da justiça, como parâmetro aferidor da conformidade constitucional das normas jurídicas, pressupõe, porém, que esteja em causa uma solução normativa absolutamente inaceitável (como sempre aconteceu nos casos apreciados nos arestos citados), que afecte uma dada dimensão do núcleo fundamental dos interesses essenciais da pessoa humana e que colida com os valores estruturantes do ordenamento jurídico (cf. Maria Fernanda Palma, ob. cit., p. 28)., concluiu que não resulta manifestamente injusto o resultado imposto pela AT, em cumprimento da regra de periodização de exercícios.

 

129. Tal como já acima referido, o Tribunal Arbitral Singular identificou ainda decisões jurisprudenciais que admitem a violação do princípio da anualidade, por cedência a outros princípios e de entre eles, nomeadamente, o da justiça. Tais decisões admitem, em manifesta desconsideração do princípio ínsito no artº 18º do CIRC, a derrogação do princípio da anualidade ou especialização, entendendo que, não sendo absoluto, deve a sua rigidez ser temperada e conformada com outros, nomeadamente: o princípio da tributação pelo lucro real (Cfr. n.º 2 do art.º 104.º da CRP) e o princípio da justiça (Cfr. n.º 2 do art.º 266.º da CRP), dando-se relevância à “intenção” (“não resultar de omissões voluntárias ou intencionais”) em substituição da “imprevisibilidade” ou “desconhecimento” (art.º 18.º, nº 2 do CIRC).

 

130. Naquele sentido, identificou o Tribunal Arbitral Singular as seguintes decisões arbitrais: i) a proferida no processo nº 367/2014-T, de 24.11.2014 e ii) a tirada no Processo n.º 638/2015-T, de 2.10.2016.

 

131. Na decisão de procedência proferida no âmbito do processo nº 367/2014-T, de 24.11.2014, o Requerente invocou que a correção ao gasto, registado na conta 69 – “Correções relativas a exercícios anteriores”, em 2009 (suportado por notas de crédito emitidas em Janeiro de 2009), relativas à devolução física de mercadorias em 2008 de vendas realizadas em 2007 e em 2008, por aplicação do princípio da especialização dos exercícios, violava o princípio da justiça, por não ter sido causado qualquer lesão ao erário público; alegando ainda que: “apurou e pagou IRC sobre rendimentos antecipados, ficando os cofres do Estado, indevidamente beneficiados”. O Tribunal Arbitral decidiu-se pela procedência do PPA e consequentemente pela ilegalidade da correção efetuada pela AT ao gasto registado, aderindo às alegações do Requerente e fundamentando com o entendimento que dimana do acórdão Supremo Tribunal Administrativo de 2.4.2008, Processo n.º 0807/07, onde a dado passo se diz: “(...) esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.”

 

132. Adequado se mostrando trazer ainda aqui uma breve síntese da decisão proferida no âmbito do processo nº 638/2015-T, de 2.10.2016, que julgou procedente o pedido de pronúncia arbitral que sindicava a anulação de uma correção de um gasto registado em 2010, suportado por uma nota de débito emitida em 2007 e respeitante a reparações compreendidas entre 2005 a 2006.

 

133. Da identificação e breve síntese das decisões jurisprudenciais acima identificadas resulta a admissibilidade, da derrogação do princípio da anualidade ou periodização económica em razão da primazia que devem ter, no caso concreto, outros princípios, como seja o princípio da justiça.

134. Para o Tribunal Arbitral Singular a aceitação da derrogação do princípio da especialização dos exercícios por prevalência do princípio da justiça, só teria alguma justificação se a situação de manifesta injustiça se demonstrasse nos autos, o que do ponto de vista do Tribunal ficou claramente demonstrado, sendo que é manifesta a injustiça do resultado imposto pelas correções promovidas pela AT, na medida em que, como visto, não tendo a Requerente constituído a imparidade por falta de elementos que lhe permitissem determinar um VRL estimado com base no disposto no n.º 4 do art.º 26.º do CIRC, na liquidação que empreendeu a AT (e aqui sindicada), desconsiderou a Requerida, in totum, o custo das mercadorias vendidas e das matérias consumidas (CMVMC) em que a Requerente claramente incorreu com a venda dos inventários obsoletos, ou seja, não só a Requerente vendeu os sapatos aqui em causa muito abaixo do valor do seu custo, incorrendo em efectivo prejuízo; como, caso colhesse o entendimento sustentado pela Requerente, o custo associado a tais sapatos (todo ele!) não era simplesmente levado em consideração na determinação do lucro tributável da Requerente.

 

135. Conclui assim o Tribunal Arbitral Singular, que o caso sub judicio se enquadra no tipo de situações que a aplicação do princípio da justiça pretende salvaguardar e acima explicitadas com desenvolvimento, desde logo, porquanto, ficou cabalmente demonstrada a injustiça que não podia deixar de permitir se equacionasse a derrogação do princípio da anualidade nos termos em que a jurisprudência acima identificada o admite.

 

136. Retirando-se a asserção final de que da prova aqui produzida resulta sobejamente demonstrado que ainda que houvesse violação do princípio contabilístico da especialização dos exercícios e até do normativo constante do art.º 18º do CIRC, mais não seja, o princípio da justiça não podia deixar de obliterar essa aventada violação, donde resulta que, assim sendo, a Requerida, in casu, levou à prática correcções que vieram a materializar-se nas liquidações sindicadas enfermadas de ilegalidade, mostrando-se aqueles actos tributários desprovidos de base legal.

 

IV.D.1.2) DA NÃO ACEITAÇÃO DOS GASTOS COM DEPRECIAÇÕES E AMORTIZAÇÕES; DESCONSIDERÇÃO DA PERDA POR IMPARIDADE PREVISTA NO ART.º 31.º B DO CIRC:

 

137. Sob a epígrafe “Perdas por imparidade em ativos não correntes”, dispõe o art.º 31-B do CIRC (que consagra o regime das desvalorizações excepcionais gerador de perdas por imparidade em activos não correntes): “[1] - Podem ser aceites como gastos fiscais as perdas por imparidade em ativos não correntes provenientes de causas anormais comprovadas, designadamente desastres, fenómenos naturais, inovações técnicas excecionalmente rápidas ou alterações significativas, com efeito adverso, no contexto legal. 2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o sujeito passivo deve obter a aceitação da Autoridade Tributária e Aduaneira, mediante exposição devidamente fundamentada, a apresentar até ao fim do 1.º mês do período de tributação seguinte ao da ocorrência dos factos que determinaram as desvalorizações excecionais, acompanhada de documentação comprovativa dos mesmos, designadamente da decisão do competente órgão de gestão que confirme aqueles factos, de justificação do respetivo montante, bem como da indicação do destino a dar aos ativos, quando o abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização destes não ocorram no mesmo período de tributação. 3 - Quando os factos que determinaram as desvalorizações excecionais dos ativos e o abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização ocorram no mesmo período de tributação, o valor líquido fiscal dos ativos, corrigido de eventuais valores recuperáveis, pode ser aceite como gasto do período, desde que: a) Seja comprovado o abate físico, desmantelamento, abandono ou inutilização dos bens, através do respetivo auto, assinado por duas testemunhas, e identificados e comprovados os factos que originaram as desvalorizações excecionais; b) O auto seja acompanhado de relação discriminativa dos elementos em causa, contendo, relativamente a cada ativo, a descrição, o ano e o custo de aquisição, bem como o valor líquido contabilístico e o valor líquido fiscal; c) Seja comunicado ao serviço de finanças da área do local onde aqueles ativos se encontrem, com a antecedência mínima de 15 dias, o local, a data e a hora do abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização e o total do valor líquido fiscal dos mesmos; 4 - O disposto nas alíneas a) a c) do número anterior deve igualmente observar-se nas situações previstas no n.º 2, no período de tributação em que venha a efetuar-se o abate físico, o desmantelamento, o abandono ou a inutilização dos ativos. 5 - A aceitação referida no n.º 2 é da competência do diretor de finanças da área da sede, direção efetiva ou estabelecimento estável do sujeito passivo ou do diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes, tratando-se de empresas incluídas no âmbito das suas atribuições. 6 - A documentação a que se refere o n.º 3 deve integrar o processo de documentação fiscal, nos termos do artigo 130.º

7 - As perdas por imparidade de ativos depreciáveis ou amortizáveis que não sejam aceites fiscalmente nos termos dos números anteriores são consideradas como gastos, em partes iguais, durante o período de vida útil restante desse ativo ou, sem prejuízo do disposto no artigo 46.º, até ao período anterior àquele em que se verificar o abate físico, o desmantelamento, o abandono, a inutilização ou a transmissão do mesmo.”

 

138. Resulta sobejamente provado nos autos que a Requerente não cumpriu as formalidades impostas pelo acima transcrito n.º 3 do art.º 31.º-B do CIRC.

 

139. Por outro lado, os bens relativamente aos quais foi considerada a perda por imparidade eram essencialmente constituídos por benfeitorias não recuperáveis no arranjo da loja arrendada pela Requerente e cujo locado foi entregue em Agosto de 2016, sendo que o abate ocorreu no mesmo exercício em que foi cessada a actividade daquela (naquele mesmo exercício de 2016), donde, não existindo período de vida útil restante desses bens, não podem ser imputadas aos mesmos quaisquer perdas por imparidade nos termos e em conformidade com o estatuído do n.º 7 do art.º 31º-B do CIRC.

 

140. Quanto ao argumento aduzido pela Requerente de que não cumpriu as formalidades previstas no n.º 3 do art.º 37.º-B do CIRC para os abates, pela razão de não haver quaisquer bens corpóreos a abater, pois o imobilizado desreconhecido era constituído por arranjos em edifícios alheios, irrecuperáveis e invendáveis, diga-se que ele é implicitamente rebatido pela jurisprudência invocada pela Requerente no que tange à preterição dos formalismos impostos pelo n.º 3 do art.º 31.º-B do CIRC, concretamente o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 4.6.2020, tirado no processo n.º 2742/10.3BELRS e que pode ser consultado in http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/606acabd8dca8b01802585820039f2ee?OpenDocument , onde, em situação idêntica à da aqui Requerente, ou seja, tendo a ali Recorrida deixado no locado benfeitorias, tais como, pavimentos, rede de ar condicionado, rede de instalações eléctricas, pinturas, rodapés, etc., não deixou aquela de cumprir com o formalismo equivalente ao previsto no n.º 3 do art.º 31.º-B do CIRC, donde, para este Tribunal Arbitral Singular não deve também relevar tal circunstancialismo.   

 

141. Por absoluta falta de cumprimento das formalidades impostas pelo n.º 3 do art.º 31.º-B do CIRC e ainda por manifesta inaplicabilidade  do n.º 7 do art.º 31º-B do CIRC, não pode colher o argumentário esgrimido pela Requerente no sentido das pretensões correctivas da Requerida dever cair, decidindo o Tribunal Arbitral manter, nesta parte, o acto tributário de liquidação sindicado, sendo que, ainda que pudesse relevar a jurisprudência invocada pela Requerente no que tange à preterição dos formalismos impostos pelo n.º 3 do art.º 31.º-B do CIRC, concretamente o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 4.6.2020, a Requerente, quanto aos bens não totalmente depreciados, reconheceu uma perda por imparidade prevista no art.º 31.º-B do CIRC de 30.848,09 €, acrescendo o gasto contabilizado na Modelo 22 do ano de 2016 de 25.650,95 €, deduzindo o diferencial (5.197,14 €), consubstanciado em gastos aceites durante o período de vida útil dos bens de acordo com o n.º 7 do art.º 31.º-B do CIRC. Além de que, no caso invocado pela Requerente, a ali Recorrida cumpriu com todos os formalismos que lhe eram legalmente exigíveis, só não o tendo feito tempestivamente no prazo de 15 dias anterior ao abate dos bens, o que não é de todo em todo compaginável com o que se passou com a aqui Requerente. Nessa conformidade, continuava aquela a incumprir com o disposto na disposição ao abrigo da qual pretendia fossem reconhecidos os gastos aqui em causa na determinação do seu lucro tributável – o n.º 7 do art.º 31.º-B do CIRC – e não estava em situação idêntica à da recorrida no arresto que invoca, pelo que, não podiam deixar de improceder as pretensões daquela como adiante se decidirá.          

 

IV.D.2) DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS:    

 

142. Estatui o art.º 43º da LGT, sob a epígrafe “Pagamento indevido da prestação tributária”, como segue: “1 - São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. 2 - Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas. 3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos; b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito; c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária. d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução. 4 - A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios. 5 - No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.”

 

143. O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende, aliás, do acima transcrito n.º 1 do art.º 43.º, da LGT.

 

144. De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei».

 

145. Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários.

 

146. O n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

 

147. O pagamento de juros indemnizatórios depende da existência de quantia a reembolsar e, em face da aventada decisão de anulação parcial do acto de liquidação de IRC e JC de 2015, insere-se no âmbito das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD apreciar se há direito a reembolso e em que medida.

 

148. Cumpre, assim, apreciar os pedidos de restituição da quantia paga acrescida de juros indemnizatórios.

 

149. Na sequência da anulação parcial da liquidação sindicada, a Requerente tem direito a ser reembolsada das quantias indevidamente pagas e reportadas ao exercício de 2015.

 

150. O direito a juros indemnizatórios, é regulado, como visto, no acima transcrito art.º 43.º da LGT.

 

151. Diz o n.º 1 do art.º 43.º da LGT que: “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

 

152. Ora, tendo o Tribunal Arbitral Singular julgado no sentido de que as liquidações controvertidas de IRC e JC de 2015, na parte ligada à desconsideração do CMVMC aqui em causa, enfermam de ilegalidade, dado que a não aceitação dos correspondentes custos viola de forma expressa e inequívoca o art.º 23º do CIRC, ficou, assim, inequivocamente patenteada a legitimidade do aludido pedido de pagamento de juros indemnizatórios a favor da Requerente por subsunção no referido n.º 1 do art.º 43.º da LGT, já que a liquidação sub judice é imputável à AT e mostra-se, em parte, enfermada de ilegalidade, sendo, por isso, devidos juros desde o dia seguinte ao do pagamento indevido até à data da emissão da respectiva nota de crédito, em conformidade com o estatuído no art.º 43º da LGT e art.º 61º do CPPT.

153. É, por isso, a Requerente credora da AT do montante correspondente ao IRC e JC de 2015 indevidamente pago, acrescido dos respectivos juros indemnizatórios vencidos e vincendos a calcular até à emissão da respectiva nota de crédito.

 

IV.D.3) APRECIAÇÃO DO MÉRITO DA CAUSA – DO VÍCIO CONSUBSTANCIADO NA INSUFICIENTE FUNDAMENTAÇÃO DAS CORRECÇÕES EFECTUADAS:

 

154. Julgando-se procedente o pedido quanto à correcção que desconsiderou o CMVMC, tal como já se deixou antever, ficava assegurada a tutela eficaz dos interesses da Requerente, donde, fica prejudicada, por inútil, a apreciação da questão da fundamentação insuficiente quanto a esta correcção.

 

155. Já quanto à correcção consubstanciada na inaplicabilidade do n.º 7 do art.º 31.º-B do CIRC, conclui o tribunal no sentido da suficiência da fundamentação de direito expressa no Relatório de Inspecção e ainda no sentido de que a fundamentação ali esgrimida cumpriu a sua função e tanto assim que a Requerente no seu pedido de pronúncia arbitral revelou perfeito conhecimento das razões de facto e de direito subjacentes às correcções empreendidas pela AT, soçobrando assim o argumentário esgrimido pela Requerente a tal propósito da insuficiente fundamentação do acto tributário de liquidação sindicado na parte respeitante à correcção sobrante.

 

V. DECISÃO:

 

FACE AO EXPOSTO, O TRIBUNAL ARBITRAL SINGULAR DECIDE:

 

A)           QUANTO À PARTE DO ACTO DE LIQUIDAÇÃO SINDICADO RESPEITANTE À CORRECÇÃO QUE DESCONSIDEROU O CMVMC, JULGAR PROCEDENTE O PRESENTE PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL;

B)           QUANTO À PARTE DA LIQUIDAÇÃO CONEXA COM A CORRECÇÃO CONSUBSTANCIADA NA INAPLICABILIDADE DO N.º 7 DO ART.º 31.º-B DO CIRC (A PARTE SOBRANTE PARA ALÉM DA REFERIDA NO PONTO ANTERIOR DESTE SEGMENTO DECISÓRIO), JULGAR IMPROCEDENTE O PRESENTE PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL;

C)           JULGAR IMPROCEDENTE, A ILEGALIDADE CONSUBSTANCIADA NA INSUFICIÊNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO ASSOCIADA À PARTE DA LIQUIDAÇÃO CONEXA COM A CORRECÇÃO CONSUBSTANCIADA NA INAPLICABILIDADE DO N.º 7 DO ART.º 31.º-B DO CIRC;

D)           JULGAR PROCEDENTE O PEDIDO DE CONDENAÇÃO DA REQUERIDA À RESTITUIÇÃO À REQUERENTE DO VALOR CORRESPONDENTE À PARTE ANULADA DO ACTO DE LIQUIDAÇÃO POR O MESMO HAVER SIDO INDEVIDAMENTE PAGO;

E)            JULGAR PROCEDENTE O PEDIDO DE CONDENAÇÃO DA REQUERIDA AO PAGAMENTO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS (NA PARTE EM QUE O SEU PETITÓRIO FOI JULGADO PROCEDENTE) A DETERMINAR NOS TERMOS DO ART.º 43º DA LGT E 61º DO CPPT.

 

VI. VALOR DO PROCESSO:

 

FIXO O VALOR DO PROCESSO EM 14.761,04 € EM CONFORMIDADE COM O DISPOSTO NO ART.º 97.º-A DO CPPT, APLICÁVEL POR REMISSÃO DO ART.º 3º DO REGULAMENTO DAS CUSTAS NOS PROCESSOS DE ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA (RCPAT).

 

VII. CUSTAS:

 

FIXO O VALOR DAS CUSTAS EM 918,00 €, CALCULADAS EM CONFORMIDADE COM A TABELA I DO REGULAMENTO DE CUSTAS DOS PROCESSOS DE ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA EM FUNÇÃO DO VALOR DO PEDIDO (SENDO QUE, TAL VALOR FOI O INDICADO PELA REQUERENTE NO PPA E NÃO CONTESTADO PELA REQUERIDA E CORRESPONDE AO VALOR DAS LIQUIDAÇÕES SINDICADAS) A CARGO DA REQUERENTE E DA REQUERIDA EM FUNÇÃO DO RESPECTIVO DECAIMENTO QUE SE FIXA EM 14,31 % PARA A PRIMEIRA E 85,69 %  PARA A SEGUNDA,  NOS TERMOS DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 12.º, N.º 2 E 22.º, N.º 4 DO RJAT E AINDA ART.º 4.º, N.º 5 DO RCPAT E ART.º 527, NºS 1 E 2 DO CPC, EX VI DO ART.º 29.º, N.º 1, ALÍNEA E) DO RJAT.

 

NOTIFIQUE-SE.

 

Lisboa, 22 de Dezembro de 2021.

 

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.

 

O árbitro,

(Fernando Marques Simões)