Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 741/2019-T
Data da decisão: 2020-05-13  IRS  
Valor do pedido: € 52.798,92
Tema: IRS – Declaração de substituição; Ónus da prova.
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DECISÃO ARBITRAL

I.  RELATÓRIO

Em 4 de novembro de 2019, A..., com o NIF ... e com domicílio fiscal na Rua ..., n.º ...- ... ... ...-... ODIVELAS (doravante designado por Requerente), veio, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 99.º, alínea a) e 102.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, e 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2018..., no valor de € 52 798,92, referente ao ano de 2017, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º...2018..., em que foi convolada a declaração modelo 3 de substituição por si apresentada.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT e, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, encargo aceite no prazo aplicável, sem oposição das Partes.

 

Síntese da posição das Partes

  1. Do Requerente:

Como fundamentos do pedido, invoca a Requerente, em suma, o seguinte:

  • A liquidação de IRS objeto do pedido de pronúncia arbitral foi emitida com base numa declaração modelo 3 de IRS, com erros, submetida por um antigo contabilista, na qual foram incluídos rendimentos de outro seu cliente;
  • Já anteriormente havia sido submetida pelo mesmo contabilista uma outra declaração de rendimentos, para o mesmo ano, também como erros;
  • Porque a liquidação ora impugnada não tem qualquer correspondência com os rendimentos efetivamente auferidos no ano de 2017, o Requerente apresentou nova declaração de substituição, convolada em reclamação graciosa, que veio a merecer decisão de indeferimento;
  • As declarações apresentadas incluem rendimentos das categorias A e F; contudo, nas declarações com erros, foram incluídos rendimentos de trabalho referentes a uma sociedade para a qual o Requerente não trabalhou, bem como rendimentos prediais referentes a imóveis da sua propriedade, que naquele ano não se encontravam arrendados;
  • Os rendimentos de trabalho efetivamente auferidos pelo Requerente no ano de 2017, foram-lhe pagos pela sociedade unipessoal de que é sócio único, que foram participados à Autoridade Tributária e sobre os quais suportou contribuições para a Segurança Social;
  • A AT, na decisão de indeferimento da reclamação graciosa, considerou que o Requerente não logrou fazer prova dos rendimentos efetivamente auferidos, substancialmente inferiores àqueles pelos quais foi tributado;
  • O n.º 1 do artigo 104.º, da CRP prevê que o imposto sobre o rendimento pessoal tem em conta os rendimentos do agregado familiar;
  • O apuramento dos rendimentos tributáveis é, em regra, feito com base nas declarações dos contribuintes e só na falta ou vício destas pode ser feito com base nos elementos disponibilizados e disponíveis para consulta à Autoridade Tributária;
  • As declarações dos contribuintes presumem-se verdadeiras, exceto se apresentarem erros, omissões ou indícios fundados de que não refletem a matéria tributável real, ficando a prova dos factos sujeita às regras relativas ao ónus da prova, que recai sobre quem os invoca;
  • Ao Requerente não foi possível localizar a empresa para a qual nunca trabalhou, nem contactar qualquer dos respetivos sócios;
  • No entanto, de acordo com a informação prestada na reclamação graciosa, a referida empresa não apresentou “qualquer declaração DMR ou Modelo 10 – Rendimentos e Retenções – Residentes, elemento que poderia auxiliar a confirmar o alegado pelo reclamante”;
  • Entende o Requerente que tal incumprimento declarativo por parte daquela entidade o não pode onerar com a prova de um facto negativo;
  • A Autoridade Tributária, por sua vez, dispõe dos contactos daquela sociedade, dos respetivos sócios e do técnico oficial de contas, tendo, de acordo com o princípio do inquisitório, o dever de carrear para o procedimento as provas dos factos, mesmo daqueles que tenham por objetivo provar factos invocados pelos contribuintes, sem necessidade de iniciativa dos interessados;
  • Quanto aos rendimentos prediais, logrou o Requerente fazer prova dos efetivamente auferidos;
  • A liquidação que ora se impugna é manifestamente ilegal, por violação do princípio da igualdade na sua vertente da tributação segundo o princípio da capacidade contributiva, não podendo manter-se na ordem jurídica, por não assentar em rendimentos reais.

 

Termina o Requerente por requerer a produção de prova testemunhal, com audição do técnico de contas responsável pela submissão das declarações de IRS do ano de 2017, e que o tribunal arbitral inste a Requerida a proceder à notificação da sociedade supostamente pagadora dos rendimentos erradamente incluídos na liquidação, tendo em vista o cumprimento da obrigação de entrega da declaração de remunerações do ano de 2017 e declaração nos autos de não ter o Requerente auferido quaisquer rendimentos pagos pela mesma, naquele ano.

  1. Da Requerida

Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou resposta e fez juntar o processo administrativo (PA), em que veio defender a legalidade e a manutenção do ato de liquidação e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, com os seguintes fundamentos:

  • O Requerente apresentou a declaração modelo 3 de IRS do ano de 2017 fora do prazo, e, sucessivamente, quatro declarações de substituição àquela, com diferentes rendimentos das categorias A e F;
  • Na reclamação graciosa apresentada contra a liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral, sem juntar qualquer documento ou fazer referência aos rendimentos prediais, o Requerente sustenta que (i) no ano de 2017, trabalhou exclusivamente para a sociedade B..., Unipessoal, Ld.ª, tendo auferido rendimentos no montante de € 6 198,43; (ii) que o contabilista que lhe fez a declaração cometeu um lapso/erro, e que o valor declarado era referente a outro contribuinte (subentende-se que se refere à categoria A, da entidade pagadora C..., Ld.ª);
  • Para justificar estes rendimentos, o Requerente juntou ao pedido uma informação obtida no Portal da Segurança Social relativamente às contribuições pagas durante o ano de 2017 e que se reportam a um rendimento anual de € 6 108,43;
  • No entanto, as contribuições pagas à Segurança Social não são, por si só, elemento probatório bastante para demonstrar que o Requerente apenas teve rendimentos da categoria A do montante invocado;
  • Por ofício de 08/11/2018, o Serviço de Finanças de Odivelas notificou a sociedade C... Ld.ª, para no prazo de 15 dias, prestar esclarecimentos sobre os rendimentos colocados à disposição do Requerente no exercício de 2017;
  • Não tendo sido obtida resposta, a AT fez uma segunda notificação àquela entidade, em 14/11/2018, a qual também não mereceu resposta;
  • Compulsado o sistema informático, a AT constatou que a referida entidade não apresentou declaração DMR ou Modelo 10 – Rendimentos e Retenções – Residentes;
  • Não é verosímil a justificação do Requerente de que existiu um lapso no preenchimento da declaração Modelo 3/IRS, porque esse alegado lapso persistiu em declarações de substituição à primeira, onde o valor declarado relativo aos rendimentos pagos ou postos à disposição pela C..., Ld.ª foram, até, sendo aumentados;
  • Não tendo o requerente exercido o direito de audição, nem feito prova de que apenas auferiu os rendimentos pagos pela sociedade B..., Unipessoal, foi indeferida a reclamação graciosa;
  • Nas declarações Modelo 3, submetidas a 4/09 e a 10/09, o Requerente apresentou rendimentos prediais referentes a outros imóveis, perfazendo um montante total superior ao invocado nestes autos, sendo certo que o argumento do Requerente para justificar um montante declarativo inferior não é suficiente para justificar o afastamento da liquidação, tanto mais que o Requerente entregou sucessivas declarações de substituição, nalgumas das quais manteve a declaração de rendimentos prediais que agora pretende abolir, alegadamente por erro;
  • Nos presentes autos, o Requerente vem aceitar, a título de rendimentos prediais, um valor superior ao que declarou na última declaração de substituição da Declaração Modelo 3, depois convolada em reclamação graciosa;
  • É certo que esse rendimento predial assenta em contratos de arrendamento declarados à AT; contudo, o facto dos demais rendimentos declarados não terem um contrato de arrendamento subjacente, declarado à AT, não afasta, por si só, a existência desses rendimentos e a sua consequente tributação;
  • A argumentação de que se trata de um erro no preenchimento da declaração é inverosímil, já que os prédios indicados no Anexo F são propriedade do Requerente e, pelo menos no caso do arrendatário com o NIF..., este tinha o seu domicílio fiscal no respetivo imóvel (cfr. campo 4004);
  • Argumentação que está em direta colisão com o teor da declaração junta pelo Requerente sob o Doc. n.º 2, em que o contabilista certificado vem declarar que “o erro se deveu à circunstância de, em simultâneo com o preenchimento desta declaração modelo 3, ter estado a simular rendimentos e retenções que hipoteticamente fossem auferidos por um qualquer contribuinte e a consequente tributação a final, não tendo eliminado essa linha na declaração antes da submissão.” (artigo 49.º, da Resposta);

 

  • Atendendo às regras sobre o ónus da prova (artigo 74.º, da LGT), incumbia ao Requerente demonstrar que não auferiu os rendimentos declarados – demonstração que não foi efetuada.

 

Assim, conclui a AT que a liquidação controvertida não padece de qualquer vício que ponha em causa a sua legalidade e validade, devendo ser julgado improcedente o pedido e, consequentemente, absolvida a Requerida.

 

  •  

Pelo despacho arbitral de 26.02.2020 foi o Requerente notificado para indicar os factos sobre os quais pretendia a produção de prova testemunhal.

 

Porque o referido meio de prova incidia, essencialmente, sobre a quantificação dos rendimentos de trabalho por conta de outrem e, afigurando-se tratar-se de factos não suscetíveis de prova testemunhal, foi dispensada a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, determinou-se que o processo prosseguisse com alegações escritas, tendo inicialmente sido indicada a data de 13 de maio de 2020 para prolação da decisão arbitral e advertido o Requerente de que, até essa data, deveria dar cumprimento ao disposto no artigo 4.º, n.º 3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, procedendo ao pagamento do remanescente da taxa arbitral.

 

Ambas as Partes apresentaram alegações escritas dentro do prazo designado, nas quais reiteraram e desenvolveram as posições inicialmente assumidas.

 

 

II. SANEAMENTO

1.  O tribunal arbitral singular é materialmente competente e foi regularmente constituído em 27 de janeiro de 2020, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

2.  As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

3. Não foram invocadas exceções que o tribunal deva apreciar e decidir.

4.  O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

 

III.         FUNDAMENTAÇÃO

III.1 MATÉRIA DE FACTO

Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA), da prova testemunhal produzida e do processo administrativo (PA), fixa-se como segue:    

 

  1. Factos Provados:
  1. Em 04.09.2018, o Requerente apresentou a primeira declaração modelo 3 de IRS referente aos rendimentos do ano de 2017, identificada o n.º ...(cfr. fls. 4 a 8 do PA), integrando:
    1. Anexo A, no qual declarou rendimentos de trabalho dependente no montante global de € 63 766,43, sobre os quais incidiram retenções na fonte de € 8 040,00 e contribuições para a Segurança Social de € 4 359,96, com as seguintes proveniências:
      1. Pagos pela entidade com o NIPC ..., da quantia de € 6 108,43, sobre os quais suportou contribuições para a Segurança Social no valor de € 671,93, sem retenções na fonte de IRS;
      2. Pagos pela entidade com o NIPC ..., da quantia de € 57 658,00, sobre os quais suportou contribuições para a Segurança Social no valor de € 3 685,00 e retenções na fonte de IRS de € 8 040,00;
    2. Anexo F, no qual declarou rendas no valor global de € 46 350,00, sobre o qual não foram efetuadas retenções na fonte, referentes a sete prédios urbanos, tendo optado pelo não englobamento destes rendimentos prediais;
  2. Com base nesta primeira declaração de rendimentos, foi efetuada a liquidação de IRS n.º 2018 ..., no valor global de € 26 571,22 e data limite de pagamento em 22.10.2018 (cfr. fls. 9 do PA);
  3. Em 10.09.2018, o Requerente procedeu à entrega da declaração modelo 3 de IRS identificada com o n.º ... (cfr. fls. 10 a 14 do PA), referente ao ano de 2017, nela inscrevendo os seguintes rendimentos e encargos:
    1. No Anexo A, foram declarados rendimentos de trabalho dependente no valor global de € 113 766,43, retenções na fonte da quantia global de € 8 040,00 e contribuições para a segurança social no montante global de € 4 356,93:
      1. Pagos pela entidade com o NIPC ..., da quantia de € 6 108,43, sobre os quais suportou contribuições para a Segurança Social no valor de € 671,93, sem retenções na fonte de IRS;
      2. Pagos pela entidade com o NIPC ..., da quantia de € 107 658,00, sobre os quais suportou contribuições para a Segurança Social no valor de € 3 685,00 e retenções na fonte de IRS de € 8 040,00;

b.  Anexo F, no qual declarou rendas no valor global de € 46 350,00, sobre o qual não foram efetuadas retenções na fonte, referentes a sete prédios urbanos, tendo optado pelo não englobamento destes rendimentos prediais;

4. A declaração modelo 3 de IRS n.º ... deu origem à liquidação n.º 2018 ..., no valor global de € 52 798,92, com data limite de pagamento em 29.10.2018 (cfr. fls. 15 do PA);

5. O Requerente apresentou, em 08.11.2018, a declaração de substituição n.º ... referente ao ano de 2017 (cfr. fls. 16 a 20 do PA), na qual declarou:

a.  No Anexo A, rendimentos de trabalho dependente pagos pela entidade com o NIPC ..., da quantia de € 6 108,43, sobre os quais suportou contribuições para a Segurança Social no valor de € 671,93, sem retenções na fonte de IRS;

b. No Anexo F, renda no valor global de € 13 350,00, sobre o qual não foram efetuadas retenções na fonte, referentes a três prédios urbanos, tendo optado pelo não englobamento destes rendimentos prediais;

6. A declaração de substituição n.º..., submetida em 08.11.2018, consta do sistema informático como não liquidável (cfr. pág. 30 do PA);

7. Para além das já identificadas, o Requerente apresentou ainda as declarações modelo 3 de IRS referentes ao ano de 2017 com os n.ºs ..., de 08.10.2018 (anulada) e ..., de 08.10.2018 (não liquidável) – cfr. fls. 30 do PA;

8. Em 08.11.2018, o Serviço de Finanças de ... expediu ofício de notificação à sociedade C..., Ld.ª, com o NIPC ... para que, ao abrigo do princípio da colaboração e no prazo de 15 dias, prestasse esclarecimentos sobre os rendimentos colocados à disposição do Requerente no exercício de 2017 e, caso este nela tivesse exercido funções, para submeter as DRM em falta (cfr. fls. 21 a 23 do PA);

9. O procedimento de reclamação graciosa n.º ...2018... foi aberto em 14.11.2018, por convolação da declaração de substituição n.º ... (fls. 1 a 3 e 27 do PA);

10. Na mesma data anterior, o Serviço de Finanças de ... expediu ofício de 2.ª notificação à sociedade C..., Ld.ª, do mesmo teor do referido em 8 (fls. 24 a 26 do PA);

11. A única DRM em que figura o nome do Requerente no ano de 2017 é a que foi submetida pela entidade com o NIPC ..., da qual consta o pagamento de rendimentos da quantia de € 6 108,43, sendo o valor das contribuições obrigatórias para a segurança social de € 671,93 (cfr. fls. 31 do PA);

12. As rendas recebidas e registadas como rendimentos do Requerente, em 2017, respeitam aos imóveis a seguir identificados e têm os seguintes valores (cfr. fls.33 a 44 do PA e Docs. 18 a 25 juntos ao PPA):

a. Fração autónoma letra V do prédio urbano inscrito sob o artigo ... da freguesia..., pela renda mensal de € 400,00;

b. Fração autónoma G do prédio urbano inscrito sob o artigo ... da freguesia ..., pela renda mensal de € 425,00;

c. Fração autónoma letra B do prédio urbano inscrito sob o artigo ... da freguesia ..., pela renda mensal de € 700,00;

13. Na informação de suporte ao despacho de indeferimento da reclamação graciosa consta designadamente o seguinte:

     “Rendimentos de Categoria A

(…)

V.2. Na declaração de IRS objeto de convolação no presente procedimento (…) apenas constam rendimentos de categoria A, no valor de € 6 108,43, pagos pela entidade B... Unipessoal, Lda., NIF ...(…).

V.3. Os rendimentos declarados nesta última declaração encontram-se em conformidade com as Declarações Mensais de Remuneração (DMR) constantes da base de dados da AT, com referência ao ano em análise (2017) (…).

V.4. Sucede que, com referência ao exercício de 2017, a entidade C..., Lda. não apresentou qualquer declaração DMR ou Modelo 10 – Rendimentos e Retenções – Residentes (…).

V.5. O reclamante alega que a declaração de IRS terá sido submetida por um antigo contabilista e que, segundo refere, “o rendimento declarado era referente a outro contribuinte”.

V.6. Sucede que, conforme resulta do anteriormente exposto (…) tal alegação afigura-se pouco verosímil (…).

(…)

V.8. O n.º 1 do artigo 74.º da LGT determina que “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”, competindo, por isso, ao reclamante provar que, conforme alega, apenas auferiu os rendimentos pagos pela entidade B... Unipessoal, Lda., o que, in casu, não logrou fazer.

(…)

Rendimentos de Categoria F

(…)

V.12. Da consulta à base de dados da AT verifica-se que, com referência à data de 2017-12-31, o reclamante era proprietário dos seguintes imóveis (…)

Identif. Matricial dos Prédios Urbanos

Freguesia

Artigo

Fração

A

...

...

C

B

...

...

V

C

...

...

G

D

...

...

G

E

...

...

S

F

...

...

H

G

...

...

B

H

...

...

-

V.13. De acordo com os contratos de arrendamento comunicados à AT, na situação de “ativo” no ano de 2017, os imóveis identificados no quadro anterior sob as letras “B”, “C” e “G” encontram-se arrendados pela renda mensal de € 400,00, € 425,00 e € 700,00, respetivamente (…)

(…)

V.17. Atendendo a todas as incongruências assinaladas e, bem assim, ao facto de não terem sido carreados para os autos quaisquer elementos suscetíveis de comprovar e quantificar, de forma inequívoca, os rendimentos prediais efetivamente auferidos pelo reclamante, não se afigura ser de validar os rendimentos declarados no anexo F da declaração submetida em 2018-11-08 (…)”.

14. O procedimento de reclamação graciosa n.º ...2018... foi objeto de despacho de indeferimento proferido pela Senhora Chefe de Divisão de Justiça Administrativa da Direção de Finanças de Lisboa, de 12.07.2019, cuja notificação ao Requerente foi efetuada em 09.08.2019.

 

B. Factos não provados:

Não se provou que o Requerente tivesse obtido rendimentos de valor superior aos que constam das bases de dados da AT.

 

Não se provou o teor da declaração subscrita pelo Técnico de Contas do Requerente, Dr. Augusto José Correia Almeida, a que alude o artigo 49.º, da Resposta da AT e cuja cópia não consta dos autos.

 

C. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada:

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

 

Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Os factos dados como provados e como não provados resultam da análise crítica dos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral, do processo administrativo e da posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados.

 

 

III.2 DO DIREITO

  1. A questão decidenda:

A questão que o tribunal arbitral é chamado a apreciar e decidir consiste em aferir da legalidade do indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018... em que foi convolada a declaração de substituição apresentada pelo Requerente em 08.11.2019 (objeto imediato do processo), bem como da liquidação de IRS n.º 2018... mantida em vigor com tal indeferimento (objeto mediato), face aos princípios materiais e procedimentais presentes no ordenamento jurídico-tributário.

 

O Requerente sustenta não ter recebido, no ano de 2017, parte dos rendimentos de trabalho dependente e dos rendimentos prediais incluídos na declaração modelo 3 de IRS com base na qual foi emitida a liquidação que impugna, declaração cujo preenchimento, alegadamente, tal como a anteriormente apresentada, se deveu a erros do seu Técnico de Contas.

 

Se, por um lado, o princípio da capacidade contributiva exige que a tributação do rendimento pessoal tenha em conta os rendimentos do agregado familiar (artigo 104.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), também os princípios procedimentais, enquanto garantias dos contribuintes, determinam que a atuação da administração tributária na prossecução do interesse público se paute pela legalidade, proporcionalidade e justiça material (artigo 55.º, da Lei Geral Tributária – LGT).

 

Vigora entre nós o princípio da declaração, nos termos do qual o procedimento de liquidação do imposto tem por base as declarações dos contribuintes, fazendo-se o apuramento da matéria tributável nos termos declarados, só assim não acontecendo na falta de tais declarações ou se estas não fornecerem os elementos necessários à verificação da sua situação tributária, caso em que a liquidação terá por base todos os elementos de que a AT disponha (Cfr. o artigo 59.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário – CPPT).

 

O n.º 1 do artigo 75.º, da LGT, consagra a presunção de que as declarações apresentadas pelos contribuintes nos termos da lei são verdadeiras e de boa-fé, presunção que apenas cede nas situações expressamente previstas no n.º 2 do mesmo artigo.

 

Esta presunção de verdade das declarações dos contribuintes é igualmente válida para as declarações de substituição, cuja entrega lhes é facultada pelo n.º 3 do artigo 59.º, do CPPT, para correção de erros de facto ou de direito cometidos nas declarações iniciais.

 

Beneficiando os contribuintes de uma presunção legal da verdade e boa-fé das suas declarações, não é a estes que cabe provar a verdade dos factos tributários nelas inscritos, apenas sendo admissível o afastamento da sua veracidade “quando a AT demonstre inequivocamente a existência de um facto tributário não reflectido nessas declarações ou divergente do declarado, através de elementos carreados para o procedimento, tendo em vista ilidir a presunção da veracidade das mesmas.” (Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, em 08.02.2018, Processo 892/12.0BELRS, disponível em http://www.dgsi.pt/.).

 

No entanto, alega a Requerida que se deve considerar ilidida a presunção de verdade da declaração de substituição entregue pelo Requerente em 08.11.2018, pois este não prestou os devidos esclarecimentos sobre a sua situação tributária (artigos 75.º, n.º 2, alínea b) e 59.º, n.º 4, da LGT), não tendo, nomeadamente, exercido o direito de audição sobre o projeto de indeferimento da reclamação graciosa, para o que foi notificado.

 

Crê-se, porém, que dificilmente poderia o Requerente colaborar com a administração tributária na comprovação de factos negativos (a não obtenção de rendimentos), embora em sede arbitral, este tenha, com aquele objetivo, requerido a produção de prova testemunhal quanto aos rendimentos da categoria A e junto ao PPA cópias dos contratos de arrendamento em vigor para os prédios urbanos de que é proprietário.

 

Não se afigurando possível, por desproporcionada, a realização da prova de facto negativo, conclui-se, na esteira da jurisprudência, que o ónus da prova dos factos sujeitos a imposto recai sobre a AT, na qualidade de titular do direito à receita tributária (artigos 74.º, n.º 1, da LGT e 342.º, n.º 1, do Código Civil), a esta competindo recolher prova suficiente de que “a dimensão do facto tributário é diferente da declarada” (cfr. Ac. TCAS antes citado).

 

No caso concreto dos autos, estando o Requerente legalmente autorizado à apresentação de uma declaração de substituição referente aos rendimentos de 2017 tendo por objeto a correção de erros que lhe são imputáveis, da qual resultaria imposto de montante inferior ao liquidado com base na declaração a substituir, e tendo a declaração de substituição sido entregue dentro do prazo da reclamação graciosa, foi esta, bem, convolada no dito procedimento (artigo 59.º, n.º 3, alínea b), II) e n.º 5, do CPPT).

Contudo, para que a reclamação graciosa pudesse ser indeferida, como foi, estava a AT obrigada a efetuar todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material (princípio da investigação ou do inquisitório, consagrado no artigo 58.º, da LGT), que lhe permitissem afirmar que os factos sobre que incidiu a liquidação ora impugnada se aproximavam o mais possível da realidade, devendo a mesma ser mantida na ordem jurídica.

 

Quanto aos rendimentos de trabalho dependente incluídos nas declarações a substituir, relativamente aos quais a entidade que, alegadamente, os teria pago, não entregou qualquer DMR para o ano em causa, as diligências efetuadas pela AT não foram suficientes para a demonstração cabal da existência de tais rendimentos, sendo certo que tinha ao seu dispor mecanismos adequados ao controlo “das realidades tributárias”, maxime, através da abertura de um procedimento de inspeção (artigos 63.º, da LGT e 2.º, do RCPITA).

 

Quanto aos rendimentos prediais, não basta à AT confirmar que o Requerente é proprietário dos imóveis incluídos nas declarações a substituir, para que indefira a reclamação graciosa, no segmento atinente a essa categoria de rendimentos.

 

Efetivamente, a conceção de rendimento-acréscimo presente no Código do IRS, mais consentânea com o princípio da capacidade contributiva, impede que a mera propriedade de bens imóveis constitua presunção de rendimento, pois de acordo com o ponto 11 do preâmbulo do referido Código, “incluem-se na base de incidência [da categoria F] apenas os rendimentos efetivamente percebidos dos prédios arrendados, tanto urbanos como rústicos, e não já, como acontecia no sistema de contribuição predial, o valor locativo ou a renda fundiária dos prédios não arrendados, pois se visa tributar apenas os rendimentos realmente auferidos.” (cfr.).

 

Relativamente à existência dos mesmos rendimentos prediais, vem a AT dizer na sua resposta (artigo 47.º), que, pelo menos em relação a um dos imóveis, o arrendatário identificado nas declarações a substituir tinha nele o seu domicílio fiscal no ano a que o imposto respeita.

Afigura-se, no entanto, que tal indicação não constitui prova suficiente do arrendamento do referido prédio, nem foram disponibilizados a este tribunal arbitral elementos que comprovadamente confirmem o alegado pela AT e a que esta poderia ter acesso, designadamente documentos relativos ao cadastro do arrendatário ou prova de que tenha inscrito na sua declaração de IRS do ano em causa, a dedução à coleta a que se refere o artigo 78.º-E do Código do IRS (dedução de encargos com imóveis), por referência às rendas pagas para fins de habitação permanente.

 

Por outro lado, não constando tal argumento da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, sempre a sua invocação em sede arbitral constituiria fundamentação sucessiva, e a jurisprudência é consensual no sentido de que a fundamentação deve “ser contextual ou contemporânea do ato, não relevando a fundamentação feita a posteriori.[1].

 

Não tendo a AT logrado provar a veracidade dos valores inscritos pelo Requerente na última das declarações a substituir, entregue em 10.09.2018, com base na qual foi emitida a liquidação de IRS n.º 2018..., conclui-se pela ilegalidade da mesma liquidação, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que a manteve.

 

Procede, deste modo, a pedido de pronúncia arbitral, por se justificar, nos termos expostos, a anulação da liquidação e da decisão da reclamação graciosa, que constituem o seu objeto.

 

 

IV. DECISÃO

Com base nos fundamentos de facto e de direito acima enunciados e, nos termos do artigo 2.º do RJAT, decide-se em, julgando inteiramente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral:

  1. Declarar a ilegalidade da liquidação de IRS n.º 2018..., referente ao ano de 2017, da quantia de € 52 798,92, determinando a sua anulação
  2. Declarar a ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2018..., que manteve a liquidação cuja anulação se determina.

 

 

VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 52 798,92, (cinquenta e dois mil, setecentos e noventa e oito euros e noventa e dois cêntimos).

 

 

CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 2 142,00 (dois mil, cento e quarenta e dois euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 13 de maio de 2020.

 

O Árbitro,

 

/Mariana Vargas/

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.

 

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.

 

 



[1] Neste sentido, cfr. entre outros, o Acórdão do STA, de 06.07.2016, processo 01436/15, disponível em http://www.dgsi.pt/.