Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 738/2020-T
Data da decisão: 2021-10-27  IRC  
Valor do pedido: € 48.154,44
Tema: IRC – Encargos com a Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético; Incompetência do tribunal arbitral; Não dedutibilidade.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I - Relatório

1. A... SGPS, S.A., anteriormente denominada por B... SGPS, S.A. titular do número único de pessoa coletiva n.º..., com sede na ... n.º ..., ...-... Lisboa (doravante designado por “Requerente”) apresentou, em 07-12-2020, um pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do artigo 2.º n.º 1, alínea a) e do artigo 10.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66- B/2012, de 31 de Dezembro (doravante abreviadamente designado “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

2. A Requerente pretende a pronúncia do Tribunal Arbitral com vista à:

- Declaração de ilegalidade e anulação parcial da autoliquidação de IRC, incluindo Derramas, referente ao exercício de 2014, no que respeita ao montante em excesso de € 170.464,26 da sua base tributável reflexa no montante de €20.709,69, à dedução em excesso e ao défice de reporte para os exercícios seguintes de prejuízos fiscais no montante de € 119.324,98;

- Restituição do montante de €20.709,69 indevidamente pago e a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios;

- Declaração de ilegalidade e anulação do indeferimento do recurso hierárquico, e bem assim do indeferimento da precedente reclamação graciosa apresentada contra aquele ato tributário.

3. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) (adiante designada por “Requerida”).

4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite, em 09-12-2020, e automaticamente notificado à AT.

5. Nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro do tribunal arbitral singular o Exmo. Senhor Dr. Olívio Mota Amador que, no prazo aplicável, comunicou a aceitação do encargo.

6. A Requerente foi notificada, em 29-01-2021, da designação do árbitro, não tendo manifestado vontade de recusar a designação, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

7. De acordo com o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral foi constituído em 03-05-2021.

8. A Requerida foi notificada através do despacho arbitral, de 04-05-2021, para os efeitos previstos no artigo 17.º da RJAT tendo solicitado, em 08-06-2021, a prorrogação do prazo para a apresentação da Resposta, o que foi deferido por despacho arbitral proferido no mesmo dia.

9. A Requerida remeteu, em 17-06-2019, o processo administrativo e apresentou a sua resposta, em 18-06-2019, defendendo-se por exceção e por impugnação.

10. Por despacho arbitral, de 20-06-2020, a Requerente foi notificada para se pronunciar, querendo, no prazo de 10 dias sobre a exceções suscitadas pela AT na Resposta.

11. A Requerente apresentou, em 29-06-2020, o contraditório relativo às exceções suscitadas pela AT na Resposta.

12. O Tribunal Arbitral por despacho, de 01-07-2021: (i) dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT ao abrigo dos princípios da autonomia na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT); (ii) notificou as partes para apresentação de alegações escritas facultativas, no prazo sucessivo de 15 dias; (iii) indicou o dia 15 de outubro para a prolação da decisão arbitral.

13. As alegações foram apresentadas pela Requerente, em 19-07-2021, e pela Requerida, em 15-09-2021.

14. A posição da Requerente, de harmonia com o disposto no pedido de constituição do Tribunal Arbitral e nas alegações, é, em síntese, a seguinte:

14.1. A Requerente procedeu à autoliquidação e, consequentemente, suportou o IRC e derramas do Grupo como se o seu lucro não tivesse sido afetado (reduzido) pelo encargo fiscal com a CESE da sociedade J... integrante do Grupo, mas considera que esta circunstância, isto é, o afastamento da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (a seguir denominada abreviadamente “CESE”) no cômputo do lucro tributável em IRC e derramas, está ferido de inconstitucionalidade material.

14.2. A omissão de dedução ao lucro tributável do encargo com a CESE em 2014, no montante de € 170.464,26, traduziu-se num empolamento do IRC e derramas nesse exercício ao qual corresponde um montante de imposto indevidamente liquidado (IRC e derramas) no valor de € 20.709,69, com a consequente dedução em excesso e o défice de reporte de prejuízos fiscais para os exercícios seguintes de € 119.324,98.

14.3. Nesta medida, a Requerente contestou a autoliquidação de IRC (e derramas) do Grupo respeitante ao período de tributação de 2014, primeiro através da apresentação de uma reclamação graciosa contra aquele mesmo ato, e, posteriormente, através da apresentação de recurso hierárquico da decisão de indeferimento da precedente reclamação graciosa.

14.4. A Requerente considera, mais ainda, que a própria CESE em si está ferida de inconstitucionalidade, mas no presente pedido de pronúncia arbitral não é a CESE em si, porém, aquilo que está em causa, mas antes o apuramento do lucro tributável em sede de IRC e derramas com exclusão da consideração do encargo fiscal com a CESE.

14.5. Ao vedar o direito à dedução desta contribuição enquanto gasto para efeitos de IRC, o legislador subverte o princípio da capacidade contributiva e da tributação pelo lucro real, inventando uma capacidade contributiva em IRC que não existe, e que não existe justamente por imposição do Estado que criou este encargo fiscal, a CESE, e o faz pagar pelo grupo de sujeitos passivos (entre os quais a J... que integra o Grupo fiscal do qual a Requerente é sociedade dominante) que entendeu segregar para efeitos de imposição da pesada tributação adicional que é esta CESE.

14.6. Devido à CESE um grupo particular de contribuintes é segregado dos restantes para lhe ser imposto pelo legislador um esforço fiscal adicional cuja justificação constitucional é duvidosa (salva pelo recurso a presunções em série), o encargo com esse esforço fiscal adicional tem de relevar para o cômputo do lucro em IRC (lucro que fica diminuído por esse encargo) por maioria de razão em relação aos tributos dedutíveis em IRC (impostos, contribuições financeiras verdadeiras e próprias, e taxas) que nenhum esforço adicional, em igualdade de circunstâncias, representam, a cargo de qualquer grupo de contribuintes em particular.

14.7. Donde ser inconstitucional a norma de indedutibilidade (desconsideração) da CESE no apuramento do lucro tributável do IRC e derramas (estadual e municipal), constante da alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC, e do artigo 12.º  do regime jurídico da CESE (a seguir denominado “Regime da CESE”), por violação arbitrária e discriminatória dos princípios do rendimento real e da capacidade contributiva, do princípio da igualdade, do princípio da proporcionalidade ou da justa medida, e da propriedade privada, previstos e consagrados (por ordem de numeração) nos artigos 2.º (Estado de direito), 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 62.º e 104.º, n.º 2, da Constituição.

14.8. Obrigar quem suporta o encargo com a CESE a pagar imposto sobre os lucros como se essa parcela subtraída ao seu resultado (a favor do Estado) se mantivesse sua, seu lucro ou rendimento, constitui discriminação arbitrária, e afastamento dos princípios constitucionais da tributação sem fundamento razoável.Com efeito, isso consubstancia tributação de lucro inexistente como se existisse, na medida do montante da CESE suportado, sem que qualquer motivo de simplificação, praticabilidade ou referente à prevenção da evasão fiscal possa ser invocado para o efeito.

14.9. Não permitir no âmbito da tributação do rendimento dedução de um custo inevitável, de um custo imposto por lei, com a consequente tributação de lucro inexistente, não real, de modo a que a tributação sobre o rendimento de que é credor o Estado e as autarquias (via derrama) se mantenha como se o custo real não existisse, constitui constatação de um facto e descrição de uma vontade.

14.10.  A Requerente e respetiva atividade não se subsumem no leque delimitado de situações previstas no artigo 5.º do regime jurídico da CESE, nem a AT demonstrou o contrário. Subsumem-se na situação prevista no artigo 2.º, alínea k), do Regime da CESE. Assim, não se está no caso concreto perante sujeito passivo do tipo previsto na norma proibitiva da repercussão da CESE (artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, do Regime da CESE): o tipo de sujeito passivo que cobra tarifas pelo uso das redes de transporte de eletricidade e gás, ou que é parte nos contratos de aprovisionamento (artigo 3.º, n.ºs 2 e 3 do Regime da CESE, nos termos definidos no Regulamento Tarifário do Sector do Gás Natural da ERSE). Donde que essa premissa (proibição de repercussão da CESE) de onde a AT retira a sua conclusão (suposta necessidade de proibir então a sua consideração no cômputo do lucro tributável), não se aplica a este caso concreto (nem a muitos outros a que se aplica a CESE).

14.11. Em conclusão, quando um imposto viola os princípios da igualdade, proporcionalidade, etc., viola esses princípios por referência também ao direito de propriedade privada (artigo 62.º da Constituição), que não pode ser retirada coercivamente e sem contrapartida individualizável com violação destes princípios constitucionais, seja via imposto seja outra qualquer via unilateral imposta pelo Estado.

15. Na Resposta a Requerida suscitou a exceção de incompetência do Tribunal Arbitral, exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo e conduz à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, com os seguintes fundamentos:

15.1. A Requerida suscita, primeiro, a incompetência material do Tribunal arbitral por estar em causa a inconstitucionalidade de norma atinente ao Regime da CESE com os fundamentos seguintes:

                (i) Embora a Requerente peticione, a final, a anulação parcial da autoliquidação do IRC, o fundamento da sua pretensão centra-se na inconstitucionalidade de norma atinente ao Regime da CESE. Sendo que, de acordo com a causa de pedir que sustenta o pedido arbitral, a Requerente não assaca nenhum vício à liquidação, mas sim ao próprio normativo que determina a desconsideração do gasto suportado com a CESE. Assim, o que a Requerente pretende é a desaplicação do normativo constante dos artigos 23.º, n.º 1, alínea q), do Código do IRC, e 12.º do Regime da CESE, em virtude da sua alegada inconstitucionalidade e não por qualquer ilegalidade ocorrida na sua aplicação aos factos concretos.

(ii) Com efeito, a Requerente não imputa aos procedimentos de recurso hierárquico e da precedente reclamação graciosa a existência de qualquer erro, de facto ou de direito, nem tão-pouco o faz em relação à própria autoliquidação, sustentando, apenas, o entendimento de que as normas que impedem a dedução do gasto com a CESE são ilegais e inconstitucionais. Donde resulta que, a AT não se pode recusar a aplicar normas com fundamento na sua inconstitucionalidade ou ilegalidade, pois está sujeita ao princípio da legalidade, conforme estatuído nos artigos 266.º n.º 2 da CRP, 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo (CPA) e 55.º da LGT.

 

(iii) Não cabendo à AT questionar a aplicação duma norma dimanada dum órgão de soberania, sendo que, encontrando-se vigente no ordenamento jurídico nacional o Regime da CESE, mais não restaria aos serviços da Requerida que aplicá-lo e promover as decisões no sentido nelas vertido, não podendo tal aplicação acarretar qualquer ilegalidade do ato de liquidação.

(iv) O mesmo sucede em relação à decisão a proferir na presente ação arbitral pelo Tribunal Arbitral, o qual não tem competência para a fiscalização abstrata da constitucionalidade. Pois tal competência é exclusivamente atribuída ao Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 280.º, n.º 2, alíneas a) e d) e 281.º, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 3 da CRP e artigos 6.º e 66.º da Lei do Tribunal Constitucional. Carecendo de competência para a fiscalização abstrata da constitucionalidade, não pode o Tribunal Arbitral, in casu, declarar a ilegalidade ou A inconstitucionalidade das normas legais que impõem o pagamento da CESE, pois tal pronúncia está-lhe vedada, excluída da sua jurisdição, de acordo com o disposto no artigo 2.º do RJAT conjugado com os artigos 2.º da Portaria 112-A/2011, de 22 de março e 4.º, n.º 2, al. a), do ETAF ex vi artigo 29.º do RJAT.

(v) De acordo com a causa de pedir que sustenta o pedido de pronúncia arbitral, dúvidas não restam, de que a pretensão da Requerente visa não a apreciação da legalidade dos procedimentos administrativo assim como do ato de liquidação, mas a apreciação da legalidade e inconstitucionalidade e consequente desaplicação de normas subjacentes ao ato de liquidação. Assim, na sequência de todo o exposto, conclui-se que o Tribunal Arbitral constituído é materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido objeto do litígio sub judice, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT e dos artigos 1.º e 2.º, alínea a) ambos da Portaria n.º 112-A/2011.

(vi) O que consubstancia uma excepção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.ºs 1 e 2 do CPC ex vi artigo 2.º alínea e) do CPPT e artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e) do RJAT, que obsta ao conhecimento do pedido e a absolvição da instância da AT, de acordo com o disposto nos artigos 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a) do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e) do RJAT. Sob pena de, se assim não se entender, tal interpretação ser não só ilegal, mas manifestamente inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como da legalidade (cf. artigos 3.º, n.º 2, e 266.º, n.º 2, ambos da CRP), como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, que vinculam o legislador e toda a atividade da AT.

15.2. A Requerida suscita, depois, a incompetência material do Tribunal por se tratar de uma contribuição financeira e não de um imposto nos seguintes termos:

(i) O Tribunal Constitucional pronunciou-se no acórdão n.º 7/2019 sobre a natureza jurídica da CESE, qualificando-a como contribuição financeira. É, pois, manifesta, a incompetência material do Tribunal para conhecer o litígio, atinente à CESE, a dirimir na presente ação arbitral.

(ii) Face ao exposto, nos termos conjugados do artigo 4.º, n.º 1, do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, o Tribunal é materialmente incompetente para apreciar o mérito da presente causa, nos termos do disposto no artigo 576.º, n.ºs 1 e 2 do CPC ex vi artigo 2.º alínea e) do CPPT e artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e) do RJAT. O que consubstancia uma excepção dilatória que obsta ao conhecimento do pedido e a absolvição da instância da AT, de acordo com o disposto nos artigos 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a) do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e) do RJAT.

16. Relativamente á exceção suscitada pela Requerida, a Requerente exerceu o contraditório, nos seguintes termos:

16.1. A Requerente reafirma que o objeto do pedido de pronúncia arbitral é uma liquidação de IRC e normas aplicáveis a essa liquidação de IRC (referente ao exercício de 2014), e não a CESE nem as normas que regem a liquidação da CESE porque:

(i) O objeto do pedido de pronúncia arbitral é claro, e encontra-se vertido nos artigos 14.ºa 16.º, e nas conclusões do pedido de pronúncia arbitral.  Não pretende a Requerente discutir a legalidade da liquidação da CESE, mas antes discutir a legalidade da liquidação de IRC referente ao exercício de 2014, e a legalidade das decisões administrativas que recusaram reconhecer as ilegalidades apontadas a essa liquidação de IRC.

(ii) Assim, improcede a invocação pela AT de que se estaria perante a apreciação de um ato de liquidação de uma contribuição financeira, a CESE, que por alegadamente não se lhe poder chamar imposto, não seria abrangida pela arbitragem tributária. O IRC (cuja liquidação está em causa) ninguém põe dúvida que é um imposto, logo os atos de liquidação de IRC são abrangidos pelo âmbito de competência da arbitragem tributária.

(iii) A jurisprudência arbitral é clara a considerar competente para apreciar incidentalmente, a propósito de um pedido de pronúncia arbitral sobre determinada liquidação de imposto, a aplicabilidade de um benefício fiscal (v.g. a sua dedutibilidade à base tributável do IRC ou à coleta do IRC) ou de qualquer outra realidade que possa interferir com a legalidade da liquidação do imposto em causa. Porque o que está em causa não é a legalidade da liquidação desse encargo, mas a legalidade da liquidação de IRC que envolve ou não (o Tribunal o decidirá supra partes) a consideração desse encargo.

(iv) Em causa neste processo arbitral está a legalidade de um ato de liquidação de IRC (não a legalidade de um ato de liquidação de CESE). A ilegalidade de um ato de liquidação de imposto pode reconduzir-se, precisamente, à desconsideração da dedução de um encargo legal, no caso o encargo legal relativo à CESE. Logo, os Tribunais Arbitrais têm evidentemente competência para conhecer de ilegalidades de atos de liquidação de IRC (ou outro imposto) que porventura, entre outras, se reconduzam à omissão de dedução de um encargo legal no âmbito do cômputo da sua (IRC) base tributável.

16.2. A Requerente afirma que é falso que esteja em causa nesta arbitragem a fiscalização abstrata da inconstitucionalidade.

(i) Efetivamente, não se pede que seja apreciada em abstrato inconstitucionalidade de norma alguma. Não se pede que seja ponderada desligadamente de um ato concreto de liquidação de imposto, a inconstitucionalidade da norma vertida na alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC.  O que se invoca é a ilegalidade de parte de um ato de liquidação de imposto (IRC), invocando-se como causa de pedir a invalidade de norma ordinária, no caso vertida na alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC, por inconstitucionalidade da mesma, isto é, por desconformidade da mesma com normas e princípios hierarquicamente superiores.

(ii) Em suma, a inconstitucionalidade é mera causa de pedir, não pedido. Pedido este que incide antes na declaração de ilegalidade de um concreto ato tributário. A inconstitucionalidade é suscitada no âmbito da aplicação de uma norma a um caso concreto (o

concreto ato de liquidação de IRC da requerente referente ao exercício de 2014), tão-somente

para efeitos da aplicação que foi feita da norma em causa nesse caso concreto.

17. A defesa da Requerida por impugnação, expressa na resposta e nas alegações, pode ser sintetizada no seguinte:

17.1. A questão a dirimir na presente ação arbitral prende-se com a não dedutibilidade fiscal do gasto suportado com a CESE, deixando de lado a apreciação da natureza jurídica da CESE ou dos pressupostos de sujeição à mesma, cuja qualificação como “contribuição financeira” foi sufragada na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 312/2015 e no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/2019.

17.2. A regra geral do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC enuncia o princípio da dedutibilidade de todos os custos que concorrem para o exercício à atividade empresarial social ou que se inscrevem na esfera de interesses do objeto social prosseguido. Todavia, também é forçoso reconhecer que a regra geral da dedutibilidade dos gastos e perdas comporta diversas exceções ditadas por uma multiplicidade de razões que o legislador dentro da sua margem de liberdade de conformação normativa considerou atendíveis e não violadoras do princípio de tributação pelo lucro real tal como tem sido interpretado pela doutrina e pela jurisprudência do Tribunal Constitucional. Entre as exceções à regra geral de dedutibilidade dos gastos e perdas, conta-se a prevista na alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC que mais não é do que a transposição para este Código, pelo artigo 3.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, do disposto no artigo 12.º do Regime da CESE.

17.3.  A Requerente acaba por assinalar que as inconstitucionalidades apontadas à norma do artigo 23.º-A do Código do IRC devem ser dirigidas igualmente ao artigo 12.º do Regime da CESE. Aliás, o sentido teleológico deste artigo 12.º só se apreende no quadro do Regime da CESE, mediante a conjugação do objeto definido no n.º 2 do artigo 1.º, da proibição de repercussão (art.º 5.º) e da consignação da receita cobrada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE) (art.º 11.º), donde resulta bem claro o propósito do legislador em estabelecer um “anel” de separação (ring fencing) desta contribuição financeira, ao circunscrever ao sector energético tanto o ónus tributário como os potenciais benefícios da afetação da receita, isolando-o do resto da economia.

17.4. Com efeito, os sujeitos passivos definidos no artigo 2.º do Regime da CESE são apenas operadores do sector que integram o setor energético nacional, a receita obtida é consignada ao FSSSE, e há uma interdição geral de repercussão direta ou indiretamente sobre o tarifário e para efeitos de determinação do respetivo custo de capital e do custo médio das quantidades adquiridas de gás natural contratadas.

17.5. Neste contexto, seria incoerente que fosse admitida a aceitação como gasto dedutível para a determinação do lucro tributável das importâncias suportadas pelos sujeitos passivos a título da CESE, porquanto, a dedução equivaleria a uma repercussão indireta da CESE sobre o Estado (e Autarquias, relativamente à derrama municipal), na exata medida em que a consequente diminuição ao lucro tributável redundaria em redução do IRC (e derramas) liquidado e pago. Por esta via, operar-se-ia o financiamento por parte do Estado (e das Autarquias) – na medida da redução da receita do IRC e derramas – aos operadores sujeitos ao pagamento da CESE, resultado que o legislador quis deixar salvaguardado nos artigos 5.º e 12.º do RCESE.

17.6. Donde resulta que os motivos que subjazem à exclusão da dedutibilidade dos gastos suportados com a CESE, prevista no artigo 12.º do Regime da CESE e na alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC, devem ser encontrados no desenho e objetivos da regulamentação desta contribuição financeira e não na regra geral de dedutibilidade dos gastos e perdas enunciada no n.º 1 do artigo 23.º do mesmo Código. Assim, o afastamento da dedução da CESE ao lucro tributável é uma decorrência natural e lógica da opção de política legislativa sobre o financiamento do sector energético através desta contribuição.

17.7. Aliás, da jurisprudência do Tribunal Constitucional pode extrair-se que o princípio da tributação pelo lucro real é compaginável com uma certa margem de liberdade do legislador que introduza alguns “desvios” à regra geral de dedutibilidade dos gastos suportados no âmbito da atividade empresarial, desde que as limitações ou exclusões tenham um fundamento racional e que não colida com o princípio da igualdade (vd., Acórdãos n.ºs 85/2010 e 139/2016).

17.8. A solução normativa de não dedutibilidade da CESE constitui uma decorrência natural da sua configuração como um tributo: (i) com um âmbito de incidência delimitado a um especial conjunto de sujeitos passivos – operadores económicos do sector elétrico e do gás natural; (ii) cuja receita é consignada ao FSSSE, i.e., não reverte para o financiamento das despesas públicas gerais do Estado, mas, antes, para o financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, e de medidas relacionadas com a eficiência energética, de que o setor económico beneficiará; (iii) em que foi assegurado que os seus efeitos não se repercutem no resto da economia, ou seja, “não a impondo à generalidade dos contribuintes, e procurando a acomodação da contribuição ao custo/benefício presumidos” (cf. Acórdão do TC n.º 7/2019).

17.9. A CESE materializa uma opção de política fiscal que exigiu ao legislador a elaboração de normas cuja aplicação e execução seja eficaz, i.e., que conduzam a resultados consonantes com os objetivos pretendidos sendo que, no caso, o propósito do legislador foi claramente o de afastar a imposição do encargo com a CESE à generalidade dos contribuintes, desiderato que só poderia ser efetivamente alcançado completando a proibição da repercussão com a não dedutibilidade do correspondente gasto ao lucro tributável do IRC.

17.10. Acresce que o Regime da CESE é unitário, no sentido de que os sujeitos passivos abrangidos pelo artigo 2.º estão vinculados ao cumprimento do mesmo quadro normativo, logo, não se vislumbra por que razão a alínea q), n.º 1 do artigo 23.º do Código do IRC e o artigo 12.º daquele Regime deveria ser interpretado de modo diferente para as entidades que aproveitam matérias-primas derivadas da sua atividade principal para a produção de energia, mesmo quando esta pode destinar-se a satisfazer as suas próprias necessidades de consumo. Ora, o que o artigo 13.º da CRP exige é que se estabeleça uma comparação entre as categorias de operadores abrangidos pela norma de incidência constante do artigo 2.º do Regime da CESE e não entre o universo de sujeitos passivos do IRC, pois aquele princípio exige apenas o tratamento igual de situações iguais entre si e um tratamento desigual de situações desiguais.

17.11. Quanto ao invocado principio da proporcionalidade previsto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, diga-se apenas que tal comando constitucional se aplica aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, designadamente aos “Direitos e deveres fundamentais” que integram a Parte I da CRP e onde não se inclui o princípio da tributação pelo lucro real previsto no n.º 2 do artigo 104.º, norma inserida na Parte II da CRP, onde se regula a matéria atinente à “Organização económica”. Sendo que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional supra exposta, tal princípio não constitui um direito subjetivo, como erroneamente entende a Requerente e não é absoluto, comportando exceções e limitações à dedutibilidade dos encargos para efeitos fiscais.

17.12. A Requerente pugna pela dedutibilidade de gastos suportados com a CESE, com fundamento na existência de uma indispensabilidade dos encargos incorridos face à atividade por si desenvolvida, inerente ao pagamento desta contribuição, defendendo a desaplicação do normativo constante dos artigos 23.º-A, n.º 1, alínea q), do Código do IRC, e 12.º do Regime da CESE, em virtude da sua alegada inconstitucionalidade. Ora, entende-se, por todo o exposto, como materialmente inconstitucional a interpretação normativa proposta pela Requerente, no sentido de se permitir a dedução de gastos que suportou enquanto sujeito passivo da CESE, em absoluta contradição com a previsão legal de não-dedutibilidade de tais gastos expressamente determinada pelo legislador no artigo 12.º do Regime da CESE e no artigo 23.º-A, n.º 1, alínea q) do Código do IRC, por violação do princípio da legalidade tributária.

17.13. A interpretação normativa da Requerente contraria frontalmente a regra de não-dedutibilidade de tais gastos expressamente determinada pelo legislador sendo, pois, materialmente inconstitucional, por violação do princípio do Estado de Direito democrático, da reserva da lei fiscal, e da separação de poderes, com a consequente subordinação dos tribunais à lei, os quais decorrem, nomeadamente, do disposto nos artigos 2.º, 103.º, 165.º e 202.º da CRP. Bem assim, reputa-se tal interpretação normativa de materialmente inconstitucional, também por violação do princípio da legalidade tributária, na vertente da generalidade e abstração da lei fiscal, decorrentes do princípio da legalidade e enquanto instrumentos da igualdade fiscal e, portanto, igualmente por violação do princípio da igualdade tributária, os quais decorrem, nomeadamente, do disposto no artigo 13.º e no artigo 103.º da CRP.

17.14. Por fim, reputa-se de materialmente inconstitucional a interpretação normativa da Requerente no sentido de que a alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC e o artigo 12.º daquele Regime da CESE deveriam ser interpretados de modo diferente para as entidades que aproveitam matérias-primas derivadas da sua atividade principal para a produção de energia, mesmo quando esta pode destinar-se a satisfazer as suas próprias necessidades de consumo, porquanto um tratamento desigual dos sujeitos passivos da CESE representaria o desrespeito do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, sem qualquer justificação aceitável, já que a comparação a estabelecer será entre as categorias de operadores abrangidos pela norma de incidência – artigo 2.º do Regime da CESE – e não entre o universo de sujeitos passivos do IRC.

17.15. Por tudo quanto supra se expôs, entende-se que os atos de liquidação não enfermam de qualquer vício que deva ditar a sua anulação, não havendo lugar, portanto, à condenação em juros indemnizatórios.

 

II.  Saneamento

18. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.ºs 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas, de acordo com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

O processo não enferma de nulidades.

 

19. A exceção de incompetência do Tribunal Arbitral, suscitada pela Requerida (vd., n.º 15 supra), será apreciada prioritariamente na parte IV infra.

 

Tudo visto, cumpre proferir decisão

 

III. Matéria de Facto

20. Factos dados como provados

 

A)           A Requerente, anteriormente denominada por B... SGPS, S.A., é a sociedade dominante de um grupo tributado pelo Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), previsto nos artigos 69.º a 71.º do Código do IRC, o qual integra as sociedades seguintes:

- C...–..., S.A;

- D..., Unipessoal, Lda.;

- E..., Unipessoal, Lda.;

- F..., Lda.;

- G..., Unipessoal, Lda.;

- H..., Lda.;

- I..., Unipessoal, Lda.;

- J..., S.A. (adiante,J... );

- K..., Unipessoal, Lda.;

-L…, Lda.; e

-M…, S.A.

(vd., Documentos n.ºs 1 e 2 anexos ao pedido de pronuncia arbitral).

B) A Requerente tem uma relação de domínio sobre a empresa J... S.A., NIPC ..., que se encontra enquadrada para efeitos de IRC, no regime geral de tributação, tendo como atividade principal o comércio por grosso de produtos petrolíferos (CAE 46711) (vd., fls. 25 do Processo Administrativo juntos aos presentes autos arbitrais).

C) A empresa J... S.A. apresentou, em 07-11-2014, a declaração Modelo 27 – Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético do ano de 2014, tendo procedido à autoliquidação da CESE no montante de € 170.464,26 (vd., Documento n.º 7 anexo ao pedido de pronuncia arbitral e fls. 25 do Processo Administrativo juntos aos presentes autos arbitrais).

D) O montante referido na alínea anterior foi integralmente pago, em 02-01-2015 (vd., Documento n.º 8 anexo ao pedido de pronuncia arbitral).

E) A empresa J... S.A., em 20-05-2016, na sua declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC inscreveu como encargo com a CESE o montante de € 280.000,00 (vd., campo 785 do quadro 07 da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC constante do documento n.º 5 anexo ao pedido de pronuncia arbitral).

 F)  A Requerente procedeu, em 27-05-2015, à apresentação da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC, agregada, referente ao exercício de 2014, (vd., Documento n.º 3   anexo ao pedido de pronuncia arbitral).

G) Na declaração, referida na alínea anterior, a Requerente apurou um lucro tributável de € 5.981.236,34 (vd., campo 382 do quadro 9 da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC) e deduziu prejuízos fiscais no montante de € 4.186.865,44 (vd., campo 309 do quadro 9 declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC), correspondente à não consideração, para efeitos fiscais, do encargo da CESE no montante de € 170.464,26, e tendo um total de imposto a reembolsar  no montante de € 9.005,51 (vd., campo 368 do quadro 10 da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC constante do documento n.º 3 anexo ao pedido de pronuncia arbitral).

 H) Na declaração Modelo 22 de IRC, identificada na alínea anterior, foi adicionado ao lucro tributável o montante de € 280.000,00 correspondente à estimativa da CESE na esfera da sociedade J... integrante do Grupo, por referência àquele período de tributação de 2014, conforme referido na alínea E) supra (vd., documentos n.ºs 3 e 6 anexos ao pedido de pronuncia arbitral).

 

I) A Requerente apresentou, em 30-05-2016,  declaração de substituição da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC, agregada, referente ao exercício de 2014, tendo refletido, na esfera do Grupo, uma dedução relativa ao benefício fiscal apurado no âmbito do Sistema de Incentivos Fiscais em Investigação e Desenvolvimento (“SIFIDE”), tendo um total de imposto a reembolsar  no montante de € 129.844,76 (vd., campo 368 do quadro 10 da declaração de substituição da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC constante do documento  n.º 4 anexo ao pedido de pronuncia arbitral).

J) A omissão de dedução ao lucro tributável do encargo com a CESE, em 2014, no montante de € 170.464,26, traduziu-se num empolamento do IRC e derramas nesse exercício no montante total de € 20.709,69 (vd., quadro discriminativo constante do n.º 25 do pedido de pronuncia arbitral e que se dá como reproduzido para todos os efeitos legais).

K) Em 26-05-2017, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra a referida autoliquidação de IRC agregada, respeitante ao exercício de 2014, que recebeu o n.º ...2017... (vd., documento n.º 9 anexo ao pedido de pronuncia arbitral).

L) O projeto de decisão, no procedimento identificado na alínea anterior, foi objeto de despacho a determinar o exercício do direito de audição prévia, nos termos do artigo 60.º da LGT, notificado à Requerente por ofício da Direção de Finanças de Lisboa –..., de 20-09-2018, tendo a Requerente exercido esse direito (vd., documento n.º 9 anexo ao pedido de pronuncia arbitral).

M) A reclamação graciosa, identificada na alínea K), foi indeferida por despacho proferido pelo Chefe de Divisão de Direção de Finanças, ao abrigo de Subdelegação de competências, de 08-11-2018, notificado à Requerente por ofício de 09-11-2018 (vd. Documento n.º 9 anexo ao pedido de pronuncia arbitral).

N) Em reação ao indeferimento da reclamação graciosa, a Requerente apresentou, em 12-12-2018, recurso hierárquico dirigido ao Ministro das Finanças, ao abrigo do disposto no artigo 80.º da LGT e no artigo 66.º do CPPT (vd., documento n.º 10 anexo ao pedido de pronuncia arbitral).

O)  O recurso hierárquico foi indeferido por despacho da Chefe de Divisão, da Divisão de Administração, da Direção de Serviços do IRC, em regime de substituição e atuando ao abrigo de subdelegação de competências, de 07-09-2020, e notificado, em 23-09-2021, à Requerente  (vd. documento n.º 10 anexo ao pedido de pronuncia arbitral).

 

21. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

22. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto cabe ao Tribunal o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada, não tendo que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de Direito suscitadas (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Nestes termos, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras ou, em qualquer caso, cuja apreciação seria inútil (vd., artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

IV. Matéria de Direito

23.  De acordo com o referido no n.º 19 supra iremos apreciar agora a excepção da incompetência do tribunal arbitral suscitada pela AT (vd., n.º 15. supra) e sobre o qual a Requerente já se pronunciou (vd., n.º 16. supra).

Cumpre apreciar

23.1. A Requerente formulou inequivocamente um pedido de pronúncia arbitral sobre a legalidade do ato de liquidação em IRC, relativamente ao exercício de 2014.

A Requerente pretender obter a desaplicação das normas constantes da alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC e do artigo 12.º do Regime da CESE, que impedem a dedução, para efeitos de determinação do lucro tributável, dos montantes pagos com a CESE.

 

 

Efetivamente, não está em causa, no pedido de pronuncia arbitral, a constitucionalidade da CESE, mas a constitucionalidade de normas do Código do IRC e do regime jurídico da CESE que regulam o apuramento do lucro tributável das pessoas coletivas e, que segundo a Requerente, violam os princípios do rendimento real e da capacidade contributiva, da igualdade, da proporcionalidade ou da justa medida e da propriedade privada.

Em consequência, o pedido de pronuncia arbitral não se dirige contra a exigência legal do pagamento da CESE, mas contra o ato de liquidação em IRC, na parte em que toma em consideração a não dedutibilidade para efeitos fiscais do encargo suportado com essa contribuição.

Os tribunais arbitrais são competentes para a apreciação de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de liquidação de tributos, nomeadamente os atos de liquidação em IRC, nos termos previstos no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

Relativamente às questões de inconstitucionalidade suscitadas nos autos pela Requerente, importa salientar que  o Tribunal Constitucional afirma expressamente “(…) os tribunais arbitrais (necessários e voluntários) são também “tribunais”, com o poder e dever de verificar a conformidade constitucional de normas aplicáveis no decurso de um processo judicial e de recusar a aplicação das que considerem inconstitucionais” (vd., n.º 4 do Acórdão n.º 181/2007, de 8 de março de 2007, proferido no Processo n.º 343/2005).

Acresce que, nos termos do artigo 204.º da CRP, o controlo difuso de constitucionalidade compete genericamente aos tribunais não distinguindo o legislador constitucional entre tribunais estaduais e tribunais arbitrais.

Além disso, no artigo 280.º, n.º 1, da CRP e no artigo 70.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82 de 15 de novembro), é previsto o recurso para o Tribunal Constitucional das decisões de quaisquer tribunais que recusem a aplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. 

23.2. Como já se demonstrou supra não está em causa a constitucionalidade ou a legalidade da CESE, por isso, não é relevante discutir se a referida contribuição é uma contribuição financeira ou é um imposto, para aferir se o Tribunal Arbitral tem ou não competência.

23.3. Atendendo ao exposto, o Tribunal Arbitral é competente para conhecer do pedido. Improcedem, portanto, os fundamentos da invocada incompetência do presente Tribunal Arbitral.

24. A questão decidenda nos presentes autos consiste em saber se as normas que estabelecem a não dedutibilidade do encargo com a CESE no apuramento do lucro tributável do IRC, constantes da alínea q) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC e do artigo 12.º do regime jurídico da CESE, em vigor à data dos factos, padecem de inconstitucionalidade material por violação dos princípios do rendimento real e da capacidade contributiva, do principio da igualdade, do principio da proporcionalidade ou da justa medida e da propriedade privada.

Cumpre apreciar.

                24.1. A CESE foi criada pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2014 e que entrou em vigor, segundo o disposto no artigo 260.º da mesma Lei, no dia 1 de janeiro de 2014.

A CESE constitui uma contribuição extraordinária que tem “por objectivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do sector energético”, nos termos do artigo 1.º, n.º 2, do Regime da CESE.

A CESE incide sobre as pessoas singulares ou coletivas que integram o sector energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2014, se encontrassem nalguma das situações previstas no artigo 2.º, n.º 2, do regime da CESE.

A receita obtida com a cobrança da CESE é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético, criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, com o objetivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do sector energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida e ou pressão tarifárias e do financiamento de políticas do sector energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional, de acordo com o disposto no artigo 11.º do Regime da CESE. 

24.2. O regime jurídico da CESE estabelece no artigo 12.º, com a epígrafe “Não dedutibilidade”, o seguinte:

“A contribuição extraordinária sobre o setor energético não é considerada um gasto dedutível para efeitos de aplicação do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.”

24.3. O artigo 12.º, citado no n.º anterior, declarou a não dedutibilidade da CESE no âmbito do IRC. Essa regra foi transposta, através do artigo 3.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, para o Código do IRC com o aditamento do artigo 23.º-A nesse diploma.  Assim, o artigo 23.º-A do Código do IRC, sob a epígrafe “Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais”, na parte que interessa considerar para os presentes autos, determina o seguinte:

“1 - Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação:

(…)

q) A contribuição extraordinária sobre o setor energético;

(…).”

Esta norma insere-se nas disposições gerais relativas à determinação do lucro tributável das pessoas coletivas e concretiza especificamente quais os encargos que não são dedutíveis para efeitos fiscais.

24.4. Do enquadramento legal exposto resulta que o legislador determinou expressamente a não dedutibilidade dos gastos com a CESE para efeitos da determinação do lucro tributável. Importa agora apurar se essa determinação legal traduz uma discriminação arbitrária em IRC dos contribuintes sujeito à CESE e viola os princípios constitucionais alegados pela Requerente. Sobre esta questão o presente Tribunal Arbitral subscreve a posição expressa no Acórdão arbitral proferido no processo n.º 405/2019-T, de 22 de fevereiro de 2020, nos seguintes termos: 

“A tributação segundo o rendimento real corresponde a um quadro típico ou caracterizador do sistema fiscal que não exclui que possa encontrar-se sujeito a desvios que se mostrem justificados no plano constitucional, e que não pode deixar de atender aos princípios de praticabilidade e de operacionalidade do sistema (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 162/2004, de 17 de Março de 2004, Processo n.º 698/2003).

O lucro tributável para efeitos de IRC assenta, por isso, no resultado contabilístico, ao qual o legislador tributário introduz as correcções extracontabilísticas necessárias para tomar em consideração os objectivos e condicionalismo próprios do Direito Fiscal, e, como o Tribunal Constitucional tem reconhecido, o rendimento fiscalmente relevante não constitui uma realidade de valor materialmente apreensível, mas antes um conceito normativamente modelado e contabilisticamente mensurável (cfr. atrás referido Acórdão n.º 162/2004 e, na doutrina, SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, pág. 301).

Por outro lado, esse princípio surge associado ao princípio da capacidade contributiva, como corolário do princípio da igualdade.

O reconhecimento do princípio da capacidade contributiva como critério destinado a aferir da inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo legislador fiscal, tem conduzido à ideia, expressa por exemplo no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97 (de 29 de Abril de 1997, Processo nº 63/96), de que a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará “a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo”.

No entanto, o Tribunal Constitucional não deixa de aceitar a proibição do arbítrio, enquanto critério de controlo negativo da igualdade tributária, como um elemento adjuvante na verificação da validade constitucional das soluções normativas de âmbito fiscal, mormente quando estas sejam ditadas por considerações de política legislativa relacionadas com a racionalização do sistema.

Neste contexto, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem excepção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 306/2010, de 14 de Julho de 2010, Processo n.º 107/2010 e n.º 695/2014, de 15 de Outubro de 2014, Processo n.º 1265/2013).

Revertendo à situação do caso, cabe fazer notar que a CESE foi instituída como uma contribuição extraordinária, incidente sobre as pessoas e entidades que integram o sector energético nacional, tendo por objetivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor, através da constituição de um fundo, entretanto criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril (FSSSE) e ao qual se encontram consignadas as receitas.

O Tribunal Constitucional tem defendido a qualificação da CESE como contribuição financeira e tem defendido que não contraria a Lei Fundamental (e.g., mais recentemente o Acórdão n.º 7/2019, de 8 de Janeiro de 2019, no âmbito do Processo n.º 141/16). Também a doutrina tem assumido a CESE como tendo natureza jurídica de contribuição financeira, com um âmbito de incidência delimitado a um grupo definido de destinatários, caracterizando-se como uma contribuição com uma finalidade extrafiscal que tem também em vista modelar e orientar as condutas dos sujeitos passivos (sobre esta modalidade de contribuições, e.g., SUZANA TAVARES DA SILVA, As Taxas e a Coerência do Sistema Tributário, Coimbra, 2008, págs. 48-53).

Por outro lado, estando em causa uma limitação à dedução de encargos, como excepção à regra geral da dedutibilidade dos gastos, ela poderá encontrar-se enquadrada em diversos critérios legislativos que vão desde a mera técnica de quantificação do imposto - como sucede quando se exclui da dedução a colecta de IRC –, a medidas de carácter sancionatório - quando se visa evitar a imputação ao resultado do exercício dos gastos decorrentes da prática de infracções –, ou a medidas de combate à fraude e evasão fiscais - quando se desconsideram despesas não documentadas ou gastos que podem corresponder a uma forma encapotada de pagamento de remunerações (SALDANHA SANCHES, Os limites do planeamento fiscal, Coimbra, 2006, págs. 393-394).”

Estabelece, ainda, a douta Decisão Arbitral:

“ Relativamente à CESE nada permite concluir que o legislador não tivesse pretendido seguir o primeiro dos critérios legislativos indicados, já aplicável à colecta de IRC, tendo em vista evitar que o gasto efectivo com o pagamento da contribuição pudesse ser repercutido em desfavor do Estado, através da dedução para efeitos do apuramento do lucro tributável. De facto, como se deixou exposto, a CESE tem uma finalidade extrafiscal, assumindo uma função moderadora dos comportamentos das entidades ligadas ao sector.

Em todo este contexto, não pode deixar de reconhecer-se que subsiste uma justificação plausível para a não dedutibilidade do encargo, como meio de evitar a redução do impacto financeiro que a medida legislativa pretende alcançar.

E não pode ignorar-se que o legislador adoptou idêntico tratamento legislativo em relação à contribuição para o sector bancário, que igualmente teve em vista financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector bancário, e à contribuição sobre a indústria farmacêutica, que tem por objectivo garantir sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde na vertente dos gastos com medicamentos (artigo 23.º-A, n.º 1, alíneas p) e s), estas aditadas pela Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro).

A Requerente invoca ainda a violação do princípio da igualdade por violação da proibição do arbítrio por não subsistir uma razão bastante para restringir a regra geral de dedutibilidade de gastos em relação à CESE.

Como se viu, o princípio da igualdade tributária é hoje encarado, não apenas num concepção puramente negativa, mas também de forma positiva que surge concretizada através do princípio da capacidade contributiva. Mas mesmo numa perspectiva estrita do princípio da igualdade como proibição do arbítrio, como também se deixou exposto, a restrição estabelecida em relação à CESE encontra-se enquadrada num dos critérios gerais que justificam a limitação à regra geral de dedutibilidade dos gastos, o que não pode deixar de entender-se como um fundamento bastante para um tratamento distintivo.”

24.5. Em suma, a jurisprudência que emana da douta Decisão Arbitral, transcrita no n.º anterior, tem total aplicação in casu, devendo ser proferida na presente ação arbitral igual decisão de improcedência do pedido de pronuncia arbitral, com a consequente manutenção na ordem jurídica da liquidação aqui sindicada.

25. Face à improcedência do pedido de pronuncia arbitral, os pedidos de reembolso do montante de imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios, sobre esse mesmo valor, têm necessariamente de improceder, por carecerem de qualquer fundamento de facto e de direito.

V. Decisão

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)            Julgar totalmente improcedente a excepção da incompetência material do Tribunal Arbitral;

 

b)           Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, absolver a Requerida de todos os pedidos;

 

c)            Condenar a Requerente no pagamento das custas do presente processo no montante abaixo indicado.

VI - Valor do Processo

Atendendo ao disposto nos artigos 32.º do CPTA, 306.º, n.º 2, do Código do Processo Civil e 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT) fixa-se o valor do processo em € 48.154,44 (quarenta e oito mil cento e cinquenta e quatro euros e quarenta e quatro cêntimos).

VII - Custas

O montante das custas é fixado em € 2.142,00 (dois mil cento e quarenta e dois euros) a cargo da Requerente, nos termos da Tabela I do RCPAT, em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, bem como do disposto no artigo 4.º, n.º 4, do RCPAT.

Notifique-se.

 

Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 27 de outubro de 2021

 

O Árbitro

(Olívio Mota Amador)