Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 735/2020-T
Data da decisão: 2021-07-27  IRS  
Valor do pedido: € 183.750,35
Tema: IRS – Divergência entre o valor declarado de venda de participações sociais e o valor real da sua transmissão – Artigo 52º do Código do IRS.
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SUMÁRIO:

a)            Uma interpretação literal e teleologicamente adequada do artigo 52.º do Código do IRS exige que se comece por dar cumprimento ao estatuído no seu n.º 1, recaindo sobre a Requerida o ónus de apresentar as razões objetivas que possam “fundamentar a divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão”. Somente depois de se dar como preenchido este requisito, se permite ao intérprete que se passe à segunda parte do preceito (n.ºs 2 e 3), onde se consagra uma presunção, objetiva, instrumental, de preço de venda para ações, outros valores mobiliários e quotas.

b)           A AT não tem base jurídica para fundamentar a existência de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão ao ter tomado como critério, além do mais único, aquele que, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 52.º do Código do IRS, serve de base à presunção do valor de realização. Ou seja, ao adotar como critério "o último balanço" da empresa, o único elemento a considerar na fixação do valor de alienação num contexto em que existem suspeitas de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, a Requerida subverte a interpretação do preceito.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Fernanda Maçãs (árbitro presidente), Fernando Marques Simões (árbitro vogal) e Rui Ferreira Rodrigues (árbitro vogal), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem este Tribunal Arbitral Coletivo, acordam no seguinte:

 

I. RELATÓRIO:

 

1.            A... (doravante designada por Requerente), contribuinte fiscal n.º..., com domicílio na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Santa Catarina da Serra, em nome próprio e, bem assim, na qualidade de cabeça-de-casal da herança de B..., contribuinte n.º..., com quem foi casada no regime da comunhão geral de bens, apresentou, em 6 de Dezembro de 2020, pedido de constituição de tribunal arbitral, invocando o disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 2.º e nos nºs 1 e 2 do art.º 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, de ora em diante apenas designado por RJAT) e ainda o disposto nos art.ºs 1º e 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

2.            Pretendia a Requerente a declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2020..., reportado ao ano de 2016, no valor de 164.078,88€, bem como do ato de liquidação de Juros Compensatórios n.º 2020..., no valor de 19.671,47€, num total sindicado que se cifrava em 183.750,35€.

3.            No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro.

4.            Nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o árbitro presidente e os árbitros vogais que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

5.            Em 29.1.2021, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, por aplicação conjugada da alínea a) e b) do n.º 1 do art.º 11º do RJAT e dos art.º 6º e 7º do Código Deontológico.

6.            Em conformidade com o estatuído na alínea c) do n.º 1 do art.º 11º do RJAT, na redacção que lhe foi introduzida pelo art.º 228.º da lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 3.5.2021 para apreciar e decidir o objecto do processo.

7.            Em 7.6.2021, a Requerida apresentou Resposta defendendo-se por impugnação, refutando os vícios imputados pela Requerente às liquidações de IRS e JC de 2016 colocadas em crise.

8.            Por despacho de 9.6.2021, por não haver sido suscitada matéria de exceção e por não haver prova adicional a produzir, foi dispensada a reunião prevista no art.º 18º do RJAT; estando em causa matéria de direito claramente exposta e desenvolvida no Pedido de Pronúncia Arbitral e na Resposta, foi dispensada a produção de alegações escritas; foi fixado o dia 3 de Novembro de 2021 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral.   

9.            A pretensão objeto do pedido de pronúncia arbitral consiste na declaração de “(...) ilegalidade do acto de liquidação oficiosa adicional de IRS e do acto de liquidação dos correspondentes juros compensatórios (...), respeitantes ao ano de 2016, nos montantes de €164.078,88 e de €19.671,47, respectivamente, num total de imposto e juros a recuperar de €183.750,35, com a sua consequente anulação, com todas as consequências legais, designadamente o reembolso à Requerente deste montante de imposto juros compensatórios pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal contados desde 21.9.2020 quanto a € 99.000,00, e desde 23.9.2020 quanto aos restantes € 84 750,35 até integral reembolso.”

10.          Fundamentando o seu pedido, a Requerente alegou, em síntese, o seguinte:

 

I.A) BREVE SÍNTESE DAS ALEGAÇÕES DA REQUERENTE NO PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL:

 

10.1       No que diz respeito à aplicação do disposto no artigo 52º do CIRS, a Requerente deixe de explicitar um excerto do que é dito por Paula Rosado Pereira in “Manuel de IRS”, Almedina, 2018, pág. 214 e que aqui igualmente se transcreve: “(...) quando a AT considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, tem a faculdade de proceder à respetiva determinação (artigo 52.º, n.º 1).” (...) “A este propósito, refiram-se ainda os artigos 58.º e 63.º da LGT. O primeiro desses artigos respeita ao princípio do inquisitório no contexto do procedimento tributário, referindo que a AT deve realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material. Por seu turno, o artigo 63.º, n.º 1 dispõe que a AT pode, nos termos da lei, desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária do contribuinte.”

10.2       E a propósito da aplicação de norma de idêntica natureza à acima referida prevista no art.º 52º do CIRS, transcreve a Requerente parte do Acórdão de 8.10.2020 do TCAS, tirado no Processo n.º 248/04.9BESNT.

10.3       Retirando a asserção de que a AT não actuou “(...) de acordo com os princípios a que se encontra adstrita nos termos da lei (...), na medida em que extravasou o disposto no artigo 52.º do Código do IRS e aplicou critérios de valorimetria de raiz económica para o efeito da determinação do valor “real” de transmissão das ações em causa, sem qualquer suporte que lhe permite sustentar que os valores efetivamente recebidos na transmissão teriam sido diferentes dos contabilizados.”

10.4       No ponto 2.2 do PPA discorre a Requerente sobre a determinação do valor de realização no âmbito do apuramento de mais-valia mobiliária nos termos do Código do IRS, explicitando que na determinação do ganho sujeito a tributação se considera valor de realização, genericamente, o valor da respectiva contraprestação, em conformidade com o estatuído na alínea f) do n.º 1 do art.º 44º do CIRS, aludindo ainda à possibilidade de correção desse valor prevista no art.º 52.º do mesmo código.

10.5       Discorre ainda sobre a forma como o instituto previsto naquela norma se afasta do regime de preços de transferência previsto no art.º 63.º e seguintes do CIRC.

10.6       A Requerente sustenta estarmos perante presunções explícitas que são elidíveis.

10.7       Defende que a presunção consagrada na alínea b) do n.º 2 do art.º 52.º do Código IRS não opera automaticamente, ou seja, para que a AT pudesse accionar tal presunção era necessário que considerasse fundadamente a possibilidade de uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão.

10.8       Concluindo a Requerente no sentido de que a AT estava impedida de aplicar métodos de avaliação económica das participações sociais, extravasando a remissão legal para o último balanço da sociedade, por tal consubstanciar atuação ilegal, em violação do disposto na alínea b), do n.º 2, do art.º 52º do Código do IRS, e, em última análise, do princípio constitucional da capacidade contributiva (art.º 104.º da CRP).

10.9       A Requerente, da letra do n.º 1 do art.º 52º do CIRS, que em parte transcreve, retira que a AT só depois de conseguir assentar na demonstração da existência da previsão normativa prevista na parte da norma transcrita, isto é, só depois de a AT conseguir estabelecer que há indícios objetivos do que o valor declarado diverge do real, poderá então passar à fase da aplicação da estatuição normativa prevista na alínea b) do n.º 2 do art.º 52º do CIRS.

10.10     Defendendo a Requerente que não pode a AT passar por cima da previsão normativa e dispensar-se de exibir indícios sérios de uma divergência entre o valor declarado e o valor real, “(...) saltando diretamente para a alteração do valor declarado de acordo com o critério de alteração densificado na estatuição normativa, para aí chegada (ao finalmente, à consequência, à estatuição) sustentar simplesmente (em retrospectiva) que o valor assim operado de acordo com estatuição normativa seria a prova da verificação da antecedente e independente (e condição sine que non) previsão normativa “divergência entre valor declarado e valor real.””

10.11     Apoiando-se no já citado Acórdão de 8.10.2020 do TCAS, tirado no Processo n.º 248/04.9BESNT, bem como no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11 de Setembro de 2013, Processo n.º 1115/12, diz a Requerente que a AT “(...) nada tentou apurar em sede de “elementos concretos da relação jurídica estabelecida entre o comprador o do vendedor, se necessário através da recolha dos seus depoimentos e de terceiros, apontando divergências e/ou incongruências, analisando contratos-promessa que eventualmente existissem, levantando o sigilo bancário.”

10.12     Extraindo daqui que as liquidações de IRS e JC controvertidas são ilegais, donde, deve ser julgado procedente o pedido de pronuncia arbitral sub judice, por violação do art.º 52º, n.º 1, primeira parte e n.º 2, alínea b), do Código do IRS, na redacção aplicável em 2016, e por violação, ainda, do princípio da capacidade contributiva, da legalidade, do princípio da imparcialidade, do princípio do inquisitório, e do princípio da verdade material.

10.13     A Requerente peticiona ainda, em caso de procedência do presente pedido de pronúncia arbitral, a restituição do IRS e JC indevidamente pagos e bem assim como, o pagamento de juros indemnizatórios em conformidade com o disposto no art.º 43º da LGT, por pagamento indevido de prestação tributária, demonstrado que está que houve erro imputável aos serviços da AT, contados a data dos respectivos pagamentos, ou seja, desde 21.9.2020, quanto a 99.000,00 € e desde 23.9.2020, quanto aos restantes 84.750,35 €, até ao integral reembolso.   

 

I.B) BREVE SÍNTESE DAS ALEGAÇÕES DA REQUERIDA NA RESPOSTA:

 

10.14     A Requerida nega a violação do princípio do inquisitório e também nega a violação de dever de imparcialidade, dizendo que, bem ao invés do invocado pela Requerente, foi rigorosíssima a subordinação à lei no caso concreto, cumprindo-se igualmente o princípio da legalidade, tal como resulta do RIT, para cujo conteúdo remete.

10.15     Defende a Requerida que os SIT se limitaram a aplicar, fundadamente, a lei ao caso concreto, não subsistindo também, o alegado, mas todavia inexistente, vício de violação de lei por errada apreciação dos pressupostos de facto e de direito.

10.16     Sustenta ainda a Requerida que a atuação dos SIT foi absolutamente adequada, necessária e proporcional à finalidade que se lograva obter, advogando a ausência de violação também do princípio da proporcionalidade.

10.17     Volvendo a análise para a suposta violação do princípio do inquisitório diz a Requerida que “(...) as diligências instrutórias exigíveis em nome do princípio do inquisitório previsto no art.º 58.º da LGT respeitam unicamente a factos concretos e individualizados (rectius a enunciados factuais, a afirmações sobre a realidade fáctica), não abrangendo, pois, conceitos, proposições normativas ou juízos de feição valorativa ou conclusiva.”

10.18     Aduz a Requerida que se exigia “(...) a específica identificação pela impetrante das pessoas ou entidades junto das quais se deveriam realizar as diligências, bem como das especificas diligências probatórias a concretizar junto de outros que não a própria Requerente.”

10.19     O que, no entendimento da Requerida, a Requerente não logrou fazer.

10.20     Retirando daí que “(...) a alegação pela Requerente da omissão de diligências concretas em violação do inquisitório padece paradoxalmente de omissão da especificação das diligências instrutórias alegadamente omitidas.”

10.21     Quanto à determinação do valor de realização no âmbito do apuramento da mais-valia aqui em causa e ainda quanto à possibilidade de correção desse valor em conformidade com o disposto no art.º 52º do CIRS (segunda linha argumentativa produzida pela Requerente e identificada acima pela Requerida) e sustentando posição diametralmente oposta à defendida pela Requerente, diz a AT que do RIT consta a factualidade que permitiu “(...) a apreensão de forma clara, suficiente e congruente das razões de facto e de direito que estiveram na base da emissão do ato de liquidação ora sindicado.”

10.22     Inferindo do conteúdo do RIT as seguintes conclusões: “[1.] A situação descrita no RIT e que alicerçou as liquidações impugnadas é subsumível ao disposto no art.º 52.º do CIRS; 2. A fundada divergência aí referida encontra-se fundamentada; 3. O valor global das alienações em causa de € 619.345,98, tem assento legal e documental pois foi "apurado com base no último balanço"; 4. Tendo-se respeitado o valor da alienação apurado de acordo com os critérios legais respeitou-se o princípio da capacidade contributiva”, apoiando-se no Acórdão do TCA Norte, de 21 de Maio de 2020, Processo n.º 00357/18.7BEVIS.

10.23     Advogando ainda a Requerida que existem evidências insofismáveis de que o valor declarado da transmissão diverge do seu valor real, transcrevendo abundantemente o RIT, mas que, em síntese, se podem reconduzir ao seguinte: i) a circunstância da Requerente haver considerado como valor de realização das respectivas participações sociais um valor semelhante ao que tinha investido na sociedade 11 anos antes; ii) da análise das demonstrações financeiras da Requerente e, nomeadamente, face ao balanço, poder inferir-se a cifra do capital social (de 575.000,00 €), mas também a expressão material do capital próprio (de 12.386.919,60 €); e finalmente iii) o facto da Requerente evidenciar capacidade financeira relevante, patenteada pela sociedade ao longo de 3 exercícios (2013 a 2015) e materializada na determinação do EBIDTA muito superior ao Valor de Realização levado ao Anexo G da Declaração Modelo 3 do IRS.

10.24     E partindo daqui aduz a Requerida no sentido de que foi utilizada a prerrogativa prevista no art.º 52º do CIRS, porquanto ficaram demonstradas fundadas dúvidas de que o valor declarado não se coaduna com o valor real das participações sociais transmitidas que não foram afastadas pela Requerente nem em sede inspetiva, nem mesmo no âmbito da presente lide.

10.25     Finalmente, quanto à terceira linha argumentativa produzida pela Requerente e identificada acima pela Requerida, esta repristina os fundamentos sintetizados em i), ii) e iii) aduzindo que tal factualidade “(...) evidencia à saciedade a possibilidade de o valor real da transmissão não corresponder ao valor considerado, porquanto as ações tinham um valor muito superior ao seu valor declarado, mostrando-se, pois, fundado o entendimento da AT de que ocorria a possível divergência passível de ser corrigida à luz do art.º 52.º do CIRS.”

10.26     Afirmando ainda que à Requerente não estava vedada “(...) a possibilidade de demonstrar, por um lado, não terem aderência à realidade os factos em que a AT se baseou para concluir que "pode existir divergência entre o valor declarado e o valor real" ou, por outro lado, que o valor considerado para a transmissão das ações correspondia ao valor efetivo da operação.”

10.27     E não o fazendo, sustenta a Requerida, subsiste a factualidade verificada pela AT, devendo manter-se a liquidação sindicada.

10.28     Retirando a Requerida a asserção de que não se vislumbra que possa ter havido violação do disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 52º do CIRS, e, tão pouco, do princípio constitucional da capacidade contributiva.

 

 

II. SANEADOR

 

11.          O tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer da legalidade do acto de liquidação de IRS e JC submetido a julgamento, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1 alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

12.          As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT e 1º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

13.          Não existem exceções a apreciar. O processo não enferma de nulidades, pelo que se impõe, agora, conhecer do mérito do pedido.

 

III. FUNDAMENTAÇÃO

 

III.A) FACTOS QUE SE CONSIDERAM PROVADOS:

14.          Em 25.4.2016, a Requerente e o seu marido (entretanto falecido – Cfr. Doc. n.º 1 e 2 junto ao PPA) alienaram, pelo preço de 28.750,00 €, 28.750 acções com o valor nominal de € 1,00 (um euro) de que eram titulares, representativas de 5% do capital social da sociedade C..., SGPS, S.A. (cfr. Contrato de Compra e Venda de Acções junto ao PPA como Doc. n.º 7 e Anexo 2 do RIT que se encontra a fls. 19 de 109 do Processo Administrativo);

15.          Em 26.05.2017, a Requerente e o seu marido submeteram, através do Portal das Finanças, a respectiva declaração Modelo 3 de IRS (ID...), respeitante aos rendimentos obtidos no ano de 2016 (cfr. Doc. n.º 11 junto ao PPA);

16.          Nessa declaração a Requerente e o seu marido preencheram o Anexo G (“Mais-valias e outros incrementos patrimoniais”), onde, no seu Quadro 9, declararam que procederam à alienação onerosa de partes sociais e outros valores mobiliários, inscrevendo ali a entidade emitente das respectivas participações sociais transmitidas, identificando a C..., SGPS, S.A. com o seu NIPC (...); indicando ainda como valor de aquisição das participações sociais o montante de 28.750,00 € e como valor de realização o mesmo valor de 28.750,00 €; referindo ainda ali as datas de aquisição e de alienação das respetivas participações sociais. (Cfr. Quadro 9 do referido Anexo G, a fls. 6 do Doc. n.º 11 junto ao PPA e fls. 17 de 109 do Processo Administrativo);

17.          Na sequência do cumprimento daquela obrigação declarativa foi emitida a correspondente liquidação de IRS n.º 2017... (Cfr. Doc. n.º 12 junto ao PPA), onde se apurou imposto a pagar que se elevava a 3.440,35 €, não tendo sido apurado imposto decorrente da transmissão das participações sociais aqui em causa na medida em que foi apurada em sede de categoria G uma menos-valia que se cifrou em 4.600,00 €, tal como se pode intuir do artigo 9. da Resposta da Requerida e de fls. 5 do RIT – fls. 62 de 109 do processo Administrativo);   

18.          Não obstante, dirigido à Requerente dealbou procedimento inspetivo externo, de âmbito parcial, abrangendo o IRS, com referência ao período de tributação de 2016, credenciado pela Ordem de Serviço n.º OI2020..., datada de 21 de Janeiro de 2020 (Cfr. Doc. n.º 5 junto ao PPA e pág. 4 do Relatório de Inspeção Tributária junto ao PPA como Doc. n.º 6 e ainda fls. 10 de 109 do Processo Administrativo);

19.          O procedimento inspetivo teve por fito: “(...) analisar os rendimentos incluídos na Declaração Modelo 3 de IRS, relativos a transmissão de partes sociais (...) e a eventual omissão de mais-valias referentes a alienação de valores mobiliários, por parte do sujeito passivo: A..., NIF ... e do seu cônjuge.” (Cfr. ponto II.2, constante da pág. 4, do RIT junto ao PPA como Doc. n.º 6 e ainda artigo 7. da Resposta da AT e fls. 10 de 109 do Processo Administrativo);

20.          Através do Oficio n.º..., datado de 7.5.2020, a AT notificou a Requerente do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária, conferindo-lhe o prazo de 15 dias para, querendo, exercer o direito de audição sobre aquele projecto de decisão, nos termos e em conformidade com o disposto no art.º 60.º da LGT e do art.º 60.º do RCPITA. (Cfr. fls. 6 de 109 do Processo Administrativo);

21.          A Requerente não exerceu o aludido direito à participação. (Cfr. fls. 67 de 109 do Processo Administrativo);

22.          Tal projeto de decisão foi convertido em definitivo e a Requerente foi notificada do Relatório de Inspeção Tributária em conformidade com o disposto no art.º 62.º do RCPITA, através do Ofício n.º SPEAI-..., datado de 12.6.2020 (Cfr. Doc. n.º 6 junto ao PPA e fls. 57 de 109 do Processo Administrativo);

23.          Em resumo, a AT empreendeu as seguintes correções (cfr. ponto I do RIT, a fls. 4, junto ao PPA como Doc. n.º 6 e fls. 61 de 109 do Processo Administrativo):

“I -  Conclusões da ação inspetiva

Efetuam-se correções meramente aritméticas ao rendimento líquido da categoria G do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS) referente a partes sociais, no ano de 2016, no seguinte montante:

Rendimento da Categoria G declarado: -4.600,00 €

Correção:            591.745,98 €

Rendimento da Categoria G após correção:         587.145,98 €

 

Ao rendimento da Categoria G do sujeito passivo é aplicada a taxa especial, prevista no art.º 72.º n.º 1 alínea c) do C digo do IRS (CIRS), dado que o sujeito passivo optou pelo não englobamento destes rendimentos, no quadro 15 do anexo G.

 

O valor de IRS em falta apurado é o seguinte:

 Mais-valias corrigidas:  587.145,98 €

Taxa:     28%

IRS a liquidar:    164.400,87 €

 

24.          As correções propostas eram, no essencial, fundamentadas pela AT nos termos seguintes ((cfr. ponto III.1.3.1 do RIT, a fls. 7 a 9, junto ao PPA como Doc. n.º 6 e fls. 64, 65 e 66 de 109 do Processo Administrativo):

“III.1.3.1. -  IRS – 2016 - Categoria G do IRS -  Alienação de quota parte de ações da firma C..., SGPS, SA -  Valor de Realização -  Fundamentos para divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão

Apesar dos factos descritos no ponto anterior, importa analisar o enquadramento da operação. Conforme referido acima, o sujeito passivo alienou a quota parte de ações pelo seu valor nominal, ou seja, considerou como valor de realização um valor semelhante ao que tinha investido na sociedade, 11 anos antes.

Analisando a realidade da sociedade espelhada nomeadamente na declaração de informação empresarial simplificada elaborada por contabilista certificado, que espelha a realidade económica e financeira da sociedade no ano anterior (2015), considerámos fundadamente, face às conclusões abaixo, que existe divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão.

- Avaliação patrimonial da empresa:

O método de avaliação patrimonial é um dos métodos de avaliação de empresas com mais objetividade, dado que parte do Balanço da sociedade, que traduzirá os ativos de propriedade da empresa e a forma como os mesmos estão financiados.

Numa perspetiva situacionista, a avaliação patrimonial da empresa traduz-se na consideração individual de ativos e passivos da empresa incluindo os não contabilizados (off-balance sheet), aos quais se aplica um determinado critério de valorimetria, como ensina João Carvalho das Neves in “Avaliação de Empresas e Negócios”, 2002, McGraw-Hill.

Analisando o Balanço da sociedade em 2015 (Anexo 4), verificamos o seguinte:

Para um capital social de 575.000,00 € temos um total de capital próprio de 12.386.919,60 €, ou seja, o conjunto de ativos e passivos detidos pela sociedade, terão um valor cerca de 21 vezes superior ao valor do capital social.

 

Descrição            Valor

Capital social em 31-12-2015      575.000,00 €

Capital Próprio em 31-12-2015 12.386.919,60 €

 

Se usarmos o indicador financeiro EBITDA, terminologia anglo-saxónica Earnings Before Interest, Taxes Depreciation and Amortization, que representa o Resultado Operativo + Amortizações e Depreciações do exercício + Provisões e Perdas por Imparidade do exercício, representado pela seguinte formula

EBIDTA = RAI + AMORT + PROV

Verificamos que a sociedade tem tido uma evolução robusta neste indicador, conforme se

Verifica no quadro seguinte, detendo um EBITDA de 1.622.353,19 € em 2015 (Anexo 5).

 

 

 

Cálculo de EBIDTA           2013      2014      2015

Imparidades de inventários (perdas/reversões) - €           - €           - €

Imparidades de dívidas a receber (perdas/reversões)    - €           - €           - €

Provisões (aumentos/reversões)             - €           - €           - €

Imparidades de Invest. Não depreciáveis/amortizáveis (perdas/revers.) - €           - €           - €

Outras imparidades        - €           - €           - €

Gastos/reversões de depreciação e de amortização        9.973,31 €           537,71 €              537,89 €

Resultado antes de impostos     1.191.219,72€    1.978.021,18€    1.621.815,30€

EBIDTA 1.201.193,03€    1.978.558,89€    1.622.353,19€

 

Face à disparidade entre o valor nominal e o valor de capital próprio, à avaliação patrimonial e à capacidade financeira da sociedade, verificada pelo seu EBIDTA, demonstrando haver uma capacidade distributiva acumulada muito superior ao valor nominal do capital social, podemos concluir que existem fundadas divergências entre o valor declarado e o valor real da transmissão, pelo que se procederá à respetiva determinação com base no valor referido no balanço de 2015.

Por força do n.º 2 do já citado art.º 52.º do CIRS, que refere que será considerado como valor de alienação o apurado com base no último balanço.

A percentagem do capital social alvo de alienação, pertencente ao sujeito passivo na altura da transmissão, era a seguinte:

 

Total do Capital Social (1):           575.000,00 €

Quota alienada pertencente ao sujeito passivo (2):         28.750,00 €

% de alienação pertença do sujeito passivo (2)/(1):         5%

 

O valor de balanço, que corresponderia ao seu valor de realização seria, portanto, o seguinte:

 

Total do Capital Social (1):           12.386.919,60 €

% de alienação pertença do sujeito passivo (2): 5%

Valor de realização da quota (1)x(2):      619.345,98 €

 

 

25.          Em consequência da referida correção, foi emitida a liquidação de IRS n.º 2020..., datada de 04.07.2020 (Cfr. Doc. n.º 2 junto ao PPA); e ainda a liquidação de Juros Compensatórios n.º 2020... (Cfr. Doc. n.º 3 junto ao PPA); bem como a Demonstração de Acerto de Contas n.º 2020... (Cfr. Doc. n.º 4 junto ao PPA), com data limite de pagamento de 12.10.2020;

26.          As liquidações de IRS e JC sindicadas foram em parte (99.000,00 €) pagas em 21.9.2020 (Cfr. Doc. n.º 15 junto ao PPA) e na parte restante (84.750,35 €) pagas em 23.9.2020 (Cfr. Doc. n.º 16 junto ao PPA), totalizando os aludidos pagamentos exatamente o montante das liquidações submetidas a julgamento, ou seja, 183.750,35 €.

27.          Em 6.12.2020, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo (sistema informático do CAAD).

 

III.B) FACTOS NÃO PROVADOS

 

28.          Não se provaram outros factos com relevância para a decisão das questões submetidas a julgamento.

 

III.C) FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

 

29.          Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

30.          Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito [Cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].

31.          Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, consideram-se provados os factos referidos supra.

32.          Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

 

IV. DO DIREITO

 

§1. Da errónea interpretação e aplicação do artigo 52.º do Código do IRS

 

Como deixámos antever, o presente Pedido Arbitral gira essencialmente em torno do sentido e alcance do artigo 52.º do Código do IRS, defendendo a Requerente a ilegalidade do ato tributário impugnado por vício de violação de lei, fundada na errónea interpretação e aplicação do mencionado preceito.

Assim recortada a questão verifica-se que a mesma já foi objeto de apreciação na Decisão arbitral proferida no processo n.º 812/2019-T. Não havendo razões para divergirmos da jurisprudência constante desta Decisão passamos a segui-la de perto.

O atual artigo 52.º do Código do IRS, que corresponde ao originário artigo 50.º com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº 82-E/2014, de 31 de dezembro, tem, sob a epígrafe "Divergência de valores", a seguinte redação, ao tempo dos factos (2016):

 1 - Quando a Autoridade Tributária e Aduaneira considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, tem a faculdade de proceder à respetiva determinação.

2 - Se a divergência referida no número anterior recair sobre o valor de alienação de ações ou outros valores mobiliários, presume-se que:

a)            Estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o da respetiva cotação à data da transmissão ou, em caso de desconhecimento desta, o da maior cotação do ano a que a mesma se reporta.

b)           Não estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço.

3 - Quando se trate de quotas, presume-se que o valor de alienação é o que àquelas corresponda, apurado com base no último balanço.

               

Na mencionada Decisão arbitral pode ler-se o seguinte, quanto ao sentido e alcance do referido preceito:

“Afigura-se evidente que a norma em apreço se subdivide em duas partes distintas:

Uma primeira parte de alcance geral e, como tal, aplicável a todas as situações geradoras de mais-valias, e que subordina a AT ao proceder à determinação do valor de realização - é este o valor que está em causa no preceito - à consideração fundada de que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão (n.º 1 do artigo 52.º do CIRC). Exige claramente o legislador que só se passe à segunda parte da norma se cumpridos os requisitos e procedimentos aí fixados e que exigem da Requerida que apresente as razões objetivas que possam “fundamentar a divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão”.

“Preenchido ou satisfeito este primeiro requisito impõe o legislador que se passe então à segunda parte, vertida nos n.ºs 2 e 3, onde se consagra uma presunção objetiva, instrumental, de preço de venda para ações, outros valores mobiliários e quotas.

“Repete-se, resulta claramente da letra e razão de ser do preceito que as regras dos n.ºs 2 e 3 hão de aplicar-se caso a AT demonstre, em primeiro lugar, ou pelo menos se estabeleça uma dúvida fundada, que o preço de realização declarado não corresponde ao preço real da transmissão. André Salgado de Matos, in Código do Imposto do Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), Anotado, com revisão de Rodrigo Queiroz e Melo, ed. Instituto Superior de Gestão, 1999, em anotação a este artigo refere o seguinte (pp. 323): O n.º 1 exige que a DGCI considere fundadamente que existe divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão. Ou seja, não basta que o valor declarado seja inverosímil, improvável ou pouco usual, tem que existir prova de que não é o valor real. E tem também, salvo nos casos dos n.ºs 2 e 3, que existir prova de qual é o valor real (sublinhado nosso).

“Adere-se a esta interpretação da norma do artigo 52.º do Código do IRS. A saber: sempre que a questão nele tratada (divergência de valores) se suscite em matéria de valor de realização, numa operação suscetível de gerar mais-valias, a primeira questão a resolver é a que coloca o n.º 1, isto é, fundamentar que existe, ou indiciar fundadamente que existe, uma não coincidência entre o valor declarado e o valor real da alienação. Dando-se por assente a divergência, passa-se, então, à segunda fase do procedimento de determinação do valor de realização nos termos e com os métodos que forem considerados apropriados, exceto se se tratar de situações que se integrem nas hipóteses previstas nos n.ºs 2 e 3, das quais, e só nesta segunda fase do procedimento, resultará um valor de realização presumido, caso se não tenha chegado ao valor real de alienação, nos termos do n.º 1.

“No entendimento deste Tribunal, considera-se que a AT não tem base jurídica para fundamentar a existência de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão ao ter tomado como critério, além do mais único, aquele que, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 52.º do Código do IRS, serve de base à presunção do valor de realização, ou seja, ao adotar como critério "o último balanço".

“Caberia à Requerida promover as diligências que considerasse adequadas para  confirmação da divergência apontada, designadamente à junção ao processo dos documentos comprovativos dos fluxos financeiros associados à operação entre comprador e vendedores, ainda que, para o efeito, a AT necessitasse de se socorrer do procedimento de abertura do sigilo bancário; a audição, por escrito, do adquirente, sobre os termos e condições em que realizou o negócio; a análise das contas da sociedade cujo capital as ações alienadas representavam, visando a verificação da existência de créditos ou de débitos dos vendedores sobre a sociedade e que, por via da alienação das ações, estivessem a ser transferidos para o adquirente, sem que o respetivo valor se refletisse no preço. (…)

“Acresce que, mesmo que a existência de divergência se encontrasse fundamentada nos termos vistos, o mero recurso ao "último balanço" para se afirmar o "preço real da venda", teria que ser explicado, designadamente em relação ao método que foi utilizado para avaliar a sociedade e, consequentemente, determinar o valor das ações. Ensinava Ana Maria Rodrigues in “Avaliação de Empresas e Métodos de Avaliação”, apresentação feita no Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados em 3 de junho de 2011 e consultável na internet no endereço  https://www.oa.pt/upl/%7B54f6e53f-6af2-442d-9434-51be993309dc%7D.pdf, que, "Como a contabilidade se baseia num conjunto de critérios de mensuração/valorimetria que não são, no essencial, o valor de mercado, o balanço contabilístico não pode ser usado como base para determinar o valor de troca do capital próprio. Para esse efeito, devemos:

             Corrigir as DF elaboradas pela contabilidade a fim de obter o valor de mercado actual;

             Identificar os activos e passivos não registados no balanço;

             Avaliação de cada item do activo e do passivo segundo o critério de mensuração adequado tendo em vista o objectivo a atingir com a avaliação;

             Recorrer a elementos de natureza extra-contabilística".

“E adiantava a mesma Autora que "Para estimar o valor substancial da empresa em funcionamento utiliza-se, normalmente, o critério do custo de reposição ou o do justo valor de mercado. Pode ser encarado na óptica da entidade ou na óptica dos capitais próprios (ou dos proprietários)".

“Decorre dos factos dados como provados que a Requerida nem comprovou fundadamente a verificação da divergência entre o valor real e o valor declarado da transmissão, nem explicitou que modelo de avaliação, tendo por base o último balanço, adotou, e por que motivos elegeu um e não elegeu outro. E de tal modo os valores podem ser diferentes que a solução da fórmula do imposto do selo, apresentada não se sabe bem com que finalidade no Relatório da Inspeção, apontaria para um valor por ação de 218,82 € (de que resultaria para 10% do capital um valor superior à situação líquida!), e a solução, aparentemente restringida à simplista divisão da situação líquida pelo número de ações representativas do capital social, adotada na quantificação e na qual o valor "contabilístico" considerado de cada ação foi de 4,26 €.

“E, adianta-se, mesmo que todos estes passos tivessem sido dados pela AT no seu iter cognoscitivo, teria sempre de afirmar-se que, não sendo de qualificar as presunções em matéria de quantificação do rendimento como presunções juris et de jure, nos termos do disposto no artigo 73.º da LGT, assistiria sempre ao contribuinte a faculdade de apresentar prova em contrário.

“Um último aspeto não pode deixar de se relevar: a subsistir a posição da AT, teria naturalmente de ser efetuado um ajustamento simétrico no "valor de aquisição" para o comprador, sob pena de previsível, e não prevenida, dupla tributação económica das mesmas mais-valias.

Conclui-se, pois, pela verificação da ilegalidade da liquidação adicional ora impugnada, por vício de violação de lei fundado na errónea interpretação e aplicação do artigo 52.º do Código do IRS.”

Transpondo esta jurisprudência para o caso em análise não podemos deixar de dar razão à Requerente quando alega, entre o mais, que  as presunções legais que decorrem expressamente do disposto dos n.ºs 2 e 3 do artigo 52.º do Código do IRS são elidíveis, isto é, admitem, sempre, prova em contrário e, além do mais, concretamente no que ora releva, a presunção consagrada na alínea b), do n.º 2, do artigo 52.º, do Código do IRS, não opera automaticamente, tornando-se necessário, para que a AT possa accionar tais presunções, “que considere “fundadamente” a possibilidade de uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão”.

Da documentação constante dos autos e atendendo à fundamentação que presidiu às liquidações ora impugnadas, considera-se que a AT não tem base jurídica para fundamentar a existência de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão ao ter tomado como critério essencial aquele que, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 52.º do Código do IRS, serve de base à presunção do valor de realização, ou seja, ao adotar como critério "o último balanço".

Tal como consignado na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 812/2019-T, “Caberia à Requerida promover as diligências que considerasse adequadas para  confirmação da divergência apontada, designadamente à junção ao processo dos documentos comprovativos dos fluxos financeiros associados à operação entre comprador e vendedores, ainda que, para o efeito, a AT necessitasse de se socorrer do procedimento de abertura do sigilo bancário; a audição, por escrito, do adquirente, sobre os termos e condições em que realizou o negócio; a análise das contas da sociedade cujo capital as ações alienadas representavam, visando a verificação da existência de créditos ou de débitos dos vendedores sobre a sociedade e que, por via da alienação das ações, estivessem a ser transferidos para o adquirente, sem que o respetivo valor se refletisse no preço.”

Reitera-se a orientação jurisprudencial que vimos seguindo, sobre o sentido e alcance do preceito em causa, não apenas por corresponder à letra e razão de ser do preceito como também por afastar qualquer alegada inconstitucionalidade.

Termos em que se julga procedente o pedido arbitral, com a consequente anulação da liquidação adicional de IRS e do ato de liquidação dos correspondentes juros compensatórios, respeitantes ao ano de 2016.

 

§2. Questões prejudicadas

 

Procedendo o pedido de pronúncia arbitral com fundamento no vício atrás referido, o que assegura uma efetiva e estável tutela dos direitos da Requerente, fica prejudicado o conhecimento dos outros vícios que lhe são imputados.

Na verdade, como está ínsito no estabelecimento de uma ordem de conhecimento de vícios, no artigo 124.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), julgado procedente um vício que obste à renovação do ato impugnado, não há necessidade de se apreciar os outros que lhe sejam imputados.

Por isso, julgado procedente o pedido com fundamento num vício que impede a renovação do ato impugnado com o mesmo sentido, fica prejudicado o conhecimento dos outros vícios que lhe são imputados, sejam formais e procedimentais, seja também de violação da lei.

 

§3.º Quanto ao pedido de juros indemnizatórios

 

Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. No caso, o erro que afeta a legalidade do ato tributário é de considerar imputável à Requerida, que o praticou sem o necessário suporte factual e legal.

Tem, pois, direito a Requerente a ser reembolsada da quantia que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força do ato parcialmente anulado e, ainda, a ser indemnizada do pagamento indevido através de juros indemnizatórios, desde a data do correspondente pagamento, até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

 

V. DECISÃO

 

Termos em que se decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência:

 

(i)           Anular a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2020... referente ao ano de 2016, e a liquidação de juros compensatórios n.º 2020...;

(ii)          Condenar a Administração Tributária no pagamento do imposto indevidamente pago e respetivos juros indemnizatórios, contados nos termos legais.

 

 

VI. VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 183.750,35, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável ex vi alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VII.CUSTAS

 

Custas a cargo da Requerida de acordo com o artigo 22.º, n.º 2 do RJAT, do artigo 4 do RCPAT, e da Tabela II anexa a este último, que se fixam no montante de € 3 672,00.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 27 de julho de 2021

 

Os Árbitros,

 

(Fernanda Maçãs)

(Fernando Marques Simões)

(Rui Ferreira Rodrigues)