Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 728/2020-T
Data da decisão: 2021-11-02  IRS  
Valor do pedido: € 31.265,72
Tema: IRS – Reinvestimento de mais-valias em habitação própria e permanente
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Decisão Arbitral

 

I. Relatório

A..., contribuinte n.º..., residente em ... Amesterdão, Holanda, doravante designado como “Demandante”, apresentou, no dia 03-12-2020, ao abrigo do art. 2.º, n.º 1 e do art. 10.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), pedido de pronúncia arbitral, com vista à anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2020 ... .

É demandada no pedido de pronúncia arbitral a AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “Demandada”, “Autoridade Tributária” ou simplesmente “AT”).

Em síntese, o Demandante fundamenta o seu pedido nos seguintes argumentos:

  • Tendo o Demandante e a sua esposa ocupado um prédio habitacional propriedade do Demandante como habitação própria e permanente, até à sua venda em 23-08-2019, e tendo declarado, na sua declaração de rendimentos referente a esse mesmo ano, a sua intenção de reinvestir parte do produto dessa alienação na aquisição de outro imóvel para habitação própria permanente na Holanda, tem o Demandante direito à exclusão da parte proporcional desses rendimentos da tributação em Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), ao abrigo do art.º 10.º, n.º 5 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS);
  • Ao não contemplar essa exclusão, a liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares n.º 2020... enferma de vício de violação de lei.
  • Além disso, no cálculo do imposto a pagar sobre as mesmas, a AT considerou como matéria tributável a totalidade do saldo das mais-valias, não aplicando a exclusão de 50% da matéria coletável prevista no art.º 43.º n.º 2, al. b) do Código do IRS;
  • A tributação da totalidade das mais-valias imobiliárias no caso de um não-residente é incompatível com o Direito da União Europeia, em particular com a liberdade de circulação de capitais, estabelecida no artigo 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE);
  • Por força do princípio da liberdade de circulação estabelecido no art.º 63.º do TFUE, o Demandante tinha direito a que lhe fosse aplicada a redução de 50% no saldo das mais-valias imobiliárias, ao abrigo do art.º 43.º, n.º 2, al. b) do CIRS, mesmo não sendo residente no território português, mas sim residente na Holanda.

O Demandante termina pedindo ao tribunal: a anulação da liquidação n.º 2020..., por padecer de vício de violação de lei; subsidiariamente, a anulação parcial da mesma por vício de violação de lei; e a condenação da Demandada nas custas do processo.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 04-12-2020.

Nos termos do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 6º e da alínea b) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 25-01-2020, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 03-05-2020.

A Autoridade Tributária e Aduaneira, notificada para o efeito, apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido, apresentando para tal os argumentos que a seguir se sintetizam:

  • Após o acórdão do TJUE de 11-10-2007, no processo C-443/06 (caso Hollman), ter considerado incompatível com a livre circulação de capitais garantida no art. 63º do TFUE o regime previsto no art. 72º, nº 1 do CIRS na redação anterior à Lei nº 67-A/2007 de 31/12, o legislador nacional procedeu à adaptação da legislação nacional à decisão ali sufragada, aditando ao art.º 72.º do CIRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, os números 7 e 8;
  • O quadro legal resultante dessa alteração prevê duas possibilidades alternativas de tributação do saldo entre mais-valias e menos-valias realizadas no mesmo ano, resultantes da diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição por alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis;
  • Por um lado, consagra-se a opção da tributação desses rendimentos (mais-valias) à taxa que resultaria da aplicação da tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º do Código do IRS, caso se tratasse de rendimentos auferidos por residentes em território português, sendo que a determinação da taxa teria em conta todos os rendimentos incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes;
  • Por outro lado, consagra-se um regime de tributação autónima segundo uma taxa de 28%, conforme previsto no artigo 72.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS;
  • A alteração veio permitir que tanto residentes como não residentes possam beneficiar do regime previsto no artigo 43.º, n.º 2 (consideração do saldo da mais-valia em apenas 50% do seu valor), do mesmo Código, desde que optem pela aplicação das taxas da tabela constante do art.º 68º, n.º 1 e pelo o englobamento dos rendimentos obtidos tanto em Portugal como fora deste território;
  • Situação que no caso concreto não ocorreu.

Por despacho do Tribunal de 06-09-2021, foi decidido não realizar a reunião prevista no art.º 18.º do RJAT, por desnecessária, e ao abrigo dos princípios da celeridade, da simplificação e da informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT), e conceder às Partes prazos sucessivos para apresentação de alegações finais.

O Demandante apresentou alegações finais, em que reiterou toda a argumentação expendida na sua petição inicial.

A AT não apresentou alegações finais.

 

II. Saneamento

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 2º, e do nº 1 do artigo 10º, ambos do RJAT e é materialmente competente.

As Partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4º e nº2 do artigo 10º, do mesmo diploma e artigo 1º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

III. Questões a apreciar

No presente processo são colocadas à apreciação do Tribunal duas questões, a primeira conexa com o pedido principal e a segunda conexa com um pedido formulado em termos de subsidiariedade.
A primeira questão é a de saber se o Demandante tem direito à exclusão da mais-valia imobiliária realizada em 2019 da tributação em IRS ao abrigo do regime do reinvestimento das mais-valias em imóvel destinado a habitação própria e permanente, constante do n.º 5 do art.º 10.º do CIRS.

A segunda questão, conexa com o pedido subsidiário, é a de saber se o atual regime do Código do IRS, de tributação de mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes, ao prever a aplicação de uma redução de 50% à mais-valia tributável, ao abrigo do art.º 43.º, n.º 2 CIRS,  apenas quando o sujeito passivo não residente opte pela aplicação das taxas da tabela constante do art.º 68.º, n.º 1 do CIRS e pelo englobamento de todos os rendimentos para determinação da taxa, é compatível com o Direito da União Europeia, nomeadamente com o art.º 63º do TFUE, que consagra a liberdade de circulação de capitais.

 

IV. Fundamentação

  1. Matéria de facto

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

  1. O Demandante adquiriu e afetou à sua habitação própria e permanente a fração habitacional de prédio designada por ... no nº ... da Rua ..., em Lisboa.
  2.  Nesta fração de prédio o Demandante teve a sua morada permanente até ir trabalhar na Holanda, em 2018.
  3. Quando o Demandante se deslocou para a Holanda, a sua esposa continuou a habitar o referido imóvel.
  4. O Demandante celebrou contrato de compra e venda do referido imóvel em 1 de julho de 2019 [cf. documento 3 junto à petição inicial].
  5. O Demandante celebrou, em 23 de agosto de 2019, por documento particular autenticado, compra e venda do referido imóvel, pelo preço de €400.000,00 (quatrocentos mil euros) [cf. documentos 4 e 5 juntos à petição inicial].
  6.  A venda da fração de imóvel originou para o Demandante uma mais-valia fiscal no montante de €111.711,54 (centro e onze mil, setecentos e onze euros e cinquenta e quatro cêntimos) [cf. documento 5 junto à petição inicial].
  7. Na declaração de rendimentos referente ao ano de 2019, o Demandante indicou, no campo 5-A do anexo G da declaração, a intenção de reinvestir, na aquisição de um imóvel destinado a sua habitação própria e permanente, na Holanda, o valor de € 200.000,00 (duzentos mil euros) [cf. documento 5 junto à petição inicial].
  8. A AT liquidou, ao Demandante, IRS sobre a totalidade do montante da mais-valia, sem aplicar a exclusão prevista no art.º 10º, n.º 5 do CIRS (reinvestimento de mais-valias em aquisição de imóvel para habitação própria e permanente) ou a redução prevista no art.º 43.º, n.º 2, al. b) do mesmo código (redução em 50% do saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano) [cf. documentos 1 e 5 juntos à petição inicial].

Não existem factos alegados e não provados com relevância para a decisão do mérito da causa.

A fixação da matéria de facto baseia-se no alegado e não contradito pelas Partes e nos documentos juntos aos autos pelo Demandante.

 

  1. Discussão
  1. Ordem

Nos termos do art.º 124º, n.º 2, al. b), quando esteja em causa a apreciação de vícios que conduzam à anulação do ato, como é o caso nos presentes autos em relação a todas as questões suscitadas, a apreciação dos vícios é feita pela ordem indicada pelo impugnante, sempre que se estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade.

Sendo assim, há que apreciar em primeiro lugar a questão que diz respeito à aplicabilidade da exclusão da tributação prevista no art.º 10.º, n.º 5 do CIRS às mais-valias realizadas pelo Demandante com a venda do imóvel e em segundo lugar a questão respeitante à aplicabilidade às mesmas mais-valias da exclusão parcial prevista no art.º 43.º, n.º 2, al. b) do mesmo código.

  1. Exclusão da tributação das mais-valias ao abrigo do art.º 10.º, n.º 5 do CIRS

O Demandante pretende que a mais-valia fiscal realizada com a venda da sua fração de imóvel deve beneficiar da exclusão da tributação prevista no n.º 5 do art.º 10.º do CIRS, pois se verificam todos os requisitos que a lei exige para tal.

Estabelece o n.º 5 do art.º 10º do CIRS:

5 - São excluídos da tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, desde que verificadas, cumulativamente, as seguintes condições:

a) O valor de realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, seja reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel, de terreno para construção de imóvel e ou respetiva construção, ou na ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino situado em território português ou no território de outro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal;

b) O reinvestimento previsto na alínea anterior seja efetuado entre os 24 meses anteriores e os 36 meses posteriores contados da data da realização;

c) O sujeito passivo manifeste a intenção de proceder ao reinvestimento, ainda que parcial, mencionando o respetivo montante na declaração de rendimentos respeitante ao ano da alienação;

 

São os seguintes os requisitos necessários para que a mais-valia imobiliária seja excluída ao abrigo do preceito transcrito:

1º requisito: A mais-valia deve ser proveniente de transmissão onerosa de imóvel destinado a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar;

2º requisito: O valor de realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel transmitido, deve ser reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel, de terreno para construção de imóvel e ou respetiva construção, ou na ampliação ou melhoramento de outro imóvel;

3º requisito: O imóvel em que se realiza o investimento deve ter exclusivamente o mesmo destino, ou seja, deve destinar-se exclusivamente a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar;

4º requisito: O imóvel em que se realiza o investimento deve situar-se: i) em território português; ou ii) no território de outro Estado membro da União Europeia; ou iii) no território de outro Estado membro do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal;

5º requisito: O reinvestimento deve ser efetuado entre os 24 meses anteriores e os 36 meses posteriores contados da data da realização;

6º requisito: O sujeito passivo deve manifestar a intenção de proceder ao reinvestimento, ainda que parcial, mencionando o respetivo montante na declaração de rendimentos respeitante ao ano da alienação.

O Demandante indicou na sua declaração de rendimentos referente ao ano de 2019 – o ano da alienação da fração de imóvel – a sua intenção de reinvestir uma parte do valor de realização na aquisição de um imóvel, na Holanda, para sua habitação própria e permanente e do seu agregado familiar, dando cumprimento ao sexto requisito.

Tendo em conta que, no ano a que o imposto disputado diz respeito, o Demandante apenas declarou a intenção de reinvestir a mais-valia no prazo estipulado na al. b) do n.º 5 do art.º 10º, o segundo, terceiro, quarto e quinto requisitos não tinham que estar verificados no momento da apresentação da declaração, sendo de apreciar se se verificam ou não apenas no momento em que for declarada a realização do investimento ou no final do prazo previsto na al. b) do n.º 5 do art.º 10.º, ou seja, ao fim de 24 meses transcorridos sobre o ato de transmissão.

Quanto ao primeiro requisito, consiste ele em que o imóvel transmitido deve ser “destinado a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar”. Assim, não apenas o imóvel em que se concretiza o reinvestimento das mais-valias, mas também o imóvel cuja venda origina as mais-valias deve ser destinado a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar.

Como se diz no acórdão do STA de25-03-2015 (proc. n.º 0158/13), a “exclusão referida só vale pois para as mais valias de imóveis destinados à habitação própria e permanente quando o reinvestimento se opera em imóveis com o mesmo destino. Ou seja, o imóvel de "partida" e o de "chegada" têm de ser destinados à habitação própria e permanente. Qualquer outro destino de ambos, ou de só de um deles, destrói as condições de aplicação da exclusão de incidência e a mais valia realizada no imóvel de "partida" será tributável”.

No caso do Demandante, considera-se provado que o imóvel alienado se encontrou afeto à habitação própria e permanente do sujeito passivo e do seu agregado familiar uma vez que é esse um facto alegado pelo Demandante e não contestado pela AT.

Além disso, na sua declaração de rendimentos referente ao ano da alienação do imóvel, o Demandante declarou que o imóvel alienado era um imóvel “destinado a habitação própria e permanente”, ao preencher o quadro 5 do anexo G da declaração.

Ora, vigora no nosso ordenamento jurídico, no Direito tributário, o princípio da declaração, hoje consagrado no art.º 75.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária, e de acordo com o qual se presumem verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei (STA, ac. de 04-12-2019, proc. 0813/05.7BEALM 01192/17).

Esta presunção de veracidade das declarações do contribuinte tem como efeito colocar sobre a Administração Tributária, quando seja pretensão desta desconsiderar o conteúdo das declarações do contribuinte, o ónus de ilidir a presunção, demonstrando a falta de veracidade daquelas declarações.

Para tal, não tem a Administração Tributária que produzir uma prova cabal da inveracidade das declarações do contribuinte, mas apenas, nos termos da al. a) do nº 2 do citado art.º 75º LGT, mostrar a existência de “indícios fundados” de que as declarações não refletem ou impedem o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo (STA, ac. de 03-04-2013, proc. 060/13). Quando a Administração Tributária logre mostrar a existência de “indícios fundados” de que as declarações do contribuinte não refletem a realidade, passa a recair sobre este último o ónus de provar cabalmente a veracidade das mesmas.

Compulsados os presentes autos, verifica-se não existir qualquer fundamentação do ato de liquidação, nem contemporânea do mesmo nem posterior a ele, que possa pôr em causa a presunção de veracidade do conteúdo da declaração do contribuinte, quanto à questão da afetação do imóvel alienado à habitação própria e permanente do sujeito passivo e do seu agregado familiar.

Ora, inscrevendo-se os presentes autos na categoria do contencioso de mera legalidade, em que a apreciação do tribunal se circunscreve estritamente à legalidade do ato praticado, atendendo à sua fundamentação, o facto de a AT não ter feito qualquer demonstração de indiciamento da inveracidade da declaração do Demandante afigura-se, só por sim, justificativa da ilegalidade do ato. Com efeito, não demonstrando a AT a existência de quaisquer indícios de inveracidade da declaração do contribuinte, como lhe competia, faltam em absoluto os pressupostos da atuação que consistiu em desconsiderar o conteúdo daquela declaração.

No entanto, ainda se dirá que o facto de o Demandante e, mais tarde, a sua esposa, se terem deslocado para a Holanda algum tempo antes da alienação do imóvel não seria suficiente para dar como não verificado o requisito da afetação do imóvel a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar.

Com efeito, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, o requisito da afetação a habitação própria e permanente do imóvel alienado deve ser interpretado em termos amplos, de acordo com a teologia do regime da isenção das mais-valias reinvestidas em habitação própria e permanente, que é a de “favorecer a aquisição de habitação própria e facilitar a mudança de casa” (vg. STA, ac. de 01.07.2020, proc.  0114/15.2BELLE).

E de acordo com tal jurisprudência e correspondente interpretação teológica, “o que releva para aferir da verificação dos requisitos de exclusão da tributação das mais-valias, é saber se o imóvel vendido serviu ou não de ‘habitação própria e permanente’ do impugnante (...), ainda que à data da venda, por condicionalismos específicos do procedimento de divórcio, este residisse noutro local. O que se mostra relevante para o legislador é que o produto da venda de um determinado imóvel com determinação afetação – habitação própria e permanente - seja reinvestido noutro imóvel com a mesma afetação, impondo apenas uma limitação temporal no que respeita ao reinvestimento e à afetação do imóvel destino do reinvestimento. Já quanto à contemporaneidade da sua utilização como habitação e venda a lei não impõe tal exigência.”

Em face desta jurisprudência, com a qual inteiramente concordamos, mais se reforça a conclusão de que se tornava absolutamente imprescindível, para a AT, demonstrar a existência de indícios de não existir “afetação a habitação própria e permanente” do imóvel alienado, o que a AT não fez, deixando assim de demonstrar a verificação dos pressupostos da sua atuação.

Pelo que o ato de liquidação, ao não conceder ao Demandante, ao abrigo do n.º 5 do art.º 10º do CIRS, a isenção das mais-valias realizadas padece de vício de violação de lei.

 

  1. Consequência da ilegalidade

Tendo-se concluído pela ilegalidade do ato de liquidação, pela não aplicação do regime contido no n.º 5 do art.º 10º do CIRS, impõe-se determinar a consequência de tal declaração.

Resulta do probatório, em conformidade com a prova documental disponível nos autos, que o Demandante obteve, pela venda do imóvel, um valor de realização de 400.000,00 euros, mas que apenas declarou pretender reinvestir, ao abrigo do n.º 5 do art.º 10.º do CIRS, o valor de 200.000,00 euros.

Quando o sujeito passivo reinvista, em termos que satisfaçam os requisitos previstos no nº 5 do art.º 10º do CIRS, apenas uma parte do valor de realização obtido com a alienação, como é o caso, estamos perante um reinvestimento parcial, previsto no n.º 9 do mesmo art.º 10º.

Neste caso, em conformidade com essa disposição, os benefícios a que se referem os números 5 e 7, ou seja, a isenção de imposto, respeitará apenas à parte proporcional dos ganhos correspondentes ao valor reinvestido.

No caso, a proporção é de metade. Ou seja, o Demandante declarou a intenção de reinvestir exatamente a metade do valor de realização, pelo que terá direito a beneficiar de isenção sobre metade da mais-valia sujeita a tributação (STA, ac. de 25-05-2004, proc. 2052/03).

Sendo a mais-valia realizada, como ficou assente no probatório, de 111.711,54 euros, beneficiará de isenção ao abrigo do nº 5 do art.º 10º a metade desse valor, ou seja, 55.855,77 euros (cinquenta e cinco mil, oitocentos e cinquenta e cinco euros e setenta e sete cêntimos).

Desta forma, tendo o ato de liquidação impugnado considerado como tributável a totalidade da mais-valia, e não a sua metade, como deveria, o ato de liquidação deve ser parcialmente anulado, e não anulado na sua totalidade, como pede o Demandante.

O ato de liquidação impugnando deve ser anulado na parte em que não considera isenta de imposto a metade da mais-valia realizada, no valor de 55.855,77 euros (cinquenta e cinco mil, oitocentos e cinquenta e cinco euros e setenta e sete cêntimos).

  1. Vício de violação de lei por não aplicação da exclusão de 50% da mais-valia ao abrigo do art. 43º, n.º 2, al. b) do CIRS

Tendo-se concluído anteriormente que o ato de liquidação impugnado deve ser parcialmente anulado, na parte em que não considera isenta de imposto a metade da mais-valia realizada, importa ainda analisar se a metade não isenta de imposto deve beneficiar da exclusão parcial prevista no art.º 43.º, n.º 2, al. b) do CIRS, ao contrário do que decidiu a AT.

Atualmente, o art. 43º, nº 2 do CIRS estipula:

2 - O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efetuadas por residentes previstas nas alíneas a), c), d) e i) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é:

(...)

b) Apenas considerado em 50 % do seu valor, nos restantes casos.

Segundo a letra da disposição, apenas os residentes podem beneficiar da redução de 50% prevista na al. b). Contudo, o Demandante considera que a aplicação desta exclusão parcial apenas aos residentes em território português e não aos não residentes é contrária ao art.º 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, em que se consagra a liberdade de circulação de capitais.

A questão da compatibilidade da norma do art. 43º, nº 2, al. b) do CIRS com o direito europeu, nomeadamente com o art. 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (e anteriormente o art. 56º do TCE) não é recente.

Em 2006, ela foi remetida, pelo Supremo Tribunal Administrativo, para apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia, no processo C-443/06, tendo este tribunal emitido pronúncia no sentido da incompatibilidade da norma com o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado, então, no art. 53º do Tratado CE.

Na sequência de tal acórdão, o legislador português aprovou uma alteração ao regime de tributação das mais-valias imobiliárias, passando a prever um regime especial para a tributação de mais-valias imobiliárias quando realizada por não residentes.

Tal regime, que assenta essencialmente numa tributação autónoma, consta do artigo 72º, cujo nº 1, que dispõe:

1 - São tributados à taxa autónoma de 28 %:

a) As mais-valias previstas nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 10.º auferidas por não residentes em território português que não sejam imputáveis a estabelecimento estável nele situado;

Esta norma é completada por uma possibilidade de opção de englobamento, hoje estabelecida no nº 14 do mesmo preceito, facultada apenas aos residentes noutro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, que diz:

14 - Os residentes noutro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 e no n.º 6, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português. 

Entende a Administração Tributária que os não residentes que façam esta última opção não ficam apenas sujeitos às taxas do art. 68º, nº 1 do CIRS, mas beneficiam também da redução de 50% prevista no art. 43º, nº 2, al. b) (dizemos que se trata de um entendimento da Administração Tributária, pois não encontramos esta norma expressa na lei).

E sendo assim – entende ainda a Autoridade Tributária – os não residentes teriam passado a ter, com a alteração legislativa ocorrida em 2007, a opção de receberem o mesmo tratamento ou um tratamento diferente do que cabe aos residentes, em matéria de mais-valias imobiliárias, com o que o regime atual das mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes já não pode considerar-se incompatível com o Direito da União Europeia, nomeadamente com o seu princípio de livre circulação de capitais, contido, hoje, no art. 63.º do Tratado FUE.

Após esta alteração legislativa, os tribunais dividiram-se quanto à questão da compatibilidade do novo regime do Direito português com o Direito europeu (vg. decisão arbitral CAAD 22.04.2019, proc. nº 539/2018-T; decisão arbitral CAAD 09.06.2020, proc. n.º 846/2019-T).

Recentemente, porém, o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se sobre a matéria num recurso de uniformização de jurisprudência (STA, acórdão de 09.12.2020, processo nº 075/20.6BALSB), tendo confirmado o entendimento de que a norma da al. b) do nº 2 do art. 43º do CIRS continua, após a sua alteração pela Lei n.º 67-A/2007, a ser incompatível com os Tratados Europeus.

Diz nesse aresto o Supremo Tribunal Administrativo:

“Os ganhos obtidos por pessoas singulares com a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, quando não constituam rendimentos empresariais e profissionais, são tributados, em sede de IRS, no âmbito da categoria G (incrementos patrimoniais), como mais-valias, nos termos do disposto nos arts. 9.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS.

Esses rendimentos, desde que resultantes da transmissão de direitos reais relativos a imóveis situados em território português consideram-se aqui obtidos [art. 18.º, n.º 1, alínea h), do CIRS], pelo que ficam abrangidos pela incidência de IRS quando auferidos por titulares não residentes (cf. arts.13.º, n.º 1 e 15.º, n.º 2, do CIRS).

O valor desses rendimentos que seja qualificado como mais-valias, quando obtidos por sujeitos passivos residentes é sujeito a englobamento e a tributação é efectuada às taxas gerais progressivas estabelecidas no art. 68.º do CIRS, mas apenas é considerado em 50%, como resulta do n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na redacção aplicável.

Quanto aos sujeitos passivos não residentes, a tributação desse valor faz-se à taxa fixa especial de 28%, nos termos do art. 72.º, n.º 1, alínea a) do CIRS, ou, se forem residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu (EEE), neste caso por opção, às taxas gerais progressivas do art. 68.º o CIRS, considerando-se então todos os seus rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, mas sobre 100% da mais-valia imobiliária realizada (cf. arts. 72.º, n.ºs 9 e 10, na redacção aplicável).

A questão que se coloca é a de saber se, como alega a Recorrente, este regime opcional, que foi introduzido pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2008), então sob os n.ºs 7 e 8 (actuais n.ºs 13 e 14 e n.ºs 9 e 10, na redacção aplicável), aditados ao art. 72.º do CIRS, veio pôr termo à discriminação negativa dos não residentes, que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) tinha já considerado verificar-se relativamente ao n.º 2 do art. 43.º do CIRS.

Na verdade, o TJCE – em acórdão (Hollmann) proferido em 11 de Outubro 2007, no processo n.º C-443/06 (...) em resposta ao reenvio prejudicial efectuado pelo Supremo Tribunal Administrativo no âmbito do processo n.º 493/06 (Vide os acórdãos proferidos nesse processo n.º 439/06, o primeiro fazendo o reenvio prejudicial e, o segundo, já referido na nota 3 supra, decidindo o recurso, após a pronúncia do TJCE de 28 de Setembro de 2006 (...) julgou «incompatível com o direito europeu a norma do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constituindo, por isso, uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º do TFUE».

É certo que o legislador nacional, através da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2008), procurou obviar a esse tratamento discriminatório dos residentes comunitários e do EEE, facultando-lhes, em termos opcionais, a possibilidade de tributação das mais-valias imobiliárias em condições similares às aplicáveis aos residentes em território português, aditando ao art. 72.º do CIRS os n.ºs 7 e 8 (actuais n.ºs 13 e 14). Ou seja, após a referida alteração legislativa ficaram a vigorar, na área da tributação das mais-valias imobiliárias, dois regimes distintos, aplicáveis a não residentes: um regime geral, aplicável a quaisquer sujeitos passivos não residentes, traduzido na tributação desses rendimentos à taxa especial de 28% incidente sobre a totalidade do rendimento e um regime especificamente aplicável a residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou do EEE, equiparável ao regime de que beneficiam os sujeitos passivos residentes.

Mas esse regime específico de opção, não só constitui um ónus suplementar comparativamente aos residentes, como não afastou a referida discriminação negativa. Como bem concluiu a decisão recorrida, «o regime de equiparação actualmente previsto no artigo 72.º do Código do IRS não afasta o carácter discriminatório do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, não podendo o contribuinte achar-se na circunstância de ter que optar por dois regimes, um legal e outro ilegal».

Como também salientou a decisão recorrida, o acórdão (Gielen) do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de 18 de Março de 2010, proferido no processo n.º C-440/08 (...) após salientar que «a opção de equiparação [que] permite a um contribuinte não residente, (...) escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório» não é passível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais, concluiu que «o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência (...) validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.º TFUE em razão do seu carácter discriminatório» e que o Tratado «se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes na concessão de um benefício fiscal (...) apesar de esses contribuintes poderem optar, no que se refere a esse benefício, pelo regime aplicável aos contribuintes residentes». Ou seja, o regime opcional introduzido no art. 72.º do CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, não veio sanar a discriminação negativa resultante da norma do n.º 2 do art. 43.º do CIRS para os não residentes e a violação do art. 63.º do TFUE que dela resulta.

Assim, bem andou a decisão recorrida quando julgou incompatível com o Direito da União Europeia a norma do n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constituindo, por isso, uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo art. 63.º do TFUE e, em consequência, quando anulou os actos de liquidação em causa (de IRS e de juros compensatórios) na parte em que desconsideraram aquela limitação.”

Depois de expor assim o seu entendimento, o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo concluiu:

“2.2.3 Em face de tudo quanto deixámos dito, uniformizamos jurisprudência no seguinte sentido: o n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na redacção aplicável, ao prever uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, e não para os não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, incompatível com o art. 63.º do TJUE, não tendo essa discriminação negativa dos não residentes sido ultrapassada pelo regime opcional introduzido no art. 72.º do CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, previsto, aliás, apenas para os residentes noutro Estado-membro da UE ou na EEE e não para os residentes em Países terceiros.”

É assim manifesto que, para o Supremo Tribunal Administrativo, o regime instituído pelo legislador fiscal português em resposta ao acórdão Hollmann não sanou a incompatibilidade que o TJUE declarou existir entre o art.º 43.º, n.º 2, al. b) e o Direito da União.

A jurisprudência uniformizada, apesar de não ter o valor vinculativo que outrora tinha o “assento” previsto no revogado art. 2º do Cód. Civil, tem um valor reforçado que lhe advém, por um lado, da hierarquia do órgão jurisdicional que a definiu e, por outro lado, da lei processual que prevê (art. 142º, nº 3, al. c) do CPTA) que o não acatamento de jurisprudência uniformizada, por parte de uma decisão proferida em primeiro grau de jurisdição, constitui motivo especial de admissibilidade de recurso (neste sentido, vejam-se os acórdãos TCA-N 1ª Secção -  Contencioso Administrativo de 03-06-2016, proc. nº 329/12.5BEPDL; e TCA-N 1ª Secção -  Contencioso Administrativo de 24-02-2017, proc. nº 8/12.3BEMDL).

Tal seria, só por si, suficiente para determinar o sentido da decisão do presente processo no sentido propugnado pelo Supremo Tribunal Administrativo.

Contudo, em 18-03-2021, o TJUE proferiu novo acórdão, desta vez no processo C‑388/19, o qual resultou de um reenvio prejudicial de um processo que tinha por objeto a exata questão que aqui nos ocupa, centrando-se em factos que, tal como nos presentes autos, ocorreram na vigência do atual regime do IRS sobre tributação de mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes.

Vejamos em que termos o Tribunal dirimiu a questão.

Diz o Tribunal (par. 36) que no “caso em apreço, a diferença de tratamento entre os sujeitos passivos residentes e os sujeitos passivos não residentes prevista pela regulamentação portuguesa diz respeito a situações objetivamente comparáveis. Além disso, esta diferença de tratamento não é justificada por uma razão imperiosa de interesse geral.” Acrescenta (par. 38) que “não existe nenhuma diferença objetiva de situação entre os contribuintes residentes e os contribuintes não residentes, suscetível de justificar uma desigualdade de tratamento fiscal entre eles, nos termos do artigo 43.º, n.º 2, e do artigo 72.º, n.º 1, do CIRS, no que respeita à tributação do saldo positivo das mais‑valias realizadas na sequência de alienações de bens imóveis situados em Portugal.”

Quanto à opção, dada aos não residentes, como o aqui Demandante, de tributação segundo as mesmas regras a que estão sujeitos os residentes, diz o acórdão (par. 42-46):

“(...) a possibilidade de as pessoas residentes na União ou no EEE optarem, ao abrigo do artigo 72.º, n.os 9 e 10, do CIRS, por um regime de tributação análogo ao aplicável aos residentes portugueses e, assim, beneficiarem do abatimento de 50 % previsto no artigo 43.º, n.º 2, desse código permite a um contribuinte não residente, como MK, escolher entre um regime fiscal discriminatório, a saber, o previsto no artigo 72.º, n.º 1, do CIRS, e outro que não o é.

Ora, cumpre frisar a este respeito que, no caso em apreço, essa escolha não é suscetível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.

Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 63.º TFUE em razão do seu caráter discriminatório (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C‑440/08, EU:C:2010:148, n.º 52).

Por outro lado, como o Tribunal de Justiça já teve ocasião de precisar, um regime nacional que limite uma liberdade fundamental garantida pelo Tratado FUE, no caso em apreço a livre circulação de capitais, é incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa (v., neste sentido, Acórdão de 18 de março de 2010, Gielen, C‑440/08, EU:C:2010:148, n.º 53 e jurisprudência referida).

Daqui resulta que a escolha concedida, no litígio no processo principal, ao contribuinte não residente, de ser tributado segundo as mesmas modalidades que as aplicáveis aos contribuintes residentes, não é suscetível de tornar a restrição constatada no n.º 32 do presente acórdão compatível com o Tratado.”

Em conclusão, o aresto termina sentenciando:

“Tendo em conta todas as considerações precedentes, importa responder à questão submetida que o artigo 63.º TFUE, lido em conjugação com o artigo 65.º TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um Estado‑Membro que, para permitir que as mais‑valias provenientes da alienação de bens imóveis situados nesse Estado‑Membro, por um sujeito passivo residente noutro Estado‑Membro, não sejam sujeitas a uma carga fiscal superior à que seria aplicada, para esse mesmo tipo de operação, às mais‑valias realizadas por um residente do primeiro Estado‑Membro, faz depender da escolha do referido sujeito passivo o regime de tributação aplicável.”

Assim, há que concluir que o Demandante tem o direito de que seja aplicada à mais-valia imobiliária por si realizada a exclusão parcial de 50% prevista no art.º 43.º, n.º 2, al. b) do CIRS e que, ao não aplicar essa exclusão, o ato de liquidação impugnado padece de vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de direito.

Entendemos que a ilegalidade apontada afeta apenas a parte do ato de liquidação correspondente ao montante que resulta da aplicação da taxa de imposto à parte da mais-valia que devia ser excluída por força do art.º 43º, n.º 2, al. b).

Ora, tendo-se já concluído que a mais-valia realizada, no montante total de 111.711,54 euros, está isenta de imposto, por força do art.º 10.º, n.º 5, em metade do seu valor, no montante de 55.855,77 euros (cinquenta e cinco mil, oitocentos e cinquenta e cinco euros e setenta e sete cêntimos), a exclusão prevista no art.º 43º, n.º 2, al. b) apenas pode ser aplicada à metade restante.

Assim, a exclusão prevista no art.º 43.º, n.º 2, al. b) incidirá sobre o montante de 27.927,89 euros (vinte e sete mil, novecentos e vinte e sete euros e oitenta e nove cêntimos).

 

 

V. Decisão

Nos termos anteriormente expostos, decide-se julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade, por vício de violação de lei, e anular parcialmente a liquidação de IRS n.º 2020..., na parte incidente sobre o montante de 83.783,66 euros (oitenta e três mil, setecentos e oitenta e três euros e sessenta e seis cêntimos) correspondente à parte da mais-valia imobiliária que deve ser excluída da tributação por força do art.º 10º, n.º 5 e do art.º 43.º, nº 2, al. b), ambos do CIRS.

 

VI. Valor do processo

Nos termos do art.º 97º -A nº 1, al. a) do CPPT do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 29º do RJAT e do nº 3 do artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em €31.265,72 (trinta e um mil, duzentos e sessenta e cinco euros e setenta e dois cêntimos).

 

VII. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €1.836,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Demandada.

Notifique-se o Ministério Público, nos termos do artigo 252º do CPC, e do artigo 72º, nº 1, al a) e nº 3 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.

Notifiquem-se as Partes.

 


Porto, 02 de novembro de 2021.

 

O Árbitro

 

 

 

 

 (Nina Aguiar)