Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 722/2020-T
Data da decisão: 2021-09-10  IRC  
Valor do pedido: € 338.256,56
Tema: IRC. Dedutibilidade. Gastos. Juros de empréstimos. Perdas por imparidade. Princípio da especialização dos exercícios.
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DECISÃO ARBITRAL  (consultar versão completa no PDF)

 

                Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. João Pedro Dâmaso e Prof. Doutor Vasco António Branco Guimarães, designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 03-05-2021, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

               

A..., SA, com o número único de matrícula e de pessoa colectiva ..., com sede na Rua ..., ..., ...-... Lisboa, doravante apenas “Requerente”, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), tendo em vista a anulação parcial dos actos de liquidação adicional de IRC relativos aos exercícios de 2015, 2016 e 2017.

A Requerente pede ainda indemnização por garantia indevida.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 03-12-2020.

Em 25-01-2021, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação dos Árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT.

Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 03-05-2021.

A AT apresentou resposta em que defendeu que suscitou a excepção da não formação do indeferimento tácito que é invocado pela Requerente como fundamento da tempestividade da apresentação do pedido de pronúncia arbitral e defendeu que deve julgar-se improcedente o pedido de pronúncia arbitral.

A Requerente apresentou resposta à excepção.

Em 07-07-2021, realizou-se uma reunião em que foi produzida prova testemunhal e decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas simultâneas.

As Partes apresentaram alegações.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.

O processo não enferma de nulidades.

 

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

 

                Consideram-se provados os seguintes factos:

 

A.           A Requerente é uma sociedade de consultoria especializada em Propriedade Intelectual (Propriedade Industrial e Direitos de Autor);

B.            Foi efectuada uma inspecção a Requerente em que foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária (RIT) que consta do documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais o seguinte:

                Em resultado da análise efetuada foram detetadas situações que influenciaram o apuramento correto da matéria coletável, mas que devem ser objeto de correção como se explica nos pontos seguintes:

 

                1) Juros de empréstimos bancários

                Da análise ao Balanço constata-se que o sujeito passivo tem financiamentos obtidos nos montantes de € 1.825.609,92 em 2015, € 1.925.318,41 em 2016 e € 1.300.847,65 em 2017,

Por esse motivo foram solicitados os respetivos contratos de financiamento. Na resposta o sujeito passivo apresentou os seguintes documentos (anexo 2):

 

- Um contrato celebrado com a B... referente ao contrato de abertura de crédito n.º ..., na modalidade de conta-corrente, no valor máximo de €500.000,00, destinado a apoiar o sujeito passivo nas suas necessidades temporárias de tesouraria;

- Um contrato celebrado com o C... respeitante a um empréstimo bancário no montante de € 1.200.000,00, através da conta C… n.º ..., destinado ao financiamento de necessidades pontuais de tesouraria;

- Uma alteração ao contrato de conta corrente caucionada n.º ...  celebrado também com o C..., a fim de manter a abertura de crédito até ao montante máximo de € 249.398,95.

Com base no balancete analítico a 31 de dezembro de cada ano, os financiamentos obtidos encontram-se contabilizados nas seguintes contas:

 

 

                 Nota: Não foram considerados os empréstimos contabilizados nas contas "251227 – Factoring C..." e "251229 -Cartões de crédito"

                Por outro lado, o sujeito passivo concedeu empréstimos à empresa mãe D... SGPS, S. A., NIF..., e às empresas participadas E..., S. A., NIF..., F..., Lda., NIF ... e M... de Macau, conforme balancete analítico a 31 de dezembro de cada ano:

 

                Relativamente aos empréstimos concedidos foi apenas apresentado o contrato celebrado com a D... SGPS, S. A. (anexo 3).

                Da análise aos contratos celebrados constata-se que o sujeito passivo suporta gastos com juros dos financiamentos obtidos.

                Já quanto aos empréstimos concedidos, os mesmos não são remunerados (o contrato apresentado refere claramente essa situação e, apesar de não terem sido apresentados os restantes contratos, na contabilidade do sujeito passivo não consta qualquer rendimento relativo a juros obtidos).

 

                O princípio geral da dedutibilidade dos gastos encontra-se consagrado no artigo 23º do CIRC.

"Artigo 23º Gastos e perdas

(Redação da lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, que republicou o CIRC)

1 – Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

2 – Consideram-se abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, os seguintes gastos e perdas:

(...)

c) De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de obrigações e outros títulos, prémios de reembolso e os resultantes da aplicação do método do juro efectivo aos instrumentos financeiros valorizados pelo custo amortizado; (...)

3 – Os gastos dedutíveis nos termos dos números anteriores devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito."

               

                Atendendo ao mencionado artigo poderemos dizer que são necessários três requisitos essenciais para que os gastos suportados com financiamentos obtidos sejam considerados como fiscalmente dedutíveis:

1 – A sua comprovação, ou seja, a prova documental do mesmo e o correspondente registo contabilístico, requisito geral aplicável a todos os gastos contabilizados previsto no n.º 3 do artigo 23º do CIRC;

2 – A sua conexão à atividade estatutária desenvolvida pela empresa, atividade que se pressupõe geradora de rendimentos sujeitos a IRC, requisito previsto no n.º 1 do artigo 23º do CIRC;

3 – A sua conexão aos encargos de natureza financeira abrangidos pela alínea c) do n.º 2 do artigo 23º do CIRC.

 

                Se quanto ao primeiro requisito se pode confirmar que foi cumprido, o mesmo já não se pode afirmar relativamente aos outros dois.

                Analisando mensalmente os empréstimos obtidos e os empréstimos concedidos:

                 Comparando mensalmente os empréstimos obtidos e os empréstimos concedidos:

                 Como facilmente se observa no quadro anterior, em todos os períodos o montante dos empréstimos concedidos é superior ao montante dos empréstimos obtidos. Aliás, mais se poderá dizer que, à exceção de agosto de 2015, desde abril de 2015, que só o empréstimo concedido à empresa mãe D... SGPS, S. A. (conta 26622) é superior ao valor dos empréstimos obtidos.

                Tendo em atenção o anteriormente exposto relativamente à dedutibilidade dos gastos, podemos dizer que o sujeito passivo suportou encargos financeiros que não geram quaisquer rendimentos sujeitos a IRC, uma vez que este pagou juros às entidades de crédito para financiar gratuitamente as sociedades relacionadas e como tal não tinha necessidade de recorrer ao financiamento para o normal desenvolvimento da sua atividade.

                O disposto no artigo 23º do CIRC pretende evitar a dedutibilidade de gastos com a prossecução de interesses alheios à atividade do sujeito passivo daí que, os gastos contabilizados devem respeitar à própria sociedade contribuinte ou, se não for o caso, devem ser "anulados" através do reconhecimento de rendimentos, de modo a ser ressarcida desses gastos, facto que não se verificou.

                O terceiro requisito exige que os gastos financeiros, para que sejam fiscalmente aceites, se incluam na alínea c) do n.º 2 do artigo 23º do CIRC, isto é, correspondam a dispêndios utilizados na "exploração" da empresa, o que equivale a dizer, na sua atividade estatutária. A referida alínea reconhece como dedutíveis para efeitos fiscais os juros derivados da utilização de capitais alheios, desde que aplicados na exploração o que não se verifica.

                Assim, em face do anteriormente explicado, os juros suportados com os empréstimos obtidos não são aceites fiscalmente pelo que, os valores contabilizados na conta "691112- Juros de empréstimos bancários" nos montantes de € 75.300,07 em 2015, € 72.574,35 em 2016 e € 75.919,87 em 2017 têm de ser acrescidos ao resultado líquido do exercício.

 

                (...)

 

                3) Perdas por imparidades

 

                O sujeito passivo contabilizou nos exercícios de 2016 e 2017 gastos com perdas por imparidade em dívidas a receber de clientes os montantes de €201.230,89 e € 1.194.291,79, respetivamente (conta "6511 – Perdas por imparidade – clientes").

                No quadro 07 da Modelo 22 de IRC o sujeito passivo não acresceu qualquer valor relativo às imparidades contabilizadas pelo que, considerou que todas as imparidades eram fiscalmente dedutíveis.

                Por forma a validar a dedutibilidade fiscal das imparidades de dívidas a receber contabilizadas foi o sujeito passivo notificado para elaborar um mapa discriminando os n.ºs das faturas, data das faturas, nome e NIF dos clientes, valor de cada fatura, montante em dívida, data de vencimento de cada fatura, perda por imparidade acumulada a 31 de dezembro de 2015 e 2016 (para as imparidades de 2016 e 2017, respetivamente), imparidade contabilizada em 2016 e 2017, data das diligências efetuadas para cobrança dos créditos e o motivo da constituição/reforço da perda por imparidade.

                Para alguns clientes foi ainda solicitado cópia das faturas em questão e das diligências efetuadas para a cobrança.

                Numa primeira resposta o sujeito passivo, alegando o elevado número de faturas, apenas apresentou um mapa por antiguidade de saldos e com os valores totais em dívida por cliente.

                Posteriormente apresentou o mapa onde identificou os clientes e respetivos montantes sobre os quais constituiu as imparidades (anexo 5).

                Foram então selecionados alguns clientes e solicitado ao sujeito passivo as cópias das faturas sobre as quais foram constituídas as imparidades e as diligências efetuadas para a sua cobrança.

                A aceitação das perdas por imparidade constituídas tem de respeitar os requisitos previstos nos artigos 28º-A, 28º- B e 18º, todos do CIRC.

                (...)

                Analisando a contabilidade do sujeito passivo desde logo se constata que as imparidades contabilizadas não respeitam o exigido no artigo 28-A mais concretamente na parte final da alínea a) do n.º 1 "possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade" (sublinhado e itálico nosso) pois os créditos de cobrança duvidosa não se encontram evidenciados em qualquer conta da contabilidade. O sujeito passivo limitou-se apenas a contabilizar as imparidades por débito da conta "6511 – Perdas por imparidade – Clientes" por contrapartida a crédito da conta "21911 – Perdas por imparidades acumuladas – cliente cc" não existindo qualquer conta da contabilidade onde se encontrem identificados os créditos considerados de cobrança duvidosa (vide balancetes a 31 de dezembro de 2016 e 2017 no anexo 5).

                Este incumprimento impossibilitava desde logo a aceitação fiscal das imparidades contabilizadas.

                Apesar do referido incumprimento, foi analisado se a documentação apresentada cumpria os restantes requisitos, nomeadamente em termos de montante em mora, datas de vencimento das faturas, percentagem aplicada ao crédito em mora, diligências efetuadas.

                Da análise aos montantes em mora, e como já se referiu, nenhum se encontrava registado numa conta de créditos de cobrança duvidosa. Analisando, no entanto, os valores contabilizados nas contas correntes detetaram-se alguns clientes que o valor em dívida na contabilidade são inferiores às imparidades contabilizadas. Veja-se a título de exemplo os seguintes casos (vide extratos no anexo 5):

- Conta 21112002038 –G... Limited, na contabilidade, pelo menos desde 2015-01-01 o valor em dívida é de € 29.322,64 e a imparidade contabilizada em 2016 foi de € 39.470,00;

- Conta 21111005028- H..., S. A., na contabilidade, pelo menos desde 2015-01-01 o valor em dívida é de € 6.171,31 e a imparidade contabilizada em 2016 foi de € 17.128,51;

- Conta 21111040087 –I..., Lda., na contabilidade, pelo menos desde 2015-01-01 o valor em dívida é de € 596,55 e a imparidade contabilizada em 2016 foi de € 11.373,85;

- Conta 21111041322 – J... Unipessoal, Lda. na contabilidade, pelo menos desde 2015-01-01 o valor em dívida é de € 12.780,43 e a imparidade contabilizada em 2016 foi de € 27.780,43;

- Conta 21111050993 – K..., Lda., na contabilidade, pelo menos desde 2015-01-01 o valor em dívida é de € 1.230,00 e a imparidade contabilizada em 2017 foi de € 6.424,90;

- Conta 21113006202 – L..., P. C., na contabilidade, pelo menos desde 2016-09-30 o valor em dívida é de € 9.327,23 e a imparidade contabilizada em 2017 foi de € 21.839,69;

- Conta 21113039110 M..., na contabilidade, pelo menos desde 2016-09-30 o valorem dívida é de € 4.472,00 e a imparidade contabilizada em 2017 foi de € 19.012,00;

- Conta 21113031331 – N..., este é ainda um cliente com elevado numero de movimentos na conta corrente. Como as imparidades registadas em 2017 (€ 281.486,42) referem-se a alegadas dívidas com mais de 24 meses o valor da imparidade teria de se encontrar na conta corrente pelo menos desde 2015-12-31. No entanto, o saldo em dívida na contabilidade em 2015-12-31 é de € 2.923,15.

 

                Por esta amostragem se pode concluir que além de não existir a obrigatória contabilização numa conta de cobrança duvidosa, mesmo a conta corrente não reflete as imparidades registadas.

                Por outro lado, analisou-se ainda a documentação apresentada relativamente aos clientes selecionados (anexo 5):

- Para o cliente O... (imparidade contabilizada em 2016) foi apresentada uma injunção que deu origem ao processo n.º.../12...YYLSB. As faturas em dívida foram emitidas em 1999, 2000, 2001, 2003,2004, 2005 e 2006;

- Relativamente ao cliente J... Unipessoal, Lda. (imparidade contabilizada em 2016) foi também apresentada uma injunção em 2013 respeitante a faturas emitidas em 2011, 2012 e 2013;

- Para o cliente P..., S. A. foi intentada uma injunção 2010, relativa a faturas de 2008;

- Para o cliente G... Limited (imparidade contabilizada em 2016), as faturas em questão foram emitidas entre 2004 e 2008, tendo sido uma carta enviada ao cliente em 2014-06-19;

- Para o cliente Q... (imparidade contabilizada em 2017 por € 41.178,32), estão em questão faturas desde 2010 até 2015 sendo que foram enviados mails em 2013-05-06 e 2013-07-09 a solicitar o pagamento de € 42.685,05 e € 43.023,30, respetivamente, e sendo que no final de 2013 o saldo em dívida era de €40.296,35;

- Relativamente ao cliente R... as faturas em questão foram emitidas entre 1993 e 2001 tendo sido apresentada uma carta enviada em 2013;

- Já quanto ao cliente N... foram apresentadas várias listagens de faturas emitidas entre 2007 e 2015, nenhuma coincidente com as imparidades contabilizadas, e alegadas diligências desde 2011.

 

                De acordo com o artigo 18º do CIRC as componentes positivas ou negativas do lucro tributável são imputáveis ao exercício em que ocorrem.

                De acordo com o artigo 28-B do CIRC o risco de incobrabilidade está justificado quando os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou estejam em mora há mais de 6 meses e existam provam de terem sido efetuadas diligências com vista à sua cobrança.

                Como se pode observar as alegadas dívidas em questão, são faturas já emitidas há vários anos, algumas em 1993, e também os processos em tribunal foram intentados em 2010, 2012 e 2013.

                Assim, o princípio da especialização dos exercícios obrigava a que a contabilização das imparidades tivesse ocorrido não em 2016 ou 2017 mas sim aquando da reclamação judicial dos créditos, ou, tendo decorrido mais de 6 meses de mora, desde as diligências efetuadas.

                Não está em causa a intromissão da AT na atividade empresarial do sujeito passivo, mas apenas reconhecer que o CIRC tem critérios objetivos para a contabilização das imparidades não podendo o sujeito passivo livremente escolher o exercício em pretende contabilizar as imparidades. Mais se dirá também que, a não ser assim, estaria aberta a hipótese de o sujeito passivo poder fazer planeamento fiscal agressivo através do adiamento de deduções para exercícios em que lhe fossem mais vantajosos podendo desta forma controlar o lucro tributável.

                Temos assim que o sujeito passivo infringiu também o disposto nos artigos 18º, 28-B e 23º todos do CIRC.

                Mais se pode também dizer que os Revisores Oficiais de Contas referem na Certificação Legal de Contas (anexo 5) que "2) Não foi efetuada por parte da gestão uma análise do risco de cobrança dos valores evidenciados em dívidas de terceiros, referente a clientes, outras dívidas a receber e adiantamento a fornecedores, e que apresentam alguma antiguidade, nem nos foi possível o desenvolvimento de procedimentos alternativos que nos permitam quantificar a eventual necessidade de reforçar as perdas por imparidades".

                Este ponto reforça ainda a questão dos procedimentos que o sujeito passivo fez para o cálculo das imparidades contabilizadas.

                Perante todos estes factos as imparidades contabilizadas em 2016 e 2017 não são fiscalmente aceites pelo que os montantes de € 201.230,89 e € 1.194.291,79 devem ser acrescidos ao resultado líquido de 2016 e 2017, respetivamente.

                Resumidamente temos então as seguintes correções aos valores declarados:

 

(...)

 

                VI – REGULARIZAÇÕES EFETUADAS PELO SUJEITO PASSIVO NO DECURSO DA AÇÃO DE INSPEÇÃO

 

                No decurso da ação de inspeção o sujeito passivo regularizou a situação procedendo à entrega, em 2019-11-13, das declarações de rendimentos Modelo 22 de IRC de substituição relativas aos exercícios de 2015 (declaração n.º...), 2016 (declaração n.º...) e 2017 (...) onde acresceu os valores corrigidos:

- 2015: acresceu € 657.870,26 no campo 752 do quadro 07, relativamente à declaração anteriormente entregue;

- 2016: acresceu €201.230,89 no campo 718 e €635.636,89 no campo 752 do quadro 07, relativamente à declaração anteriormente entregue;

- 2017: acresceu € 1.194.291,79 no campo 718 e €509.461,10 no campo 752 do quadro 07, relativamente à declaração anteriormente entregue.

 

                (...)

 

                VIII – OUTROS ELEMENTOS RELEVANTES

                - Em resultado das correções ora propostas, conjuntamente com a liquidação adicional de imposto a entregar ao Estado, serão igualmente liquidados os juros compensatórios que se mostrarem devidos, nos termos do disposto no artigo 102º do CIRC e artigo 35.º da LGT, conforme notas demonstrativas de cálculo, cujo teor será oportunamente notificado ao Sujeito Passivo.

                - Os actos de inspeção iniciados em 2019-06-26, 2019-10-10 e 2019-09-10 (2015, 2016 e 2017, respetivamente), consideram-se concluídos com a notificação das respetivas Notas de Diligência que são remetidas em conjunto com o presente relatório;

- Tratando-se de um procedimento externo de inspeção, sem prorrogação de prazo, a liquidação aproveita da suspensão prevista no artigo 46º da LGT.

 

IX – DIREITO DE AUDIÇÃO – FUNDAMENTAÇÃO

Não aplicável ao caso em apreciação.

 

Em conclusão:

- Não foram efetuadas outras correções além das voluntariamente efetuadas pelo sujeito passivo, motivo pelo qual não se procede à elaboração do Documento de Correção Único;

- Em virtude do requerimento apresentado pelo sujeito passivo (anexo 6), procede-se, nos termos do n.º 3 do artigo 29º do RGIT, à elaboração do relatório sucinto a ser remetido ao Serviço de Finanças de Lisboa ..., não se levantando o Auto de Notícia.

 

 

C.            De harmonia com as declarações de substituição apresentadas pela Requerente no decurso da inspecção, em que deu execução às alterações propostas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, foram emitidas as liquidações:

– relativamente ao exercício de 2015, a liquidação de IRC n.º 2019 2310511249, em que se inclui o valor da liquidação de juros compensatórios n.º 2019..., cujo termo do prazo de pagamento voluntário terminou em 08-01-2020;

– relativamente ao exercício de 2016, a liquidação de IRC n.º 20192310511261, em que se inclui o valor da liquidação de juros compensatórios n.º 2019..., cujo termo do prazo de pagamento voluntário terminou em 13-01-2020;

– relativamente ao exercício de 2017, a liquidação de IRC n.º 2019..., e, que se inclui o valor da liquidação de juros compensatórios n.º 2019..., cujo termo do prazo de pagamento voluntário terminou em 16-01-2020;

(documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

D.           Em 13-07-2020, a Requerente apresentou reclamação graciosa das autoliquidações que efectuou no decurso da inspecção, através das declarações 2015 (declaração nº...), 2016 (declaração nº...) e 2017 (declaração nº...) (documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido e processo administrativo);

E.            A reclamação graciosa não foi decidida até 02-12-2020, data em que a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo;

F.            A Requerente apresentou a garantia bancária n.º..., do C..., para suspender execução fiscal instaurada para cobrança das quantias liquidadas relativamente aos exercícios de 2016 e 2017  (documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

G.           Os empréstimos referidos no RIT foram efectuados a sociedades relacionadas, designadamente a empresa-mãe D... SGPS, S. A., e as participadas E..., S. A., e a F..., Lda, para suprir dificuldades de tesouraria (depoimentos das testemunhas S... e T...);

H.           Os financiamentos obtidos pela Requerente não foram efectuados para efectuar os empréstimos à empresa-mãe e às participadas (depoimentos das testemunhas S... e T...);

I.             A Requerente tinha capitais próprios e não necessitava de todos os financiamentos que contraiu, tendo optado por fazê-los por a taxa de juro estar baixa e preferir investir com dinheiro alheio em vez do próprio (depoimento da teste T...);

J.             A Requerente tinha valores na conta de resultados transitados que podiam ser exigidos pela empresa-mãe D... SGPS, S. A. a título de dividendos (depoimento das testemunhas S... e T...);

K.            A Requerente não cobrou juros pelos empréstimos efectuados porque as empresas relacionadas não podiam pagá-los e a exigência de juros faria aumentar as suas dívidas (depoimento da testemunha S...);

L.            A Requerente tinha interesse em que as empresas do grupo suprissem as dificuldades de tesouraria, por ser ela que dá o nome ao grupo e a eventual falta de pagamentos pelas empresa-mãe e participadas afectaria a reputação da Requerente junto da banca (depoimentos das testemunhas S... e T...);

M.          As empresas relacionadas referidas não teriam possibilidades de subsistirem sem os financiamentos efectuados pela Requerente, pois os bancos não lhes concediam financiamentos (depoimento da testemunha S...);

N.           A Requerente tem cerca de 67.000 clientes (depoimento da testemunha S...);

O.           Se a Requerente reconhecesse imparidades relativamente a todas as dívidas desses clientes poria em causa a reputação destes, o que não interessava à Requerente (depoimento da testemunha S...);

P.            A Requerente não reconhecia imparidades enquanto mantinha a expectativa de que as empresas viessem a pagar e, quando chegava à conclusão de que não pagariam, considerava os créditos de cobrança duvidosa (depoimento da testemunha S...);

Q.           A Requerente continuava a prestar serviços a clientes que tinham dívidas, pois eles embora com atraso, iam pagando algumas facturas, havendo clientes habituais que pagavam as facturas recentes, deixando em dívida as antigas (depoimentos das testemunhas S... e T...);

R.            A Requerente não pretendia prejudicar a reputação desses clientes reconhecendo imparidades enquanto tinha esperança de receber os valores em dívida (depoimentos das testemunhas S... e T...);

S.            Quando chegavam à conclusão que não pagava passava logo para cobrança duvidosa (depoimento da testemunha S...);

T.            A Requerente teve sempre resultados positivos e não tinha interesse em atrasar o reconhecimento de imparidades, pois o atraso prejudicava-a, pois apresentava mais matéria tributável (depoimentos das testemunhas S... e T...);

U.           Devido à quantidade de documentação da Requerente havia divergências no final do ano na contabilização, que iam sendo corrigidas quando eram detectadas (depoimentos das testemunhas S... e T...);

 

 

2.2. Factos não provados

 

Não se provou que a Requerente tivesse obtido financiamentos bancários tendo em vista efectuar financiamentos à sociedade-mãe e suas participadas.

Na verdade, a única prova produzida sobre os motivos que levaram a Requerente a obter financiamentos, que são os depoimentos das testemunhas S... e T..., aponta em sentido contrário, pois afirmaram que os financiamentos obtidos pela Requerente não foram efectuados para efectuar os empréstimos à empresa-mãe e às participadas, que a Requerente tinha capitais próprios e não necessitava de todos os financiamentos que contraiu, tendo optado por fazê-los por a taxa de juro estar baixa e preferir investir com dinheiro alheio em vez do próprio e que a Requerente tinha valores na conta de resultados transitados que podiam ser exigidos pela empresa-mãe D... SGPS, S. A. a título de dividendos.

Os valores mensais de empréstimos obtidos e concedidos apontam também no sentido de não haver uma relação directa entre empréstimos obtidos e concedidos, como indicia, desde logo, o facto de os valores os empréstimos obtidos ter baixado entre Janeiro de 2015 e Dezembro de 2017 (de € 1.546.344,85 para € 1.112.487,61) e ter aumentado, no mesmo período, o valor dos empréstimos concedidos (€ 2.004.351,47 para € 2.522.866.89).

Essa falta de relação directa entre os valores dos empréstimos obtidos e concedidos é acentuadamente evidente entre os meses de Novembro e Dezembro de 2017, em que o valor global dos financiamentos obtidos baixou € 393.540,60 (de € 1.506.028,21 passou a ser de € 1.112.487,61) enquanto o valor dos empréstimos concedidos aumentou € 435.156,84 (de € 2.087.710.05 passou a ser de € 2.522.866.89).

Por isso, não se pode considerar provada a afirmação feita pela Autoridade Tributária e Aduaneira n Relatório da Inspecção Tributária, no sentido de que o sujeito passivo «pagou juros às entidades de crédito para financiar gratuitamente as sociedades relacionadas» os financiamentos obtidos pela Requerente tenham sido efectuados para efectuar financiamentos à sociedade-mãe e participadas.

Assim, o facto de o valor dos empréstimos concedidos ser superior ao dos financiamentos obtidos, em todos os meses do período entre Janeiro de 2015 e Dezembro de 2017, poderia justificar uma conclusão no sentido de que nem todos os empréstimos obtidos seriam necessários para a actividade da Requerente, mas não que nenhum deles em nenhuma medida era necessário para  actividade da Requerente.

 

2.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e, nos pontos indicados, com base na prova testemunhal e por declarações de parte.

As testemunhas S..., T... e U... aparentaram depor com isenção e com conhecimento pessoal dos factos que foram dados como provados com base nos seus depoimentos.

A testemunha S... é contabilista e consultor da Requerente.

A testemunha T... trabalha no departamento financeiro da Requerente desde 1995 e foi quem contratou todos os empréstimos.

A testemunha U... é inspector tributário que fez a inspecção a Requerente.

 

3. Excepção da intempestividade

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira suscita a excepção da intempestividade do pedido de pronúncia arbitral por ser intempestiva a reclamação graciosa e por o pedido de pronúncia arbitral ter sido presentado mais de 90 dias após o termo do prazo de pagamento voluntário das liquidações.

Os prazos de pagamento voluntário das liquidações terminaram em 08-01-2020, 13-02-2020 e 16-01-2020, relativamente às liquidações referentes aos exercícios de 2015, 2016 e 2017, respectivamente.

Em 13-07-2020, a Requerente apresentou reclamação graciosa das autoliquidações que efectuou no decurso da inspecção, através das declarações 2015 (declaração nº...), 2016 (declaração nº...) e 2017 (declaração nº...) (documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido e processo administrativo).

A reclamação graciosa não foi decidida até 02-12-2020, data em que a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem a este processo.

Os prazos para apresentação de reclamação graciosa estiveram suspensos entre 09-03-2020 e opor forma do preceituado na alínea c) do n.º 6 e no n.º 7 do artigo 7.º, com referência ao seu n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção inicial e n.ºs 1, 9, alínea c), e 10, na redacção da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril.

Os efeitos da suspensão produziam-se desde 9 de Março de 2020, nos termos do artigo 6.º da Lei 4-A/2020, de 06 de Abril, até à revogação daquela norma pelo artigo 8.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, que entrou em vigor em 03-06-2020, nos termos do seu artigo 10.º.

Assim, considerando a suspensão e sendo de 120 dias o prazo para apresentação de reclamação graciosa (artigo 70.º, n. 1, do CPPT), os prazos respectivos para impugnar as liquidações terminaram em 02-08-2020, 07-08-2020 e 10-08-2020.

Por isso, a reclamação graciosa apresentada em 13-07-2020 foi tempestiva.

Sendo de 4 meses o prazo para decisão da reclamação graciosa (artigo 57.º, n.º 1, da LGT) ela considera-se indeferida tacitamente em 13-11-2020, nos termos do n.º 5 do mesmo artigo.

É desta data de 13-11-2020 que se conta o prazo de 90 dias para apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, com referência à alínea d) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 02-12-2020, pelo que é manifesta a sua tempestividade.

Improcede, assim, a excepção suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

4. Matéria de direito

 

Na sequência de uma inspecção a Requerente, a Autoridade Tributária e Aduaneira efectuou correcções em sede de IRC, relativas a juros de empréstimos bancários e perdas por imparidade, que são impugnadas pela Requerente.

 

3.1. Juros de empréstimos bancários

 

Nos exercícios de 2015, 2016 e 2017, a Requerente suportou encargos financeiros com empréstimos obtidos de entidades bancárias e, nesses mesmos períodos efectuou empréstimos não remunerados a entidades relacionadas, designadamente a suas participadas e à empresa-mãe.

A Autoridade Tributária e Aduaneira, invocando o artigo 23.º, n.ºs 1, 2, alínea c), e 3 do CIRC, entendeu que nenhum desses encargos financeiros era relevante como gasto da Requerente, afirmando o seguinte:

 

                «em todos os períodos o montante dos empréstimos concedidos é superior ao montante dos empréstimos obtidos. Aliás, mais se poderá dizer que, à exceção de agosto de 2015, desde abril de 2015, que só o empréstimo concedido à empresa mãe D... SGPS, S. A. (conta 26622) é superior ao valor dos empréstimos obtidos.

                Tendo em atenção o anteriormente exposto relativamente à dedutibilidade dos gastos, podemos dizer que o sujeito passivo suportou encargos financeiros que não geram quaisquer rendimentos sujeitos a IRC, uma vez que este pagou juros às entidades de crédito para financiar gratuitamente as sociedades relacionadas e como tal não tinha necessidade de recorrer ao financiamento para o normal desenvolvimento da sua atividade».

 

A Requerente defende, em suma, que os empréstimos contraídos não se destinaram ao financiamento das sociedades relacionadas e que foram efectuados no seu interesse por as dificuldades financeiras dessas sociedades afectar a sua própria reputação, por ser ela quem dá nome ao grupo de empresas.

                O artigo 23.º do CIRC estabelece o seguinte, no que aqui interessa:

 

Artigo 23.º

 

Gastos e perdas

 

1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

 

2 - Consideram-se abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, os seguintes gastos e perdas:

 

(...)

c) De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de obrigações e outros títulos, prémios de reembolso e os resultantes da aplicação do método do juro efetivo aos instrumentos financeiros valorizados pelo custo amortizado;

 

Os encargos financeiros são expressamente indicados na alínea c) do n.º 2 do artigo 3.º do CIRC como um dos tipos de gastos relevantes para a determinação do lucro tributável.

A exigibilidade para relevância de gastos em sede de IRC de uma relação directa em encargos suportados e a obtenção de rendimentos tem vindo a ser afastada pela doutrina e pela jurisprudência.

Como entendeu o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 27-06-2018, proferido no processo n.º 01402/17, tirado por unanimidade, «o conceito de indispensabilidade dos custos, a que se reporta o artº 23º do CIRC refere-se aos custos incorridos no interesse da empresa ou suportado no âmbito das actividades decorrentes ao seu escopo societário. Só quando os custos resultarem de decisões que não preencham tais requisitos, nomeadamente quando não apresentem qualquer afinidade com a actividade da sociedade, é que deverão ser desconsiderados».

«A noção legal de indispensabilidade recorta-se (...) sobre uma perspectiva económico-empresarial, por preenchimento, directo ou indirecto, da motivação última para a obtenção do lucro. Os custos indispensáveis equivalem aos gastos contraídos no interesse da empresa ou, por outras palavras, em todos os actos abstractamente subsumíveis num perfil lucrativo.» (…) «A indispensabilidade subsume-se a todo e qualquer acto realizado no interesse da empresa (…) A noção legal de indispensabilidade reprime, pois, os actos desconformes com o escopo da sociedade, não inseríveis no interesse social, sobretudo porque não visam o lucro”. (   )

«Indispensabilidade não significa, pois, um nexo de causalidade obrigatória com rendimentos/proveitos, nem que, a posteriori, se devem verificar ou comprovar necessariamente efeitos económicos lucrativos decorrentes de tais gastos. Desde que os gastos resultem de actos de gestão que, com base na informação conhecida aquando da sua execução, pudessem ter como objectivo a obtenção esperada de rendimentos ou a manutenção da fonte produtora (física, intangível, financeira ou outra) tal deverá conduzir à aceitação da sua dedutibilidade». (    )

A esta luz, a circunstância de os financiamentos obtidos não estarem conexionados directamente com a obtenção de rendimentos sujeitos a IRC não obsta à dedutibilidade dos encargos financeiros como gastos, pois, designadamente no caso e empréstimos a sociedades participadas, estes «estão conexionados com a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora da empresa participante que contraiu os empréstimos e pagou os encargos financeiros correspondentes. A lógica empresarial e de grupo de empresas frequentemente aconselhará que os empréstimos sejam contratualizados pela empresa dominante, tendencialmente aquela que, pela sua dimensão e prestígio, se encontra melhor posicionada para os obter junto das instituições bancárias com condições mais favoráveis. Nada na lei comercial o impede, competindo a análise desse procedimento às próprias empresas do grupo, sem que a Administração Tributária se possa imiscuir em tal opção empresarial, por o direito fiscal não impor comportamento diverso». (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21-02-2018, proferido no processo n.º 0473/13).

Esta jurisprudência afigura-se aplicável também aos casos de empréstimos à sociedade-mãe pois, embora esta não seja directamente fonte de rendimentos das participadas, a referida «lógica empresarial e de grupo de empresas frequentemente aconselhará que os empréstimos sejam contratualizados pela empresa ... que, pela sua dimensão e prestígio, se encontra melhor posicionada para os obter junto das instituições bancárias com condições mais favoráveis», o que, neste caso, era a Requerente.

De resto, especificamente situações deste tipo de operações entre entidades relacionadas em que não sejam «contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis», as correcções adequadas a efectuar, nos termos do artigo 63.º do CIRC, reconduzem-se à aplicação desses termos ou condições  que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes¸ em relação a ambas as empresas relacionadas (n.º 11 deste artigo 63.º, na redacção da ei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, n.ºs 9 e 13 na redacção da Lei n.º 119/2019, de 18 de Setembro) e não à desconsideração como gastos de encargos efectivamente suportados no interesse das entidades que os suportam.

Assim, não tem suporte legal o primeiro fundamento invocado pela Autoridade Tributária e Aduaneira de que os financiamentos «não geram quaisquer rendimentos sujeitos a IRC».

                De resto, mesmo que os empréstimos que geraram os encargos financeiros tivessem sido para efectuar os financiamentos a sociedades relacionadas (o que não se provou) não seria de excluir a relevância fiscal dos gastos, uma vez que da prova produzida resulta que a Requerente tinha interesse próprio empresarial em efectuar tais financiamentos, para evitar danos reputacionais que adviriam para a Requerente (que dá nome ao grupo) das dificuldades financeiras das sociedades relacionadas.

Assim, a correcção efectuada relativamente aos gastos com os financiamentos obtidos pela Requerente, para além de enfermar de vício de erro sobre os pressupostos de facto (ao ter por base o entendimento de que os empréstimos foram contraídos para efectuar os financiamentos às sociedades relacionadas), enferma também de vício de erro sobre os pressupostos de direito (por assentar numa errada interpretação do artigo 23.º, n.º 1, do CIRC).

 

                3.2. Perdas por imparidade

 

Os artigos 28.º-A e 28.º-B do CIRC estabelecem o seguinte, no que aqui interessa:

 

 

Artigo 28.º-A

 

Perdas por imparidade em dívidas a receber

 

1 - Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes perdas por imparidade, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores:

 

a) As relacionadas com créditos resultantes da atividade normal, incluindo os juros pelo atraso no cumprimento de obrigação, que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade;

 

Artigo 28.º-B

 

Perdas por imparidade em créditos

 

1 - Para efeitos da determinação das perdas por imparidade previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, consideram-se créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos:

a) O devedor tenha pendente processo de execução, processo de insolvência, processo especial de revitalização ou procedimento de recuperação de empresas por via extrajudicial ao abrigo do Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto;

b) Os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral;

c) Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento e existam provas objetivas de imparidade e de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento

 

2 - O montante anual acumulado da perda por imparidade de créditos referidos na alínea c) do número anterior não pode ser superior às seguintes percentagens dos créditos em mora:

 

a) 25 % para créditos em mora há mais de 6 meses e até 12 meses;

b) 50 % para créditos em mora há mais de 12 meses e até 18 meses;

c) 75 % para créditos em mora há mais de 18 meses e até 24 meses;

d) 100 % para créditos em mora há mais de 24 meses.

 

                A Autoridade Tributária e Aduaneira efectuou correcções relativamente a perdas por imparidade, pelas seguintes razões, em suma:

 

– «Analisando a contabilidade do sujeito passivo desde logo se constata que as imparidades contabilizadas não respeitam o exigido no artigo 28-A mais concretamente na parte final da alínea a) do n.º 1 "possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade" (sublinhado e itálico nosso) pois os créditos de cobrança duvidosa não se encontram evidenciados em qualquer conta da contabilidade. O sujeito passivo limitou-se apenas a contabilizar as imparidades por débito da conta "6511 – Perdas por imparidade – Clientes" por contrapartida a crédito da conta "21911 – Perdas por imparidades acumuladas – cliente cc" não existindo qualquer conta da contabilidade onde se encontrem identificados os créditos considerados de cobrança duvidosa ...»

                               «Este incumprimento impossibilitava desde logo a aceitação fiscal das imparidades contabilizadas»;

– «a conta corrente não reflete as imparidades registadas»;

                               «Analisando, no entanto, os valores contabilizados nas contas correntes detetaram-se alguns clientes que o valor em dívida na contabilidade são inferiores às imparidades contabilizadas»;

– «De acordo com o artigo 28-B do CIRC o risco de incobrabilidade está justificado quando os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou estejam em mora há mais de 6 meses e existam provam de terem sido efetuadas diligências com vista à sua cobrança.

                Como se pode observar as alegadas dívidas em questão, são faturas já emitidas há vários anos, algumas em 1993, e também os processos em tribunal foram intentados em 2010, 2012 e 2013.

                Assim, o princípio da especialização dos exercícios obrigava a que a contabilização das imparidades tivesse ocorrido não em 2016 ou 2017 mas sim aquando da reclamação judicial dos créditos, ou, tendo decorrido mais de 6 meses de mora, desde as diligências efetuadas»;

– «Temos assim que o sujeito passivo infringiu também o disposto nos artigos 18º, 28-B e 23º todos do CIRC».

 

                Como se vê, são três os fundamentos para a não aceitação da relevância fiscal das perdas por imparidade:

– os créditos não estarem evidenciados na contabilidade, numa conta própria, como sendo de cobrança duvidosa, sendo imediatamente contabilizadas as imparidades por débito da conta "6511 – Perdas por imparidade – Clientes;

– não observância do princípio da especialização dos exercícios, por as imparidades não serem reconhecidas logo que o risco de incobrabilidade estava justificado, por reclamação judicial de créditos ou mora por mais de seis meses;

– a conta corrente não reflectir as imparidades registadas, sendo, designadamente, detectados casos em que os valores em dívida são inferiores às imparidades contabilizadas.

 

                Não é questionada pela Autoridade Tributária e Aduaneira a verificação dos outros requisitos necessários para a relevância fiscal de perdas por imparidade, designadamente que se trate de créditos em mora há mais de 24 meses e que tenha havido provas objectivas de tentativas de cobrança.

                O processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por actos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele], pelo que os actos têm de ser apreciados tal como foram praticados, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos. (   )

                Assim, a fundamentação sucessiva ou a posteriori não é relevante para aferir a sua suficiência, quando não acompanhada de revogação e prática de um novo acto. (   )

                Por isso, são apenas os indicados os fundamentos relevantes para apreciação da legalidade das correcções, não sendo, designadamente, atendível eventual falta de diligências de cobrança, não invocadas no Relatório da Inspecção Tributária.

               

                3.2.1. Falta de identificação dos créditos na contabilidade como sendo de cobrança duvidosa

               

                O artigo 28.º, n.º 1, alínea a) do CIRC estabelece que «podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes perdas por imparidade, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores: a) As relacionadas com créditos resultantes da atividade normal, incluindo os juros pelo atraso no cumprimento de obrigação, que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade».

                O primeiro fundamento da não aceitação das perdas por imparidade é o de não existir qualquer conta da contabilidade onde se encontrem identificados os créditos considerados de cobrança duvidosa.

                No entanto, a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem vindo a entender que o requisito formal da evidenciação dos créditos na contabilidade como sendo de cobrança duvidosa tem apenas em vista permitir apurar o cumprimento do princípio da especialização dos exercícios e que a prova da verificação dos requisitos substantivos das imparidades pode ser feita por qualquer meio de prova, inclusivamente testemunhal. (   )  

                Por outro lado, no Plano Oficial de Contabilidade (POC), previa-se o registo de ajustamentos quando existisse um risco de cobrança de dívidas, que deveriam ser registados na conta 28 – Ajustamentos de dívidas a receber por contrapartida da conta 666– Ajustamentos de dívidas a receber. Mas, no Sistema de Normalização Contabilística (SNC),  os ajustamentos relativos a perdas por imparidade passaram a ser efectuados directamente na conta de activo (na conta 219 – "Clientes – Perdas por imparidade acumuladas") por contrapartida de gastos (conta 65 – "Perdas por imparidade"), passando esta conta de activo a estar valorizada pela respectiva quantia escriturada (custo menos perda por imparidade acumulada).

                Aliás, a Autoridade Tributária e Aduaneira não identifica qual a conta ou contas do SNC em que entende que devia estar evidenciados os créditos de cobrança duvidosa.

                Afigura-se, assim, que numa interpretação actualista da referência que no artigo 28.º-A do CIRC se faz a evidenciação dos créditos de cobrança duvidosa na contabilidade, não será exigível outra que não seja a que está ínsita nas referidas contas do SNC e respectivos Códigos de Contas (   ), o que a Requerente fez («conta "6511 – Perdas por imparidade – Clientes" por contrapartida a crédito da conta "21911 – Perdas por imparidades acumuladas – cliente cc", como se refere no Relatório da Inspecção Tributária).

 

                3.2.2. Não cumprimento do princípio da especialização dos exercícios

 

                Por outro lado, a jurisprudência dos Tribunais Superiores tem também entendido que «considerando o princípio da especialização dos exercícios, no caso da constituição de provisões por créditos de cobrança duvidosa, estas só podem ser consideradas como custo fiscal do exercício no qual os créditos em causa foram considerados como sendo de cobrança duvidosa e como tal contabilizados, não sendo aqui relevante o momento em que o crédito entre em mora». (   ) «No regime do C.I.R.C., a constituição de provisões para cobertura de créditos de cobrança duvidosa é imputável, não ao exercício da constituição dos créditos, mas sim ao exercício em que se verifica o risco de incobrabilidade. Ou seja, não é a data da constituição dos créditos ou a verificação de certo prazo de mora que releva para o efeito, mas sim a data da verificação do risco de incobrabilidade, data esta que deve estar devidamente justificada, sob pena de violação do citado princípio da especialização dos exercícios» (   ).

                Na mesma linha decidiu o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 30-04-2003, processo n.º 0101/03, que «para que a provisão seja recusada como custo fiscal não basta,  pois, invocar que os créditos já estavam em mora há mais de seis meses  aquando da constituição da provisão, importando que a Administração  afirme, e isso se prove no processo de impugnação judicial, que a  incobrabilidade dos créditos foi verificada em exercícios anteriores  àquele em que ocorreu essa constituição, e isso evidenciado na  contabilidade do contribuinte, pois só neste caso há ofensa do princípio  da especialização dos exercícios, a justificar o não atendimento da  provisão como custo fiscal do exercício».

                Assim, se é certo que o princípio da especialização dos exercícios, quando se está perante componentes negativas do lucro tributável, não só permite, mas até impõe, que a relevância fiscal da componente negativa da liquidação seja atribuída no exercício em que a perda deve ser reconhecida (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28-01-2015, processo n.º 0652/14), também é certo que esse reconhecimento só tem de ocorrer quando o sujeito passivo tiver razões para deixar de ter a expectativa de que os créditos não virão a ser pagos, o que não tem de ocorrer necessariamente logo que ocorreu reclamação judicial de créditos ou mora por mais de seis meses.

                À face da jurisprudência referida, a reclamação judicial de créditos ou mora por mais de seis meses meros factos indiciadores de cobrança de duvidosa previstos como requisitos mínimos para se poder concluir pela natureza duvidosa da cobrança dos créditos e não factos que imponham aos sujeitos passivos que atribuam essa qualificação aos créditos, quando mantinham a expectativa de que viriam a se pagos.

                Esta interpretação está em sintonia com o objectivo da formulação de requisitos específicos para a relevância fiscal das perdas por imparidade de créditos que têm em vista «prevenir a utilização abusiva da conta das provisões contabilísticas, permitida pelo uso do conceito indeterminado de “créditos de cobrança duvidosa”», visando o adiamento do pagamento do imposto e não proibir essa relevância atrasada, em situações em que não se detectar qualquer vantagem para o sujeito passivo.

                A razoabilidade desta interpretação afigura-se clara quando se tem em mente que o sujeito passivo terá, em princípio, interesse na antecipação dos efeitos fiscais das perdas de créditos que o regime das imparidades consubstancia, pelo que, numa interpretação teleológica do regime das imparidades, só nos casos em que haja prova de que o sujeito passivo já tinha expectativas negativas sobre a viabilidade de cobrança  dos créditos e adiou propositadamente a constituição de imparidades por razões de planeamento fiscal (como, por exemplo, evitar constituir as imparidades em exercícios em que não tivesse lucro tributável) se poderá justificar, à luz do princípio da prossecução do interesse público (artigos 266.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 55.º da LGT), seja afastada a relevância fiscal das imparidades em exercícios posteriores àqueles em que se verificaram esses factos indiciadores.

                Na verdade, fora desses casos em que seja detectada inobservância de regras com objecto de obter vantagens fiscais, não há interesse público na não atendibilidade da relevância das imparidades em exercícios posteriores àqueles em que seria possível constituir imparidades, pois, em última análise, o erário público até é beneficiado com o diferimento dos efeitos fiscais dessas imparidades.

                 No caso em apreço, como resulta prova testemunhal, apesar da reclamação judicial de créditos e da mora por mais de seis meses, a Requerente «não reconhecia imparidades enquanto mantinha a expectativa de que as empresas viessem a pagar e, quando chegava à conclusão de que não pagariam, considerava os créditos de cobrança duvidosa», o que se afigura além de ser razoável ter suporte legal, à luz da jurisprudência referida.

               

                3.2.3. Princípio da justiça

 

                Estas conclusões sobre o alcance dos requisitos para relevância das perdas por imparidade de créditos são reforçadas pelo princípio da justiça, invocado pela Requerente.

A Administração Tributária tem de orientar a sua actividade pela prossecução do interesse público (artigo 266.º, n.º 1, da CRP), que se reconduz, em IRC, a que os contribuintes paguem o que devem em função do seu rendimento (artigo 104.º, n.º 2, da CRP), o que não se compatibiliza com o aproveitamento parcial pela Administração Tributária dos efeitos de erros dos contribuintes sobre a imputação de gastos e perdas, dando-lhes relevo apenas no exercício em que podem proporcionar maior cobrança fiscal e não  também naquele ou naqueles exercícios em que desses mesmos gastos resultaria menor receita fiscal, porque daí resultaria um enriquecimento injustificado do erário público.

                Os princípios constitucionais enunciados no n.º 2 do art. 266.º da CRP, para além de terem aplicação no que concerne aos actos praticados no exercício de poderes discricionários, introduzindo neste exercício aspectos vinculados cuja não observância é susceptível de constituir vício de violação de lei, não esgotam aí a sua aplicabilidade, aplicando-se também ao domínio de poderes vinculados, limitando o alcance das normas específicas que regulam situações determinadas, tendo no âmbito do direito administrativo e tributário uma função idêntica à que no âmbito do direito civil tem o princípio do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil). (   )

                No específico âmbito do direito tributário, em que são raros e pouco relevantes os casos de atribuição de poderes discricionários, a aplicação daqueles princípios constitucionais é reafirmada pelo artigo 55.º da LGT cumulativamente com o princípio da legalidade, o que revela que são princípios que devem ser ponderados e aplicados concomitantemente, com as limitações recíprocas que forem necessárias para sua optimização, quando forem incompagináveis as soluções a que cada um deles conduz.

                Assim, na aplicação das leis tributárias, as normas que regulam uma determinada situação específica não podem ser encaradas isoladamente, antes terá de se atender à globalidade do sistema jurídico, com primazia para o direito constitucional, em que se englobam aqueles princípios, que também fazem também parte do bloco normativo aplicável e são também definidores da legalidade.

                Tanto são normas legais a primeira parte do n.º 2 do art. 266.º da CRP e do artigo 55.º da LGT, que prevêem o princípio da legalidade, como as partes restantes que enunciam os outros princípios, como cada norma que, em determinada situação específica, impõe que a Administração Tributária efectue uma correção à matéria tributável ou uma liquidação.

                Nesta linha de entendimento, a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a reconhecer que a aplicação do princípio da justiça prevalece sobre o princípio da legalidade estrita, nomeadamente em situações em que da violação deste não há prejuízo para o interesse público. (   )

                Mas, não se pode olvidar que o princípio da legalidade estrita (subordinação à Constituição e à lei) é também um princípio constitucional enunciado no n.º 2 do artigo 266.º da CRP, pelo que a optimização da aplicação conjunta desse princípio e dos princípios da justiça e da proporcionalidade será atingida reservando a aplicação destes para os casos em que se seja manifesta a inaceitabilidade das consequências da aplicação da solução normativa especificamente prevista para determinada situação. (   )

                Neste contexto, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem desde há muito adoptado o entendimento de que em situações em que eventuais erros na aplicação do princípio da especialização dos exercícios se reconduzem em prejuízo para o próprio sujeito passivo e não para o erário público.

Interpretando o artigo 18.º, n.º 1, do CIRC, em conjugação com artigo 23.º, n.º 1, do mesmo Código, conclui-se que as perdas por imparidade se consideram componente negativa do lucro tributável do exercício em que devem ser reconhecidas.

E, em princípio, apenas nesse exercício em que a perda por imparidade deve ser reconhecida (aquele em que o sujeito passivo deixou de ter expectativas fundadas de que as dívidas viriam a ser pagas) é que lhe pode ser atribuída relevância fiscal, sem prejuízo de eventual aplicação do princípio da justiça, invocado pelo Requerente, que o Supremo Tribunal Administrativo vem entendendo uniformemente que deve atenuar a rigidez do princípio da especialização dos exercícios. (   )

Da observância concomitante dos princípios da legalidade e da justiça conclui-se que o dever de a Administração Tributária aplicar o princípio da legalidade não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente regulam determinadas situações, abrangendo também o dever de a Administração ter em conta as consequências da sua actividade e abster-se da aplicação estrita de normas quando dela decorra um resultado manifestamente injusto

O Supremo Tribunal Administrativo tem decidido, relativamente ao princípio da especialização dos exercícios, que «esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos (agora gastos) referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios». (   )

Aliás, há muito que a Administração Tributária reconheceu a necessidade de flexibilidade na aplicação do princípio da especialização dos exercícios, no Ofício-Circular n.º C-1/84, de 8-6-84, publicado, com o respectivo parecer, em Ciência e Técnica Fiscal, n.ºs 307-309, páginas 781-791, em que se adoptou o seguinte entendimento, a propósito da questão paralela que se colocava no domínio da Contribuição Industrial:

 

                Sempre que em determinado exercício existam custos e proveitos de exercícios anteriores, o tratamento fiscal correspondente deverá obedecer às seguintes regras:

a) Não aceitação dos custos e dos proveitos resultantes de omissões voluntárias ou intencionais no exercício em que são contabilizados, considerando-se, em princípio, como tais as que forem praticados com intenções fiscais, designadamente, quando:

                - está para expirar ou para se iniciar um prazo de isenção;

- o contribuinte tem interesse em reduzir os prejuízos em determinado exercício para retirar maior benefício do reporte dos prejuízos previsto no artigo 43.º do Código;

- o contribuinte pretende reduzir o montante dos lucros tributáveis para aliviar a sua carga fiscal.

                b) Nos restantes casos, não deverão corrigir-se os custos e proveitos de exercícios anteriores.

 

Subjacente à referida jurisprudência está a circunstância de o sujeito passivo ter sido prejudicado ou não ter tido vantagem pelo atraso da relevância fiscal do gasto, que, a verificar-se, é um elemento de relevo decisivo para presumir que o erro foi involuntário e não intencional.

No caso em apreço, não se demonstra qualquer vantagem da Requerente em atrasar a relevância fiscal das perdas por imparidade referidas.

Na verdade, por um lado, o próprio diferimento da consideração fiscal de gastos, obrigando o sujeito passivo a suportar o pagamento de um imposto que podia ser evitado, é, em si mesmo, prejudicial para o sujeito passivo, pois atrasa a disponibilidade da quantia de imposto que resulta da consideração dos gastos.

Como resulta da prova produzida, a Requerente teve sempre resultados positivos e não tinha interesse em atrasar o reconhecimento de imparidades, pois o atraso prejudicava-a, uma vez que apresentava mais matéria tributável nos exercícios anteriores.

Por outro lado, a taxa geral de IRC, prevista no artigo 87.º do CIRC, até baixou no ano de 2014, passando para 23%, substituindo a anterior taxa geral de 25%, pelo que o benefício a nível da diminuição de imposto que adveio para a Requerente de ter imputado o gasto em exercícios posteriores a 2013 foi consideravelmente menor do que se lhe tivesse dado relevância em qualquer dos exercícios anteriores.

Assim, não há qualquer razão para crer que o atraso na consideração fiscal das perdas por imparidade tenha como motivação obter qualquer vantagem fiscal e, pelo contrário, é de concluir a Requerente foi prejudicada com tal atraso.

Nestas condições, em que a Requerente já foi prejudicada pelo erro em que incorreu, é flagrante a injustiça que consubstanciaria a não relevância tardia das perdas por imparidade, agravando consideravelmente o seu prejuízo, já que a Autoridade Tributária e Aduaneira nem fez qualquer correcção simétrica relativa aos exercícios a que entendeu dever ser imputável a perda por imparidade, com correlativo benefício injustificado do erário público.

                Pelo exposto, as correcções efectuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira relativamente às perdas por imparidade comprovadas (isto é, com excepção daquelas cujos valores em dívida são inferiores às imparidades) enfermam de vício de violação de lei por erro de interpretação o artigo 28.º-A do CIRC e do princípio da especialização dos exercícios, enunciado no artigo 18.º do CIRC, limitado à luz do princípio da justiça.

                Estes vícios justificam a anulação das liquidações relativas aos exercícios de 2016 e 2017 nas partes em que tem subjacentes estas correcções.

 

                3.2.4. Situações em que os valores em dívida são inferiores às imparidades contabilizadas

 

                A Autoridade Tributária e Aduaneira identificou no Relatório da Inspecção Tributária várias situações em que os valores em dívida indicados na contabilidade são inferiores às imparidades contabilizadas, designadamente os seguintes:

- Conta 21112002038 – G... Limited, na contabilidade, pelo menos desde 2015-01-01 o valor em dívida é de € 29.322,64 e a imparidade contabilizada em 2016 foi de € 39.470,00;

- Conta 21111005028- H..., S. A., na contabilidade, pelo menos desde 2015-01-01 o valor em dívida é de € 6.171,31 e a imparidade contabilizada em 2016 foi de € 17.128,51;

- Conta 21111040087 – I..., Lda., na contabilidade, pelo menos desde 2015-01-01 o valor em dívida é de € 596,55 e a imparidade contabilizada em 2016 foi de € 11.373,85;

- Conta 21111041322 – J... Unipessoal, Lda. na contabilidade, pelo menos desde 2015-01-01 o valor em dívida é de € 12.780,43 e a imparidade contabilizada em 2016 foi de € 27.780,43;

- Conta 21111050993 – K..., Lda., na contabilidade, pelo menos desde 2015-01-01 o valor em dívida é de € 1.230,00 e a imparidade contabilizada em 2017 foi de € 6.424,90;

- Conta 21113006202 -L..., P. C., na contabilidade, pelo menos desde 2016-09-30 o valor em dívida é de € 9.327,23 e a imparidade contabilizada em 2017 foi de € 21.839,69;

- Conta 21113039110 M..., na contabilidade, pelo menos desde 2016-09-30 o valorem dívida é de € 4.472,00 e a imparidade contabilizada em 2017 foi de € 19.012,00;

- Conta 21113031331 – N..., este é ainda um cliente com elevado numero de movimentos na conta corrente. Como as imparidades registadas em 2017 (€ 281.486,42) referem-se a alegadas dívidas com mais de 24 meses o valor da imparidade teria de se encontrar na conta corrente pelo menos desde 2015-12-31. No entanto, o saldo em dívida na contabilidade em 2015-12-31 é de € 2.923,15.

 

                É óbvio que, nestas situações se justificam correcções, relativamente ao valor das imparidades em excesso.

                Mas, como defende a Requerente, só haverá violação de lei pela Requerente quanto «aos valores das diferenças, concretamente, verificadas no relatório de inspeção, tal como dele consta a pgs. 19, as quais são nos montantes de 46.881,86 e 32.247,36, para os anos de 2016 e 2017, respetivamente».

                Na verdade, pelo que se referiu no ponto anterior, nas partes em que estas imparidades não excedem os valores das dívidas contabilizadas, não há fundamento para correcções.

                De qualquer forma, tendo a Autoridade Tributária e Aduaneira com base na constatação do excesso das imparidades em relação aos valores da dívidas, recusado a relevância fiscal à totalidade das imparidades referidas, destas correcções enfermam também de vício de violação de lei, pelo que se referiu no ponto anterior, sem prejuízo de eventual possibilidade de a Autoridade Tributária e Aduaneira  renovar as correcções limitadas ao excesso  das imparidades em relação aos créditos que lhe estão subjacentes.

                Pelo exposto, procede o pedido de pronúncia arbitral quanto às correcções relativas às imparidades.

 

                3.3. Conclusão

 

                Das correcções efectuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, no montante global de € 3.198.490,93, a Requerente apenas impugna as relativas aos juros de empréstimos bancários, no montante de € 223.794,29, e às perdas por imparidades, no montante global de € 1.395.522,68.

                Pelo que se referiu, o pedido de pronúncia arbitral procede na totalidade, quanto às correcções impugnadas pelo que deverão ser anuladas as liquidações impugnadas, em que se incluem as liquidações de juros compensatórios, na partes correspondentes às correcções impugnadas.

               

                4. Indemnização por garantia indevida  

 

A Requerente prestou garantia bancária para suspender execução fiscal instaurada para cobrança das quantias liquidadas relativamente aos exercícios de 2016 e 2017 e formula pedido de indemnização, nos termos do artigo 53.º da LGT.

O artigo 171.º do CPPT estabelece que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda» e que «a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência».

Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.

O pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido artigo 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.

O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:

Artigo 53.º

Garantia em caso de prestação indevida

                1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior   três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

                2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando O príncipe se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

                3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

                4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.

 

No caso em apreço, é manifesto que os erros subjacentes às liquidações impugnadas são imputáveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, pois as autoliquidações foram efectuadas de harmonia com o decidido pela Autoridade Tributária e Aduaneira no processo inspectivo e essas autoliquidações foram confirmadas pela emissão das liquidações impugnadas.

Por isso, a Requerente tem direito a indemnização pela garantia prestada.

Não havendo elementos que permitam determinar o montante exacto da indemnização, a condenação terá de ser efectuada com referência ao que vier a ser liquidado em execução do presente acórdão, de harmonia com o preceituado no artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

                               5. Decisão          

 

                De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)           Anular parcialmente as seguintes liquidações, mas partes em que têm como pressupostos as correcções relativas a juros de empréstimos bancários e perdas por imparidade:

– liquidação de IRC n.º 2019..., em que se inclui o valor da liquidação de juros compensatórios n.º 2019...;

– liquidação de IRC n.º 2019..., em que se inclui o valor da liquidação de juros compensatórios n.º 2019...;

– liquidação de IRC n.º 2019..., e, que se inclui o valor da liquidação de juros compensatórios n.º 2019...;

c)            Julgar procedente o pedido de indemnização por garantia indevida e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente a indemnização que vier a ser liquidada em execução do presente acórdão.

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 338.256,56, indicado pela Requerente sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

7. Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 5.814,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 10-09-2021

 

Os Árbitros

 

(Jorge Lopes de Sousa)

(Relator)

 

Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo DL n.º 20/2020 , de 01 de Maio, o Relator atesta o voto de conformidade do Árbitro Adjunto Senhor Professor Doutor Vasco António Branco Guimarães

 

(João Pedro Dâmaso)

 

(com declaração de voto que segue)

Declaração de voto:

 

                Respeitosamente, o arbitro signatário, não pode concordar, em consciência, com a anulação das liquidações de IRC, na parte que respeitam à consideração como gasto do exercício, para efeitos fiscais, do reconhecimento efetuado como perdas por imparidade, pelos motivos que de seguida se apresentam:

                No essencial, existe discordância em relação ao árbitro signatário, no que tange à consideração das perdas por imparidade reconhecidas, nos exercícios económicos, objeto de apreciação quanto às liquidações de IRC, em concreto por violação do princípio da especialização económica dos exercícios.

                Para estes efeitos, para além da matéria dada como provada, importa também acrescer os seguintes factos, relevantes para a declaração de voto produzida:

             As perdas por imparidade reconhecidas nos exercícios económicos de 2016 e 2017, respeitam a dívidas em mora de clientes, dos exercícios económicos de 2010, 2011 e 2012 (depoimento de T...);

             O prazo de vencimento das faturas emitidas aos clientes, subjacentes a serviços prestados, é no máximo de 120 dias (depoimento de T...);

             Após o terminus do prazo de vencimento, de forma automática ou de forma personalizada (num momento subsequente) são redigidas várias comunicações aos clientes incumpridores, a fim de se conseguir obter o pagamento (depoimento de T...);

                Antes de mais importa ter presente o disposto no artigo 17.º do Código do IRC, que é o seguinte:

Artigo 17.º - Determinação do lucro tributável

1 - O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.

2 - (...)

3 - De modo a permitir o apuramento referido no n.º 1, a contabilidade deve:

a) Estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código;

b) (...)

c) (…) (sublinhados nossos)

                Como nos indica Sérgio Vasques “(...) só a contabilidade nos dá a expressão real da capacidade contributiva das empresas, estando a sua função em dar a conhecer a força económica das empresas àqueles que com elas mantêm relações.”        

                Continuando o mesmo autor, refere também que “é por esta razão que o lucro tributável sujeito a IRC é determinado com base no resultado do exercício apurado pela contabilidade, tal como dispõe o artigo 17º do Código, devendo esta ser organizada pelos sujeitos passivos de acordo com a regras da normalização contabilística e demais deposições legais em vigor.”     

                Por fim, o mesmo autor indica que “entre o direito fiscal e o direito da contabilidade estabelece-se, desde modo, uma relação que se costuma representar como de dependência, querendo isso dizer que o lucro sujeito a imposto é largamente apurado com base em princípios, regras e conceitos que não são originários da lei fiscal mas tomadas de empréstimo à contabilidade.”

                Ora, verifica-se, portanto, que existe uma subordinação ao resultado líquido do exercício determinado, às normas contabilísticas existentes, sendo esse resultado corrigido nos termos código do IRC, conforme o que possa estar definido.

                Neste sentido, antes de mais, importa observar, quanto ao reconhecimento das imparidades de dívidas a receber de clientes, como é que o mesmo se encontra regulado e definido, em termos de normas contabilísticas. Dito de outra forma, em primeiro lugar teremos que atender ao estabelecido pelas normas contabilísticas, a forma como as demonstrações financeiras são apresentadas; e, após essa tarefa corrigir o resultado assim determinado, de acordo com as regras fiscais.  É o que faremos de seguida.

                Neste sentido, o Sistema de Normalização Contabilística (de ora em diante apresentado simplesmente como “SNC”), foi aprovado pelo Decreto-Lei número 158/2009, de 13 de Julho. No seu anexo, no ponto 1.3, lê-se o seguinte:

1.3 - O SNC, que assimila a transposição da Diretiva Contabilística da UE, é composto pelos seguintes instrumentos:

Bases para a apresentação de demonstrações financeiras (BADF)

Modelos de demonstrações financeiras (MDF)

Códigos de contas (CC)

Normas contabilísticas e de relato financeiro (NCRF)

Norma contabilística e de relato financeiro para pequenas entidades (NCRF-PE)

Norma contabilística e de relato financeiro para entidades do setor não lucrativo (NCRF-ESNL)

Norma contabilística para microentidades (NC-ME)

Normas interpretativas (NI)

                No ponto 2.3. do mesmo anexo, ao Decreto-Lei número 158/2009, de 13 de Julho, lê-se o seguinte:

2.3 - Regime de acréscimo (periodização económica):

2.3.1 - Uma entidade deve preparar as suas demonstrações financeiras, exceto para informação de fluxos de caixa, utilizando o regime contabilístico de acréscimo (periodização económica).

2.3.2 - Ao ser usado o regime contabilístico de acréscimo (periodização económica), os itens são reconhecidos como ativos, passivos, capital próprio ou fundos patrimoniais, rendimentos e gastos quando satisfaçam as definições e os critérios de reconhecimento para esses elementos contidos na estrutura conceptual. (sublinhados nossos)

                Continuado à análise do SNC, no que respeita à matéria subjacente à presente declaração de voto, observa-se, na sua estrutura conceptual, constante do aviso número 8254/2015, de 29 de Julho , o seguinte:

Pressupostos subjacentes

Regime de acréscimo

22 - A fim de satisfazerem os seus objetivos, as demonstrações financeiras são preparadas de acordo com o regime contabilístico do acréscimo. Através deste regime, os efeitos das transações e de outros acontecimentos são reconhecidos quando eles ocorram (e não quando caixa ou equivalentes de caixa sejam recebidos ou pagos) sendo registados contabilisticamente e relatados nas demonstrações financeiras dos períodos com os quais se relacionem. As demonstrações financeiras preparadas de acordo com o regime de acréscimo informam os utentes não somente das transações passadas envolvendo o pagamento e o recebimento de caixa mas também das obrigações de pagamento no futuro e de recursos que representem caixa a ser recebida no futuro. Deste modo, proporciona-se informação acerca das transações passadas e outros acontecimentos que seja mais útil aos utentes na tomada de decisões económicas.

                Na mesma estrutura conceptual, mais adiante, lê-se ainda o seguinte:

Características qualitativas das demonstrações financeiras

(…)

Neutralidade

36 - Para que seja fiável, a informação contida nas demonstrações financeiras tem de ser neutra, isto é, livre de preconceitos. As demonstrações financeiras não são neutras se, por via da seleção ou da apresentação da informação, elas influenciarem a tomada de uma decisão ou um juízo de valor a fim de atingir um resultado ou um efeito predeterminado.

Prudência

37 - Os preparadores das demonstrações financeiras têm, porém, de lutar com as incertezas que inevitavelmente rodeiam muitos acontecimentos e circunstâncias, tais como a cobrabilidade duvidosa de dívidas a receber, a vida útil provável de instalações e equipamentos e o número de reclamações de garantia que possam ocorrer. Tais incertezas são reconhecidas através da divulgação da sua natureza e extensão e pela aplicação de prudência na preparação das demonstrações financeiras. A prudência é a inclusão de um grau de precaução no exercício dos juízos necessários ao fazer as estimativas necessárias em condições de incerteza, de forma que os ativos ou os rendimentos não sejam sobreavaliados e os passivos ou os gastos não sejam subavaliados. Porém, o exercício da prudência não permite, por exemplo, a criação de reservas ocultas ou provisões excessivas, a subavaliação deliberada de ativos ou de rendimentos, ou a deliberada sobreavaliação de passivos ou de gastos, porque as demonstrações financeiras não seriam neutras e, por isso, não teriam a qualidade de fiabilidade. (sublinhados nossos).

                Por fim, a norma contabilística e de relato financeiro (de ora em diante identificada como “NCRF”) número 27 sob a epígrafe de “instrumentos financeiros”, publicada no aviso número 8256/2015, de 29 de Julho , no que respeita ao reconhecimento de imparidades, estabelece o seguinte:

Imparidade

Reconhecimento

24 - Em cada data de relato, uma entidade deve avaliar a imparidade de todos os ativos financeiros que não sejam mensurados ao justo valor através de resultados. Se existir uma evidência objetiva de imparidade, a entidade deve reconhecer uma perda por imparidade na demonstração de resultados.

25 - Evidência objetiva de que um ativo financeiro ou um grupo de ativos está em imparidade inclui dados observáveis que chamem a atenção ao detentor do ativo sobre os seguintes eventos de perda:

a) Significativa dificuldade financeira do emitente ou devedor;

b) Quebra contratual, tal como não pagamento ou incumprimento no pagamento do juro ou amortização da dívida;

c) O credor, por razões económicas ou legais relacionados com a dificuldade financeira do devedor, oferece ao devedor concessões que o credor de outro modo não consideraria;

d) Torne-se provável que o devedor irá entrar em falência ou qualquer outra reorganização financeira;

e) O desaparecimento de um mercado ativo para o ativo financeiro devido a dificuldades financeiras do devedor; ou

f) Informação observável indicando que existe uma diminuição na mensuração da estimativa dos fluxos de caixa futuros de um grupo de ativos financeiros desde o seu reconhecimento inicial, embora a diminuição não possa ser ainda identificada para um dado ativo financeiro individual do grupo, tal como sejam condições económicas nacionais, locais ou sectoriais adversas.

26 - Outros fatores poderão igualmente evidenciar imparidade, incluindo alterações significativas com efeitos adversos que tenham ocorrido no ambiente tecnológico, de mercado, económico ou legal em que o emitente opere.

                Como nos indicam Carlos Baptista da Costa e Gabriel Correia Alves,

                Um dos principais factores a considerar na decisão de concessão de crédito é o risco de o cliente não pagar a dívida no prazo estabelecido.

                As dificuldades de cobrança, além das implicações ao nível do investimento em crédito concedido e dos gastos de cobrança, é suscetível de transformar em prejuízo o custo dos produtos vendidos.

                O risco de incumprimento não pode assim deixar de ser refletido pela contabilidade, sendo as dívidas a receber reduzidas para o seu valor esperado de realização através de contas apropriadas de ajustamento [imparidades].

                Aqui chegados, dada a matéria dada como provada, observa-se que as perdas por imparidade respeitam a exercícios anteriores. Como nos indicou a testemunha T..., as dívidas subjacentes às perdas por imparidade reconhecidas nos exercícios económicos de 2016 e 2017, estão em mora desde os exercícios de 2010, 2011 e 2012. Ou seja, atendendo ao prazo máximo de vencimento de cada uma das faturas, que segundo a mesma testemunha, é de 120 dias, observamos que a “quebra contratual, tal como não pagamento ou incumprimento no pagamento do juro ou amortização da dívida”, ocorreu em anos anteriores, ao do seu efetivo reconhecimento.

                Para além do mais, a caraterística da neutralidade e da prudência, como sobretudo o princípio do acréscimo (ou da especialização económica dos exercícios) implicam que os gastos em perdas por imparidade, sejam reconhecidos no exercício económico em que existe evidência objetiva, para o seu reconhecimento, que no caso em apreciação se resume ao incumprimento da obrigação, por parte do cliente.

                O incumprimento da obrigação, é evidente, pela ultrapassagem do prazo de vencimento definido, bem como pelas inúmeras interpelações que são efetuadas pela autora, com vista a ver ressarcido o seu direito a receber, o qual muitas vezes até nem é satisfeito.

                Para além do mais, não será despiciendo, o facto de ser a autora, a única sociedade do seu grupo que se consegue financiar junto dos bancos. Mas, aspeto que não foi aflorado, é se a sua situação patrimonial (ou seja o capital próprio) fosse diminuída em virtude do reconhecimento adequado das perdas por imparidade tempestivamente, se as suas condições de obtenção de crédito se mantinham, nessa circunstância, ou até mesmo se o crédito era atribuído.

                É que na produção da decisão, não será inócuo o facto de se ter em conta toda a envolvência que rodeia a factualidade subjacente. Sabemos que várias empresas, que apresentam ativos sobrevalorizados (também chamados por ativos tóxicos) à custa dos quais conseguiam financiamentos, que foram ruinosos para toda a sociedade, com consequências ainda não totalmente determinadas.

                Não pode a autora, apresentar um balanço com ativos, que na verdade não tem, sobrevalorizados de acordo com sãos princípios e regras contabilísticos enunciados (que poderá constituir até um delito), os quais também estão na base na determinação do imposto a pagar, atendendo até ao disposto do artigo 17º do Código do IRC.

                Por fim, na decisão produzida, aspeto que não foi analisado, foi o facto de caso as perdas por imparidade, tivessem sido reconhecidas de acordo com o estabelecido nas regras e normas contabilísticas, se os prejuízos daí advenientes, no caso do mesmo vir a ser apresentado, seria dedutível (ou não) em anos subsequentes, atendendo à redação do artigo 52.º do Código do IRC.

                Observa-se que nos exercícios económicos de 2010 e 2011, a dedução de prejuízos fiscais é de apenas 4 exercícios, tendo sido ampliada para 5 exercícios, após (inclusive) o ano de 2012.

                As perdas por imparidade em análise, reconhecidas nos exercícios económicos de 2016 e 2017, são respetivamente de 201 230,89 € e 1 194 291,79 €.

                Dos elementos que dispomos, sabemos que o resultado líquido do exercício para os anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, são, respetivamente, de 60 271,48 €, 47 878,30 €, 65 559,85 € e 142 159,81 €. Corrigindo as perdas por imparidade em referência, pelos motivos já expostos, dado que não consideramos as mesmas gastos (contabilísticos) do exercício nos anos de 2016 e 2017, surgem os resultados líquidos do exercício, para estes anos corrigidos, respetivamente, de 249 109,19 € e 1 259 851,64 €.

                Ainda assim, da análise dos elementos disponíveis, no limite, o prejuízo fiscal dedutível de 2010, poderia ser deduzido até ao exercício de 2014, e, relativamente ao prejuízo do exercício de 2012, o mesmo poderia ser deduzido até ao exercício de 2017. Porém, dada a alteração ao artigo 52.º do código do IRC, pela Lei número 2/2014, de 16 de Janeiro, tal dedução, já não opera na totalidade do prejuízo, mas em 70%.

                Enfim, aqui chegado, tudo para concluir, que é duvidoso que o não reconhecimento atempado das perdas por imparidade, respeitando o princípio da especialização económica dos exercícios, como se impõem pelas regras contabilísticas, não tenha causado prejuízo à arrecadação de receita, por parte da fazenda pública, atendendo, justamente, ao regime da dedutibilidade dos prejuízos fiscais existente.

                Tudo quanto o exposto, no que respeita à aceitação das perdas por imparidade, do valor de dívidas a receber de clientes, no caso em apreço, em desconformidade com o princípio contabilístico da especialização económica dos exercícios, merece o meu desacordo.

 

                Lisboa, 10 de Setembro de 2021

O árbitro, com voto vencido

 

(João Pedro Dâmaso)