Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 718/2019-T
Data da decisão: 2020-09-21  IRS  
Valor do pedido: € 9.191,10
Tema: IRS - Mais-valias imobiliárias; Não residentes e Reenvio prejudicial
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SUMÁRIO:

 

1.  A solução adotada pelo legislador português não garante a eliminação da discriminação resultante do disposto no artigo 43.º, n.º 2 do CIRS, pois não  assegura que o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, respeitante às transmissões efetuadas por não residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, positivo ou negativo, seja apenas considerado em 50% do seu valor, tal como acontece com os residentes, por força do disposto no artigo 43.º, números 1 e 2 do CIRS.

 

2. O regime do artigo 72.º, números 14 e 15 do CIRS não dispõe sobre a base de incidência, mas, outrossim sobre a taxa aplicável aos rendimentos referidos nos números 1 e 2 do mesmo artigo 72.º, por conseguinte, aquele regime não implica a tributação de todos os rendimentos auferidos pelos não residentes, mas apenas da mais-valia.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I - RELATÓRIO

 

1. A..., contribuinte n.º ..., residente na ..., n.º..., ..., Paredes, doravante designada por Requerente, apresentou em 23/10/2019 pedido de constituição de tribunal e de pronúncia arbitral, respeitante à liquidação de IRS n.º 2019..., por entender que é ilegal –   incompatibilidade da norma constante no artigo 43.º n.º 2 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“CIRS”) com o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no atual artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).

 

2. No dia 15/01/2020 ficou constituído o tribunal arbitral.

 

3. Cumprindo a estatuição do artigo 17.º, números 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”) foi a Requerida em 28/01/2020 notificada para, querendo, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional.

 

4.  A Requerida em 19/02/2020 apresentou a sua resposta, na qual defende a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, atenta a legalidade da liquidação, pois a alteração normativa que introduziu a atual da previsão do artigo 72.º, números 14 e 15 do CIRS veio permitir que tanto os residentes, como os não residentes beneficiem da consideração da mais-valia em 50% do seu valor.

 

5.  Por despacho de 22/06/2020 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e notificadas as partes para, querendo, apresentarem alegações finais escritas.

 

POSIÇÃO DAS PARTES

 

6. A Requerente alega que o artigo 72.º do CIRS é discriminatório, pois sujeita um residente em Estado-Membro da União Europeia ou países terceiros a uma carga fiscal superior àquela que incidiria se fosse residente em território nacional.  Ou, dito de outro modo, o diferente tratamento da tributação das mais-valias imobiliárias, realizadas por não residentes em território nacional, estabelece uma discriminação incompatível com o princípio da liberdade de circulação de capitais, apesar das alterações introduzidas ao CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro – aditamento dos atuais números 14 e 15 do artigo 72.º.

Em segundo lugar defende que a opção de equiparação – possibilidade de os residentes noutro Estado-Membro da União Europeia optarem, relativamente aos rendimentos referidos no artigo 72.º, n.º 1 e 2 do CIRS pela tributação à taxa que seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português – não permite afastar o juízo de discriminação constante do acórdão Hollmann sobre a previsão do artigo 43.º, n.º 2 do CIRS. Mais concretamente, faz impender sobre os não residentes um ónus suplementar relativamente aos residentes.

Em resumo, defende que a liquidação é ilegal, pois a aplicação artigo 43.º, n.º 2 do CIRS determinaria a tributação de apenas 50% das mais-valias imobiliárias realizadas [não residente em Portugal à data do facto tributário].

Peticiona, por último, o reembolso do imposto pago e a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) no pagamento de juros indemnizatórios.

 

7. A Requerida apresenta uma defesa com os seguintes fundamentos:

 

i) Aplicação do artigo 43.º, n.º 2 do CIRS aos não residentes [residência em Estado-Membro da União Europeia ou em Estado terceiro]

 

Na sua defesa começa por  recordar que se é verdade que o acórdão C- 443/06 do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) conclui que a disciplina da tributação das mais-valias imobiliárias dos não residentes [artigos 43.º, n.º 2 e 72.º, n.º 1 do CIRS] não respeitava o Direito da União Europeia – artigo 56.º do  Tratado da Comunidade Europeia (“CE”) – atual artigo 63.º do TFUE, por outro foram aditados os números 7 e 8 [atuais números 14 e 15, respetivamente] ao artigo 72.º do CIRS para eliminar a discriminação.

Por conseguinte propugna:  i) o artigo 72.º, n.º 10 [atual n.º 15] do CIRS é taxativo quando  determina que devem ser englobados todos os rendimentos obtidos nesse ano, quer em Portugal, quer no estrangeiro; ii) o artigo 15.º, n.º 1 do CIRS prevê que, sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos rendimentos, incluindo aqueles que foram obtidos fora de Portugal e iii) a tributação pela taxa do artigo 68.º do CIRS   –  como residente – exigia o preenchimento dos campos 9 e 11 da declaração modelo 3 de IRS, facto que não se verificou.

Em suma, observa que o quadro legal já não é semelhante àquele que existia à data do acórdão Hollmann e, em segundo lugar, o artigo 43.º, n.º 2 do CIRS não é aplicável aos autos.

 

ii) Reenvio prejudicial

 

A este respeito defende que o quadro legal, bem como a obrigação declarativa, já não é aquele que existia à data do acórdão Hollmann – aditamento dos números 7 e 8 [atuais 14 e 15] ao artigo 72.º do CIRS , pois a decisão proferida no referido acórdão e a respeitante ao processo C- 184/18, de 06/09/2018  do TJUE referem-se a situações anteriores à Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro [aquela que aditou os atuais números 14 e 15 ao artigo 72.º do CIRS].

A referida alteração legislativa [ainda] não foi alvo de apreciação por parte do TJUE, em sede de reenvio prejudicial, para efeitos da compatibilidade normativa com os artigos 18.º, 63.º, 64.º e 65.º do TFUE.

Por conseguinte, a alteração efetuada por via da introdução dos atuais números 14 e 15 do artigo 72.º do CIRS veio permitir que, tanto os residentes, como os não residentes, beneficiem do regime previsto no artigo 43.º, n.º 2 do mesmo diploma, desde que optem pelo englobamento dos rendimentos obtidos em Portugal e fora dele – o que não aconteceu.

Em resumo, ou o tribunal considera que a aludida jurisprudência não é vinculativa, ou julga não verificada a hipótese do ato claro ou aclarado, mas sempre reenviando a questão para o TJUE.

 

 

QUESTÕES A DECIDIR

 

Nesta sequência, tendo em atenção as pretensões e posições da Requerente e da Requerida constantes das suas peças processuais, acima descritas, são as seguintes as questões que o tribunal deve apreciar (sem prejuízo da solução dada a certa questão poder prejudicar o conhecimento de outra ou outras questões –artigo 608.º, n.º 2 do  Código de Processo Civil (“CPC”), aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT):

 

a) Se a liquidação de IRS impugnada é ilegal, por incompatibilidade da norma constante do artigo 43.º n.º 2 do CIRS com o princípio da liberdade de circulação de capitais [artigo 63.º do TFUE]. Ou, dito de outro modo,  saber se o regime diferenciado da tributação das mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes em território português, estabelece uma discriminação incompatível com o princípio da liberdade de circulação de capitais, princípio fundamental da União Europeia, não obstante as alterações introduzidas ao CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro – aditamento dos atuais números 14 e 15 do artigo 72.º.

 

b) Se a Requerente tem direito ao reembolso do imposto pago em excesso e a juros indemnizatórios.

 

SANEAMENTO

 

O processo não enferma de nulidades, o tribunal arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer e decidir o pedido, verificando-se, consequentemente, as condições para ser proferida a decisão final.

 

II – FUNDAMENTAÇÃO

 

MATÉRIA DE FACTO

1. Factos com relevância para a apreciação da causa que se consideram provados

 

1.1. A Requerente, em 2015, era residente na Avenida ..., ..., ..., ..., ... - Venezuela. (Facto alegado sob o número dezasseis no pedido de pronúncia arbitral e não impugnado pela Requerida)

 

1.2. No dia 07/08/2014, através de escritura pública de partilha celebrada no Cartório Notarial de B..., foram adjudicados à Requerente os seguintes prédios:

 

i) Prédio urbano, inscrito na matriz predial com o artigo ... [antigo artigo ...] da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ..., com o valor patrimonial tributário (“VPT”) de 10 440,00 euros;

 

ii) Prédio urbano, inscrito na matriz predial com o artigo ... [antigo artigo ...] da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ..., com o VPT de 19 150,00 euros;

 

iii) Prédio rústico, inscrito na matriz predial com o artigo ... da freguesia de ... [antigo artigo ...] e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ..., com o VPT para efeitos de IMI de 64, 03 euros; 110,64 euros para IMT e IS e 200,00 euros de valor atribuído. (Documento junto sob o número dois no pedido de pronúncia arbitral)

 

1.3.   A Requerente no dia 07/07/2015 alienou, através de escritura pública de compra e venda, celebrada no Cartório Notarial de B..., os seguintes prédios:

 

i)  Prédio urbano, inscrito na matriz predial com o artigo ... [antigo artigo ...] da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ..., por 15 000,00 euros;

 

ii) Prédio urbano, inscrito na matriz predial com o artigo ... [antigo artigo ...] da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ..., por 60 000,00 euros;

 

iii) Prédio rústico, inscrito na matriz predial com o artigo ... da freguesia de ... [antigo artigo ...] e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ..., por 30 000,00 euros. (Documento junto sob o número três no pedido de pronúncia arbitral)

 

1.4. A Requerente não apresentou a declaração modelo 3 de IRS respeitante ao exercício de 2015 e, por isso, foi notificada para exercer o direito de audição relativamente à proposta de decisão administrativa com a consideração de 74 775,97 euros de mais-valias.  (PA)

 

1.5. A Requerida notificou a Requerente, por despacho da Senhora Diretora de Finanças Adjunta do Porto, do teor da fundamentação que serviu de base à emissão do documento oficioso, v.g. a consideração de 74 775,97 euros de mais-valias no exercício de 2015 [desconsiderando o regime de limitação da tributação a 50%]. (PA)

 

1.6.  A Requerente foi assim notificada da consequente liquidação de IRS n.º 2019..., no montante total de 23 521,49 euros, sendo 2 612,22 euros de juros compensatórios. (Documento junto sob o número seis no pedido de pronúncia arbitral)

 

1.7. A Requerente, no dia 03/09/2019, procedeu ao pagamento do montante da aludida liquidação. (Documento junto sob o número seis no pedido de pronúncia arbitral)

 

1.8. O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 23/10/2019. (Sistema informático do CAAD)

 

2. Factos que não se consideram provados

 

Não existem quaisquer outros factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.

 

3. Fundamentação da matéria de facto que se considera provada

Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral e aceites expressamente pela Requerida. Não há controvérsia relativamente à matéria de facto.

 

MATÉRIA DE DIREITO

 

i) Pedido de reenvio prejudicial

 

A Requerida, na sua resposta, formulou um pedido de reenvio prejudicial para o TJUE com vista à determinação da compatibilidade do regime jurídico da tributação das mais-valias imobiliárias dos não residentes com o artigo 63.º do TFUE.

O artigo 267.º do TFUE prevê o seguinte:

“O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

                a) Sobre a interpretação dos Tratados;

b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal. […].”

Na presente hipótese não se verificam, como se demonstrará, os pressupostos de que depende o reenvio prejudicial e, atenta a ampla jurisprudência existente, não configura um caso inédito ou diferenciado a decidir num quadro total ou parcialmente novo . Para além do mais, o TJUE já se pronunciou sobre o caráter discriminatório de um regime de opção, como no caso sub judice, acórdão Gielen, processo C-440/08, de 18/03/2010, no qual se concluiu que:

[…]

50.        Antes de mais, importa recordar que a opção de equiparação permite a um contribuinte não residente, como F. Gielen, escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório.

51.      Ora, cumpre frisar a este respeito que, no presente caso, essa escolha não é suscetível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.

52.      Com efeito, o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência, como é essencialmente observado pelo advogado geral no n.° 52 das suas conclusões, validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.° TFUE em razão do seu carácter discriminatório. (sublinhado nosso)

53.      Por outro lado, como o Tribunal de Justiça já teve ocasião de precisar, um regime nacional que limite a liberdade de estabelecimento é incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa (v., neste sentido, acórdão de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C 446/04, Colect., p. I 11753, n.° 162).

54.      Decorre do exposto que a escolha concedida, no âmbito do litígio em causa no processo principal, ao contribuinte não residente, através da opção de equiparação, não neutraliza a discriminação constatada no n.° 48 do presente acórdão.

55.      Resulta de todas as considerações que precedem que o artigo 49.° TFUE se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes na concessão de um benefício fiscal como a dedução concedida aos trabalhadores independentes, em causa no processo principal, apesar de esses contribuintes poderem optar, no que se refere a esse benefício, pelo regime aplicável aos contribuintes residentes.

 

[…]”.

Por conseguinte é aplicável nesta hipótese a teoria do ato claro como se especificará, todavia é necessário, antes de mais, responder à questão: podem os tribunais arbitrais submeter questões prejudiciais ao TJUE?

A competência para submeter uma questão prejudicial ao TJUE é dos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros, embora o conceito de órgão jurisdicional não se encontre vertido em qualquer Tratado da União.

O conceito de órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros depende da verificação de vários requisitos: criação por lei e a nomeação dos seus membros pelo poder público; caráter permanente; respeito pelo princípio do contraditório; independência; natureza obrigatória da sua jurisdição e aplicação de regras de direito – acórdãos Vaassen-Göbbels e Broekmeulen .

E relativamente aos tribunais arbitrais constituídos sob a égide do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”)?

A questão é, hoje, pacífica na jurisprudência do TJUE, o acórdão “Ascendi” concluiu que: 

“[…]

24.No processo principal, resulta das indicações fornecidas na decisão de reenvio que os tribunais arbitrais em matéria tributária têm origem legal. Os tribunais arbitrais constam, com efeito, da lista dos órgãos jurisdicionais nacionais, no artigo 209.º da Constituição da República Portuguesa. Por outro lado, o artigo 1. o do Decreto-Lei n. o 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, dispõe que a arbitragem fiscal constitui um meio alternativo de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, e o artigo 2.º desse decreto-lei atribui competência geral aos tribunais arbitrais em matéria tributária, para apreciar a legalidade da liquidação de qualquer imposto.

25. Por outro lado, enquanto elemento do sistema de resolução jurisdicional de conflitos no domínio fiscal, os tribunais arbitrais em matéria tributária satisfazem a exigência de permanência.

26. Com efeito, como salientou o advogado-geral no n. o 37 das suas conclusões, embora a composição das formações de julgamento do Tribunal Arbitral Tributário seja efémera e a sua atividade termine após decidirem, não é menos verdade que, no seu todo, o Tribunal Arbitral Tributário apresenta caráter permanente, enquanto elemento do referido sistema.

27. Quanto ao caráter vinculativo do órgão jurisdicional, há que recordar que este elemento não está presente no âmbito da arbitragem convencional, uma vez que não há nenhuma obrigação, nem de direito nem de facto, de as partes contratantes confiarem os seus diferendos à arbitragem e que as autoridades públicas do Estado-Membro em causa não participam na escolha da via da arbitragem nem são chamadas a intervir oficiosamente no decorrer do processo perante o árbitro (acórdão Denuit e Cordenier, C-125/04, EU:C:2005:69, n. o 13 e jurisprudência referida, e despacho Merck Canada, C-555/13, EU:C:2014:92, n. o 17).

28. Em contrapartida, o Tribunal de Justiça já reconheceu a admissibilidade de questões prejudiciais que lhe tinham sido submetidas por um tribunal arbitral de origem legal, cujas decisões eram vinculativas para as partes e cuja competência não dependia do acordo destas (despacho Merck Canada, EU:C:2014:92, n. o 18 e jurisprudência referida).

29. Ora, como salientou o advogado-geral nos n. os 28 e 40 das suas conclusões, o Tribunal Arbitral Tributário, cujas decisões são vinculativas para as partes nos termos do artigo 24.º, n.º 1, do Decreto-Lei n. o 10/2011, distingue-se de um órgão jurisdicional arbitral em sentido estrito. Com efeito, a sua competência resulta diretamente das disposições do Decreto-Lei n. o 10/2011, não estando por isso sujeita à expressão prévia da vontade das partes de submeterem o seu diferendo à arbitragem (v., por analogia, acórdão Danfoss, 109/88, EU:C:1989:383, n.º 7). Assim, quando o contribuinte recorrente submete o seu diferendo à arbitragem fiscal, a jurisdição do Tribunal Arbitral Tributário tem, nos termos do artigo 4. º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, caráter vinculativo para a autoridade tributária e aduaneira.

30. A natureza contraditória do processo nos tribunais arbitrais em matéria tributária é, por sua vez, garantida pelos artigos 16. ° e 28.° do Decreto-Lei n. o 10/2011. Por outro lado, nos termos do artigo 2.º, n. o 2, do mesmo, os tribunais arbitrais em matéria tributária «decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade».

31. No que respeita à independência dos tribunais arbitrais em matéria tributária, resulta, por um lado, da decisão de reenvio que os árbitros que constituem o Tribunal Arbitral Tributário ao qual foi submetido o litígio no processo principal foram designados, nos termos do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, de entre os árbitros que figuram na lista elaborada por essa instituição.

32. Por outro lado, o artigo 9. o do Decreto-Lei n. o 10/2011 prevê que os árbitros estão sujeitos aos princípios da imparcialidade e da independência. Além disso, o artigo 8.º, n.º 1, desse decreto-lei prevê, como caso de impedimento do exercício da função de árbitro, a existência de qualquer ligação familiar ou profissional entre o árbitro e uma das partes no litígio. Garante-se assim que o tribunal arbitral em causa tem a qualidade de terceiro em relação à autoridade que adotou a decisão objeto de recurso (v. acórdão RTL Belgium, C-517/09, EU:C:2010:821, n.º 38 e jurisprudência referida, e despacho Devillers, C-167/13, EU:C:2013:804, n. o 15). 33 Por fim, como resulta do artigo 1. º do Decreto-Lei n. o 10/2011, os tribunais arbitrais em matéria tributária pronunciam-se no âmbito de um processo que conduz a uma decisão de caráter jurisdicional.

[…].”

O acórdão é inequívoco na qualificação dos aludidos tribunais como órgãos jurisdicionais de um Estado-Membro na aceção do artigo 267.º do TFUE. Para além do mais, no preâmbulo do RJAT o legislador escreveu que: “Nos casos em que o tribunal arbitral seja a última instância de decisão de litígios tributários, a decisão é suscetível de reenvio prejudicial em cumprimento do §3 do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”.

Em suma, se os tribunais arbitrais são órgãos jurisdicionais à luz do artigo 267.º do TFUE podem submeter questões prejudiciais ao TJUE.

 O reenvio prejudicial constitui, assim, um mecanismo processual de cooperação judiciária ao legitimar o diálogo entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o TJUE, por meio do qual se visa conseguir, em todo o espaço da União Europeia, a interpretação e a aplicação uniformes do direito europeu.

As questões prejudiciais podem ser de interpretação ou de validade, isto é, relativas à interpretação dos Tratados ou à validade e à interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União. Podem ainda ser facultativas ou obrigatórias.

Quando a questão prejudicial é suscitada perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial, previsto no direito interno, a submissão desta ao TJUE é obrigatória.  Por outro lado, se da decisão do órgão jurisdicional do Estado-Membro couber recurso, à luz do direito interno, o reenvio é, em princípio, facultativo.

As decisões dos tribunais arbitrais são irrecorríveis quanto ao mérito, embora essa solução se encontre temperada por hipóteses excecionais de controlo pelos seguintes tribunais: i) Tribunal Constitucional e ii) Supremo Tribunal Administrativo, incluindo-se na competência deste último, quanto à mesma questão de direito, a oposição de acórdãos [dos Tribunais Centrais Administrativos e Supremo Tribunal Administrativo) e de decisões arbitrais .

A jurisprudência do TJUE concretizou essa obrigatoriedade, tendo definido no caso CILFIT  que a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação deixa de existir nas seguintes hipóteses: i) quando a questão não for “necessária”, nem “pertinente” para o julgamento do litígio principal; ii) quando se verificar uma “identidade material” da questão prejudicial com outra já decidida pelo TJUE e iii) quando o órgão jurisdicional nacional verificar que a interpretação da norma objeto de dissídio é “clara”.

Na presente hipótese existe extensa jurisprudência de índole estadual e arbitral, a título de exemplo, acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 0901/11.0BEALM 0692/17, de 20/02/2019, decisão arbitral n.º 548/2018-T de 08/04/2019, decisão arbitral n.º 590/2018-T, de 08/07/2019  e decisão arbitral n.º 600/2018-T, de 08/04/2019. De igual modo, não existem quaisquer dúvidas sobre a interpretação das normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto, competindo, por conseguinte, ao tribunal proceder à sua aplicação, mobilizando a teoria do ato claro. Em suma, preenchem-se duas hipóteses de dispensa de reenvio prejudicial ao TJUE.

Em bom rigor, o TJUE já se pronunciou sobre as questões de Direito da União Europeia que a Requerida coloca – acórdão Gielen  - existência de um regime de opção semelhante ao introduzido no artigo 72.º, números 9 e 10 do CIRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro.

Se por um lado, não se ignora que o acórdão referido no parágrafo anterior versa sobre a liberdade de circulação de pessoas, e não a liberdade de circulação de capitais, por outro, a substância é plenamente aplicável à liberdade de circulação de capitais, mormente quando observa que:

“[p]erante uma vantagem fiscal cujo benefício é recusado aos não residentes, uma diferença de tratamento entre estas duas categorias de contribuintes pode ser qualificada de discriminação, na aceção do TFUE, quando não haja nenhuma diferença objetiva de situação suscetível de justificar diferenças de tratamento, quanto a este aspeto, entre as referidas categorias de contribuintes (acórdãos, já referidos, Talotta, n.º 19 e a jurisprudência citada, e Renneberg, n.º  60)”.

E no processo número C-184/18 (despacho de 06/09/2018) a propósito das diferenças [objetivas] entre residentes e não residentes escreveu-se que:

 

[…]

36.   Resulta do artigo 65.°, n.° 1, TFUE, lido em conjugação com o n.° 3 desse mesmo artigo, que os Estados Membros podem estabelecer, na sua legislação nacional, uma distinção entre os contribuintes residentes e os não residentes, desde que essa distinção não constitua um meio de discriminação arbitrária nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais.

37.      Deve, por conseguinte, ser estabelecida uma distinção entre os tratamentos desiguais permitidos ao abrigo do artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE e as discriminações arbitrárias proibidas pelo n.° 3 desse mesmo artigo. Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, para que uma legislação fiscal nacional, como a que está em causa no processo principal, possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento diga respeito a situações não comparáveis objetivamente ou seja justificada por razões imperiosas de interesse geral (v., neste sentido, Acórdão de 11 de outubro de 2007, Hollmann, C 443/06, EU:C:2007:600, n.os 44, 45 e jurisprudência aí referida).

38.      No que respeita, em primeiro lugar, à comparabilidade das situações, há que recordar que, como o Tribunal de Justiça já precisou no n.° 50 do Acórdão de 11 de outubro de 2007, Hollmann (C 443/06, EU:C:2007:600), em primeiro lugar, a tributação das mais valias resultantes da alienação de um bem imóvel incide, nos termos do artigo 43.°, n.° 2, do CIRS, na redação resultante da Lei n.° 109 B/2001, sobre uma única categoria de rendimentos dos contribuintes, quer sejam residentes ou não residentes; em segundo lugar, essa tributação diz respeito a essas duas categorias de contribuintes; e, em terceiro lugar, o Estado Membro de onde o rendimento coletável provém é sempre a República Portuguesa. Por outro lado, não resulta do teor desta disposição que a mesma estabeleça uma distinção entre os contribuintes não residentes em função do seu local de residência.

39.      Resulta do exposto que não existe nenhuma diferença objetiva das situações dessas duas categorias de contribuintes em causa no processo principal que justifique a desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais valias por eles realizadas em resultado da alienação de um bem imóvel situado em Portugal. Por conseguinte, a situação em que se encontram os contribuintes não residentes, como os recorridos no processo principal, é comparável à dos contribuintes residentes.”

Resulta ainda do acórdão supracitado que é ao órgão de reenvio que compete analisar se a jurisprudência do TJUE é suficientemente clara na matéria, condição que indiscutivelmente se verifica. Esta posição é sufragada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo – acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0901/11.0BEALM 0692/17, de 20/02/2019 e em que foi relatora a Conselheira ANA PAULA LOBO, aresto no qual se coloca a mesma questão que se discute nos presentes autos. Ou, dito de outro modo, aplicação da limitação de tributação a 50% das mais-valias imobiliárias a residentes em país terceiro à União Europeia e com realização no ano de 2010, ou seja, posteriormente às alterações introduzidas pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro.

Perante a profusa jurisprudência do TJUE e nacional – ao julgarem processos com o mesmo objeto sem proceder ao reenvio prejudicial – decai o pedido.

 ii) Violação do artigo 63.º do TFUE

 

O rendimento que a Requerente obteve com a alienação dos prédios é tributado na categoria G de IRS – artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do CIRS, apurando-se o rendimento líquido da categoria pela diferença entre o valor da realização e o valor de aquisição .

Em segundo lugar, o ganho foi obtido em território português, por conseguinte está sujeito a tributação em Portugal – artigos 18.º, n.º 1, alínea h), 13.º, n.º 1 e 15.º, n.º 2, todos do CIRS.

O artigo 43.º, n.º 2 do CIRS determinava à data do facto tributário: “O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efetuadas por residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é apenas considerado em 50 % do seu valor”. Sucede que, a limitação de tributação é única e exclusivamente aplicada aos residentes, isto é, o seu âmbito normativo não se estende aos não residentes.

É precisamente contra a não aplicação aos não residentes que a Requerente se insurge, pois alega estarmos perante um regime diferenciado de tributação aplicável a residentes em território nacional e não residentes [incluindo países terceiros à União Europeia], mais concretamente,  uma discriminação no domínio da liberdade da circulação de capitais violadora do artigo 63.º do TFUE, pois os não residentes estão afastados do referido âmbito normativo.

No ano a que respeitam os rendimentos que originaram a liquidação em crise, era a seguinte a redação dos números 1, alínea a), 9 e 10 do artigo 72.º do CIRS:

 

 “

1 - São tributados à taxa autónoma de 28 %: a) As mais-valias previstas nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 10.º auferidas por não residentes em território português que não sejam imputáveis a estabelecimento estável nele situado;

[…]

9 - Os residentes noutro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e  b)  do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.

10 - Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes. […]”.

 

As questões colocadas pelo regime diferenciado da tributação das mais-valias imobiliárias realizadas por sujeitos passivos residentes e por sujeitos passivos não residentes em território nacional foram inicialmente tratadas no acórdão Hollmann (processo C-443/06, de 11/10/2007), que versou sobre uma situação ocorrida em data anterior à das alterações introduzidas ao artigo 72.º do CIRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, e no qual se decidiu que:

“O artigo 56.° CE [atual artigo 63.º, TFUE] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no litígio no processo principal, que sujeita as mais valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado Membro, no caso vertente em Portugal, quando essa alienação é efetuada por um residente noutro Estado Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais valias realizadas por um residente do Estado onde está situado esse bem imóvel.”

Assim, o acórdão Hollmann considerou que o previsto no artigo 43.º, n.º 2 do CIRS, ao limitar a tributação a 50% das mais-valias  apenas em relação aos residentes em Portugal e não para os não residentes para efeitos de determinação do rendimento tributável no âmbito do IRS constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 56.º do CE (agora artigo 63.º do TFUE).

Todavia,  alega a Requerida que, com o novo regime aplicável à tributação dos rendimentos de mais-valias imobiliárias obtidos pelos sujeitos passivos não residentes, resultante do aditamento dos números 7 e 8 (atuais números 14 e 15) ao artigo 72.º do CIRS, pela Lei n.º 67- A/2007, de 31/12 ficou sanada a desconformidade entre a legislação nacional e o Direito da União Europeia, v.g.  possibilidade de opção do não residente pela tributação de acordo com as taxas previstas no artigo 68º do CIRS, embora nesse caso, sejam considerados todos os rendimentos, incluindo os auferidos fora do território nacional. No seu juízo, o regime vertido no artigo 72.º do CIRS repõe a igualdade de tratamento entre residentes e não residentes.

Sucede que a solução adotada pelo legislador português não garante a eliminação da discriminação resultante do disposto no artigo 43.º, n.º 2 do CIRS, pois não  assegura que o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, respeitante às transmissões efetuadas por não residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, positivo ou negativo, seja apenas considerado em 50% do seu valor, tal como acontece com os residentes, por força do disposto no artigo 43.º, números 1 e 2 do CIRS. O regime do artigo 72.º, números 14 e 15 do CIRS não dispõe sobre a base de incidência, mas, outrossim sobre a taxa aplicável aos rendimentos referidos nos números 1 e 2 do mesmo artigo 72.º, por conseguinte, aquele regime não implica a tributação de todos os rendimentos auferidos pelos não residentes, mas apenas da mais-valia .

Com efeito, do regime em questão, não resulta uma alteração da base de incidência, sendo os rendimentos tributados os mesmos, e estando apenas prevista uma alteração da taxa aplicável, que deixa de ser a dos números 1 e 2 daquele artigo 72.º, e passa a ser a que resulta do artigo 68.º, n.º 1 do CIRS (o que quer dizer, desde logo, que tal taxa pode ser inferior à consagrada no n.º 1 daquele artigo 72.º - desde que a taxa média seja inferior a 28% - ou superior).

É este o entendimento da jurisprudência arbitral quando sustenta que :

“ Esta jurisprudência foi recentemente reafirmada no Despacho do TJUE (sétima secção) de 06-09-2018, processo C 184/18, em que se entendeu que «uma legislação de um Estado Membro, como a que está em causa no processo principal, que sujeita as mais valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado nesse Estado Membro, efetuada por um residente num Estado terceiro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, nesse mesmo tipo de operações, sobre as mais valias realizadas por um residente naquele Estado Membro constitui uma restrição à livre circulação de capitais que, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, não é abrangida pela exceção prevista no artigo 64.º, n.º 1, TFUE e não pode ser justificada pelas razões referidas no artigo 65.º, n.º 1, Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia».

No entanto, esta última decisão foi também proferida tendo como pressuposto a redação do artigo 72.º introduzida pela Lei n.º 109 B/2001, de 27 de dezembro, anterior à Lei n.º 67-A/2007.

Assim, como diz a Autoridade Tributária e Aduaneira, não há jurisprudência específica do TJUE sobre a compatibilidade do regime introduzido pela Lei n.º 67-A/2007, nos n.ºs 7 e 8 do CIRS com o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

No entanto, o TJUE entendeu naquele acórdão do processo C-443/06, que o essencial da incompatibilidade do regime do artigo 71.º, n.º 1, com o direito de União resulta de instituir «um tratamento fiscal desigual para os não residentes, na medida em que permite, no caso de realização de mais valias, uma tributação mais gravosa e, por isso, uma carga fiscal superior à que é suportada pelos residentes numa situação objetivamente comparável» (§ 54).

Na mesma linha, decidiu o TJUE no acórdão de 19-11-2015, processo C-632/13 (Skatteverket contra Hilkka Hirvonen) que «a recusa, no quadro da tributação dos rendimentos, em conceder aos contribuintes não residentes, que auferem a maior parte dos seus rendimentos no Estado de origem e que optaram pelo regime de tributação na fonte, as mesmas deduções pessoais que são concedidas aos contribuintes residentes, no quadro do regime de tributação ordinária, não constitui uma discriminação contrária ao artigo 21.º TFUE quando os contribuintes não residentes não estejam sujeitos a uma carga fiscal globalmente superior à que recai sobre os contribuintes residentes e sobre as pessoas que lhes são assimiladas, cuja situação seja comparável à sua».

Assim, o que essencialmente releva para este efeito é saber se existe ou não uma discriminação negativa na aplicação aos Requerentes do regime que lhes foi aplicado.

O regime previsto por defeito (na falta de opção) no n.º 1 do artigo 72.º  é mais oneroso para os não residentes do que para os residentes, pois enquanto a taxa máxima aplicável às mais-valias realizadas por residentes é de 24% do seu valor (taxa máxima de 48% prevista no artigo 68.º, aplicável a 50% do saldo das mais-valias), a taxa prevista no n.º 1 do artigo 72.º do CIRS é de 28%, aplicável à totalidade do saldo.

Na verdade, à matéria tributável de cada Sujeito Passivo no valor de € 108.085,28 correspondeu IRS no valor de € 30.263,88 à taxa de 28%, aplicável aos não residentes enquanto mesmo aplicando a taxa máxima de 48% (e a taxa média é necessariamente menor pois a cada escalão corresponde a respetiva taxa) a metade daquela matéria tributável o IR a pagar por cada um dos Sujeito Passivo seria de € 25.940,47 (108.082,28 / 2 x 48%).

Mesmo considerando a taxa adicional de solidariedade prevista no artigo 68.º-A, n.º 1, do CIRS de 2,5% aplicável à parte que excede 80.000 [(108.085,28 - 80.000) x 2,5% = 702,13] e a já extinta sobretaxa extraordinária de 3,21%, prevista no artigo 194.º, n.º 3, da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, aplicável à parte que excede o valor anual da retribuição mínima mensal garantida de 7.798,00 (   ) [(108.085,28 – 7.798) x 3,21% = 3.219,22), conclui-se que aplicando o regime dos residentes cada um dos Requerentes pagaria € 29.861,82 (25.940,47 + 702,13 + 3.219,22), menos do que o valor de € 30.263,88 que foi liquidado a cada um dos Requerentes.

Assim, é seguro que o regime de tributação a taxa liberatória previsto no artigo 72.º do CIRS, na redação vigente em 2017, é incompatível com o referido artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, pois torna a transferência de capitais menos atrativa para os não residentes e constitui uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo Tratado.

Foi este regime negativamente discriminatório para os não residentes que foi aplicado nas liquidações impugnadas.

O facto de atualmente este regime poder ser afastado pelos sujeitos passivos, se manifestarem uma opção, não afasta a discriminação negativa, pois é nele imposta uma obrigação de opção que não é extensiva aos residentes.”.

E em relação a um residente em país terceiro?

A este respeito observa a jurisprudência :

“[p]ermanece a dúvida se a situação dos autos se poderá subsumir inteiramente à do processo C-443/06, porquanto, por um lado, nesse caso estava em causa um residente de um Estado-membro, e não um residente num país terceiro (Angola), com nacionalidade portuguesa. Por outro lado, importa ainda considerar o disposto no art. 57.º do TCE (atual art. 64.º do TFUE): “O disposto no artigo 63.º não prejudica a aplicação a países terceiros de quaisquer restrições em vigor em 31 de dezembro de 1993 ao abrigo de legislação nacional ou da União adotada em relação à circulação de capitais provenientes ou com destino a países terceiros que envolva investimento direto, incluindo o investimento imobiliário, (…)”, ou seja, admite-se a aplicação a países terceiros de quaisquer restrições em vigor em 31 de dezembro de 1993, ao abrigo de legislação nacional, sendo certo que a disposição nacional em causa (artigo 43.º, n.º 2 do atual Código do IRS), corresponde substancialmente à redação originária, já em vigor desde 1 de janeiro de 1989 (artigo 2.º do Preâmbulo do Decreto-lei n.º 442-A/88, 30 novembro)”.

Em resumo, impõe-se concluir pela ilegalidade da liquidação de IRS do ano de 2015, ainda que a Requerente não tenha optado pelo regime de tributação a que se referem os números 14 e 15 do artigo 72.º do CIRS, tal opção não seria suscetível de afastar o efeito discriminatório decorrente da tributação da totalidade da mais-valia apurada no ano em causa.

Impõe-se agora questionar: o ato de liquidação deve  ser anulado na totalidade?

A tal propósito ensina JORGE LOPES DE SOUSA: “Nos termos do art. 100.º da LGT, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, a administração tributária está obrigada à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio. Desta norma infere-se a possibilidade de anulação parcial dos atos tributários. O STA tem entendido, em geral, que os atos de liquidação, por definirem uma quantia, são naturalmente divisíveis, sendo-o também juridicamente, por a lei prever a possibilidade de anulação parcial daqueles atos, no referido art. 100.º, ao prever a procedência parcial de meios processuais impugnatórios (como, anteriormente, previa o art. 145.º do CPT). Porém, tal anulação parcial só poderá ser juridicamente admissível quando o fundamento da anulação valha apenas em relação a uma parte do ato, isto é, quando haja uma ilegalidade apenas parcial. Será o que acontece quando um ato de liquidação se baseia em determinada matéria coletável e se vem a apurar que parte dela foi calculada ilegalmente, por não dever ser considerada.       Nestes casos, não há qualquer obstáculo a que o ato de liquidação seja anulado relativamente à parte que corresponda à matéria coletável cuja consideração era ilegal, mantendo-se a liquidação na parte que corresponde a matéria coletável que não é afetada…”.

No caso dos autos, a ilegalidade da liquidação resulta, em exclusivo, da não aplicação do n.º 2 do artigo 43.º do CIRS que determinaria a tributação de apenas 50% das mais-valias imobiliárias realizadas pela Requerente. Estando em causa a alteração da matéria tributável, legitimada fica a sua anulação parcial.

Termos em que procede este segmento da pretensão da Requerente.  

 

iii)  Direito ao reembolso do imposto indevidamente pago e condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios

 

A Requerente formula o pedido de restituição do imposto pago em excesso [tributação de 50% da mais-valia], acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios.

O artigo 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT prevê que, em caso de procedência da decisão arbitral, a AT deve: “[…]restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito;”.

No caso concreto, se o tribunal reconheceu a ilegalidade parcial do ato de liquidação há lugar a reembolso do imposto pago ilegalmente, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da  Lei Geral Tributária (“LGT”), pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado.

Assim sendo, a Requerente deve ser reembolsada do imposto pago em excesso. No entanto, na medida em que o reembolso depende de operação da competência da Requerida, relega-se o seu concreto apuramento para a execução da decisão arbitral.

A Requerente formulou ainda um pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, por isso há que apurar se tem direito aos mesmos.

O artigo 43.º, n.º 1 da LGT dispõe que: “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. Por outras palavras são três os requisitos do direito aos referidos juros: i) existência de um erro em ato de liquidação de imposto imputável aos serviços; ii) determinação de tal erro em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial e iii) pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

Deste modo, é logo possível formular uma questão: é admissível determinar o pagamento de juros indemnizatórios em processo arbitral tributário? A resposta à questão é afirmativa. Com efeito, o artigo 24.º, n.º 5 do RJAT dispõe que: “É devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Ora, resulta do processo que foi pago imposto em montante superior ao legalmente devido.

 Atento o disposto no artigo 61.º do  Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e considerando que se encontram preenchidos os pressupostos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resultou o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no artigo 43.º, n.º 1 da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, à taxa legal, devendo o seu montante ser apurado pela AT na execução da presente decisão arbitral.

 

III – DECISÃO

 

Termos em que se decide:

 

a) Julgar procedente o pedido de anulação parcial do ato tributário objeto do pedido arbitral e, em consequência, anular parcialmente a liquidação na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da consideração integral da mais-valia imobiliária.

 

b) Condenar a Requerida a restituir à Requerente a quantia paga em excesso, a determinar em execução de julgado;

 

c) Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, contados à taxa legal, com termo inicial no dia do pagamento indevido;

 

d) Condenar a Requerida no pagamento das custas arbitrais.

 

VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 9 191,00 euros, nos termos do artigo 97.º - A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

CUSTAS

 

Custas a suportar pela Requerida, no montante de 918,00 euros, artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT.

 

Notifique.

 

Lisboa, 21 de setembro de 2020

 

O árbitro,

Francisco Nicolau Domingos