Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 717/2020-T
Data da decisão: 2021-09-13  IRS  
Valor do pedido: € 15.779,93
Tema: IRS – Tributação em sede de IRS dos rendimentos de mais-valias imobiliárias auferidos por sujeitos passivos não residentes.
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SUMÁRIO: I — O âmbito material da jurisdição dos tribunais arbitrais tributários constituídos sob a égide do CAAD não compreende o exercício do poder para determinar a extinção de processos de execução fiscal ou de processos contraordenacionais conexos com o ato de liquidação impugnado. II — O regime previsto no art. 43.º, n.º 2, al. b), do CIRS (na redação vigente em 2019), na medida em que restringe apenas aos sujeitos passivos residentes a aplicação da desconsideração de 50% do saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias para efeitos de determinação do rendimento de mais-valias sujeito a tributação em sede de IRS a que essa norma se refere, é incompatível com o art. 63.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e, como tal deve ser desaplicado. III — O ato de liquidação que se baseou em norma ou interpretação normativa desaplicada por incompatibilidade com preceito de Direito Europeu está ferido de vício de violação de lei decorrente de erro nos pressupostos de direito e, como tal, deve ser anulado.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

—I—

A..., contribuinte n.º...  (doravante “o requerente”), de nacionalidade britânica e residente no Reino Unido, veio deduzir pedido de pronúncia arbitral tributária contra a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “a AT” ou “a requerida”) peticionando a declaração de ilegalidade e anulação parcial das liquidações de IRS n.º 2020.... relativa ao exercício de 2019.

Para tanto alegou, em síntese, que em 2015 adquiriu a metade indivisa de um prédio urbano no concelho de ... que veio subsequentemente a alienar em 2019; que declarou essa alienação com vista à tributação das mais-valias em sede de IRS; e que a tributação nessa sede, por força do ato de liquidação impugnado na presente arbitragem, veio a incidir sobre a totalidade do montante da mais-valia realizada, sem ter havido lugar à aplicação do regime de desconsideração de metade da diferença positiva entre o valor de alienação e o valor de aquisição, previsto no art. 43.º, n.º 2, al. b), do CIRS apenas para os sujeitos passivos fiscalmente residentes em Portugal. Mais invocaram que a não aplicação desse regime a residentes fiscais de outros Estados membros da União Europeia constituiria uma ilícita restrição à livre circulação de capitais em violação do disposto no art. 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

Conclui peticionando a anulação parcial da liquidação impugnada.

Juntou documentos e procuração forense e declarou não pretender proceder à designação de árbitro. Procedeu ao pagamento da taxa de arbitragem inicial.

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Constituído o Tribunal Arbitral Singular, nos termos legais e regulamentares aplicáveis, foi determinada a notificação da administração tributária requerida para os efeitos previstos no art. 17.º do RJAT.

Depois de devidamente notificada, a requerida veio apresentar resposta defendendo-se por impugnação. Em síntese, sustentou que o regime fiscal aplicável à tributação de mais-valias imobiliárias obtidas por sujeitos passivos não residentes constante do Código do IRS é totalmente compatível com os preceitos e os princípios do Direito da União Europeia na sequência das alterações introduzidas àquele diploma pela Lei n.º 67-A/2007. Mais requereu a formulação de questão prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia tendo por objeto a apreciação da compatibilidade dos mencionados preceitos do Código do IRS com o referido art. 63.º do TFUE.

Concluiu pela improcedência do pedido e sua consequente absolvição e juntou um despacho de nomeação de mandatários forenses e processo administrativo.

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Depois de assegurado o exercício do contraditório, por despacho do Tribunal Arbitral foi indeferido o requerido reenvio prejudicial e dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18.º do RJAT.

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Notificadas as partes para, querendo, produzirem alegações escritas quanto à matéria de facto e de direito, foram apresentadas alegações apenas pelo requerente, nas quais reiterou a posição vertida nos seus articulados, concluindo pela pretensão de invalidação da liquidação impugnada e acrescentando a pretensão de “extinção dos processos executivos e contraordenacionais subjacentes ao ato de liquidação anulado pela douta decisão arbitral.” Demonstrou ainda nos autos o pagamento da segunda prestação da taxa de arbitragem.

 

— II —

As partes gozam de personalidade judiciária e capacidade judiciária, têm legitimidade ad causam e estão devidamente patrocinadas nos autos.

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Conforme resulta do relatório, no petitório das alegações que apresentou o requerente peticiona a este Tribunal Arbitral a extinção dos processos executivos e contraordenacionais subjacentes ao ato de liquidação impugnado na presente arbitragem, pretensão que não foi deduzida no requerimento inicial e surge deduzida pela primeira vez naquele articulado.

Com dispensa do contraditório por se tratar de caso de manifesta desnecessidade (art. 3.º, n.º 3, do CPC), importa conhecer de imediato da viabilidade processual desta pretensão deduzida a destempo pelo requerente.

O âmbito da jurisdição arbitral tributária está delimitado materialmente em dois momentos. Num primeiro momento, por via legislativa no art. 2.º do RJAT; num segundo momento, por via do instrumento voluntário de vinculação da administração fiscal à arbitragem em matéria tributária. Logo no art. 2.º do RJAT encontra-se o âmbito material da arbitragem fiscal absolutamente circunscrito ao domínio dos processos declarativos de apreciação da legalidade de atos de liquidação e autoliquidação de tributos, de fixação da matéria tributável, de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais. Torna-se assim por demais evidente que os tribunais arbitrais tributários não dispõem de competências para conhecer de quaisquer pretensões conexas com processos de execução fiscal ou processos contraordenacionais — e, muito menos, da competência para determinar a extinção de processos dessa natureza.

Isto não quer dizer que as decisões proferidas em processos arbitrais tributários não possam ter implicações ou projetar os seus efeitos no andamento de processos executivos ou contraordenacionais: essas implicações e esses efeitos têm porém de ser apurados no quadro desses processos pelos respetivos sujeitos processuais ou procedimentais com garantia de impugnação jurisdicional para os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal. O que é inequívoco é que a jurisdição arbitral tributária não tem quaisquer poderes para determinar a extinção de processos executivos ou contraordenacionais que se encontrem pendentes, mesmo quando exista uma qualquer conexão entre tais processos e uma concreta arbitragem fiscal.

Assim, pelos fundamentos expostos e com dispensa do contraditório por manifesta desnecessidade, absolvo a administração tributária requerida da instância arbitral no que diz respeito à pretensão de extinção dos processos executivos e contraordenacionais subjacentes ao ato de liquidação impugnado na presente arbitragem deduzido nas alegações escritas apresentadas pelo requerente.

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O presente Tribunal Arbitral Singular é competente para conhecer do pedido de declaração de ilegalidade da Liquidação n.º 2020-..., inicialmente deduzido nos autos, por força da vinculação à arbitragem tributária institucionalizada do CAAD por parte da administração tributária requerida conforme resulta da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, e, em especial, do disposto no proémio do art. 2.º e no n.º 1 do art. 3.º deste instrumento regulamentar.

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Inexistem quaisquer outras questões prévias ou outras questões prejudiciais que obstem ao conhecimento do objeto da causa. Não se verificam igualmente nulidades processuais de que importe conhecer, quer por terem sido invocadas pelas partes, quer ainda por serem do conhecimento oficioso.

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Relego para final a fixação do valor da causa, por se tratar de matéria que está estreitamente conexa com a decisão da questão da responsabilidade pelas custas da arbitragem.

— III —

FACTOS PROVADOS:

Com relevância para a decisão da presente causa consideram-se provados os seguintes factos:

1.            O requerente tem nacionalidade britânica e reside no Reino Unido.

2.            Mediante escritura pública outorgada em 20/10/2015 o requerente adquiriu, pelo preço de EUR 49.129,57, a metade indivisa de um prédio urbano destinado a habitação, denominado “lote...”, sito no lugar de ..., na freguesia de ... do município de ..., e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo... .

3.            Mediante escritura pública outorgada em 18/1/2019 o requerente alienou a sua quota-parte no prédio referido em 3. pelo preço de EUR 175.000,00.

4.            Em 24/7/2020 o requerente submeteu eletronicamente a declaração de rendimentos, modelo 3, com o n.º..., declarando no campo 4001 do respetivo Anexo G a alienação de 50% do prédio referido em 3., indicando como valor de realização a quantia de EUR 175.000,00, como valor de aquisição a quantia de EUR 49.129,57 e como despesas e encargos a quantia de EUR 68.187,44;

5.            Em 24/7/2020 a requerida emitiu a Liquidação de IRS n.º 2020-... referente ao exercício de 2019 e tendo por destinatário o requerente, da qual resulta a fixação do rendimento coletável em EUR 56.209,10 (campo 9), da coleta líquida em EUR 15.738,54 (campo 22), dos juros compensatórios em EUR 41,39 (campo 28) e de um valor total a pagar no montante de EUR 15.779,93.

 

FACTOS NÃO PROVADOS:

Inexistem quaisquer outros factos, alegados pelas partes ou de conhecimento oficioso, que, de acordo com as diversas soluções plausíveis da questão de direito, sejam relevantes para a decisão da presente causa.

 

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO:

O facto dado como provado em 1. resulta demonstrados dos documentos juntos sob os n.ºs 1 a 5 com o requerimento inicial, e não contraditados nem impugnados pela requerida. Com efeito, a nacionalidade e o local de residência do requerente estão patenteados nas escrituras públicas cujas certidões constam dos documentos n.ºs 1 e 2, e de cujo conteúdo resulta que os notários intervenientes nessas escrituras declararam nelas terem verificado pessoalmente a exibição dos documentos comprovativos da nacionalidade e da residência dos requerentes. Também o documento n.º 5 demonstra a inscrição do requerente como sujeito passivo não residente junto da AT (e, em especial, como residente no Reino Unido).

Os factos provados em 2. a 5. resultam demonstrados, respetivamente, pelos documentos juntos com o requerimento sob os n.os 1, 2, 3 e 4 a 5.

— IV —

QUESTÃO DECIDENDA:

A única questão relevante para a decisão da presente causa é a de saber se o regime previsto no art. 43.º, n.º 2, al. b), do CIRS (na redação vigente em 2019), na medida em que restringe apenas aos sujeitos passivos residentes a aplicação da desconsideração de 50% do saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias para efeitos de determinação do rendimento de mais-valias sujeito a tributação em sede de IRS, deve ser afastado por ser incompatível com preceitos e princípios de Direito Europeu, em particular com o disposto no art. 63.º do TFUE.

Com efeito, ao proceder ao apuramento do rendimento de mais-valias sujeito a tributação em sede de IRS do requerente, a AT considerou in totum a diferença positiva entre o valor de realização declarado, deduzido das despesas e encargos, e o valor de aquisição corrigido pela aplicação dos coeficientes de desvalorização da moeda. Não foi, por conseguinte, efetuada a exclusão de tributação que se prevê na cit. al. b) do n.º 2 do art. 43.º do CIRS: “O saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efetuadas por residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é:[...] b) Apenas considerado em 50 % do seu valor” (realce adicionado). Com efeito, a factispécie da referida norma é bastante clara: a desconsideração na determinação do rendimento de mais-valias (ou, se se preferir, a exclusão de tributação) que nela se prevê aplica-se apenas aos rendimentos provenientes de transmissões efetuadas por sujeitos passivos residentes. No caso presente, sendo o requerente residente no Reino Unido, a letra da lei não consente que a norma possa ser aplicada à determinação dos seus rendimentos tributáveis.

Insurge-se porém o requerente sustentando a incompatibilidade de uma tal solução legislativa com os princípios e os preceitos de Direito Europeu e, em especial, com o art. 63.º do TFUE que estatui uma proibição genérica de restrições à livre circulação de capitais (n.º 1) e à livre realização de pagamentos (n.º 2) entre Estados membros e entre estes e países terceiros e, por conseguinte, clamando pelo afastamento da aplicação da referida norma de direito interno.

Importa decidir.

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Independentemente das sérias reservas que a solução encontrada possa suscitar — na medida em que desconsidera por completo as opções de política legislativa que presidem entre nós à tributação dos rendimentos mais-valias imobiliárias e que passam pelo englobamento destes rendimentos quando obtidos por sujeitos passivos residentes, sujeitando- os à tributação pelas taxas gerais de IRS e acabando assim por se revelar como uma solução que redunda, as mais das vezes, em situações de flagrante discriminação positiva dos sujeitos passivos não residentes em relação àqueles fiscalmente residentes no território nacional —, a verdade é que a resposta da jurisprudência à questão decidenda é hoje absolutamente clara e inequívoca, não se antevendo qualquer razão ou fundamento para agora divergir dela, sobretudo tendo presente o preceituado no art. 8.º, n.º 3, in fine, do Código Civil.

Com efeito, as exigências de uniformidade na interpretação e aplicação do Direito da União Europeia impõem que seja o Tribunal de Justiça da União Europeia o único intérprete das normas constantes dos tratados constitutivos. Nessa medida, a jurisprudência do TJUE a propósito da interpretação das normas e princípios de Direito Europeu tem carácter obrigatório e é vinculativa para os tribunais nacionais. E acerca da questão decidenda nos presentes autos o Tribunal do Luxemburgo já deixou bem claro que “a fixação da matéria coletável em 50 % para as mais‐valias realizadas por todos os sujeitos passivos residentes em Portugal, e não para os sujeitos passivos não residentes que optaram pelo regime de tributação previsto no artigo 72.°, n.° 1, do CIRS, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.°, n.° 1, do TFUE” que não encontra justificação válida ou objetiva (Ac. TJUE 18-3-2021, MK, C-388/19, EU:C:2021:212, pars. 32 e 41).

Consequentemente, concluiu o Tribunal de Justiça (Ac. MK, cit., par. 47):

o artigo 63.° TFUE, lido em conjugação com o artigo 65.° TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe à regulamentação de um Estado‐Membro que, para permitir que as mais‐valias provenientes da alienação de bens imóveis situados nesse Estado‐Membro, por um sujeito passivo residente noutro Estado‐Membro, não sejam sujeitas a uma carga fiscal superior à que seria aplicada, para esse mesmo tipo de operação, às mais‐valias realizadas por um residente do primeiro Estado‐Membro, faz depender da escolha do referido sujeito passivo o regime de tributação aplicável.

Também o Supremo Tribunal Administrativo afinou pelo mesmo diapasão, mesmo antes da prolação do Acórdão MK, uniformizando a jurisprudência no mesmo exato e preciso sentido. Na verdade, no Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo veio a tirar- se acórdão [Ac. STA 9-12-2020, Proc.o 075/20.6BALSB (ainda não publicado em Diário da República, mas disponível em www.dgsi.pt)] que uniformizou a seguinte jurisprudência:

III - A norma do n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na redação aplicável, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo art. 63.º do TFUE, ao qual o Estado português se obrigou. IV – Essa incompatibilidade da norma com o Direito Europeu não pode ter-se como sanada pelo regime opcional introduzido no art. 72.º do CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, aliás, previsto apenas para os residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou na EEE e não para os residentes em Países terceiros.

Assim, nada mais resta do que aderir aos fundamentos destes dois arestos acima citados e, subsumindo a factualidade dada como provada a esses considerandos jurídicos, concluir que o regime previsto no art. 43.º, n.º 2, al. b), do CIRS (na redação vigente em 2019), na medida em que restringe apenas aos sujeitos passivos residentes a aplicação da desconsideração de 50% do saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias para efeitos de determinação do rendimento de mais-valias sujeito a tributação em sede de IRS, é incompatível com o disposto no art. 63.º do TFUE, na exata e precisa medida em que tal resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão MK.

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Neste passo é forçoso ter presente que, de acordo com o artigo 8.º, n.º 4, da CRP, o Direito Europeu é aplicável na ordem interna nos termos previstos pelo próprio Direito da União — isto é, neste preceito constitucional está implícita a assunção do denominado princípio do primado do Direito da União sobre o direito interno. Na verdade, “[é] a regra básica do Direito Comunitário que [...] uma norma de Direito Comunitário com efeito direto prevalece sempre sobre uma norma de direito nacional. Esta regra, que não se encontra consagrada em nenhum dos Tratados mas que tem sido invocada com grande ênfase pelo Tribunal, aplica-se independentemente da natureza da norma comunitária (tratado constitutivo, ato comunitário ou acordo com um Estado terceiro) ou da norma nacional (Constituição, norma legislativa ou normação derivada); aplica-se da mesma forma quer a norma comunitária seja anterior ou posterior a uma norma nacional: em todos os casos a norma nacional cede perante o Direito Comunitário” (T.C. HARTLEY, Foundations of European Community Law, Oxford University Press, 2003, p. 228, tradução livre).

Entendimento que, de resto, corresponde à jurisprudência longamente consolidada do TJUE — assim, cfr. Ac. TJUE 15-7-1964, COSTA c. ENEL, C-6/64, EU:C:1964:66; Ac. TJUE 9-3- 1978, SIMMENTHAL, C-106/77, EU:C:1978:49, par. 24). Também na doutrina portuguesa é consensual a ideia de que “a uniformidade do Direito Comunitário impõe o primado de todo o Direito Comunitário (originário, isto é, os tratados, e derivado, quer dizer, as normas e os atos emanados dos órgãos comunitários) sobre todo o direito estadual (inclusive a Cons- tituição), seja este anterior ou posterior aos tratados comunitários ou à norma comunitária concretamente em causa” (GONÇALVES PEREIRA / FAUSTO DE QUADROS, Manual de Direito Internacional Público, Almedina, 1997, pp. 125 e 126).

Como bem sintetiza ALBERTO XAVIER, agora já no plano da aplicação deste princípio no domínio específico do Direito Fiscal (Direito Tributário Internacional, Almedina, 2007, p. 216):

O Direito Comunitário (tratados institutivos e disposições dotadas de aplicabilidade direta) tem prevalência ou primazia de aplicação (Anwendungsvorrang) relativamente à legislação nacional dos Estados- Membros. Esta primazia traduz-se na desaplicação da lei nacional e consequente aplicação da norma comunitária com ela colidente, mas não necessariamente abrogação.

Como o Tribunal do Luxemburgo deixou bem explícito no cit. Acórdão Simmenthal (cit., par. 24): “O juiz nacional responsável, no âmbito das suas competências, por aplicar disposições de direito comunitário, tem obrigação de assegurar o pleno efeito de tais normas, decidindo, por autoridade própria, se necessário for, da não aplicação de qualquer norma de direito interno que as contrarie, ainda que tal norma seja posterior, sem que tenha de solicitar ou esperar a prévia eliminação da referida norma por via legislativa ou por qualquer outro processo constitucional.”

Em conclusão, do princípio do primado não decorre que as normas de Direito Europeu tenham natureza paramétrica sobre as normas de direito interno: não há lugar a um juízo de invalidação ou de revogação enquanto manifestação de uma hierarquia normativa strictu sensu, cuja existência, de resto, não é consensual. No que interessa à economia da presente arbitragem, o efeito prático do princípio do primado é a desaplicação das normas de direito interno que sejam contrárias ao, ou incompatíveis com, o Direito da União Europeia.

Nessa medida há que recusar a aplicação do mencionado art. 43.º, n.º 2, al. b), do CIRS na referida interpretação normativa de efeito restritivo e cerceador da liberdade de circulação de capitais consagrada pelo citado art. 63.º do TFUE. Aplicando, então, aos factos sub judice aquele preceito de direito interno já despido do segmento normativo que se concluiu ser incompatível com os tratados europeus, verifica-se que a liquidação impugnada não pode validamente subsistir, pois está ferida de vício de violação de lei decorrente de erro nos pressupostos de direito.

Consequentemente, a presente arbitragem terá de proceder no que diz à pretensão originalmente deduzida nos presentes autos, determinando-se a anulação da liquidação impugnada na parte em que, na determinação do rendimento de mais-valias do requerente sujeito a tributação em sede do IRS referente ao exercício de 2019, não considerou o saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias imobiliárias por ele declaradas nesse exercício em apenas 50% do seu valor.

 

DA RESPONSABILIDADE PELAS CUSTAS DA ARBITRAGEM:

No seu requerimento inicial, o requerente atribuiu à presente arbitragem o valor de EUR 15.779,93, montante que a administração tributária requerida não impugnou nem colocou em causa na resposta que fez atravessar nos autos.

Assim, na ausência de quaisquer elementos que permitam infirmar o valor atribuído pelas partes, que se aceita, fixo à presente arbitragem o valor de EUR 15.779,93.

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Assim, tendo em conta o valor atribuído ao processo, por aplicação da l. 3 da Tabela I

anexa ao mencionado Regulamento, há que fixar a taxa de arbitragem do presente processo em EUR 918,00, em cujo pagamento se condenará a final a parte ou partes que vier ser responsável pelas custas.

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Foram essencialmente deduzidas duas pretensões na presente arbitragem. Por um lado, temos a pretensão de invalidação de um ato de liquidação — a Liquidação de IRS n.º 2020-... — originalmente deduzida no requerimento de pronúncia arbitral; por outro lado, temos a pretensão de extinção de processos executivos e contraordenacionais, deduzida a destempo no petitório das alegações finais. Se em relação à primeira o vencimento do requerente é total, já em relação à segunda este decaiu totalmente, em função da decisão já proferida de absolvição da instância.

Não sendo possível traçar com rigor e precisão o montante pecuniário correspondente ao decaimento de cada uma das partes em face da difícil destrinça na quantificação pecuniária de cada um dos pedidos, afigura-se equitativo, face à existência de duas pretensões que tiverem desfechos processuais distintos, atribuir a responsabilidade por custas em partes iguais ao requerente e à requerida.

Assim, a responsabilidade pelas custas da presente arbitragem e, consequentemente, pelo pagamento da taxa de arbitragem, será repartido por ambas as partes, na proporção de metade para cada uma, naturalmente sem prejuízo dos adiantamentos que o requerente já efetuou por conta das custas arbitrais.

—V—

Assim, pelos fundamentos expostos, julgo a presente arbitragem parcialmente proce- dente e em consequência:

a)  Absolvo a requerida Administração Tributária e Aduaneira da presente instância arbitral quanto à pretensão de extinção dos processos executivos e contraordenacionais subjacentes ao ato de liquidação impugnado na presente arbitragem, deduzida nas alegações escritas apresentadas pelo requerente;

b)  Julgo o regime previsto no art. 43.º, n.º 2, al. b), do CIRS (na redação vigente em 2019), na medida em que restringe apenas aos sujeitos passivos residentes a aplicação da desconsideração de 50% do saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias para efeitos de determinação do rendimento de mais-valias sujeito a tributação em sede de IRS, incompatível com o disposto no art. 63.º do TFUE, na exata e precisa medida em que tal resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão MK, melhor identificado supra, e, consequentemente, recuso a aplicação daquele preceito legal na interpretação normativa acima indicada;

c) Declaro ilegal e anulo parcialmente a Liquidação de IRS n.º 2020-..., na parte em que, na determinação do rendimento de mais-valias do requerente sujeito a tributação em sede do IRS referente ao exercício de 2019, não considerou o saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias imobiliárias por ele declaradas nesse exercício em apenas 50% do seu valor;

d) Condeno ambas as partes nas custas do presente processo arbitral tributário, na proporção de metade para cada uma delas, fixando a taxa de arbitragem em EUR 918,00.

 

Notifiquem-se as partes.

Notifique-se o M.º P.º — arts. 252.º, n.º 1, do CPC e 72.º, n.º 3, da LTC.

 

Registe-se e deposite-se.

CAAD, 13/9/2021

 

O Árbitro,

(Gustavo Gramaxo Rozeira)