Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 713/2020-T
Data da decisão: 2021-07-30  IRS  
Valor do pedido: € 16.356,48
Tema: IRS - Mais-valias; Não residentes; Princípio da não discriminação.
Versão em PDF

 

SUMÁRIO:

 

O n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º do TFUE.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

A) As partes e a constituição do tribunal arbitral

A..., contribuinte fiscal n.º..., residente em ..., ..., ..., França, apresentou junto do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), pedido de constituição de Tribunal Arbitral singular, ao abrigo das disposições conjugadas nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 3, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante RJAT), tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) com o n.º 2020..., de 17.07.2020, relativa ao exercício de 2019, na parte relativa ao excesso de 50% do imposto relativo a mais-valias pago pela Requerente. Peticiona ainda o reembolso desse imposto pago em excesso e o pagamento de juros indemnizatórios.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado pela Requerente em 30.11.2020 e aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 02.12.2020. Foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 09.12.2020. A Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1, do artigo 6.º do RJAT, foi designada, pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, em 25.01.2021, a ora signatária como Árbitro a integrar o Tribunal arbitral singular, o qual se constituiu em 03.05.2021, em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro. Em 03.05.2021 foi proferido despacho arbitral para a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentar resposta no prazo legal, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 17.º do RJAT.

Em 26.05.2021, a Requerida AT veio juntar aos autos a sua resposta, que se dá por integralmente reproduzida, e o processo administrativo.

Em 07.06.2021, foi proferido nos autos despacho arbitral, cuja fundamentação se dá por integralmente reproduzida, a dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, dada a ausência de matéria de facto controvertida e a evidência da natureza das questões suscitadas pelas partes, que se configuram como questões exclusivamente de direito. Por outro lado, as partes foram notificadas para, querendo, apresentarem alegações escritas, apenas o tendo feito a Requerente.

 

B) Do pedido formulado pela Requerente

A Requerente no presente pedido arbitral pretende a declaração de ilegalidade da liquidação de IRS referente ao ano de 2019 e a sua anulação, em parte, bem assim como a restituição do imposto por si pago em excesso, acrescido dos juros indemnizatórios devidos, nos termos previstos nos artigos 43.º e 100.º da LGT, desde a data do pagamento até efectivo reembolso. Alega, em síntese, que este acto tributário enferma de vício de violação de lei, porquanto no apuramento do seu rendimento colectável, a AT não aplicou a regra constante do artigo 43.º, n.º 2, do CIRS, que prevê a redução em 50% (cinquenta por cento) da mais-valia realizada pela Requerente pela alineação onerosa do seu direito de propriedade.

Segundo a Requerente, o entendimento da AT, subjacente ao acto impugnado, assenta numa interpretação e aplicação do n.º 2, dos artigos 10.º e 43.º, do CIRS, no sentido de excluir da limitação da incidência do imposto a 50% (cinquenta por cento) as mais-valias resultantes da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis situados em Portugal, realizadas por um sujeito passivo residente noutro Estado membro da União Europeia, limitando aquela incidência do imposto unicamente a sujeitos passivos residentes em território português, consubstancia uma violação do actual artigo 63.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que corresponde ao artigo 56.º do Tratado que institui a Comunidade Europeia (TCE), por se traduzir num regime fiscal discriminatório para os residentes noutro Estado membro da União Europeia. Alega, em suma, que o artigo 43.º, n.º 2 do CIRS, ao estabelecer um regime diferenciado para tributação das mais-valias realizadas por residentes e não residentes em território nacional, estabelece uma discriminação inaceitável à luz do disposto no artigo 56.º do Tratado da União Europeia, quando aplicado a residentes noutro estado membro que realizem mais-valias decorrentes da alienação de imóveis situados em Portugal. Assim, entende a Requerente que a liquidação impugnada é ilegal, porquanto tem a sua origem na aplicação do disposto no artigo 43.º, n.º 2 do CIRS, do qual resultou, no caso concreto, a aplicação da taxa de IRS sobre a totalidade da mais-valia e não apenas sobre 50%, apenas porque a Requerente, sendo residente noutro Estado da União Europeia – França -, não cumpre o pressuposto previsto na norma legal em causa. Invoca, em favor do seu entendimento, jurisprudência diversa, quer arbitral  quer dos nossos Tribunais superiores , bem assim como do TJUE . Em consequência, pede o reembolso do imposto pago indevidamente, bem como de juros indemnizatórios.

 

C) A Resposta da Requerida

A Requerida AT, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta na qual pugna pela manutenção na ordem jurídica do acto impugnado. Alega, em síntese, que a posição da Requerente não deve obter provimento, face à alteração do artigo 72.º do CIRS, efectuada pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, nomeadamente o aditamento dos n.ºs 7 (actual n.º 9) e 8 (actual n.º 10). Assim, o n.º 8 (actual n.º 10) do artigo 72.º do CIRS é taxativo, no sentido de que devem ser englobados todos os rendimentos obtidos nesse ano (quer em Portugal, quer no estrangeiro). O mesmo é referido no n.º 1 do artigo 15.º do Código do IRS: sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território. Como tal, entende a AT que para efeitos de tributação pela taxa do artigo 68°, ou seja, como residente, era necessário ter preenchido os campos 9 (opção pelas taxas do artigo 68° do Código do IRS) e 11 (total dos rendimentos obtidos no estrangeiro) do Modelo 3. Quer isto dizer que o quadro legal (bem como a obrigação declarativa) já não é aquele que existia à data da jurisprudência do TJUE aqui invocada pela Requerente, tendo em conta que foi efectuada a alteração à lei por força do aditamento dos n.ºs 7 e 8 (actuais 9 e 10) ao artigo 72.º do Código do IRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12. Salienta, ainda, a AT que o artigo que a Requerente pretende que lhe seja aplicado (43.º, n.º 2, do Código do IRS) está incluso no capítulo II do Código do IRS que tem como epígrafe "Determinação do rendimento colectável". Para efeitos de incidência (no que toca à matéria das mais-valias) os artigos relevantes são o 9° e 10° do Código do IRS. Assim, o disposto no n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS não pode ser aplicável ao caso aqui em análise.

Conclui pugnando pela legalidade da liquidação de IRS impugnada e pela improcedência do pedido arbitral.

 

II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído. É materialmente competente, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º n.º 2 do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).

O processo não padece de vícios que o invalidem.

Cumpre decidir.

 

III – DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

A)           Factos Provados

Tendo em conta a prova documental junta aos autos, cumpre fixar a matéria de facto relevante para a compreensão da decisão, que se fixa como segue.

Como matéria de facto relevante, dá o tribunal por assente os seguintes factos:

a)            A Requerente, à data do facto tributário, era não residente em Portugal (Doc. 1 junto com o pedido arbitral), residindo em França, concretamente, no n.º ..., da Rue ... .

b)           Em Novembro de 2019, a Requerente procedeu à venda da fracção F do prédio sito na Travessa ..., ...-..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...º da freguesia da ..., concelho e distrito de Lisboa (Doc. 1 junto com o pedido arbitral e processo administrativo).

c)            Consequentemente, a Requerente apresentou, em 2020, a Declaração de IRS Modelo 3, acompanhada do Anexo G, para declaração daquela alienação onerosa (processo administrativo).

d)           Na referida declaração, a Requerente declarou a sua condição de não residente em Portugal (processo administrativo).

e)           No Anexo G da mencionada Declaração de Rendimentos, a Requerente inscreveu, no quadro 4 [“Alienação Onerosa de Direitos Reais sobe Bens Imóveis, artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS”], o valor de aquisição: € 150.000,00, e o valor de alienação: € 330.000,00. (processo administrativo).

f)            A AT liquidou imposto à taxa de 28%, sobre a totalidade das mais-valias (€ 116.832,00) realizadas com a venda do direito de propriedade da Requerente no identificado imóvel, num total de € 36.712,96 (Doc. 1 junto com o pedido arbitral)

g)            Tendo resultado um imposto total a pagar no montante de € 36.712,96, através da liquidação n.º 2020..., de 17.07.2020, relativa ao ano de 2019 (Doc. 1 junto com o pedido arbitral e processo administrativo).

h)           Em 30.11.2020, a Requerente apresentou o presente pedido arbitral.

 

B) Factos não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

C)           Fundamentação dos factos provados

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Singular cuja convicção ficou formada tendo por base a prova documental apresentada pela Requerente e não contestada, que aqui se dá por reproduzida e com base nas peças processuais apresentadas pelas Partes.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

Ainda relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596º e n.º 2 a 4 do artigo 607º, ambos do Código Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e) do n.º do artigo 29º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123º Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes, a prova documental e o processo administrativo juntos aos autos consideraram-se provados, com relevo para esta Decisão Arbitral, os factos acima elencados.

 

IV – DECISÃO DA MATÉRIA DE DIREITO

Fixada a matéria de facto, importa conhecer da questão de direito suscitada pela Requerente. A questão de fundo a apreciar, consiste em saber se a norma estabelecida pela legislação nacional, no artigo 43.º do CIRS, consagra uma diferenciação entre residentes e não residentes, e em concreto, se a base de incidência em IRS das mais-valias derivadas da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis é (in)compatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o qual corresponde ao artigo 56.º do Tratado que institui a Comunidade Europeia, por se traduzir num regime fiscal menos favorável para os não residentes. É, pois, esta a única questão que está em debate.

 

A) Da Questão de Direito a decidir nos presentes autos

A presente questão - tributação dos não residentes por mais-valias imobiliárias em sede de IRS - foi já decidida através do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Pleno da Secção do Contencioso Tributário, proferido a 09.12.2020, no processo n.º 075/20.6BALSB e que passamos a transcrever no que aqui importa:

«(…) Os ganhos obtidos por pessoas singulares com a alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, quando não constituam rendimentos empresariais e profissionais, são tributados, em sede de IRS, no âmbito da categoria G (incrementos patrimoniais), como mais-valias, nos termos do disposto nos arts. 9.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS.

Esses rendimentos, desde que resultantes da transmissão de direitos reais relativos a imóveis situados em território português consideram-se aqui obtidos [art. 18.º, n.º 1, alínea h), do CIRS], pelo que ficam abrangidos pela incidência de IRS quando auferidos por titulares não residentes (cf. arts. 13.º, n.º 1 e 15.º, n.º 2, do CIRS).

O valor desses rendimentos que seja qualificado como mais-valias, quando obtidos por sujeitos passivos residentes é sujeito a englobamento e a tributação é efectuada às taxas gerais progressivas estabelecidas no art. 68.º do CIRS, mas apenas é considerado em 50%, como resulta do n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na redacção aplicável.

Quanto aos sujeitos passivos não residentes, a tributação desse valor faz-se à taxa fixa especial de 28%, nos termos do art. 72.º, n.º 1, alínea a) do CIRS, ou, se forem residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu (EEE), neste caso por opção, às taxas gerais progressivas do art. 68.º do CIRS, considerando-se então todos os seus rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, mas sobre 100% da mais-valia imobiliária realizada (cf. arts. 72.º, n.ºs 9 e 10, na redacção aplicável).

A questão que se coloca é a de saber se, como alega a Recorrente [AT], este regime opcional, que foi introduzido pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2008), então sob os n.ºs 7 e 8 (actuais n.ºs 13 e 14 e n.ºs 9 e 10, na redacção aplicável), aditados ao art. 72.º do CIRS, veio pôr termo à discriminação negativa dos não residentes, que o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) tinha já considerado verificar-se relativamente ao n.º 2 do art. 43.º do CIRS.

Na verdade, o TJCE – em acórdão (Hollmann) proferido em 11 de Outubro 2007, no processo n.º C-443/06 (disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62006CJ0443&from=EN), em resposta ao reenvio prejudicial efectuado pelo Supremo Tribunal Administrativo no âmbito do processo n.º 493/06 (Vide os acórdãos proferidos nesse processo n.º 439/06, o primeiro fazendo o reenvio prejudicial e, o segundo, já referido na nota 3 supra, decidindo o recurso, após a pronúncia do TJCE: - de 28 de Setembro de 2006, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/5b7c4837b616cebc802571fd003c0cec; - de 16 de Janeiro de 2008, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1827bec1e1931004802573d800503721), julgou «incompatível com o direito europeu a norma do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constituindo, por isso, uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º do TFUE».

É certo que o legislador nacional, através da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2008), procurou obviar a esse tratamento discriminatório dos residentes comunitários e do EEE, facultando-lhes, em termos opcionais, a possibilidade de tributação das mais-valias imobiliárias em condições similares às aplicáveis aos residentes em território português, aditando ao art. 72.º do CIRS os n.ºs 7 e 8 (actuais n.ºs 13 e 14). Ou seja, após a referida alteração legislativa ficaram a vigorar, na área da tributação das mais-valias imobiliárias, dois regimes distintos, aplicáveis a não residentes: um regime geral, aplicável a quaisquer sujeitos passivos não residentes, traduzido na tributação desses rendimentos à taxa especial de 28% incidente sobre a totalidade do rendimento e um regime especificamente aplicável a residentes noutro Estado-membro da União Europeia ou do EEE, equiparável ao regime de que beneficiam os sujeitos passivos residentes.

Mas esse regime específico de opção, não só constitui um ónus suplementar comparativamente aos residentes, como não afastou a referida discriminação negativa. Como bem concluiu a decisão recorrida, «o regime de equiparação actualmente previsto no artigo72.º do Código do IRS não afasta o carácter discriminatório do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, não podendo o contribuinte achar-se na circunstância de ter de optar por dois regimes, um legal e outro ilegal».

Como também salientou a decisão recorrida, o acórdão (Gielen) do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de 18 de Março de 2010, proferido no processo n.º C-440/08 (disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:62008CJ0440), após salientar que «a opção de equiparação [que] permite a um contribuinte não residente, (...) escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório» não é passível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais, concluiu que «o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência(...) validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.º TFUE em razão do seu carácter discriminatório» e que o Tratado «se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes na concessão de um benefício fiscal (...) apesar de esses contribuintes poderem optar, no que se refere a esse benefício, pelo regime aplicável aos contribuintes residentes».

Ou seja, o regime opcional introduzido no art. 72.º do CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro, não veio sanar a discriminação negativa resultante da norma do n.º 2 do art. 43.ºdo CIRS para os não residentes e a violação do art. 63.º do TFUE que dela resulta.

Finalmente, porque o caso respeita a um sujeito passivo residente, não num outro Estado-membro da União Europeia ou no EEE, mas num País terceiro, poderia questionar-se a validade das proposições acima formuladas. Mas não há motivo para tanto.

Desde logo, porque o regime de abolição de restrições à livre circulação de capitais vigora, não só entre Estados-membros da Comunidade Europeia, mas também entre estes e Estados terceiros [como é actualmente o caso do Reino Unido], sendo o seu conteúdo o mesmo para as duas situações, conforme decorre do n.º 1do art. 63.º do TFUE (Cf. Manuel Lopes Porto e Gonçalo Anastácio (coord.), Tratado de Lisboa Anotado e Comentado, Almedina, 2012, anotação aos arts. 63.º a 66.º, do TFUE, pág. 368 e João Sérgio Ribeiro, Direito Fiscal da União Europeia, Almedina, 2018, pág. 56).

Como bem ficou dito na decisão recorrida, a esse propósito «é elucidativo o acórdão do TJUE de 18 de Janeiro de 2018, no Processo n.º C-45/17 (acórdão Jahin). Aí se refere que o artigo 63.º do TFUE estabelece a livre circulação de capitais entre Estados Membros, por um lado, entre Estados Membros e países terceiros, por outro, de onde decorre que o âmbito de aplicação territorial da livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º TFUE não se limita aos movimentos de capitais entre Estados Membros, mas estende-se igualmente aos movimentos de capitais entre Estados Membros e Estados terceiros (parágrafos 19 e 21). No que se refere ao âmbito de aplicação material do artigo 63.º TFUE, embora o Tratado não defina o conceito de «movimentos de capitais», resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que esses movimentos, na acepção desse artigo, compreendem, nomeadamente, as operações mediante as quais os não residentes efectuam investimentos imobiliários no território de um Estado-Membro. Pelo que as imposições efectuadas nos termos de uma legislação nacional que incidem sobre os rendimentos prediais e sobre uma mais-valia obtida na sequência da alienação de um imóvel, adquirido num Estado Membro por uma pessoa singular que reside num Estado terceiro, estão abrangidas pelo conceito de «movimentos de capitais», na acepção do artigo 63.º TFUE (parágrafos 22 e 23)».

Mas, se alguma dúvida subsistisse relativamente à aplicação do entendimento anteriormente expresso quando a discriminação operada pelo art. 43.º, n.º 2, do CIRS, incide sobre um residente em País terceiro, ela deve ter-se por expressamente afastada pelo TJUE, que, por despacho da 7.ª Secção proferido em 6 de Setembro de 2018, no processo C-184/18 (disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:62018CO0184&from=PT) – em pedido de reenvio prejudicial formulado pelo Tribunal Central Administrativo Sul no processo n.º 1358/08.9BESNT (Vide os acórdãos proferidos pelo Tribunal Central Administrativo Sul nesse processo n.º 1358/08.9BESNT (6021/12), o primeiro fazendo o reenvio prejudicial e, o segundo, decidindo o recurso, após a pronúncia do TJUE: - de 19 de Setembro de 2017, disponível em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/5a8ed864080e522d802581a200533e1c; - de 8 de Maio de 2019, disponível em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/bca5ceb1b80d357f802583f40058bb8b) –, se pronunciou no sentido de que «[u]ma legislação de um Estado Membro, como a que está em causa no processo principal, que sujeita as mais valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado nesse Estado Membro, efectuada por um residente num Estado terceiro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, nesse mesmo tipo de operações, sobre as mais valias realizadas por um residente naquele Estado Membro constitui uma restrição à livre circulação de capitais que, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, não é abrangida pela excepção prevista no artigo 64.º, n.º 1, TFUE e não pode ser justificada pelas razões referidas no artigo 65.º, n.º 1, TFUE».

Assim, bem andou a decisão recorrida quando julgou incompatível com o Direito da União Europeia a norma do n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constituindo, por isso, uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo art. 63.º do TFUE e, em consequência, quando anulou os actos de liquidação em causa (de IRS e de juros compensatórios) na parte em que desconsideraram aquela limitação. Acompanhando, sem reservas, a jurisprudência do STA e do CAAD acima referidas, e a referida decisão proferida no processo n.º 208/2019-T que aqui se transcreveu, considera este Tribunal que se não suscitam dúvidas quanto à incompatibilidade com o direito europeu das normas aplicadas à liquidação ora impugnada.»

Nessa sequência, o referido aresto concluiu uniformizando a jurisprudência no seguinte sentido: «[O] n.º 2 do art. 43.º do CIRS, na redacção aplicável, ao prever uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, e não para os não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, incompatível como art. 63.º do TJUE, não tendo essa discriminação negativa dos não residentes sido ultrapassada pelo regime opcional introduzido no art. 72.º do CIRS pela Lei n.º 67-A/2007, de31 de Dezembro, previsto, aliás, apenas para os residentes noutro Estado-membro da UE ou na EEE e não para os residentes em Países terceiros.»

Assim, julga-se incompatível com o direito europeu a norma do n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, na medida em que prevê uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, não extensiva aos não residentes, constituindo, por isso, uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 63.º do TFUE. Consequentemente, o acto de liquidação em causa, ao desconsiderar aquela limitação, encontra-se ferido de ilegalidade. Restringindo-se, no entanto, a ilegalidade apenas àquele excesso de tributação, a título de mais-valias, e nela se centrando em exclusivo o objecto do presente pedido de pronúncia arbitral, como resulta do pedido e dos artigos 17º, 19º, 49º e 50º da petição inicial) deve esse acto ser anulado nessa parte.

A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso da quantia indevidamente paga e no pagamento de juros indemnizatórios.

 

B) Reembolso das quantias indevidamente pagas e juros indemnizatórios

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe "restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito". O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT. Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT "é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário", o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IRS, ao reembolso da importância indevidamente liquidada, acrescida de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

C) Reenvio prejudicial

A Autoridade Tributária entende que deve o Tribunal arbitral suspender a instância e proceder a reenvio para o TJUE.

No entanto, com base na jurisprudência do Tribunal de Justiça que foi mencionada, não subiste dúvida fundada quanto à interpretação do princípio da não discriminação em razão da nacionalidade e da residência aplicável à liberdade de circulação de capitais, não se afigurando que o caso dos autos ofereça qualquer especificidade, no plano dos factos, que recomende uma nova intervenção em sede de reenvio.

Entende-se, nestes termos, não se justificar a requerida suspensão.

 

V – DECISÃO

Termos em que se decide:

a)            Julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, anular parcialmente a liquidação de IRS nº 2020..., de 17.07.2020, objecto dos presentes autos, por violação de lei, na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da consideração total da mais-valia imobiliária, com as demais consequências legais;

b)           Condenar a AT a restituir à Requerente o valor de imposto pago em excesso, acrescido de juros indemnizatórios, a contar da data em que foi efectuado o pagamento até à data do processamento da respectiva nota de crédito;

c)            Condenar a AT no pagamento das custas do processo.

 

VI - VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 16.356,48 (dezasseis mil, trezentos e cinquenta e seis euros e quarenta e oito cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VII - CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

Notifique-se o Ministério Público, representado pela Senhora Procuradora-Geral da República, nos termos e para os efeitos dos artigos 280.º, n.º 3, da Constituição e 72.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional e 185.º-A, n.º 2, do CPTA, subsidiariamente aplicável.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 30 de Julho de 2021

 

O Árbitro,

Cristina Aragão Seia