Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 700/2019-T
Data da decisão: 2020-07-13  ISV  
Valor do pedido: € 15.885,32
Tema: Incidência de ISV – Veículos de competição.
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DECISÃO ARBITRAL

 

A Signatária, Dra. Elisabete Flora Louro Martins, foi designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante designado apenas por CAAD) para formar o TRIBUNAL ARBITRAL SINGULAR, o qual foi constituído em 13 de janeiro de 2020.

 

I.             RELATÓRIO

 

1. A..., LDA., sociedade por quotas matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de identificação de pessoa coletiva ..., com sede na ..., no ..., ..., ..., ...-... Lisboa (doravante, Requerente), apresentou no dia 17 de outubro de 2019 pedido de pronúncia arbitral nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante designado apenas por RJAT), em que é Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante, Requerida).

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pede:

(i)           a declaração de ilegalidade, do ato de liquidação de Imposto Sobre Veículos («ISV») n.º 2019/..., emitido pela Requerida relativamente ao veículo automóvel participante em competição desportiva com chassi n.º ... e com a matrícula específica de competição ..., no valor de EUR 14594,77 (acrescido de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) no montante de EUR 3356,80 e de juros compensatórios que se cifram em EUR 1290,55, perfazendo assim o montante global de EUR 19242,12), notificada através do Ofício n.º..., de 04-07-2019 (Doc. 1 junto pela Requerente)  —  sendo que o que se discute nesta sede é unicamente a legalidade do referido ato de liquidação de ISV e dos referidos juros compensatórios (doravante, ato impugnado) cujas duas parcelas totalizam EUR 15885,32;

(ii)          o reembolso do montante indevidamente suportado pela Requerente; e

(iii)         o pagamento de juros indemnizatórios pela privação daquela quantia, nos termos do artigo 43.º da LGT calculados à taxa legal e contados desde a data de pagamento do ato de liquidação.

 

2. O pedido de pronuncia arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 18 de outubro de 2019, e notificado à Requerida em 25 de outubro de 2019.

 

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro pelo que, em 25 de novembro de 2019 ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a Signatária como Árbitro do Tribunal Arbitral Singular, tendo a Signatária comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

4. Em 10 de dezembro de 2019, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo as mesmas manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 13 de janeiro de 2020.

 

6. Em 14 de janeiro de 2020, o Tribunal Arbitral proferiu despacho arbitral ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo, e solicitar, querendo, a produção de prova adicional. Deste despacho foi a Requerida notificada em 15 de janeiro de 2020.

7. Decorrido o prazo legal (30 dias) a Requerida não apresentou Resposta, pelo que, em                11 de março de 2020 o Tribunal Singular proferiu despacho arbitral no qual ordenou a notificação do serviço periférico local (Alfândega de ...) para nos termos do disposto no artigo 17.º n.º 2 do RJAT e do disposto no artigo 110.º nº 5 do CPPT, remeter, por via eletrónica, o processo administrativo. Este despacho foi notificado à Requerente e à Requerida no mesmo dia (11 de março de 2020).

 

8. Em cumprimento do despacho arbitral de dia 11 de março de 2020, a Requerida juntou aos autos o processo administrativo em 12 de março de 2020.

 

9. Por despacho arbitral de dia 13 de março de 2020, o Tribunal ordenou a notificação da Requerente para vir aos autos dizer se mantinha interesse na inquirição da testemunha arrolada no Pedido de Pronúncia Arbitral, tendo a Requerente sido notificada deste despacho no mesmo dia. Em 23 de março de 2020, a Requerente veio aos autos dizer que prescinde da produção de prova testemunhal.

 

10. Em 30 de junho de 2020 foi proferido despacho arbitral (notificado às partes no dia              1 de julho de 2020), com o seguinte teor:

“1. Tendo em consideração que:

(i) a Requerente prescindiu da prova testemunhal requerida no pedido de pronúncia arbitral;

(ii) a Requerida não apresentou resposta, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º do RJAT, não tendo assim sido suscitada qualquer matéria de exceção;

(iii) o processo fornece todos os elementos necessários à prolação de decisão arbitral, pelo que, nos termos do artigo 113.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º n.º 1 al. c) do RJAT, não há́ necessidade de alegacões.

O Tribunal dispensa a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, o que faz ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, e (em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade do mesmo) nos termos do artigo 19.º e do artigo 29.º n.º 2 do RJAT.

2. Indica-se o dia 13 de julho de 2020 (termo do prazo de seis meses, previsto no disposto no artigo 21.º do RJAT, sem considerar a suspensão prevista na Lei 1-A/2020, de 19 de março, republicada pela Lei 16/2020 de 29 de maio) para prolação da decisão arbitral. Até essa data, a Requerente deverá pagar a taxa subsequente”;   

 

11. Em 2 de julho de 2020, a Requerida veio “solicitar a junção aos autos das respetivas alegações finais”, “Discordando do despacho arbitral proferido nos autos”. Por despacho arbitral de dia 10 de julho de 2020 (notificado às partes na mesma data), não foi admitida por falta de fundamento legal a junção aos autos das referidas alegações.

 

12. Em síntese, no pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alega o seguinte:

a)            O ato impugnado resulta de um procedimento inspetivo interno em observância da Ordem de Serviço n.º OI2019... sancionada por despacho de 13-03-2019 do Diretor da Alfândega de ... . Na origem da ação inspetiva, está um requerimento de matrícula de competição apresentado pela Requerente para o veículo automóvel concebido para participar em competições desportivas de marca B..., modelo ..., com chassi n.º TMB... e com a matrícula específica, destinada à sua participação em competições desportivas, ... (doravante, B... ...);

b)           Em 13-09-2017 a Requerente deu entrada na Alfândega de ... de um pedido de regularização fiscal/legalização do B... ..., na sequência do qual os serviços alfandegários emitiram a Declaração Aduaneira de Veículo («DAV») n.º 2017/... — no preenchimento da DAV, as autoridades alfandegárias aveirenses, por indicação expressa da Requerente, colocaram o “código 05” no campo respeitante ao “Regime de ISV” – o que, segundo a Requerente, significaria que aquele veículo automóvel com “anotações especiais” NÃO se destinaria a ser “matriculado”;

c)            Mais tarde, a Requerente requereu ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P. (“IMT IP”) a legalização com atribuição de matrícula específica ... (matrícula essa cuja chapa apresenta fundo de cor vermelha); o IMT IP deu conhecimento deste requerimento à Requerida, o que terá dado origem ao procedimento de inspeção levado a cabo pela Requerida e que levou à emissão do ato impugnado;

d)           Em suma, o entendimento da Requerida que levou à emissão do ato impugnado foi o seguinte: constitui facto gerador do imposto o “fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal” (artigo 5º nº 1 do CISV). Também é atribuída uma matrícula aos veículos para competições desportivas (ainda que com características específicas), o que determina que os mesmos veículos são sujeitos a ISV (e não podem ser enquadrados nos “veículos não destinados a matrícula” previstos no artigo 24.º do CISV);

e)           Alega a Requerente que a Requerida praticou o ato impugnado sem “se debruçar sobre os contornos fáticos da situação concreta daquele veículo”, uma vez que o B... ...: (i) foi adquirido diretamente à fábrica (na República Checa) sem que tenha sido aposta a designada “matrícula de origem”; (ii) foi concebido pela B... com vista a participar em competições desportivas, daí que tenha promovido a transformação da sua carroçaria, afetando significativamente elementos estruturais e as características regulamentares, em detrimento da segurança da circulação rodoviária; (iii) apresenta propriedades — ao nível da iluminação, da potência do motor, e da poluição sonora ou do desconforto— que redundam numa manifesta “desadequação” técnica daquele veículo automóvel às infra-estruturas rodoviárias; simplesmente não está “apto” a circular na via pública; tanto assim é que o B... ... não circula, de todo, na via pública, sendo sempre transportado por um camião para as competições desportivas nas quais participa;

f)            A Requerente apresenta os seguintes argumentos para sustentar a sua posição:

1)            No que respeita aos “automóveis, seus reboques e motociclos, ciclomotores, triciclos e quadriciclos” (abrangendo quaisquer veículos automóveis ligeiros que se destinam à (livre) circulação na via pública): (i) A obrigatoriedade de matrícula decorre do disposto no n.º 1 do artigo 117.º do Código da Estrada (doravante, CE); (ii) o Decreto-Lei n.º 128/2006, de 5 de Julho regulamenta o processo de atribuição de matrícula para este tipo de veículos (artigo 117.º n.º 6 do CE); estes diplomas colocam a tónica do ato de atribuição de matrícula — “o ato administrativo de registo de um veículo destinado ou autorizado a circular na via pública, efetuado pela entidade competente, que identifique o veículo e estabeleça as suas condições de circulação” (artigo 2.º al. (d) do Decreto-Lei n.º 128/2006, de 5 de Julho) — no ato de colocação do veículo em (LIVRE) CIRCULAÇÃO NA VIA PÚBLICA;  

2)            No que respeita aos veículos participantes em competição desportiva (veículos concebidos ou alterados com vista à sua participação em competições desportivas, com características técnicas que deverão ser averbadas em anotações especiais dos certificados de matrícula), estes veículos não são matriculáveis ao abrigo do CE (e, consequentemente, não podem circular (livremente) na via pública), mas são matriculáveis ao abrigo do regime excecional previsto no Decreto-Lei n.º 180/2014 de 24 de Dezembro, que prevê diferenças materiais de regime, face ao regime geral de atribuição de matrículas nacionais, designadamente:

(i) o ato de matricular veículos para competições desportivas depende de um certificado de aprovação de modo a comprovar que o veículo participante em competição desportiva obedece à regulamentação da entidade desportiva nacional respetiva e pode circular em segurança na via pública;

(ii) o número, modelo, chapa de matrícula, e a colocação desta no veículo participante em competição desportiva têm especificidades (eg. a chapa de matrícula a utilizar deve apresentar fundo de cor vermelha);

(iii) o veículo participante em competição desportiva pode circular na via pública apenas em duas situações: (a) para efeitos de deslocações realizadas no âmbito de uma competição desportiva, no período compreendido entre as 48 horas antes do início da competição desportiva em que vai participar e as 48 horas após o final da mesma; e (b) excecionalmente, quando se desloque a centro de inspeção, mediante apresentação de documento que comprove a prévia marcação da inspeção periódica; podendo circular no percurso entre o local em que o veículo se encontra guardado e a via pública onde se realizam as competições e/ou a via pública onde se localiza o centro de inspeção;

(iv) o veículo participante em competição desportiva só pode ser conduzido pelo piloto, copiloto ou mecânicos e só pode transportar passageiros, em qualquer dos casos, desde que estejam devidamente identificados no passaporte técnico;

      

qualquer proprietário de tais veículos automóveis pretende tê-los legalizados, inspecionados e em condições de circulação na via pública nos exatos termos previstos no Decreto-Lei n.º 180/2014, de 24 de Dezembro: (i) porque só assim é que poderão participar nas aludidas competições desportivas e (ii) para efeitos de seguros de responsabilidade civil automóvel (vg. por danos a terceiros);

3)            Nos termos do disposto no artigo 24.º do Código do Imposto sobre Veículos (doravante, CISV), estão excluídos da incidência objetiva do ISV, na estrita medida do princípio da equivalência, os veículos automóveis que, muito embora tenham dado entrada em território português, NÃO SE DESTINEM a ser matriculados com a finalidade de (livre) circulação na via pública (enquadrando-se na exclusão de tributação os veículos participantes em competição desportiva). Defende a Requerente que a expressão “matriculados” empregue pelo legislador reporta-se tão-só aos veículos automóveis que por circularem (livremente) na via pública, submetem-se ao procedimento de atribuição de matrícula nacional regido pelo CE e pelo Decreto-Lei n.º 128/2006, de 5 de Julho (regulamento de atribuição de matrícula a automóveis, seus reboques e motociclos, ciclomotores, triciclos e quadriciclos). Defende ainda que o artigo 24.º do CISV (i) carece de interpretação atualista (dado que a entrada em vigor da norma é anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 180/2014, de 24 de Dezembro); e (ii) na sua ratio legis prevê uma discriminação positiva que exclui de tributação um universo circunscrito de veículos automóveis (veículos que vão para abate, para práticas recreativas em propriedade privada ou para colecionismo) sobre os quais impende um motivo que os dispense da atribuição de “matrícula nacional”, precisamente por não circularem (livremente) na via pública;

4)            Os tributos baseados no princípio da equivalência (artigo 1.º do CISV e artigo 13.º da CRP) deverão ter como pressuposto a compensação da comunidade pela criação de um custo ou o aproveitamento de um benefício pelos sujeitos passivos e, nessa medida, o custo e o benefício respetivamente provocado ou aproveitado deverão constituir o limite da quantificação dos tributos nele fundados. Assim, a interpretação do artigo 24.º do CISV de acordo com o princípio da equivalência determina o afastamento da incidência objetiva do ISV os veículos automóveis participantes em competições desportivas, uma vez que estão expressamente afastados todos os veículos que se destinam a prosseguir outras finalidades que não a (livre) circulação na via pública, designadamente desmantelamento, circulação ou permanência em domínio exclusivamente privado, colecionismo.

 

II.            SANEAMENTO

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º n.º 2 do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março).

O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

O processo não enferma de nulidades.

Cumpre apreciar e decidir.

 

III.          FACTOS PROVADOS

 

1)            A Requerente é proprietária do veículo automóvel de marca B..., modelo ..., com chassi n.º ... e com a matrícula ..., constando do certificado de matrícula (nº ... de 2017-09-29) a anotação “VEÍC. PARTICIPANTE EM COMP. DESPORTIVA; PN (EM ALCATRÃO 225/4 0R18; 255/20R18); (EM TERRA 05/65R15; 215/;65R15)”; o veículo tem o Passaporte Técnico nº ... (Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting);

2)            O B... ... foi adquirido em estado novo, diretamente à B... Auto (na República Checa), conforme fatura com o n.º..., de 28 de agosto de 2017;

3)            O B... ... foi concebido com vista a participar em competições desportivas — foi promovida a transformação da sua carroçaria, afetando significativamente elementos estruturais e as características regulamentares, em detrimento da segurança da circulação rodoviária;

4)            As propriedades do B... ...– seja ao nível da iluminação (luzes e refletores que ofuscam), seja ao nível da potência do motor (que permite exceder, sem surpresas, o limite máximo de velocidade permitido para veículos ligeiros de passageiros ou mistos), seja ao nível da poluição sonora ou do desconforto (involuntariamente por este gerados) – redundam numa manifesta «desadequação» técnica daquele veículo automóvel às infraestruturas rodoviárias; simplesmente não está «apto» a circular na via pública;

5)            O B... ... não circula, de todo, na via pública, sendo, ao invés, transportado por um camião para as competições desportivas nas quais participa;

6)            Tendo sido o B... ... comprado diretamente na «fábrica» checa, não havia sido aposta a designada «matrícula de origem»;

7)            Em 13-09-2017 deu entrada na Alfândega de ... um pedido de regularização fiscal daquela viatura automóvel («pedido de legalização», na gíria automobilística), na sequência do qual os serviços alfandegários emitiram a Declaração Aduaneira de Veículo («DAV») n.º 2017/...;

8)            No preenchimento daquela DAV, as autoridades alfandegárias aveirenses, por indicação expressa do contribuinte, colocaram o «código 05» no campo respeitante ao «Regime de ISV» – o que significaria que aquele veículo automóvel com «anotações especiais» não se destinaria a ser «matriculado»;

9)            Mais tarde a Requerente requereu ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P. («IMT IP») a regularização fiscal/legalização com atribuição de matrícula específica ..., matrícula essa cuja chapa apresenta fundo de cor vermelha;

10)         Por despacho de dia 13 de março de 2019, do Diretor da Alfândega de ..., a Requerente foi selecionada para ser objeto de ação de fiscalização interna, no âmbito do Imposto sobre Veículos (ISV) — a Ordem de Serviço n.º OI2019...;

11)         O Relatório da Ação Inspetiva foi emitido com despacho do Diretor da Alfândega de ... de dia 14 de junho de 2019. Em consequência das conclusões finais do referido Relatório, a Requerente foi notificada do Ofício n.º... de 4 de julho de 2019 (com carimbo de 19 de julho de 2019), da Alfândega de ..., para pagar o montante de EUR 19242,12, relativa a uma dívida de ISV, juros compensatórios, e IVA, incorporando esta notificação o ato impugnado;

 

IV.          FACTOS NÃO PROVADOS E FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base na apreciação da prova documental junta aos autos pelas partes. Os factos essenciais demonstrados pelos documentos que constam do processo administrativo confirmam os factos alegados pela Requerente no pedido de pronúncia arbitral.

 

V.           DA APRECIAÇÃO JURÍDICA

 

Nos termos do disposto no artigo 5.º n.º 3 do CPC (norma aplicável ex. vi. artigo 29.º nº 1 alínea e) do RJAT), o Tribunal “não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito“. Deste modo, no caso concreto, estão em  causa  nos  presentes  autos  as  seguintes  três  questões:

 

(1) os veículos participantes em competição desportiva como o B... ... em causa nos presentes autos (veículos concebidos ou alterados com vista à sua participação em competições desportivas, com características técnicas que deverão ser averbadas em anotações especiais dos certificados de matrícula) (doravante, veículos de competição), estão abrangidos pelo âmbito de incidência objetiva do ISV?

 

(2) Os veículos de competição estão sujeitos a ISV “com base apenas e só no acto administrativo de «matricular», ainda que seja uma matrícula «vermelha» e com condições (bem) apertadas de circulação na via pública”?

 

(3) A Requerente tem direito a juros indemnizatórios?

 

A resposta à primeira questão tem de ser encontrada no CISV — publicado pela Lei n.º 22-A/2007, in Diário da República n.º 124/2007, 1º Suplemento, Série I de 2007-06-29) que aprovou o CISV e o Código do Imposto Único de Circulação — particularmente na interpretação e aplicação das normas de incidência deste imposto (artigo 2.º CISV), antes mesmo de partirmos para a análise do disposto no artigo 24.º do CISV.

 

A interpretação das normas de incidência do ISV, tem de ser feita em conjugação com a interpretação das normas do CE, designadamente com a norma prevista artigo 106.º nº 2 do CE que prevê que os automóveis ligeiros  ou pesados , incluem-se, segundo a sua utilização, nos seguintes tipos:

a) De passageiros - os veículos que se destinam ao transporte de pessoas;

b) De mercadorias - os veículos que se destinam ao transporte de carga.

O nº 3 da norma prevê que: “Os automóveis de passageiros e de mercadorias que se destinam ao desempenho de função diferente do normal transporte de passageiros ou de mercadorias são considerados especiais, tomando a designação a fixar em regulamento, de acordo com o fim a que se destinam.”

Os veículos de competição destinam-se “ao desempenho de função diferente do normal transporte de passageiros ou de mercadorias” (destinam-se exclusivamente à prática de atividade desportiva), devendo assim ser considerados veículos especiais de acordo com o fim a que se destinam (de acordo com o disposto no artigo 106.º nº 3 do CE).

 

É o caráter especial do FIM a que se destinam estes veículos (por se destinarem a fim distinto do normal transporte de passageiros ou de mercadorias), que justifica que nos termos do disposto no artigo 117.º n.º 6 do CE o processo de atribuição de matrícula, a composição do respetivo número, bem como as características da respetiva chapa seja regulado por Regulamento próprio (distinto do Regulamento que aplicável aos veículos que se destinam ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias).

 

Também no mesmo sentido, deve ser interpretado o disposto no artigo 2.º do CISV (norma de incidência objetiva do ISV) que prevê:

“Estão sujeitos ao imposto os seguintes veículos:

a) Automóveis ligeiros de passageiros, considerando-se como tais os automóveis com peso bruto até 3500 kg e com lotação não superior a nove lugares, incluindo o do condutor, que se destinem ao transporte de pessoas;

b) Automóveis ligeiros de utilização mista, considerando-se como tais os automóveis com peso bruto até 3500 kg e com lotação não superior a nove lugares, incluindo o do condutor, que se destinem ao transporte, alternado ou simultâneo, de pessoas e carga;

c) Automóveis ligeiros de mercadorias, considerando-se como tais os automóveis com peso bruto até 3500 kg e com lotação não superior a nove lugares, que se destinem ao transporte de carga, de caixa aberta, fechada ou sem caixa;

d) Automóveis de passageiros com mais de 3500 kg e com lotação não superior a nove lugares, incluindo o do condutor;

e) Autocaravanas, considerando-se como tais os automóveis construídos de modo a incluir um espaço residencial que contenha, pelo menos, bancos e mesa, espaço para dormir, que possa ser convertido a partir dos bancos, equipamento de cozinha e instalações para acondicionamento de víveres;

f) Motociclos, triciclos e quadriciclos, tal como estes veículos são definidos pelo Código da Estrada”.

 

Uma leitura do disposto no artigo 2.º do CISV determina que estão abrangidos pelo âmbito de aplicação objetivo do CISV, os veículos automóveis que se destinem: (i) ao transporte de pessoas; (ii) ao transporte, alternado ou simultâneo, de pessoas e carga; (iii) ao transporte de carga, de caixa aberta, fechada ou sem caixa; — fins a que também se destinam os veículos previstos nas alíneas (d) a (f) do artigo 2.º do CISV. As exclusões do número 2 do artigo 2.º aplicam-se a situações específicas, como os veículos não motorizados ou elétricos ou as ambulâncias, sendo estas últimas definidas também em função do fim a que se destinam: “destinados ao transporte de pessoas doentes ou feridas dotados de equipamentos especiais para tal fim”.

 

Resulta claramente que uma interpretação do disposto no artigo 2.º do CISV em conjugação com o artigo 106.º do CE, que os veículos que estão abrangidos pelo âmbito de incidência objetivo do ISV (artigo 2.º), são os veículos destinados ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias, ficando de fora do âmbito de incidência da norma os veículos qualificados como “veículos especiais”, por se destinarem a fim distinto do normal transporte de passageiros ou de mercadorias. Esta é a leitura que resulta expressamente da letra do artigo 2.º do CISV, cujo sentido tem de ser analisado em conjugação com o disposto no artigo 106.º do CE, para que se obtenha uma interpretação que respeite a unidade do sistema jurídico (vide artigo 9.º do Código Civil).

 

Esta interpretação é reforçada pelo disposto no artigo 24.º do CISV:

“Os veículos que entrem em território nacional e não se destinem a ser matriculados, por se destinarem a desmantelamento, circulação ou permanência em domínio exclusivamente privado, colecionismo ou qualquer outra razão que dispense a atribuição de matrícula nacional devem, no prazo de 10 dias úteis após a entrada em território nacional, ser objeto de apresentação de DAV, sendo os documentos originais do veículo entregues no IMT, I. P., ou nos serviços competentes em matéria de transportes terrestres, no caso das regiões autónomas, no prazo de 10 dias a contar da data de apresentação da DAV”.

 

Os veículos que se “destinem” ao “desmantelamento, circulação ou permanência em domínio exclusivamente privado, colecionismo ou qualquer outra razão que dispense a atribuição de matrícula nacional” são veículos que NÃO se destinam ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias, e exclusivamente por esse motivo, não cabem no âmbito da norma de incidência objetiva do ISV (artigo 2.º). O que significa que o artigo 24.º do CISV não alarga (nem reduz) o âmbito da incidência do ISV, uma vez que é o próprio artigo 2.º que afasta os veículos que não se destinam ao normal transporte de passageiros e mercadorias (veículos estes que podem ou não obter uma matrícula especial).

 

Os veículos de competição (cujo fim é distinto do normal transporte de passageiros ou de mercadorias), conforme a Requerente alega na petição inicial, estão sujeitos a um regime legal distinto do regime legal aplicável aos veículos que se destinam ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias (abrangidos pelo âmbito de aplicação objetivo previsto no artigo 2.º do CISV): conforme a Requerente refere no pedido de pronúncia arbitral, os veículos de competição distinguem-se desde logo pelo facto de não serem admitidos a circular na via pública nas mesmas condições que os veículos que se destinam ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias.

 

Nos termos do disposto no artigo 117.º n.º 1 do CE (aplicável aos veículos que que se destinam ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias), “Os veículos a motor e os seus reboques só são admitidos em circulação desde que matriculados”. A atribuição de matrícula (para os automóveis destinados ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias) é regulada pelo disposto no Regulamento de Atribuição de Matrícula a Automóveis, seus Reboques e Motociclos, Ciclomotores, Triciclos e Quadriciclos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 128/2006 (Diário da República n.º 128/2006, Série I de 2006-07-05) (doravante,  RAMA),  que  define  o  ato  de  “Matricular”  (artigo  2.º  al.  b)) como:

      

“o acto administrativo de registo de um veículo destinado ou autorizado a circular na via pública, efectuado pela entidade competente, que identifique o veículo e estabeleça as suas condições de circulação” — o que nos permite definir o ato de matricular como o ato de concessão de autorização para circular na via pública.

 

A ratio legis das normas citadas, que determinam a necessidade de uma “autorização/matricula” para um veículo automóvel (destinado ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias) circular na via pública, justifica-se pela necessidade de garantir a segurança na circulação na via publica. É esta necessidade de garantir a segurança na circulação na via publica, que justifica a previsão do disposto no artigo 3.º do RAMA e que justifica as normas previstas nos artigos 114.º e seguintes do CE e na restante legislação complementar, que regulam as características técnicas dos veículos automóveis autorizados a circular “livremente” na via pública.

 

O processo de atribuição de matrícula aos veículos de competição é regulado pelo Decreto-Lei n.º 180/2014 (Diário da República n.º 248/2014, Série I de 2014-12-24) (doravante, DL 180/2014). No sumário do DL 180/2014 o legislador prevê que o diploma:

“Estabelece o regime jurídico de aprovação, atribuição de matrícula, alteração de características e inspeção de veículo automóvel e de ciclomotores, motociclos, triciclos e quadriciclos participantes em competição desportiva, para efeitos de circulação na via pública” — mais uma vez, o fim a que se destino do veículo (participantes em competição desportiva) é o critério determinante para efeitos de aplicação do regime legal excecional de atribuição de matrícula previsto no DL 180/2014.

 

Conforme expõe a Requerente, resulta claramente do exposto no DL 180/2014, designadamente do respetivo preâmbulo, que os veículos de competição, tendo em consideração o fim a que se destinam, estão sujeitos a regras especiais de circulação na via pública. A necessidade de assegurar a segurança na via pública, justifica que o regime de atribuição de matrícula a estes veículos seja um regime especial, regulado por Regulamento próprio, que inclusivamente determina que o próprio aspeto visual das matrículas atribuídas aos veículos de competição seja distinto do aspeto visual das matrículas que são atribuídas aos veículos regulados pelo RAMA.

 

Uma vez que os veículos de competição são afastados da norma de incidência objetiva prevista no disposto no artigo 2.º do CISV, por não se destinarem ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias, conforme exposto supra, não há-que atribuir relevância ao ato de atribuição de matrícula nos termos do DL 180/2014, enquanto ato gerador do imposto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 5.º do CISV.

 

É o próprio artigo 5.º n.º 1 do CISV que prevê: “Constitui facto gerador do imposto o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional, que estejam obrigados à matrícula em Portugal”. Ora, são tributáveis em território nacional os veículos automóveis que se enquadrem no disposto no artigo 2.º do CISV (norma de incidência objetiva), o que não é o caso dos veículos de competição (veículos destinados a participação em competição desportiva).

 

Em conclusão, entende este Tribunal que os veículos de competição, pelo fim a que se destinam, NÃO estão abrangidos pelo âmbito de incidência objetiva do ISV, previsto nos termos do artigo 2.º do CISV.

 

Relativamente à segunda questão (os veículos de competição estão sujeitos a ISV “com base apenas e só no acto administrativo de «matricular», ainda que seja uma matrícula «vermelha» e com condições (bem) apertadas de circulação na via pública”?), tendo em consideração a resposta que demos à primeira questão, a resposta a esta segunda questão terá necessariamente de ser negativa.

 

Conforme exposto supra na presente decisão arbitral, o disposto no artigo 5.º nº 1 do CISV

só é aplicável a veículos tributáveis em território nacional, ou seja, aos veículos sujeitos a ISV em Portugal, nos termos do artigo 2.º do CISV. Os veículos de competição não estão abrangidos pelo âmbito de incidência objetivo do ISV (artigo 2.º), o que determina a total irrelevância do ato de atribuição de matrícula (nos termos do DL 180/2014) para efeitos de sujeição destes veículos a ISV.

 

O critério determinante da incidência do ISV, nos termos do disposto no artigo 2.º do CISV, é o destino do veículo automóvel, conforme exposto supra. Também para efeitos de aplicação do disposto no artigo 24.º do CISV, é o “destino” do veículo (“desmantelamento, circulação ou permanência em domínio exclusivamente privado, colecionismo ou qualquer outra razão que dispense a atribuição de matrícula nacional”) que determina o âmbito de aplicação do disposto no artigo 24.º do CISV.

 

Nos termos do disposto no artigo 103.º da Constituição “Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”. Ora, o âmbito da incidência objetiva do ISV é determinado muito claramente pelo disposto no artigo 2.º do CISV, norma que atribui relevância ao destino do veículo (normal transporte de passageiros ou de mercadorias) e não ao ato de matricular, para determinar o âmbito da incidência deste imposto. Pelo que, nos termos do princípio da legalidade, não pode o intérprete querer abranger pelo âmbito de incidência da norma fiscal realidades que a norma fiscal expressamente afasta, como é o caso dos veículos de competição.

 

Note-se que o critério escolhido pelo legislador na escolha da norma de incidência           (destino do veículo) é perfeitamente adequado, uma vez que nos permite com maior rigor respeitar o princípio da equivalência previsto no disposto no artigo 1.º do CISV, que determina que a lei visa onerar os veículos destinados ao normal transporte de passageiros ou de mercadorias, que são os veículos que representam um maior custo “nos domínios do ambiente, infra-estruturas viárias e sinistralidade rodoviária em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.

 

Os veículos de competição (que só estão aptos a circular na via pública nas condições descritas no DL 180/2014) representam um custo substancialmente menor, quer no domínio do ambiente, quer no domínio das infra-estruturas viárias e sinistralidade rodoviária, o que determinou que o legislador tenha excluído do seu âmbito de aplicação os veículos automóveis que não sejam destinados ao cumprimento das finalidades previstas no disposto no artigo 2.º do CISV.

 

Relativamente à terceira questão (a Requerente tem direito a juros indemnizatórios?), a obrigação de pagamento de juros indemnizatórios — (à taxa de 4%, nos termos do artigo 43.º n.º 4 e artigo 35.º n.º 10 da LGT, sendo que este último artigo remete para o disposto no artigo 559.º n.º 1 do Código Civil, que por sua vez remete para a Portaria 291/2003 de 8 de abril) em virtude da procedência total ou parcial de impugnação a favor do sujeito passivo — decorre da aplicação do disposto no artigo 100.º da LGT, que prevê a obrigação da Requerida de reconstituir a legalidade do ato objeto do litígio, tal dever compreendendo: (i) a obrigação de reembolso do montante indevidamente pago, e (ii) o pagamento de juros indemnizatórios devidos desde a data do pagamento indevido efetuado pela Requerente até à data em que o reembolso seja efetivamente efetuado.

 

No caso concreto, os requisitos do direito a juros indemnizatórios previsto no artigo 43.º nº 1 da LGT estão verificados, uma vez que: (a) a Requerida incorreu num erro de direito ao emitir o ato impugnado; (b) o erro foi imputável aos serviços da Requerida; (c) a existência desse erro foi determinada em decisão arbitral; e (d) desse erro resultou o pagamento de uma dívida tributária que não era devida (vide neste sentido, o Acórdão do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 22 de maio de 2019, proferido no processo nº 1770/12.9BELRS, disponível in http://www.dgsi.pt).

 

Termos em que, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, à taxa legal (4%),  que são devidos desde a data do pagamento indevido efetuado pela Requerente até à data em que o reembolso seja efetivamente efetuado.

 

VI.          DECISÃO

 

Termos em que se decide julgar TOTALMENTE PROCEDENTE o presente pedido de pronúncia arbitral, e por conseguinte:

a)            Anular o ato impugnado;

b)           Condenar a Requerida a reembolsar a Requerente dos montantes pagos indevidamente;

c)            Condenar a Requerida a pagar juros indemnizatórios à Requerente, à taxa legal (4%), devidos desde a data do pagamento indevido efetuado pela Requerente até à data em que o reembolso seja efetivamente efetuado; e

d)           Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

VII.         VALOR DO PROCESSO

 

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º n.º 2 do CPC, no artigo 97.º-A n.º 1 alínea a) do CPPT, e no artigo 3.º n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de EUR 15885,32.

 

VIII.       CUSTAS

 

Nos termos do disposto no artigo 12.º n.º 2 e no artigo 22.º n.º 4 do RJAT,  no artigo 4.º n.º 4 e na Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em EUR 918,00, nos termos da Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

Lisboa, 13 de julho de 2020.

 

Elisabete Flora Louro Martins

(Árbitro Singular)