Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 695/2020-T
Data da decisão: 2021-11-29  IUC  
Valor do pedido: € 3.692,84
Tema: IUC – Incidência subjetiva.
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Sumário: I) O n.º 1 do artigo 3.º do CIUC consagra uma presunção legal, que nos termos do artigo 73.º da LGT pode ser ilidida. II) Atento o princípio da equivalência consagrado no artigo 1.º do CIUC, o sujeito passivo do imposto não deve ser o proprietário formal do veículo, mas sim o seu efetivo proprietário. III) Os contratos de locação com opção de compra ou o contrato de compra e venda acompanhados da emissão de fatura na forma legal a titular a transmissão do veículo é prova suficiente para comprovar a transmissão das viaturas.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

1.            O A..., SA., pessoa coletiva n.º ..., com sede em Rua ..., n.º..., ...-... Lisboa (doravante designado por Requerente), apresentou em 27.11.2020, um pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante designado por RJAT), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

2.            A Requerente pretende a pronúncia do Tribunal Arbitral com vista a declarar a ilegalidade de 38 (Trinta e oito) atos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) relativos ao ano de 2019, no valor total de € 3.692,84, que se encontram identificados no ANEXO A, apresentado conjuntamente com o pedido de pronúncia arbitral (ppa), e que aqui se dá por integralmente reproduzido, e de igual modo se encontram identificados nos procedimentos de reclamação graciosa n.ºs ...2020... e ...2020..., cuja decisão de indeferimento parcial a Requerente pede a revogação no âmbito do presente pedido arbitral.

3.            Com efeito, a Requerente pede a declaração de ilegalidade dos atos de indeferimento parcial das reclamações graciosas já referenciadas e apresentadas contra os atos de liquidação de IUC supra identificados, e que foram objeto de decisão por despachos de 31.08.2020, da Diretora Adjunta da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC) – Divisão de Justiça Tributária –, proferidos ao abrigo de delegação de competências, exarados sobre as Informações n.ºs 303-APT2/2020, de 28.08.2020, e 304-APT2/2020, de 31.08.2021, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

4.            A Requerente pede, ainda, a restituição do valor de € 3.692,84 indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT).

5.            Os referidos atos de liquidação de IUC foram efetuados e notificados à Requerente pelos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, entidade Requerida no presente processo arbitral e de ora em diante designada por Requerida.

6.            O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exm.º Presidente do CAAD em 30 de novembro de 2020 e automaticamente notificado à AT.

7.            Atento o disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro, que de imediato aceitou o encargo. As Partes, devidamente notificadas, não manifestaram qualquer oposição à designação do árbitro feita pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

8.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação que lhe foi dada pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 03 de maio de 2021.

9.            Em 03 de maio de 2021 foi notificada a Exm.ª Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º do RJAT.

10.          Em 26 de maio de 2021, a requerida apresentou a sua resposta e, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º do RJAT, remeteu para ser junto aos autos o processo administrativo (PA).

11.          Em 06 de agosto de 2021, foi proferido despacho arbitral, que foi devidamente notificado às Partes, e em que o Tribunal arbitral determinou: i) Dispensar a produção de prova testemunhal, mediante a inquirição das testemunhas arroladas pela Requerente; ii) Dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT; iii) Que o processo prosseguisse com alegações escritas facultativas, a apresentar pelas Partes no prazo simultâneo de 20 dias, por aplicação conjunta do previsto no artigo 91.º, n.º 5, do CPTA, e no artigo 120.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º do RJAT. O Tribunal advertiu, ainda, a Requerente de que até à data da prolação da decisão arbitral deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, e comunicar o referido pagamento ao CAAD.

12.          No mesmo despacho arbitral foi fixado o dia 15.10.2021 como data limite para a prolação da decisão arbitral. Porém, através de despacho de 18.10.2021, o Tribunal considerou prudente e avisado aprofundar o estudo e análise da doutrina e da jurisprudência conexa com os diversos aspetos atinentes à matéria controvertida nos presentes autos de arbitragem, tendo, para o efeito, nos termos do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, o Tribunal decidido prorrogar o prazo para a prolação da decisão arbitral por dois meses e, concomitantemente, decidiu fixar como data limite para prolação da decisão arbitral o dia 30.11.2021.

13.          Através de Requerimento, apresentado em 01 de setembro de 2021, a Requerente solicitou que fosse realizada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, no sentido de que na mesma fossem inquiridas as testemunhadas por si indicadas. Em face deste pedido, o Tribunal determinou que a Requerida se pronunciasse, tendo esta, através de Requerimento de 07.09.2021, insistindo na dispensa da produção de prova testemunhal, porquanto, a inquirição da testemunha constituiria um ato manifestamente inútil.

14.          Por despacho de 20.09.2021, atenta a posição das Partes, e considerando os princípios da autonomia do tribunal na condução do processo, da livre apreciação dos factos e da livre determinação das diligências de produção de prova necessárias (cfr. art.º 16.º do RJAT), o Tribunal arbitral decidiu manter a dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e, outrossim, indeferiu o pedido da Requerente quanto à produção de prova testemunhal.

15.          A Requerida apresentou as alegações em 17 de agosto de 2021 e as alegações da Requerente foram apresentadas em 22 de setembro de 2021.

16.          Em face da controvérsia gerada em torno das normas do artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação (CIUC), concretamente, sobre se a previsão do n.º 1 do artigo 3.º tem ínsita ou não uma presunção legal ou uma ficção legal, inclusive, após a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 01 agosto, fundado na autorização legislativa concedida pelo artigo 169.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, bem como das posições doutrinais e, designadamente, das decisões jurisprudenciais, arbitrais e judiciais, díspares sobre a matéria controvertida, o tribunal arbitral singular entendeu desenvolver aturado estudo da matéria objeto do presente processo arbitral, pelo que, nos termos do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, como já referido, em 18.10.2021, prorrogou por dois meses o prazo para a prolação da decisão arbitral.

 

II - SANEAMENTO

17.          Em face da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, o artigo 104.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) é subsidiariamente aplicável aos processos de arbitragem tributária, pelo que é legítima e legal a cumulação de pedidos feita pela Requerente no pedido de pronúncia arbitral que deu lugar ao presente processo de arbitragem tributária.

18.          O tribunal arbitral é materialmente competente, atento o disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

19.          As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e têm legitimidade nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

20.          Não foram invocadas exceções e o processo não enferma de nulidades.

21.          Em face do disposto no normativo da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado tempestivamente.

22.          Não se verificam quaisquer circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa ou que impeçam o tribunal de apreciar e de decidir.

 

 

 

III - CAUSA DE PEDIR E PEDIDO

23.          Os atos liquidação de IUC efetuados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do artigo 2.º, do n.º 1 do artigo 3.º, do artigo 6.º, n.ºs 1 e 2 do artigo 16.º, e demais normativos aplicáveis, do Código do Imposto Único de Circulação, aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 01 de agosto.

24.          As decisões de indeferimento parcial proferidas nas reclamações graciosas n.ºs ...2020... e ...2020... . Estes procedimentos tributários estão identificados no processo administrativo apresentado pela Requerida e referenciados no pedido de pronúncia arbitral efetuado pela Requerente. Nestas reclamações graciosas, em síntese, os serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, consideraram que, à exceção dos atos de liquidação referentes aos veículos matrícula ..., ... e ..., os atos de liquidação impugnados não enfermam de qualquer vício, na medida em que, à luz dos n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º, em consonância com o artigo 6.º, ambos do CIUC, a sujeição ao imposto cabe à, então, reclamante, na qualidade de proprietária dos veículos alvo de liquidação do imposto (incidência objetiva), conforme decorre das certidões da Conservatória do Registo Automóvel integradas naqueles procedimentos.

25.          A Requerente invoca a ilegalidade das decisões de indeferimento parcial das reclamações graciosas, bem como dos atos de liquidação de IUC que constituíram o objeto de tais procedimentos tributários, alegando que, à data da ocorrência do facto gerador e da exigibilidade do imposto, a Requerente não era a proprietária dos referidos veículos.

26.          A Requerente pede a anulação dos referidos atos de liquidação de IUC do ano de 2019 (novembro e dezembro), e a restituição do valor indevidamente pago, com o pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (LGT) e do artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

IV – DO ENQUADRAMENTO

IV.1 – DO ENQUADRAMENTO EFETUADO PELA REQUERENTE

27.          A Requerente alega que é líder europeu no mercado de financiamento ao consumo e que parte substancial da sua atividade reconduz-se à celebração – entre outros – de contratos de locação financeira ou ALD, atividade que tem especial relevância no financiamento ao sector automóvel.

28.          A Requerente alega que, em resultados dos referidos contratos, depois de contactada pelo cliente – que, nessa fase, já escolheu o tipo de veículo que pretende adquirir, as suas características (marca, modelo, acessórios, etc.), bem como preço – adquire o veículo ao fornecedor que lhe foi indicado pelo cliente e procede, de seguida, à entrega a este do veículo, assumindo o cliente, assim, a qualidade de locatário.

29.          Do contrato de locação financeira decorre que o financiamento concedido ao locatário pela Requerente é restituído em prestações mensais, e que, uma vez estas liquidadas na totalidade, e assim alcançado o termo do contrato, o locatário tem o direito de adquirir o bem locado pelo valor residual, acrescido de despesas e IVA.

30.          A Requerente alega que, com exceção dos veículos ... e ..., todos os veículos automóveis sobre os quais incide a liquidação de IUC foram dados em locação por ela aos clientes identificados nos autos e que, no termo dos contratos, os clientes adquiriram o respetivo veículo automóvel, mediante o pagamento do correspondente valor residual, conforme faturas que juntou ao pedido de pronúncia arbitral, e que já havia junto aos procedimentos de reclamação graciosa.

31.          O veículo matrícula ... apresenta condições especificas, porquanto, por motivo de «perda total» na sequência de sinistro ocorrido antes do término do contrato, não foi transmitido para o correspondente locatário, mas sim para a esfera da Seguradora com quem tinha sido celebrado o contrato de seguro – como comprova a documentação com origem na Seguradora, assim como da correspondência trocada entre esta e a ora Requerente. Outrossim, não foi transmitida para o locatário a propriedade do veículo com a matrícula ..., em virtude de ter ocorrido a cedência da respetiva posição contratual, isto é, o sujeito que veio a adquirir esta última viatura não coincide com aquele que originariamente outorgou o contrato de locação financeira, isto é, o locatário.

32.          A Requerente alega que, quando a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) procedeu à realização dos atos de liquidação do IUC do ano de 2019 e a notificou a exigir o pagamento, já não era a proprietária dos veículos automóveis que motivaram a liquidação do imposto, pelo que não pode ser o sujeito passivo nem a responsável pelo pagamento do referido imposto, na medida em que, à data do aniversário dos veículos, a propriedade dos mesmos já havia sido transmitida para os seus anteriores locatários ou, então, como já referido, em casos pontuais, por ter ocorrido um sinistro ou cedência da posição contratual a propriedade dos veículos foi transmitida para terceiros.

33.          A Requerente, embora reconheça que à data do facto gerador e da exigibilidade do imposto os veículos estavam registados em seu nome na Conservatória do Registo Automóvel, considera irrelevante tal facto, porquanto já se havia dado a transmissão dos referidos veículos, salientando que tem vindo a promover os competentes pedidos de registo da propriedade de todas as viaturas automóveis, em nome dos atuais e efetivos proprietários.

34.          A Requerente alega que a falta de registo a favor dos novos proprietários e a circunstância dela figurar no registo como proprietária dos veículos não pode determinar a sua responsabilização tributária pelo pagamento do imposto, pelo que as liquidações são ilegais.

35.          A Requerente alega que, nos termos da lei, nem durante o contrato de locação financeira a entidade locadora é sujeito passivo do IUC, pelo que, por maioria de razão, menos o será após o termo do contrato e o locatário ter exercido o direito à aquisição do veículo.

36.          E que tendo o locatário adquirido o veículo, é apenas a si, enquanto proprietário do mesmo, que, nos termos do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC, incumbe pagar o IUC e demais encargos legais.

37.          A Requerente juntou ao pedido de pronúncia arbitral um parecer do jurista Agostinho Cardoso Guedes, a discorrer sobre o valor jurídico do registo, isto é, sobre a natureza declarativa ou constitutiva do mesmo e dos seus efeitos sobre a validade e eficácia do ato translativo emergente do contrato de compra e venda.

38.          Dá-se aqui por reproduzida a parte do parecer transcrita no pedido de pronuncia arbitral (cfr. art.º 56.º do ppa), que em termos de conclusão refere que “(…), a inscrição da compra do veículo no registo por parte do novo proprietário não é condição de validade nem da produção do efeito translativo típico do contrato de compra e venda, portanto, o comprador torna-se proprietário do veículo vendido mediante a simples celebração do contrato de compra e venda, independentemente do respetivo registo. (…)”.

39.          A Requerente levanta depois a questão da eficácia plena do contrato relativamente a terceiros e refere que esta questão também é resolvida no referido parecer jurídico e que a Autoridade Tributária e Aduaneira não é, para os efeitos em causa, um terceiro (cfr. art.º 58.º do ppa).

40.          Para tanto, a Requerente socorrendo-se do parecer jurídico, acima identificado, invoca que “(…) se o proprietário não proceder de imediato ao registo da propriedade a seu favor, presume-se que a propriedade continua a pertencer ao vendedor (art.º 7.º do CRP), mas esta presunção é relativa, ou seja, pode ser afastada mediante prova em contrário. Só os terceiros para efeitos de registo que atuem de boa-fé podem prevalecer-se da ausência de registo para (tentar) adquirir direitos sobre o bem não registado” – (cfr. art.º 59.º do ppa).

41.          Nesta linha de raciocínio, a Requerente alega que a Autoridade Tributária e Aduaneira não preenche os requisitos legais do conceito de terceiro para efeitos de registo (previsto no art.º 5.º, n.º 4, do CRP), razão pela qual não pode exigir ao vendedor o pagamento do imposto devido pelo comprador (proprietário) a partir do momento em que a presunção do artigo 7.º do CRP seja afastada mediante a prova da respetiva venda.

42.          E, assim, conclui que o registo da aquisição de veículos automóveis junto da Conservatória do Registo Comercial não é condição para a transmissão da propriedade, nem afeta a sua validade, pelo que devem as liquidações de IUC realizadas na esfera da Requerente ser consideradas ilegais e consequentemente anuladas.

43.          Por outro lado, a Requerente sublinha que do princípio da equivalência, que no atual quadro da tributação automóvel, está consubstanciado no artigo 1.º do CIUC, decorre que o sujeito do passivo do imposto deverá ser o real proprietário do veículo e não o proprietário registado, uma vez que será o primeiro que causa os custos ambientais e viários que este tributo comutativo visa compensar.

44.          A Requerente salienta que através do recurso às regras elementares de hermenêutica jurídica, extrai-se a ideia de que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 59/72, de 30 de dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei n.º 116/94, de 3 de maio, o último a anteceder o Código do IUC aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, o legislador consagrou a presunção ilidível dos sujeitos passivos do imposto serem as pessoas em nome das quais os veículos automóveis se encontravam registados.

45.          A Requerente não acolhe o entendimento de que a alteração introduzida no artigo 3.º do CIUC., através do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, em concretização da alteração legislativa concedida pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, alterou a ratio legis dos normativos daquele artigo 3.º, ou a interpretação que lhe deve ser dada, como consagrando uma presunção iures tantun.

46.          Quanto ao valor probatório das faturas, a Requerente socorre-se de novo do Parecer Jurídico de Agostinho Cardoso Guedes (cfr. art.º 89-º do ppa), no qual se sublinha que a prova da transmissão da propriedade pode ser feita «por qualquer meio, uma vez que a lei não exige para este contrato forma escrita. Assim, e designadamente, a prova pode ser feita por confissão, verbal ou escrita, por testemunhas ou por documento. Neste último caso, por exemplo, a prova pode ser feita por apresentação de uma declaração de venda (incluindo a declaração preparada para efeito de registo) ou de uma fatura/recibo da venda do veículo. (…)”.

47.          A Requerente, considera que o normativo o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC continua a encerrar uma presunção ilidível que, em especial, por força do artigo 73.º da LGT, admite prova em contrário, prova essa que a Requerente considera ter produzido com a junção dos documentos que fez aos procedimentos de reclamação graciosa e ao presente ppa, em concreto, através dos contratos de locação financeira e cópias das faturas de venda dos veículos automóveis.

48. Nas suas alegações, no essencial a Requerente reforça a linha de raciocínio e os entendimentos vertidos no ppa, e sublinha que a AT persiste em assinalar a ausência de comprovativos de pagamento do valor residual do veículo automóvel apesar de saber que o pagamento daquela quantia opera por débito bancário, isto é, débito direto. E para clarificar enuncia que este serviço de Débitos Diretos SEPA – método-chave de pagamentos introduzido pela SEPA no sistema europeu de pagamentos – permite às entidades credoras, com base numa autorização de débito em conta («ADC») concedida pelos devedores, efetuar cobranças em euros em contas bancárias sediadas em instituições financeiras aderentes ao serviço em Portugal e noutros países do espaço SEPA. A Requerente sublinha, ainda, que oferece aos seus clientes um serviço de Débitos Diretos CORE, nos termos do qual os devedores/pagadores – que podem ser particulares e/ou empresas – dão autorização de débito nas suas contas à Requerente e é esta que inicia o processo de ativação da ADC SEPA.

49.          Para fundamental o seu entendimento, nas diversas valências enunciadas, a Requerente faz referências as diversas decisões arbitrais (proc.º 14/2013-T, proc.º 27/2013-T, proc.º 230/2014-T, proc.º 845/2015-T, proc.º 598/2016-T, proc.º 740/2016-T, proc.º 145/2017-T, proc.º 158/2017-T, proc.º 258/2017-T, proc.º 430/2017-T, proc.º 16/2018-T, proc. 133/2018-T, proc.º 332/2018-T, proc.º 333/2018-T, proc.º 128/2019, proc.º 236/2019-T, 283/2019-T, proc.º 462/2019-T), bem como invoca jurisprudência judicial dos Tribunais superiores ( TC, Acórdão n.º 348/97, de 29.04.1997, STJ, Acórdãos n.º 03B4369, de 19.02.2004, n.º 07B4528, de 29.01.2008, n.º 03B4639, 19.02.2004 STA, Acórdão n.º 66/14.1.BEMDL 0273/18, de 20.03.2019, TCAN, Acórdãos n.º 938/13.5BEPRT, de 22.02.2018, n.º 1269/14.9BEPNF, de 19.06.2019, n.º 2502/14.2BEPRT, de 01.06.2017, TCAS, Acórdãos n.º 8300/14, de 19.03.2015).

50.          A Requerente alega, ainda, que, uma vez que a Autoridade Tributária e Aduaneira já teve oportunidade de revogar os atos de liquidação do IUC, deve ser ela a suportar as custas do processo arbitral e deve ser condenada ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

IV.2 – ENQUADRAMENTO EFETUADO PELA REQUERIDA

A Requerida na sua resposta, por impugnação, faz o enquadramento seguinte:

51.          A Requerente alega a ilegalidade dos 38 atos de liquidações de IUC, por violação das normas do artigo 3.º do CIUC, referentes aos veículos objeto de contratos de locação financeira e de ALD outorgados pela Requerente, porém, não lhe assiste razão.

52.          A Requerida considera que a alteração legislativa introduzida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC através do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, visa, claramente, passar a incidência subjetiva do IUC do proprietário do veículo para a pessoa em nome da qual está registada a propriedade do veículo, seja ela ou não o seu proprietário e/ou possuidor.

53. In casu, os atos de liquidação de IUC são referentes ao ano de 2019, pelo que se lhes aplica a nova redação do artigo 3.º do CIUC, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 01 de agosto. E esta nova redação não contempla uma presunção. Estabelece que são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

54.          A Requerida sublinha que, nos presentes autos de pronúncia arbitral, é imperioso concluir que o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como proprietários, ou nas situações previstas no n.º 2 do artigo 3.º, as pessoas aí enunciadas, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.

55.          O legislador ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1, do CIUC quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários, ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas, considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados.

56.          A entender-se que ao usar a expressão “considera-se” o legislador fiscal teria consagrado uma presunção praticamente todas as normas de incidência em sede de IRC seriam afastadas precisamente porque a contabilidade prescreve soluções diferentes das do CIRC, sendo exatamente o fim do legislador afastar tais regras contabilísticas.

57. A Requerida considera que o artigo 3.º do CIUC, não integra qualquer presunção, aliás, afirma que entender, como defende a Requerente, que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efetuar uma interpretação contra legem.

58. A Requerida considera que o que está em causa é sim uma opção de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, num contexto de liberdade de conformação legislativa e para efeitos de IUC, se traduz em que sejam considerados proprietários dos veículos, as pessoas que como tal constem do registo automóvel.

59.          A Requerida, inequivocamente, considera que o artigo 3.º do CIUC não comporta qualquer presunção legal, e que o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei.

60.          A Requerida invocando os normativos dos artigos 4.º e 6.º do CIUC, considera que da sua articulação com o artigo 3.º, isto é, do âmbito de incidência subjetiva do IUC e o facto constitutivo da obrigação de imposto decorre inequivocamente que só as situações jurídicas objeto de registo (sem prejuízo, da permanência de um veículo em território nacional por um período superior a 183 dias, previsto no n.º 2 do artigo 6.º) geram o nascimento da obrigação de imposto. Ou seja, o momento a partir do qual se constitui a obrigação de imposto apresenta uma relação direta com a emissão do certificado de matrícula, no qual devem constar os factos sujeitos a registo (cfr. Artigos 4.º/2 e 6.º/3 do CIUC, artigo 10.º/1 do Decreto-Lei 54/75, de 12 de fevereiro, e artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis).

61.          A Requerida destaca que esta ideia está patente na circunstância de o registo automóvel a que a Requerida tem ou pode ter acesso e o certificado no qual devem constar os atos sujeitos a registo conterem todos os elementos destinados à determinação do sujeito passivo, sem necessidade de acesso aos contratos de natureza particular que conferem tais direitos, enunciados pelo CIUC como constitutivos da situação jurídica de sujeito passivo deste Imposto.

62.          A não atualização do registo, nos termos do artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis tem de ser imputada na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não na do Estado Português, enquanto sujeito ativo do imposto.

63.          Determinado o sujeito passivo de IUC em função das pessoas em nome das quais o veículo em causa se encontre registado, e sendo que dos dados registrais constantes na Conservatória do Registo Automóvel, se verificou que a Requerente consta como proprietária dos veículos automóveis em causa, os serviços competentes da Requerida procederam à liquidação dos atos de liquidação de IUC impugnados pela Requerente.

64.          E que a não ser assim, estar-se-ia, inequivocamente, a colocar em causa a segurança e a certeza jurídicas, na medida em que o instituto do registo automóvel deixaria de proporcionar a segurança e a certeza que constituem as suas finalidades principais, assim como o poder-dever de a Requerida liquidar os impostos.

65.          A Requerida considera que, à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente no sentido de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efetivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada.

66.          É uma interpretação errada na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel.

67.          Neste sentido, importa atentar no teor dos debates parlamentares em torno da aprovação do Decreto-Lei n.º 20/2008, de 31 de janeiro, dos quais resulta inequivocamente que o IUC é devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos.

68. O novo regime de tributação do IUC veio alterar de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando a ser sujeitos passivos do imposto os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública.

69.          A Requerida faz referência à Recomendação n.º 6-B/2012 do Provedor de Justiça, de 22.06.2012 (cfr. art.º 67.º da resposta), bem como refere a posição do causídico Rui Ribeiro Pereira que se expressa no sentido de i) «No novo modelo de tributação automóvel, (…) a liquidação e pagamento do imposto, levada a cabo durante o mês de matrícula do veículo, passou a ser exigida a quem conste como proprietário do mesmo junto da Conservatória de Registo Automóvel. ii) A alteração legislativa vinda de descrever transformou o anterior imposto de circulação num verdadeiro imposto sobre a propriedade de automóveis. Ou seja, o acento tónico da tributação deixa de estar na circulação para se centrar na mera propriedade».

70. Em suma, a Requerida considera que os atos de liquidação impugnados não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC.

71. Para além das razões já enunciadas, a Requerida sustenta o seu entendimento e posição nas decisões jurisdicionais prolatadas em Tribunais Tributários (Acórdão do TAF de Penafiel, proc.º 210/13.0BEPNF; Acórdão do TCA Norte, proc.º n.º 00611/13.4BEVIS) e em decisões arbitrais (proc.º 658/2018-T, proc.º 557/2019-T, proc.º 557/2019-T).

72. Quanto ao ónus da prova da transmissão dos veículos, A Requerida alega que os contratos que a Requerente junta não são prova suficiente de que houve transmissão de propriedade de um veículo da Requerente para terceiro numa determinada data, uma vez que a mesma não junta a cópia de um cheque ou de um extrato financeiro de onde conste o recebimento de um determinado valor respeitante à venda de veículo automóvel. Acresce que a Requerente junta, ainda, um acervo de faturas/recibos e desses documentos consta a data de emissão e a data de vencimento, que não coincidem, para além de constar do lado inferior direito “válido como recibo após boa cobrança”.

73.          A Requerida sublinha que a Requerente não junta um único extrato financeiro ou cheque que prove que as faturas foram pagas ou que os contratos foram cumpridos, ou se, pelo contrário estão em contencioso, pelo que impugnou, para todos os efeitos legais, os Documentos juntos ao pedido arbitral, uma vez que os mesmos não provam de forma clara e inequívoca que ocorreu a transmissão do veículo e consequentemente da propriedade do mesmo.

74.          A Requerida reforça a sua alegação dizendo que as faturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático pois não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade, isto é, a aceitação por parte dos pretensos adquirentes. Para tanto, socorre-se das decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 63/2014-T, 130/2014.T, 150/2014-T, 220/2014-T, 339/2014-T.

75. Nas suas alegações, no essencial, a Requerida reforça a posição defendia na sua resposta e invoca o Acórdão do STA, proferido no processo n.º 0206/17, de 18.04.2018, e as decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 462/2019-T, 557/2019-T, 821/2019-T, 61/2020-T e 410/2020-T.

76.          Em face dos normativos legais, a Requerente não procedeu com o zelo que lhe era exigível, e a Requerida limita-se a dar cumprimento às obrigações legais a que está adstrita, não lhe sendo imputável os factos que deram azo à dedução do pedido de pronúncia arbitral, pelo que não lhe pode ser atribuído o dever de pagamento das custas processuais ou o pagamento de juros indemnizatórios, porquanto não ocorreu qualquer erro imputável aos serviços da AT.

 

V - DAS DILIGÊNCIAS PROCESSUAIS

77.          Com vista à formação da livre convicção do tribunal, em face do normativo da alínea e) do artigo 16.º do RJAT, atinente à livre apreciação dos factos e à livre determinação das diligências probatórias, articulado com o princípio do inquisitório previsto no artigo 99.º da LGT, aplicável por remissão da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, o tribunal arbitral teve em consideração todos os elementos/documentos apresentados pela Requerente e pela Requerida.

78.          O tribunal teve em consideração as decisões arbitrais proferidas sobre a matéria controvertida e que constitui o objeto do presente processo arbitral, designadamente, todas as decisões arbitrais invocadas, quer pela Requerente, quer pela Requerida, estando o tribunal ciente que na sua análise não esgotou todas as decisões arbitrais já proferidas sobre a matéria relativa à incidência subjetiva do IUC.

79.          O tribunal arbitral teve ainda em consideração as decisões jurisprudência dos tribunais tributários judiciais invocadas pelas Partes e outras decisões, designadamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, proferidos nos processos n.ºs 01341/17, de 23.05.2018, n.º 0467/14.0BEMDL 0356/18, de 03.06.2020, n.º 0657/15.8BEPRT 0949/17; o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido no processo n.º 00888/13.5BEPRT, e os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, proferidos nos processos n.ºs 201/14.4BEALM, de 14.03.2019, n.º 2126/13.1BELRS, de 28.11.2019 e n.º 1347/14.4BELRS, de 25.03.2021.

80.          Tudo ponderado cumpre apreciar do mérito da pretensão da Requerente.

 

VI - QUESTÕES DECIDENDAS

Ao tribunal arbitral singular cumpre decidir sobre:

81.          A circunstância do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC, na redação à data dos factos, em concreto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, aprovado em concretização da autorização legislativa concedida através do artigo 169.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, comportar uma presunção legal e sobre a possibilidade desta poder ser ou não ilidida.

82.          Se os elementos probatórios (provas documentais) apresentados pela Requerente são idóneos para ilidir a presunção legal ínsita no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC.

83.          Sobre a ilegalidade das decisões de indeferimento parcial proferidas nos procedimentos de reclamações graciosas apresentados pela Requerente contra os atos de liquidação de IUC do ano de 2019, que constituem o objeto do presente processo arbitral.

84.          Sobre a ilegalidade dos atos de liquidação de IUC do ano de 2019 (meses de novembro e dezembro) identificados no ANEXO A junto ao pedido de pronúncia arbitral.

85.          Se existe erro imputável aos serviços da AT na realização das liquidações de IUC do ano de 2019, em ordem a decidir sobre o dever de pagamento de juros indemnizatórios.

 

VII - DO MÉRITO

VII.1 - OS FACTOS

VII.1.1 - FACTOS PROVADOS

86.          Em relação à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, nos termos do n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e do n.º 3 do artigo 607.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis por força do artigo 29.º do RJAT, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar os factos considerados provados e os não provados. O tribunal considera provados e relevantes para a decisão arbitral os factos seguintes:

86.1       A Requerente foi notificada de 38 atos de liquidação de IUC referentes ao ano de 2019, identificados no ANEXO A que faz parte integrante do pedido de pronúncia arbitral e aqui se dá por integralmente reproduzido.

86.2       A requerente procedeu ao pagamento das liquidações de IUC do ano de 2019 (mês de novembro e dezembro), conforme refere no artigo 24.º do ppa, alegação que não foi impugnada pela Requerida.

86.3       À data do facto gerador e da exigibilidade do imposto, constava no registo a Requerente como proprietária dos veículos que motivaram a realização dos atos de liquidação de IUC impugnados nos presentes autos de pronúncia arbitral.

86.4       Os veículos que motivaram a liquidação do IUC foram objeto de contrato de locação financeira em que foi locadora a Requerente.

86.5       No termo do contrato de locação financeira, os locatários efetuaram a opção de compra e a locadora procedeu à emissão das faturas e deu a devida relevância contabilística às operações realizadas, com exceção dos veículos ... e ..., todos os veículos automóveis sobre os quais incide a liquidação de IUC foram dados em locação pela Requerente aos clientes identificados nos autos e que, no termo dos contratos, os clientes adquiriram o respetivo veículo automóvel, mediante o pagamento do correspondente valor residual, conforme faturas que a Requerente juntou ao pedido de pronúncia arbitral, e que já havia junto aos procedimentos de reclamação graciosa.

86.6       O veículo matrícula ... por motivo de «perda total» na sequência de sinistro ocorrido antes do término do contrato, não foi transmitido para o correspondente locatário, mas sim para a esfera da Seguradora com quem tinha sido celebrado o contrato de seguro. E o veículo com a matrícula ..., em virtude de ter ocorrido a cedência da respetiva posição contratual, também não foi transmitido para a pessoa que originariamente outorgou o contrato de locação financeira.

86.7       Os atos de liquidação de IUC do ano de 2019, sindicados no presentes autos de pronúncia arbitral foram impugnados nos procedimentos de reclamação graciosa n.ºs ...2020... e ...2020..., as quais foram indeferidas parcialmente por despachos de 31.08.2020, da Diretora Adjunta da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC) – Divisão de Justiça Tributária –, proferidos ao abrigo de delegação de competências, exarados sobre as Informações n.ºs 303-APT2/2020, de 28.08.2020, e 304-APT2/2020, de 31.08.2021.

86.8       A Requerida procedeu à liquidação do IUC do ano de 2019, em conformidade com os normativos dos artigos 2.º, 3.º, 4.º e 6.º do CIUC.

 

VII.1.2 - FACTOS NÃO PROVADOS

87.          Não há factos essenciais com relevo para apreciação do mérito da causa, os quais não se tenham provado.

 

VII.2 - MATÉRIA DE DIREITO

88.          Em ordem a decidir sobre as questões decidendas importa elencar e escalpelizar o direito aplicável.

89.          O regime jurídico do contrato de locação financeira consta do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, alvo de diversas alterações legislativas, sendo a mais recente a introduzida pelo Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25 de Fevereiro, estabelecendo o artigo 1.º deste regime que “Locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.”

90. No âmbito deste regime jurídico, concretamente nos termos dos normativos das alíneas b) e c) do n.º 1 do seu artigo 9.º constituem obrigações do locador conceder ao locatário o gozo do bem para os fins a que se destina e, no fim do contrato, vender o bem caso o locatário assim o queira, podendo considerar-se que a propriedade do locador é instrumental, dado que durante o contrato de locação o locador assume a propriedade jurídica do bem, enquanto que o locatário detém a sua propriedade económica. No termo do contrato de locação, exercido o direito de opção de compra, o direito de propriedade, na sua plenitude, passa a ser do locatário, processando-se a transmissão do direito de propriedade nos termos contratuais.

91.          Nos termos do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro, a propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório, conforme decorre dos normativos dos n.ºs 1 e 2 deste diploma legal. A obrigação de proceder ao registo recai sobre o comprador – sujeito ativo do facto sujeito a registo, que é, no caso, a propriedade do veículo, conforme previsto no n.º 1 do artigo 8.º-B do Código do Registo Predial, aplicável ao registo automóvel ex vi do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro.

92.          O regulamento do registo automóvel consta do Decreto-Lei n.º 55/75, de 12 de fevereiro, podendo o registo da propriedade do veículo adquirida em resultado de contrato de compra e venda ser feita com base em requerimento subscrito pelo comprador e confirmado pelo vendedor, através de declaração de venda apresentada com o pedido de registo (al. a) do n.º 1 do art.º 25.º do Decreto-Lei n.º 55/75). Porém, há que sublinhar que desde 2008 que existe um regime especial de registo para as entidades que se dediquem à atividade comercial de venda de veículos automóveis. Com efeito, nos termos das alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 25.º do regulamento do registo automóvel, o registo pode ser promovido pelo vendedor, mediante um requerimento subscrito apenas por si próprio. Regime similar se encontra previsto na alínea e) do n.º 1 daquele artigo 25.º para a aquisição da propriedade emergente de contrato de locação financeira, porquanto o referido normativo estabelece que o registo de propriedade pode ser feito em face de “requerimento subscrito pelo vendedor, na sequência do exercício do direito de compra no fim do contrato de locação financeira ou de aluguer de longa duração registado, acompanhado da fatura correspondente à venda respetiva ou de documento de quitação”.

93.          Em face deste regime jurídico importa sublinhar que, logo que foi exercido o direito de compra pelo locatário, a Requerente podia ter promovido o registo da propriedade em benefício do adquirente do veículo, não dependendo a atualização do registo da propriedade do veículo, necessariamente, da iniciativa do comprador (antigo locatário). O normativo do n.º 1 do artigo 42.º do Regulamento do Registo automóvel (Decreto-Lei n.º 55/75) estabelece que o registo deve ser requerido no prazo de 60 dias a contar do facto que constitui a sua motivação.

94.          Importa, outrossim, referir que, nos termos do n.º 4 do artigo 118.º do Código da Estrada, a Requerente, na qualidade de vendedora, podia ter promovido a atualização do registo de propriedade do veículo automóvel, visto que aquele normativo restabelece que “o vendedor ou a pessoa que, a qualquer título jurídico, transfira para outrem a titularidade de direito sobre o veículo deve comunicar tal facto à autoridade competente para a matrícula, nos termos e no prazo referidos no número anterior, identificando o adquirente ou a pessoa a favor de quem seja constituído o direito”.

95.          Verifica-se, assim, que, nos termos da lei, a Requerente logo que procedeu à venda dos veículos automóveis aos antigos locatários podia ter de imediato procedido à promoção do registo da propriedade dos veículos em nome dos adquirentes, libertando-se, assim, de eventuais ónus decorrentes do direito de propriedade dos veículos.

96.          Contudo, há que sublinhar que atenta a finalidade do registo da propriedade automóvel consagrada no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro (O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico), os adquirentes (compradores) dos veículos é que têm um interesse direto e essencial no registo da propriedade, sob pena do seu direito desvanecer em face dos direitos de terceiro.

97.          Em face do pedido de registo da propriedade automóvel é emitido pela autoridade competente para cada veículo um certificado de matrícula, o qual atesta a identidade do proprietário do veículo e demais elementos relevantes para publicitar a situação jurídica do veículo.

98.          O imposto único de circulação está desenhado para funcionar em integração com o registo automóvel, constituindo este a fonte de informação idónea e legal utilizada pela Autoridade Tributária e Aduaneira para alimentar o procedimento de liquidação e proceder à liquidação do IUC e efetuar a notificação dos sujeitos passivos de imposto.

99.          Todavia, importa sublinhar que o artigo 1.º do CIUC estabelece que o imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualde tributária.

100.       Nas palavras de Sérgio Vasques, o princípio da equivalência não tende a uma tributação de base larga, tal como tende o princípio da capacidade contributiva. O princípio da equivalência tende à seletividade e a um conjunto variado de tributos dirigidos à compensação de custos e benefícios precisos, munidos de base de incidência objetiva tão estreita quanto possível. Segundo corolário do princípio da equivalência na estruturação dos tributos comutativos é a exigência de uma base de incidência subjetiva estreita, sendo que a base de incidência subjetiva dos tributos comutativos releva menos que a fixação da sua incidência objetiva. Assim, uma vez fixadas com clareza as prestações administrativas a compensar, resultam as mais das vezes identificadas com clareza as pessoas que as provocam ou aproveitam (cfr. Manual Direito Fiscal, 2.º Edição. Almedina. pág. 307 e segs).

101.       Assim, e não obstante a letra do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 01 de agosto, há que sublinhar que a interpretação daquele normativo, tendo em conta, particularmente, a relevância legalmente conferida ao princípio da equivalência, não comporta a tributação, em IUC, do locador que, enquanto proprietário formal do veículo, não tem, consequentemente, qualquer potencial poluidor, o que significa que os danos advenientes para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis devem ser assumidos pelos seus reais utilizadores, como custos que só eles deverão suportar.

102.       Em data anterior aos factos, que reportam ao período de tributação do ano de 2019, em sede de incidência subjetiva os n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º do CIUC estabelecia que: I) São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados. II) São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

103. Através do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 01de agosto, aprovado em concretização da autorização legislativa concedida pelo artigo 169.º da Lei n.º 7-A/2016 de 30 de março, a redação daqueles normativos foi alterada tendo passado a dispor que I) São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos. II) São equiparados a sujeitos passivos os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

104. Há que realçar que o IUC é um imposto de periodicidade anual, sendo devido por inteiro em cada período de tributação correspondente ao ano que se inicia na data da matrícula ou em cada um dos seus aniversários, sendo exigível no primeiro dia do período de tributação. Por sua vez, o facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional (art.ºs 4.º e 6.º do CIUC).

105.       Atento os comandos legais que estabelecem a incidência subjetiva do IUC, bem como a sua exigibilidade, há que reconhecer que a Autoridade Tributária e Aduaneira quando procedeu à realização das liquidações de IUC supra identificadas e colocadas em crise pela Requerente se limitou a fazer a estrita aplicação da lei, na medida em que o IUC é liquidado com base nos dados constantes no sistema de informação do registo automóvel, e os veículos automóveis sobre os quais incidiu o IUC estavam registados em nome da Requente, detendo esta à data da liquidação do IUC do ano de 2019 a qualidade de proprietária dos mesmos.

106.       Para além do registo automóvel, a Autoridade Tributária e Aduaneira, ao contrário do que acontece com os imóveis, não tem qualquer outra fonte de informação que lhe permita conhecer a transferência ou transmissão de propriedade dos veículos automóveis, daí que exista uma direta e estreita articulação funcional entre o registo da propriedade automóvel e os procedimentos de liquidação do IUC.

107.       Em ordem a decidir sobre a legalidade das liquidações de IUC objeto do pedido de pronúncia arbitral, importa avaliar se a norma do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC encerra uma presunção legal suscetível de ser ilidida ou, ao invés, uma ficção jurídica.

108.       Para o efeito, importa trazer à colação o normativo do n.º 1 do artigo 11.º da LGT que prescreve que “[n]a determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”.

109. Tendo em consideração as sucessivas redações dos normativos em análise, importa ponderar qual a melhor interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, à luz, em primeiro lugar, do elemento literal, ou seja aquele em que se visa detetar o pensamento legislativo que se encontra objetivado na norma, para se verificar se a mesma contempla uma presunção, ou se determina, em definitivo, que o sujeito passivo do imposto é o proprietário que figura no registo.

110. Deste modo, coloca-se a questão de saber se a expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador no CIUC, em vez da expressão “presumindo-se”, que era a que constava nos diplomas que antecederam o CIUC, terá retirado a natureza de presunção ao dispositivo legal em apreço.

111. Há que dizer que da exegese aos normativos legais que integram o nosso ordenamento jurídico se retira de forma clara que as duas expressões têm sido utilizadas pelo legislador com sentido equivalente, seja ao nível de presunções ilidíveis, seja no quadro das presunções inilidíveis, pelo que nada nos habilita a extrair a conclusão pretendida pela Requerida, por mera razão semântica, de que aquele normativo não encerra qualquer presunção, inclusive, na atual redação.

112. Esta conclusão de haver total equivalência de significados entre as duas expressões, que o legislador utiliza indiferentemente, satisfaz a condição estabelecida no n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil, uma vez que se encontra assegurado o mínimo de correspondência verbal para efeitos da determinação do pensamento legislativo.

113.No sentido de aprimorar a interpretação da norma do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, há que submetê-la aos demais elementos de interpretação lógica, designadamente, o elemento histórico, o racional ou teleológico e o de ordem sistemática.

114. Assim, discorrendo sobre a atividade interpretativa diz Francisco Ferrara que esta “é a operação mais difícil e delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino trato, senso apurado, intuição feliz, muita experiência e domínio perfeito não só do material positivo, como também do espírito de uma certa legislação. (…) A interpretação deve ser objetiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei” (Cfr. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, tradução de Manuel de Andrade, (2.ª ed.), Arménio Amado, Editor, Coimbra, 1963, p. 129).

115. Por sua vez, Batista Machado refere que “a disposição legal apresenta-se ao jurista como um enunciado linguístico, como um conjunto de palavras que constituem um texto. Interpretar consiste evidentemente em retirar desse texto um determinado sentido ou conteúdo de pensamento. O texto comporta múltiplos sentidos (polissemia do texto) e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Mesmo quando aparentemente claro à primeira leitura, a sua aplicação aos casos concretos da vida faz muitas vezes surgir dificuldades de interpretação insuspeitadas e imprevisíveis. Além de que, embora aparentemente claro na sua expressão verbal e portador de um só sentido, há ainda que contar com a possibilidade de a expressão verbal ter atraiçoado o pensamento legislativo – fenómeno mais frequente do que parecerá à primeira vista “(Cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp.175/176).

116. Apelando às normas do artigo 9.º do Código Civil, o qual fornece as regras e os elementos fundamentais à interpretação correta e adequada das normas, há que dizer que o texto do n. º 1 do artigo 9.º do Código Civil começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”. Sendo que sobre a expressão “pensamento legislativo” diz-nos Batista Machado que o artigo 9º do CC “não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjetivista e a doutrina objetivista. Esta ideia é comprovada pelo facto de se não referir, nem à “vontade do legislador” nem à “vontade da lei”, mas apontar antes como escopo da atividade interpretativa a descoberta do “pensamento legislativo” (cfr. art.º. 9º, 1º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exatamente que o legislador não se quis comprometer” (loc. cit., p. 188).

117. E sobre o n. º 3 do artigo 9.º do Código Civil refere ainda Batista Machado: “(…) esta norma nos propõe um modelo de legislador ideal que consagrou as soluções mais acertadas (mais corretas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correta. Este modelo reveste-se claramente de características objetivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorreto, precipitado, infeliz) mas um legislador abstrato: sábio, previdente, racional e justo”. O mesmo Professor chama a atenção de que o n.º 1 do artigo 9 º do CC, refere mais três elementos de interpretação a “unidade do sistema jurídico”, as “circunstâncias em que a lei foi elaborada” e as “condições específicas do tempo em que é aplicada” (Obra e loc. cit. p. 189/190).

118. Batista Machado, em relação à “unidade do sistema jurídico”, considera este o fator interpretativo mais importante: “(…) a sua consideração como fator decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica” (loc. cit., p. 191).

119. Referindo-se ao elemento racional ou teleológico, diz, ainda, este Professor que ele consiste “na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.,) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura política económica e social que motivou a decisão legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido da norma. Basta lembrar que o esclarecimento da ratio legis nos revela a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma regula e, portanto, o peso relativo desses interesses, a opção entre eles traduzida pela solução que a norma exprime” (loc. cit., pp. 182/183).

120. No que respeita ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos) que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico. Este subsídio interpretativo baseia-se no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário” (Batista Machado, loc. cit., p. 183).

121. Tendo por base a matéria controvertida nos presentes autos de arbitragem tributária, através da análise do elemento histórico, extrai-se a conclusão de que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 59/72, de 30 de dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei n.º 116/94, de 3 de maio, o último a anteceder o CIUC (cfr. Lei n.º 22-A/2007, com as alterações da Lei n.º 67-A/2007 e n.º 3-B/2010), foi consagrada a presunção dos sujeitos passivos do IUC serem as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da sua liquidação. Verifica-se, assim, que a lei fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma ou outra expressão que, como vimos, têm na nossa ordem jurídica um sentido coincidente. O mesmo se diga quando nos socorremos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica.

122. Assim, outrossim, da interpretação efetuada à luz dos elementos de natureza racional e teleológica, atento aquilo que a racionalidade do sistema garante e os fins visados pelo novo CIUC, resulta claro que o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível.

123. E a verdade é que, como já se referiu, o atual e novo quadro da tributação automóvel consagra princípios que visam sujeitar os proprietários dos veículos a suportarem os prejuízos por danos viários e ambientais causados por estes, como se alcança do teor do artigo 1º do CIUC. Com efeito, a consideração destes princípios, designadamente, o princípio da equivalência, que merecem tutela constitucional e consagração no direito comunitário, determina que os aludidos custos sejam suportados pelos reais proprietários, os causadores dos referidos danos, o que afasta, de todo, uma interpretação que visasse impedir os presumíveis proprietários de fazer prova de que já não o são por a propriedade estar na esfera jurídica de outrem, in casu, do locatário ou de terceiro.

124. É fundamental realçar que o normativo do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC é uma norma de incidência – incidência subjetiva – e que o preceito legal do artigo 73.º da LGT estabelece que “[a]s presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”.

125. Assim sendo, consagrando o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC uma presunção juris tantum (logo, ilidível), a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e que, por essa razão foi considerada pela Autoridade Tributária e Aduaneira como sujeito passivo do imposto, pode apresentar elementos de prova visando demonstrar que o titular da propriedade, na data do facto tributário, é outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida.

126. Presunção é uma ilação que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido (art.º 349.º do Código Civil), sendo que quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (art.º 350.º do Código Civil).

127. Nesta conformidade, sendo sujeito passivo do IUC o proprietário do veículo, e constando do registo automóvel como proprietário dos veículos a Requerente, a Autoridade Tributária e Aduaneira só podia proceder à liquidação o IUC nos exatos termos em que o fez, não existindo qualquer erro imputável aos serviços na liquidação do IUC do ano de 2019.

128. Porém, importa realçar que as presunções, salvo nos casos em que a lei o proibir, podem ser ilididas, mediante prova em contrário (n.º 2 do art.º 350.º do Código Civil). e como, já se referiu, nos termos do artigo 73.º da Lei Geral Tributária, as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.

129. Nesta medida, para ilidir as presunções constantes das normas de incidência tributária, o sujeito passivo da relação jurídica tributária pode lançar mão ao procedimento contraditório próprio previsto no artigo 64.º do CPPT ou, em alternativa, pode utilizar o procedimento de reclamação graciosa ou a impugnação judicial. Deste modo, o processo arbitral é, outrossim, meio processual idóneo para ilidir as presunções constantes das normas de incidência tributária.

130. Para aferir da legalidade dos atos de liquidações de IUC, o que é relevante é a presunção substantiva ínsita na norma de incidência – n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC – e não a presunção processual constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial, aplicável ao registo automóvel, por força do artigo 29.º do regime do registo automóvel (Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro).

131. Para ilidir a presunção legal a Requerente apresentou com o pedido de pronúncia arbitral os contratos de locação financeira e as faturas comprovativas das operações de venda dos veículos aos locatários dos contratos de locação financeira e/ou terceiros. Previamente, a Requerente pretendeu obter tal desiderato em sede de reclamação graciosa, não tendo, por efeito do indeferimento parcial destas, obtido tal desiderato, pelo que decidiu interpor o presente pedido de pronúncia arbitral.

132. A Autoridade Tributária e Aduaneira teve oportunidade de admitir a ilisão da presunção legal consagrada no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC no procedimento de reclamação graciosa, porém, o que acontece é que o entendimento atual da Requerida é que o sujeito passivo do imposto é o proprietário formal do veículo, isto é, a pessoa jurídica que estiver inscrita no registo automóvel como proprietário da viatura sujeita a IUC.

133. As operações de transmissão de propriedade realizadas pela Requerente são oponíveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos em relação a terceiros quando registados, face ao disposto no n.º 1 do artigo 5.º do Código do Registo Predial - aplicável por remissão do Código do Registo Automóvel – a Requerida não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no n.º 2 do artigo 5.º do Código do Registo Predial, aplicável por força do Código do Registo Automóvel, ou seja: não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

134. Nesta medida, no que se refere à realização dos atos de liquidação de IUC, a Autoridade Tributária e Aduaneira só se pode prevalecer da realidade registral ou constante da base de dados do IMT, se não for comprovada a desatualização da situação jurídica, designadamente quanto à propriedade do veículo, sendo de concluir que o registo automóvel, na economia do CIUC, representa uma mera presunção ilidível sobre os sujeitos passivos do imposto.

135. Importa, agora, aferir sobre se a Requerente fez prova da transmissão da propriedade dos veículos, sendo, desde já de sublinhar que não acolhemos a perspetiva de que as faturas emitidas pela Requerente não são meio de prova idóneo para comprovar a transmissão da propriedade dos veículos automóveis, isto é, para provar a veracidade do contrato de compra e venda, contrato sinalagmático, subjacente à transmissão da propriedade dos veículos automóveis.

136. De igual modo, não acolhemos a linha de raciocínio expendida em diversas pronúncias arbitrais que têm invocado diversas decisões jurisprudenciais no sentido de demonstrar a não idoneidade das faturas para comprovar a materialidade do contrato de compra e venda que permitiu a efetivação da transmissão da propriedade dos veículos. É certo que o contrato de compra e venda ocorreu no âmbito de uma relação jurídica de direito privado – ato negocial – entre a Requerente e os locatários e/ou terceiros: Porém, o que está em causa nos presentes autos é uma controvérsia no âmbito de uma relação jurídica tributária, sendo-lhe, consequentemente, aplicáveis os princípios e as regras do direito fiscal, que para o efeito são autosuficientes.

137. As faturas emitidas pela Requerente não se destinam exclusivamente a provar movimentos contabilísticos, elas tem também por função a prova da substância das operações realizadas, pelo que tendo a Requerente registado tais faturas na sua contabilidade, beneficiam as faturas e correlativamente as operações por elas tituladas de presunção de verdade (art.º 75.º da LGT), podendo a Administração Tributária e Aduaneira, nos termos da lei, destruir tal presunção através da evidência de que as operações não se concretizaram, bem como podia efetuar diligências adequadas para infirmar a sua realização (al. e) do art.º 69.º do CPPT e al. a) do n.º 2 do art.º 111.º do CPPT).

138. Há, ainda, que realçar que o contrato de compra e venda de veículo automóvel é um contrato verbal, não sujeito, por conseguinte, a forma específica. Deste enquadramento resulta, inevitavelmente, uma especial importância do documento fiscal não só para efeitos tributários, mas também para efeitos civis ou outros.

139. A Requerente apresentou faturas emitidas na forma legal comprovativas da operação de venda e subsequente recebimento, ainda que, sublinhamos, a transmissão da propriedade não dependa do cumprimento da obrigação de pagamento. E a verdade é que as faturas constituem, para efeitos fiscais, os documentos legalmente exigidos para comprovar as operações de venda e de prestações de serviços, conforme resulta expressamente dos vários códigos fiscais (cfr. o disposto no n.º 6 do artigo 23.º do Código do IRC, al. b) do n.º 1 do artigo 29.º e artigo 36.º do Código do IVA e artigo 115.º do Código do IRS).

140. Como tem sido referido em diversas decisões arbitrais, há que dizer que a fatura constitui documento contabilístico elaborado no seio da empresa e que se destina ao exterior, mormente à AT, que dela extrai todos os efeitos inerentes em sede de valoração para incidência de diversos impostos. Logo, a menos que se demonstre a sua falsidade, as faturas presumem-se válidas para todos os efeitos legais, não podendo deixar de o ser, apenas e só, como meio de prova idóneo e credível da transmissão do veículo, relevante para efeitos de incidência de IUC.

141. Em face de todos os elementos probatórios, quer dos que foram juntos ao pedido de pronuncia arbitral, quer dos que constam do processo administrativo junto pela Requerida aos autos, verifica-se que à data da exigibilidade do IUC do ano de 2019, em relação a cada veículo automóvel alvo da incidência da liquidação do IUC, a propriedade do veículo não pertencia à Requerente mas sim ao anterior locatário, uma vez que foi exercido, nos termos contratuais, o respetivo direito de opção de compra dos veículos, com as exceções supra identificadas.

142. Considera-se, assim, ilidida a presunção ínsita no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC, devendo, em consequência, ser anuladas as liquidações de IUC do ano de 2019 colocadas em crise no presente processo arbitral, com a subsequente produção de efeitos legais.

143.Sendo o facto gerador do imposto constituído pela propriedade do veículo automóvel (art.º 6.º do CIUC) deve a Autoridade Tributária e Aduaneira proceder à realização de novas liquidações de IUC e exigir o pagamento do imposto ao sujeito passivo que à data da exigibilidade do imposto (art.º 4.º do CIUC) detinha a propriedade substantiva dos veículos automóveis.

 

VIII - DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS.

144.       Os juros indemnizatórios são devidos quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (n.º 1 do art.º 43.º da LGT). Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT o direito ao pagamento dos juros indemnizatórios pode ser reconhecido no processo arbitral.

145.       O pagamento dos juros indemnizatórios pressupõe que o imposto objeto das liquidações colocadas em crise tenha sido pago, o que se confirma em relação às liquidações de IUC do ano de 2019 identificadas no ANEXO A junto ao ppa e nos procedimentos de reclamação graciosa supra referenciados.

146.       Importa, todavia, realçar que a Autoridade Tributária e Aduaneira quando procedeu à realização das liquidações de IUC do ano de 2019 supra identificadas não cometeu qualquer erro, dado que se limitou a observar as normas de incidência subjetiva (art.º 3.º do CIUC) em articulação como normativo que estabelece o facto gerador do imposto (art.º 6.º do CIUC), pelo que, atenta a base legal e os factos conhecidos e emergentes do registo da propriedade automóvel, as liquidações de imposto foram correta e legalmente realizadas, inexistindo, assim, qualquer erro de facto ou de direito.

147.       Porém, na sequência da dedução das reclamações graciosas contra as liquidações de IUC do ano de 2019 (mês de novembro e dezembro), agora objeto do presente processo arbitral, em face das alegações produzidas nos procedimentos de reclamação graciosa pela Requerente, a Autoridade Tributária e Aduaneira teve a oportunidade de se certificar que a propriedade dos veículos automóveis não pertencia àquela, mas sim aos anteriores locatários e/ou a terceiros, pelo que, desde logo, podia ter efetuado a anulação das referidas liquidações e promovido a exigibilidade do imposto às pessoas que, à data da exigibilidade do imposto do ano de 2019, detinham a propriedade dos veículos automóveis, pelo que só a partir da data da decisão das reclamações graciosas há lugar à imputação de erro à AT.

148.       Deste modo, e na linha da jurisprudência constante dos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (STA) proferidos no processo n.º 0926/17, de 06.12.2017, e no processo n.º 0250/17, de 03.05.2018, deve a Autoridade Tributária Aduaneira, nos termos do artigo 43.º da LGT e artigo 61.º do CPPT, proceder ao pagamento de juros indemnizatórios à Requerente, em relação a cada uma das liquidações de IUC do ano de 2019, desde a data do despacho de indeferimento parcial da respetiva reclamação graciosa até à data do processamento da respetiva nota de crédito (n.º 5 do art.º 61.º do CPPT).

 

IX - DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:

a)            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral no que concerne à ilisão da presunção de incidência subjetiva do IUC, no sentido de que o sujeito de imposto é o proprietário efetivo do veículo;

b)           Julgar procedente o pedido de anulação dos despachos de indeferimento parcial dos procedimentos de reclamação graciosa deduzidas contra os atos de liquidação de IUC colocados em crise no presente pedido de pronúncia arbitral;

c)            Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de IUC referentes ao ano de 2019, e impugnados nos presentes autos de arbitragem tributária, com a produção dos respetivos efeitos legais;

d)           Julgar procedente o pedido de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira à restituição dos valores indevidamente pagos pela Requerente e conexos com as liquidações de IUC agora declaradas ilegais.

e)           Julgar procedente o pedido de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira ao pagamento de juros indemnizatórios, a liquidar desde a data do despacho de indeferimento parcial das reclamações graciosas supra identificadas e conexas com os atos de liquidação de IUC em causa, até à data de processamento da respetiva nota de crédito.

 

X - VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 3.692,84 (três mil seiscentos e noventa e dois euros e oitenta e quatro cêntimos), de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e artigo 306.º do Código de Processo Civil (CPC).

 

XI - CUSTAS

O valor das custas é fixado em € 612,00 (seiscentos e doze euros) ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerida, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 5 do RCPAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 29 de novembro de 2021

 

O Árbitro

Jesuíno Alcântara Martins