Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 692/2018-T
Data da decisão: 2019-09-26  IMI  
Valor do pedido: € 125.490,96
Tema: AIMI – Prédios afetos a serviços de alojamento turístico – erro de classificação matricial – exclusão de tributação – art. 135.º-B, n.º 2 CIMI.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), António Alberto Franco e Olívio Mota Amador, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

A..., LDA., doravante designada por “Requerente”, pessoa coletiva número..., com sede na ..., ..., em ..., notificada da liquidação do adicional ao imposto municipal sobre imóveis (“AIMI”) do ano 2018, no valor de € 125.490,96, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 15.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com as alterações subsequentes.

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

A Requerente vem deduzir pedido de pronúncia arbitral de declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de AIMI de 2018, emitida sob o n.º 2018..., e de condenação da AT à restituição do valor pago, acrescido de juros indemnizatórios contados até integral e efetivo reembolso.

 

Como fundamento da sua pretensão a Requerente alega que os prédios urbanos na sua titularidade, cujo somatório dos valores patrimoniais tributários constituíram a base de incidência do AIMI com referência ao ano 2018, estão abrangidos pela norma de exclusão de AIMI prevista no artigo 135.º-B, n.º 2 do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (“IMI”), sendo inaplicável o n.º 1 do mesmo preceito legal, pois os referidos prédios fazem parte integrante do aldeamento turístico de quatro estrelas “B...” e encontram-se unicamente afetos a serviços de alojamento turístico do tipo hoteleiro.

 

O referido empreendimento dispõe de diversos equipamentos e infraestruturas complementares de apoio, desporto e lazer, incluindo receção, bar, piscinas, spa, cabeleireiro, entre outros, e é procurado exclusivamente para alojamento por curtos períodos de tempo, sem fins residenciais.

 

Segundo a Requerente o erro na classificação matricial dos prédios em causa, enquadrados na espécie “habitacionais” em vez de “para serviços”, não pode prevalecer sobre a realidade material da efetiva e exclusiva aptidão e utilização turísticas, sob pena de configurar uma presunção inilidível, legalmente inadmissível (cf. artigo 73.º da Lei Geral Tributária “LGT”).

 

                Considera que a errada classificação matricial dos imóveis constitui um vício suscetível de ser invocado e conhecido na impugnação do ato de liquidação de imposto que lhe é consequente. A não reação contra a classificação e avaliação dos prédios que compõem o empreendimento turístico não tem efeito preclusivo, pelo que, no âmbito da impugnação de um posterior ato de liquidação, aquele vício [erro de classificação matricial] é suscetível de ser invocado, ao abrigo do disposto no artigo 129.º do CIMI e do princípio de impugnação unitária consagrado no artigo 54.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), em articulação com o artigo 99.º do mesmo compêndio legal.

                Este entendimento decorre também do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 410/2015, de 29 de setembro de 2015 que declarou inconstitucional a interpretação que qualificava como ónus, e não como faculdade, a reação judicial contra atos interlocutórios imediatamente lesivos, por consubstanciar a violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do princípio da justiça.

 

                A Requerente juntou 17 documentos, solicitou o aproveitamento da prova produzida no processo arbitral n.º 674/2017-T, que incidiu sobre a mesma factualidade, e requereu prova por inspeção ao estabelecimento turístico.

 

Em 28 de dezembro de 2018, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação à AT em 3 de janeiro de 2019.

 

Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação em 15 de fevereiro de 2019, não se opuseram.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 7 de março de 2019.

 

                Em 8 de abril de 2019, a Requerida juntou o processo administrativo (“PA”) e apresentou Resposta, na qual se defende por exceção e por impugnação.

 

                Em matéria de exceção, a Requerida suscita a incompetência material do Tribunal Arbitral e pede a absolvição da instância, de acordo com o disposto nos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, com base nos seguintes argumentos:

 

(a)          Está em causa a natureza de um prédio, matéria que não é passível de ser discutida em sede arbitral;

 

(b)          A classificação matricial deve ser sindicada de forma independente, em conformidade com o disposto nos artigos 134.º, n.º 3 do CPPT, 129.º e 130.º do Código do IMI, e apresenta-se como um ato pressuposto e autónomo face aos atos de liquidação do imposto, pelo que a Requerente devia, com caráter de obrigatoriedade, ter reclamado administrativamente da mesma;

 

(c)          O meio de reação idóneo contra o indeferimento dessa reclamação, caso viesse a ocorrer, seria a ação administrativa de anulação e de condenação à prática de ato devido, que não cabe nas competências da jurisdição arbitral, pois não comporta a apreciação da legalidade de uma liquidação;

 

(d)          O regime de reclamação de matrizes constante do artigo 130.º do Código do IMI constitui um verdadeiro ónus e não uma mera faculdade, interpretação que não colide com o princípio da tutela jurisdicional efetiva e de acesso ao direito porquanto o pedido de correção da inscrição das matrizes é passível de ser apresentado a todo o tempo. No entanto, nos termos da lei, os efeitos da correção só produzem efeitos a partir do ano da apresentação do pedido de retificação;

 

(e)          Acresce que, mesmo que se admitisse a sindicância no CAAD, não foram esgotados todos os meios graciosos previstos para o procedimento de avaliação, nos termos do artigo 134.º, n.º 7 do CPPT, donde resulta clara a incompetência material do Tribunal Arbitral;

 

(f)           Em síntese, a correção das matrizes não é passível de ser sindicada em jurisdição arbitral porque, nem o artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, nem a Portaria de Vinculação (Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) preveem a apreciação de atos de indeferimento de natureza administrativa-tributária de correção de matrizes cadastrais, cingindo-se à apreciação de atos de liquidação de tributos ou de fixação da matéria tributável, abrangidos pelo meio processual de impugnação judicial, de acordo com o artigo 97.º, n.º 1, alínea a) do CPPT, do qual a ação arbitral constitui meio processual alternativo, nos termos da autorização legislativa constante do artigo 124.º, n.ºs 1, 2 e 4, alínea a) da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril;

 

(g)          Não tendo a Requerente questionado em tempo a classificação e avaliação dos prédios, vertidas em documentos oficiais, não pode vir agora sindicá-las, o que poderia consubstanciar abuso de direito na configuração de venire contra factum proprium;

 

(h)          A interpretação contrária seria inconstitucional por violação do artigo 212.º, n.º 3 da CRP e do direito ao duplo grau de jurisdição, pois o recurso das decisões dos tribunais arbitrais só é admitido a título excecional (artigos 20.º, 268.º, n.º 4 da CRP). Ofenderia, também, no entender da Requerida, os princípios da tutela judicial efetiva e da justiça, para o que apela à jurisprudência do Tribunal Constitucional.

 

                Relativamente ao mérito, a Requerida entende que aplicou corretamente as normas em vigor aos factos (artigos 135.º A a C e F do CIMI), tendo em conta que a afetação dos imóveis foi declarada pela própria Requerente, através do formulário MOD. 129 (Declaração para inscrição ou alteração de inscrição de prédios omissos na matriz), como sendo habitacional, mantendo-se tal declaração, sem ter sido colocada em causa pela Requerente, durante mais de 28 anos.

 

                Assim, segundo a Requerida, dada a declarada afetação habitacional, os imóveis não se encontram excecionados pelo artigo 135.º-B, n.º 2 do CIMI, não merecendo a liquidação impugnada qualquer censura.

 

No que se refere ao pedido de juros indemnizatórios, a AT sustenta que estes não são devidos, por não estarem verificados os respetivos pressupostos legais, uma vez que não se verifica uma ilegalidade que denote o caráter indevido da prestação tributária imputável a erro dos serviços, conforme reclama a previsão do artigo 43.º, n.º 1 da LGT. Considera que a AT se limitou a aplicar as consequências jurídicas que decorrem diretamente da lei.

 

Se não proceder a invocada exceção de incompetência material, a Requerida pugna pela improcedência da ação e absolvição de todos os pedidos. Por fim, a título subsidiário, em caso de procedência da ação, requer, por apelo ao disposto no artigo 280.º, n.º 3 da CRP e no artigo 72.º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional, que seja determinada a notificação ao Ministério Público do Acórdão Arbitral.

 

Em 29 de abril de 2019, após notificação para se pronunciar sobre a matéria de exceção, a Requerente reiterou que o objeto do processo é um ato de liquidação de imposto [AIMI] relativamente ao qual, de acordo com o princípio da impugnação unitária estabelecido no artigo 54.º do CPPT, pode invocar qualquer ilegalidade do procedimento, incluindo o erro na classificação dos prédios na matriz, não exigindo a lei impugnação administrativa (reclamação) prévia como condição de procedibilidade, conforme afirmado em situação idêntica na Decisão do processo arbitral n.º 674/2017-T. Propugna que a exceção seja julgada improcedente.

 

Por despacho de 30 de abril de 2019, o Tribunal Arbitral indeferiu o requerimento de prova por inspeção, por abundante prova documental, relegou o conhecimento da exceção para a decisão final e dispensou, por desnecessária, a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT.

 

Em 6 de maio de 2019, o Tribunal determinou a notificação das Partes para apresentação de alegações facultativas e sucessivas e fixou a data de prolação da decisão arbitral.

 

Ambas as Partes optaram por não apresentar alegações.

 

Foi prorrogado o prazo para prolação da decisão, ao abrigo do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT.

 

II.            SANEAMENTO

 

1.            QUESTÃO PRÉVIA DA INCOMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL ARBITRAL

 

A Requerida suscita a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral, desde logo, por considerar que está em causa a classificação matricial dos prédios e a sua avaliação, sindicáveis como ato administrativo em matéria tributária.

 

As questões suscitadas neste âmbito foram já apreciadas, relativamente aos mesmos sujeitos e factualidade, na Decisão Arbitral respeitante ao processo n.º 674/2017-T, que se acompanha, residindo a única diferença (sem impacto na análise a efetuar) no período a que se refere a liquidação do AIMI, estando aí em causa a liquidação de AIMI de 2017 e nos presentes autos a de 2018.

 

Compulsa-se a fundamentação da citada Decisão Arbitral, cujo teor merece total concordância e ao qual se adere:

 

“A competência dos tribunais é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional. Em sentido concreto ou qualitativo, será a suscetibilidade de exercício pelo tribunal da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa.

 

Os Tribunais Arbitrais estão previstos no artigo 209.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa («CRP»), sendo o âmbito da jurisdição arbitral tributária recortado, em primeira linha, pelo disposto no artigo 2.º do RJAT que enuncia, no seu n.º 1, os correspondentes critérios de repartição material. Aí se determina competir a esta “espécie” de tribunais a apreciação das seguintes pretensões: 

 

«a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.»

 

                Na tese da Requerida, não visando os autos um ato tributário, mas antes um ato administrativo em matéria tributária, o meio processual próprio seria a ação administrativa e não a impugnação judicial, conforme resulta do disposto no artigo 97.º do CPPT. Aliás, nos termos da autorização legislativa em matéria de arbitragem tributária, constante do artigo 124.º, n.º 1 da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial, não sendo possível discutir a natureza de um prédio em sede arbitral.

 

                Nestes termos, segundo a Requerida, dada a delimitação de competência dos Tribunais Arbitrais tributários, efetuada pelo citado artigo 2.º, n.º 1 do RJAT e, de igual modo, pelo artigo 2.º da Portaria de Vinculação, centrada na apreciação de atos tributários (de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte, de pagamento por conta e de fixação da matéria tributável, neste último caso, quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo), estes Tribunais não podem conhecer de pedido que implique a correção ou alteração das matrizes dos prédios em discussão nos autos, pedido que não respeita a um ato tributário de liquidação.

 

                Não se acompanha, porém, esta argumentação. O objeto do presente processo, recortado com clareza logo no proémio do pedido de pronúncia arbitral, respeita somente à «liquidação do adicional ao imposto municipal sobre imóveis (AIMI) na importância de € 125.490,96» […], pretendendo a Requerente a declaração de ilegalidade e anulação de tal ato.

 

                Submete-se à apreciação do Tribunal um ato tributário proprio sensu, de liquidação de imposto, que define de forma unilateral e impositiva a prestação de AIMI da Requerente relativa ao ano 2017. O meio processual adequado à sindicância de atos desta natureza é a impugnação judicial, da qual constitui fundamento qualquer ilegalidade, conforme previsto nos artigos 97.º, n.º 1, alínea a) e 99.º do CPPT, podendo a mesma ancorar-se num erro de classificação das matrizes prediais urbanas.

 

                Interessa notar que a Requerente não questiona em momento algum a avaliação dos prédios cujos VPT’s (ou melhor, cuja soma dos respetivos VPT’s), constituíram a base de incidência do AIMI. Não está em discussão a avaliação daqueles prédios. De igual modo, a Requerente não formula um pedido de correção ou alteração das matrizes prediais, nem o estrito efeito cassatório da pronúncia arbitral poderia permitir a satisfação de um pedido com essa natureza.

 

                É inequívoco que o objeto do processo é um ato de liquidação de AIMI, e o pedido formulado o da declaração de ilegalidade e de anulação desse ato, matéria que cabe na competência da jurisdição arbitral tributária e que, por essa razão, este Tribunal pode conhecer, nos termos do disposto nos citados artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e 2.º da Portaria de Vinculação, soçobrando a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral suscitada pela Requerida.

 

                A Requerida levanta um conjunto de (outras) questões que enquadra sob a veste da exceção de incompetência material, mas que, na verdade, configuram questões prévias de outra natureza.

 

                Começa por referir que a avaliação e classificação matricial devem ser sindicadas de forma independente e se apresentam como um ato pressuposto e autónomo face aos atos de liquidação de AIMI. Configurando um ato imediatamente lesivo, a sua impugnação constitui verdadeiro ónus e não uma mera faculdade. Aduz que não tendo a Requerente, em tempo, usado dos meios de reação próprios, designadamente do pedido de 2.ª avaliação (artigo 76.º do CIMI), da sua impugnação (artigo 77.º do CIMI), da reclamação da matriz (artigo 130.º do CIMI), ou da impugnação dos atos de fixação dos valores patrimoniais (artigo 134.º do CPPT), a avaliação consolidou-se. Assim, aquele ato (de avaliação) não pode ser posteriormente atacado, quando da correspetiva liquidação de imposto.

 

                Acrescenta que mesmo que se admitisse a sindicância no CAAD, não foram esgotados todos os meios graciosos previstos para o procedimento de avaliação, nos termos do artigo 134.º, n.º 7 do CPPT, “donde [na conceção da Requerida] resulta clara a incompetência material do tribunal arbitral”.

 

                Identificamos diversos problemas nesta construção. Desde logo, no que se refere à necessidade de sindicância autónoma da avaliação, porquanto se trata de matéria que não integra a causa de pedir da Requerente não sendo, em parte alguma, referido ou invocado qualquer vício referente à avaliação, nem questionado o VPT apurado pelo respetivo procedimento, pelo que constitui um tema alheio ao discutido nos presentes autos.

 

                […]

 

                A questão prende-se tão-só com a classificação matricial dos prédios urbanos na titularidade da Requerente e que esta alega ser errónea, por não corresponder à sua finalidade e afetação efetivas – que é de serviços – e não, como consta das matrizes, residencial ou habitacional.

               

                No que se refere à alegada necessidade de esgotamento dos meios graciosos previstos no procedimento de avaliação, determinada no artigo 134.º, n.º 7 do CPPT, interessa relembrar que o âmbito de projeção da norma em apreço se limita à impugnação de atos de fixação dos valores patrimoniais ou a incorreções nas inscrições matriciais dos valores patrimoniais, que não é seguramente a situação objeto dos presentes autos arbitrais, em que está sindicado um ato de liquidação de AIMI cuja alegada invalidade não se prende com vícios na fixação de valores patrimoniais ou na inscrição matricial destes valores.

 

                Porém, mesmo que assim se entendesse, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo («STA») tem interpretado que esta exigência (de esgotamento dos meios graciosos previstos no procedimento de avaliação) não é de fazer, sendo portanto dispensável, nos casos em que a impugnação não se funde na errónea fixação do valor patrimonial ou, dito de outro modo, «em que o sujeito passivo não discorda da quantificação do valor patrimonial», como sucede na situação vertente – cf. Acórdãos do STA nos processos n.º 1101/13, de 15 de janeiro de 2014; n.º 311/11, de 19 de outubro de 2011; n.º 4/08, de 16 de abril de 2008, e n.º 968/02, de 6 de novembro de 2002.

 

                No Acórdão proferido no proc. n.º 930/13, de 2 de março de 2016, numa situação em que estava em causa saber se a liquidação (nesse caso de IMI) poderia ser objeto de impugnação com base em erro declarativo (erro / vício da própria declaração que serviu de base à declaração para inscrição na matriz), sem que tivesse sido validamente deduzido pedido de segunda avaliação , ponto com manifesto paralelismo com a situação aqui em apreciação, o STA entendeu, em linha com o supra exposto que:

 

«(…) o resultado final da avaliação ganha autonomia do ponto de vista impugnatório em face do que dispõe o artº 77º do CIMI entendendo-se que a falta de impugnação do resultado de avaliação nos termos do artº 77º do CIMI e 134º do CPPT faz com que se forme caso decidido quanto ao valor da avaliação, embora não sane as eventuais ilegalidades dos atos anteriores ao processo de avaliação (assim se decidiu no ac. deste STA de 04/12/2013 tirado no recurso nº 0877/13).

E, por isso se tem entendido que, na impugnação do ato final consubstanciado nas liquidações de IMI, não está o contribuinte impedido de pedir a apreciação de qualquer ilegalidade dos atos preparatórios de tais liquidações adicionais pelo facto de não ter impugnado o ato destacável de avaliação.

E, tudo visto e ponderado entendemos que no caso dos autos o contribuinte não sindica o quantitativo da avaliação patrimonial efetuada mas antes e, como o próprio refere, o problema em apreço não se esgota unicamente com uma mera discordância do valor patrimonial tributário e do processo de avaliação. O problema não está na quantificação da «matéria coletável» em si mesmo, mas antes no erro de declaração evidenciado, segundo diz, nas plantas do próprio edifício. Há um ato subjacente à avaliação que é posto em crise pela impugnante.

A questão do erro declarativo na inscrição matricial reconduz-se a uma questão sobre os pressupostos prévios à liquidação e a ocorrência de eventual erro declarativo pode ser invocada na altura em que o foi, ou seja após a 1ª avaliação.

(…)

Na linha do que vimos expressando cumpre concluir que na impugnação deduzida do ato de liquidação do IMI após avaliação para efeitos de fixação do valor patrimonial, podem ser alegadas e apreciadas as pretensas ilegalidades resultantes da inscrição oficiosa na matriz de determinada realidade física como prédio.»

 

                Por outro lado, no tocante ao procedimento de reclamação das matrizes previsto do artigo 130.º do CIMI, convém assinalar que a lei não faz depender a impugnação judicial da sua prévia utilização, configurando uma reclamação facultativa.  Dispõe o sobre esta matéria o artigo 185.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo («Novo CPA») [4aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT] no sentido de que «[a]s reclamações e os recursos são necessários ou facultativos, conforme dependa, ou não, da sua prévia utilização a possibilidade de acesso aos meios contenciosos de impugnação ou condenação à prática de ato devido» e, de acordo com o n.º 2 do mesmo artigo, «têm caráter facultativo, salvo se a lei os denominar como necessários». 

 

                Não sendo uma reclamação necessária, pois a lei não a denomina como tal, a adoção do mecanismo do artigo 130.º do Código do IMI não constitui condição necessária à abertura da via contenciosa, pelo que não se verifica a omissão de pressuposto processual que obste ao conhecimento do mérito o qual, neste caso não seria de incompetência material, como qualificado pela Requerida, mas de inimpugnabilidade do ato – cf. artigo 89.º, n.º 4, alínea i) do CPTA [5aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT]. Por outro lado, podendo os sujeitos passivos reclamar das incorreções nas inscrições matriciais a todo o tempo, não tem cabimento a invocação da estabilidade ou incontestabilidade inerente à figura do caso decidido ou do caso resolvido.

               

                A Requerida apela também à exceção ao regime regra da impugnação unitária que rege o contencioso tributário, expresso no artigo 54.º do CPPT, e defende que este princípio é inaplicável à situação vertente, em virtude de estarmos perante um ato pressuposto e autónomo face ao ato de liquidação de AIMI.

 

                Dispõe a citada norma:

 

«Artigo 54.º

Impugnação unitária

                 Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são suscetíveis de impugnação contenciosa os atos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.»

 

                 Constata-se que, de acordo com o texto legal, a disciplina regra no contencioso tributário é a de só ser «possível, em princípio, impugnar o ato final do procedimento tributário, dado que só esse ato atinge ou lesa, imediatamente, a esfera jurídica do contribuinte, sendo que no contencioso tributário o critério da impugnabilidade dos atos é o da sua lesividade objetiva, imediata, atual e não meramente potencial» – cf. Acórdãos do STA, processos n.º 1032/09, de 23 de junho de 2010, e n.º 1361/13, de 23 de outubro de 2013.

 

                Assim, eventuais ilegalidades dos atos interlocutórios do procedimento tributário só podem ser suscitadas quando da impugnação apresentada contra o ato final do procedimento, que consubstancie um ato decisório lesivo dos direitos e interesses legalmente protegidos do sujeito passivo.

 

                São, todavia, duas as exceções introduzidas pelo mencionado artigo 54.º do CPPT ao regime regra descrito. A primeira exceção respeita a atos interlocutórios relativamente aos quais a lei disponha expressamente em sentido diferente, i.e., os chamados «atos destacáveis», que na falta de imediata impugnação se fixam na ordem jurídica, ficando precludido o direito ou a faculdade processual de posteriormente discutir a sua legalidade – cf. Acórdão do STA, proc. n.º 1032/09. Para tanto, é necessário que exista norma expressa nesse sentido, o que não se verifica na situação sub iudice.

 

                Quanto a este ponto, conclui-se, por conseguinte, que a inscrição dos prédios na matriz com uma determinada classificação – errónea – relativa à espécie de prédios urbanos em causa não constitui um ato destacável na aceção do artigo 54.º do CPPT.  Solução diversa poderia suscitar-se se o tema que estivesse em discussão nos autos fosse o próprio ato de avaliação patrimonial, qualificável como ato destacável e com autonomia para efeitos de impugnação. No entanto, como acima salientado, tal ato não foi questionado nem a Requerente invoca qualquer vício atinente ao mesmo como causa de pedir anulatória do ato de liquidação de AIMI objeto destes autos. 

 

                A segunda exceção refere-se aos atos que, sendo interlocutórios, ou seja, inseridos no procedimento tributário e anteriores à decisão final, revistam lesividade imediata. Nestes casos, abre-se a possibilidade da sua impugnação direta, sem prejuízo, no entanto, de a sua ilegalidade poder ser suscitada ulteriormente na impugnação que venha a ser deduzida contra o ato final (v.g. de liquidação do imposto).

 

                Nestas circunstâncias, o facto de o ato interlocutório lesivo não ser impugnado autonomamente não impede que os vícios de que o mesmo padeça constituam fundamento da impugnação da decisão final do procedimento, inexistindo o efeito preclusivo que a Requerida invoca. Vejam-se a este propósito, a título meramente exemplificativo, os Acórdãos do STA nos processos n.º 0312/15, de 29 de março de 2017, e n.º 1685/13, de 8 de janeiro de 2014, dispondo-se, neste último que «eventuais ilegalidades praticadas nos atos prévios ao de fixação do valor patrimonial tributário do prédio, como o de inscrição oficiosa na matriz de determinada realidade física como prédio, podem ser objeto de impugnação autónoma – através de ação administrativa especial – ou invocadas em impugnação de ato tributário ou em matéria tributária posterior, como o de segunda avaliação».

 

                Na interpretação que fazemos do artigo 54.º do CPPT, o parâmetro normativo nuclear continua a ser o da impugnação unitária do ato final (decisório) do procedimento, mantendo-se excecional o ónus de impugnação autónoma. A citada norma limita-se a alargar, nesta segunda exceção, a possibilidade da impugnação a um momento que antecede o da decisão, tendo em vista uma maior proteção e tutela do contribuinte, permitindo-lhe que reaja de imediato contra um ato lesivo, podendo, deste modo, não só defender-se, como eventualmente prevenir uma decisão final desfavorável e não, como resultaria da interpretação da Requerida, coartar as garantias de defesa daquele, com a atribuição de um efeito preclusivo que não seria proporcionado, desde logo, atentas as dificuldades e dúvidas que se suscitam na identificação e qualificação de um ato como «imediatamente lesivo».

 

                Em síntese, de acordo com o princípio da impugnação unitária estabelecido no artigo 54.º do CPPT, a Requerente pode invocar no pedido arbitral qualquer ilegalidade do procedimento tributário, incluindo o erro na classificação dos prédios na matriz, não exigindo a lei impugnação administrativa prévia, como condição de procedibilidade, nem se produzindo o efeito preclusivo que a Requerida invoca (caso decidido/caso resolvido) . Deste modo, improcede a defesa por exceção deduzida por esta.

 

                A Requerida suscita ainda a desconformidade constitucional desta interpretação do artigo 54.º do CPPT, apesar de ser aquela que tem sido consensualmente adotada pelo STA, de harmonia com a jurisprudência supra enunciada.

               

                Começa-se pela análise da suscitada violação da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais (artigo 212.º, n.º 3 da CRP). Os Tribunais Arbitrais tributários, também contemplados no artigo 209.º, n.º 2 da Lei Fundamental, têm uma competência concorrente à dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que legitimamente e de acordo com a livre margem de conformação do legislador ordinário (materializada no artigo 2.º do RJAT), lhes atribuiu jurisdição para decidir litígios a que corresponda a forma processual de impugnação judicial e que versem sobre atos tributários de liquidação de imposto (sem prejuízo das restrições que constam dos artigos 2.º e 3.º da Portaria de Vinculação, designadamente no que se refere a algumas pretensões específicas, como sejam as respeitantes a direitos aduaneiros, e ao valor dos litígios).

 

                Tratando-se de duas categorias de jurisdição reconhecidas pela Constituição e enquadrando-se a delimitação da respetiva competência na margem de conformação do legislador não pode acolher-se a tese da apontada inconstitucionalidade.

 

                Relativamente à invocada violação do direito ao duplo grau de jurisdição, entendido como a possibilidade de recurso ordinário das decisões jurisdicionais, interessa assinalar que a ausência de recurso ordinário é uma propriedade inerente aos processos arbitrais, e consta do respetivo regime legal (RJAT), ao qual a Requerida se vinculou validamente, através da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. Desta forma, consubstanciaria um verdadeiro «venire contra factum proprium» que a Requerida, tendo acedido voluntariamente submeter-se à jurisdição arbitral, configurada com uma única instância e, portanto, desprovida de recurso ordinário, viesse posteriormente, na pendência de um processo, incumprir o acordo dado à mesma, invocando o princípio da tutela jurisdicional efetiva.

                Acresce notar que o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva é compatível com a sobejamente conhecida figura da renúncia ao recurso, com assento no artigo 632.º do Código de Processo Civil (“CPC”), porquanto ela deriva da vontade, validamente manifestada, pelas partes que intervêm no litígio, sendo lícito a essas partes renunciar aos recursos, com produção de efeitos, em caso de renúncia antecipada, se esta provier de ambas as partes, como sucede em caso de “adesão” à jurisdição arbitral tributária. De novo, não se pode acolher a tese da inconstitucionalidade.

 

                Pelo contrário, o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da desconformidade constitucional da interpretação que a AT preconiza, no Acórdão n.º 410/2015, de 29 de setembro de 2015.

 

                Com efeito, sobre a questão de saber se «a imposição, sem base legal adequada, do ónus de impugnação judicial autónoma e imediata de um ato interlocutório lesivo (…), em termos de a invocação dos vícios próprios de tal ato se tornar impossível no âmbito da decisão final do procedimento tributário» respeita os parâmetros constitucionais da tutela judicial efetiva e da justiça, este Tribunal decidiu que tal interpretação do artigo 54.º do CPPT desprotege gravemente os direitos do contribuinte julgando-a inconstitucional.

 

                Este entendimento não é contrariado pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 718/2017, de 15 de novembro de 2017. Neste último aresto, discute-se uma situação com propriedades distintas das que presidem ao erro declarativo na classificação dos prédios, no ato de inscrição na matriz, e que é relativa a atos decisórios de pedidos de reconhecimento de benefícios fiscais (no domínio de benefícios fiscais dependentes de reconhecimento), não enquadráveis como atos interlocutórios.

 

                Com efeito, no Acórdão n.º 718/2017, o Tribunal Constitucional, relativamente aos atos decisórios de pedidos de reconhecimento de benefícios fiscais, admite a sua qualificação como «atos tributários autónomos», em face da natureza constitutiva desse reconhecimento e não meramente declarativa. Deste modo, parte do pressuposto que tais atos não integram o procedimento de liquidação do imposto como «atos preparatórios», mesmo que destacáveis, sendo antes «atos pressuposto», seguindo JOSÉ CASALTA NABAIS, «A impugnação unitária do ato tributário», in Cadernos de Justiça Tributária, n.º 11, Janeiro-Março 2016, pp. 18 e 19.

 

                A jurisprudência do STA tem decidido que nestas circunstâncias a não impugnação (autónoma) judicial dos atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento de benefícios fiscais impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto – cf. Acórdão do STA no proc. n.º 459/14, de 18 de novembro de 2015.

               

                Concluindo o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 718/2017, que esta interpretação – relativa a «atos pressuposto» e não a «atos interlocutórios» – não viola o princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 268.º, n.º 4 da CRP), sem prejuízo de não ser a mais garantística, i.e., a que confere ou assegura maior nível de proteção aos particulares.

 

                Porém, na situação em análise nos presentes autos, não estamos perante um ato tributário autónomo, um ato pressuposto de efeitos constitutivos, mas de um ato interlocutório, de natureza declarativa. A solução que a lei (ordinária) postula num caso e noutro é distinta, como distintas são as propriedades que caracterizam os atos interlocutórios e os atos pressupostos, mantendo-se plenamente válido o juízo de desvalor que o Acórdão n.º 410/2015 do Tribunal Constitucional, acima mencionado, formula relativamente à desconformidade da interpretação que a AT advoga do artigo 54.º do CPPT, no âmbito dos atos interlocutórios do procedimento tributário, sendo este preceito de interpretar e aplicar em conformidade com a Constituição, no sentido preconizado pela Requerente, de aplicabilidade do princípio da impugnação unitária, com a consequente improcedência da exceção suscitada pela Requerida.”

 

Acresce salientar que não é de acolher a alegação da Requerida no sentido de qualificar a atuação da Requerente como enquadrável no instituto do abuso de direito, pois não foi alegada nem se identifica factualidade passível dessa qualificação, nem se pode sufragar a posição de que o incorreto enquadramento matricial por parte do contribuinte deva sujeitá-lo à incidência de imposto cujos pressupostos não estejam previstos na lei.

 

Pelas razões expostas na Decisão Arbitral n.º 674/2017-T acima transcritas, que se subscrevem na íntegra, deve julgar-se improcedente a questão prévia de incompetência material do Tribunal Arbitral suscitada pela Requerida, concluindo-se que este Tribunal foi regularmente constituído e, atenta a conformação do objeto do processo, é competente em razão da matéria para conhecer do ato de liquidação de AIMI relativo a 2018, de acordo com o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT e 2.º e 3.º da Portaria de Vinculação.

 

2.            DEMAIS PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

 

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

 

III.          FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

1.            MATÉRIA DE FACTO PROVADA

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

A.           A..., LDA., aqui Requerente, é proprietária de um acervo de prédios urbanos composto por 77 moradias em banda e 55 apartamentos em ladeira (no total de 132 unidades de alojamento), situados na ..., freguesia de ... e concelho de Loulé, que integram o empreendimento turístico B..., implantado no ... da ...– cf. documentos 1, 2 e 4 juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral (ppa) e PA.

 

B.            A partir de 1989, foi sendo solicitada pelo sócio da Requerente, C..., junto dos serviços da Requerida, a inscrição dos referidos prédios na matriz, mediante submissão dos correspondentes formulários Mod. n.º 129 – “Declaração para inscrição ou alteração de inscrição de prédios urbanos na matriz”, dos quais consta tratar-se de prédios destinados a habitação – cf. PA. 

 

C.            A abertura do empreendimento turístico B... procedeu de autorização da então Direção-Geral do Turismo, concedida em fevereiro de 1993, após vistoria efetuada ao estabelecimento, nos termos e para os efeitos do disposto no 4.º do Decreto-lei n.º 328/86, de 30 de setembro – cf. documento 15 junto com o ppa.

 

D.           Por despacho do Secretário de Estado do Comércio e do Turismo, de ... de novembro de 199..., foi atribuída a utilidade turística, a título definitivo, ao aldeamento turístico de 1.ª categoria B...– cf. documentos 16 e 17 juntos com o ppa.

 

E.            Em dezembro de 2001, na sequência de alterações legislativas, o empreendimento foi reclassificado como aldeamento turístico de 4 estrelas – cf. documentos 15 e 4 juntos com o ppa.

 

F.            Em julho de 2010, o empreendimento foi reconvertido pelo Turismo de Portugal, I.P., nos termos e para os efeitos do artigo 75.º, n.º 2 do Decreto-lei n.º 39/2008, de 7 de março, com a tipologia (aldeamento turístico) e categoria (quatro estrelas) que lhe tinham sido atribuídas ao abrigo do regime anterior, mantendo-se a validade e eficácia do título de abertura que a Direcção-Geral do Turismo concedeu inicialmente ao abrigo do Decreto-lei n.º 328/86 – cf. documento 4 junto com o ppa.

 

G.           Todos os prédios urbanos referidos na alínea A supra compõem o empreendimento B... e estão afetos a serviços de alojamento turístico, cada um integrando uma ou mais unidades de alojamento, num total de 132, com piscina ou jacúzi, funcionalmente distintas e independentes entre si, equipadas e prontas a ocupar e utilizar, com serviço diário de arrumação e limpeza, reposição de toalhas, roupas de cama e consumíveis de higiene pessoal – cf. documentos 3, 4, 5 e 6 juntos com o ppa.

 

H.           O empreendimento turístico B... é ainda composto por infraestruturas e equipamentos de apoio complementar, como receção, bar, piscinas, exterior e interior, spa, ginásio, parque infantil, cabeleireiro, salão de jogos e espaços comuns de descanso, sendo prestados outros serviços acessórios na área do desporto, lazer, alimentação – cf. documentos 5 e 6 juntos com o ppa.

 

I.             O empreendimento turístico B... oferece exclusivamente serviços de alojamento de tipo hoteleiro – cf. documentos 3, 4, 7, 8 e 15 a 17 juntos com o ppa e PA.

 

J.             Toda a área do ... em que se acha implantado o B..., incluindo todo o edificado referido na alínea A supra, tem enquadramento urbanístico no Plano de Urbanização da ... e está abrangida, para efeitos de uso e ocupação do solo, por uma subunidade ou zona SUT, cujo uso principal exclusivo é turístico – cf. documentos 7 a 14 juntos com o ppa.

 

K.            A Requerente foi notificada do ato de liquidação de AIMI, emitido sob o n.º 2017..., datado de 30 de junho de 2018 e referente ao mesmo ano, no valor de € 125.490,96, resultante da aplicação da taxa de 0,4% à base de incidência de € 31.372.740, correspondente à soma dos valores patrimoniais tributários (“VPT”) de 120 prédios urbanos [que compreendem 132 unidades de alojamento] referidos na alínea A supra, melhor identificados no ato de liquidação, e que constituem os prédios urbanos na titularidade da Requerente que integram o empreendimento B... . A base legal invocada no ato de liquidação em apreço foram os artigos 135.º-C, n.º 1 e 135.º-F, n.º 1, ambos do Código do IMI – cf. documento 2 junto com o ppa.

 

L.            A Requerente procedeu ao pagamento da liquidação de AIMI no montante de € 125.490,96 em 26 de setembro de 2018 – cf. documento 1 junto com o ppa e PA.

 

M.          Até à data da liquidação controvertida de AIMI (2018), os prédios que integram o empreendimento B... encontravam-se inscritos na matriz com afetação habitacional – cf. PA e documento 2 junto com o ppa. 

 

N.           Em discordância com a liquidação de AIMI acima identificada, em 27 de dezembro de 2018, a Requerente apresentou no CAAD o pedido de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Com relevo para a decisão não existem factos que devam considerar-se não provados.

 

3.            MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos por ambas as Partes e nas posições por estas assumidas em relação aos factos essenciais, que são coincidentes.

 

                O aproveitamento da prova testemunhal produzida no processo n.º 674/2017-T não se revelou determinante uma vez que os factos pertinentes se encontram provados por documentos.

 

 

IV.          APRECIAÇÃO DO MÉRITO

 

A questão fundamental a apreciar prende-se com a alegação, pela Requerente, de vício material por erro nos pressupostos na aplicação do regime do artigo 135.º-B do Código do IMI, em virtude de estarem reunidos os pressupostos de exclusão da incidência do AIMI previstos no n.º 2 do citado preceito legal, em concreto pelo facto de os prédios urbanos detidos pela Requerente serem exclusivamente afetos à atividade de prestação de serviços de alojamento de tipo hoteleiro, não tendo afetação habitacional, contrariamente ao que consta, por erro, das respetivas matrizes prediais.

 

                Interessa assinalar a este respeito que a  incidência objetiva do AIMI é recortada sobre “a soma dos valores patrimoniais tributários dos prédios urbanos situados em território português de que o sujeito passivo seja titular”, em conformidade com o disposto no artigo 135.º-B, n.º 1 do Código do IMI, excluindo-se, porém, de acordo com a previsão da norma de delimitação negativa de incidência prevista no n.º 2 do citado artigo 135.º-B, os “prédios urbanos classificados como «comerciais, industriais ou para serviços» e «outros»”, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, alíneas b) e d) daquele Código.

 

                A Requerente suporta-se em múltiplas Decisões Arbitrais que se pronunciam sobre idêntica matéria: de 15 de outubro de 2018, processo n.º 695/2017-T; de 2 de agosto de 2018, processo n.º 674/2017-T; de 16 de julho de 2018, processo n.º 666/2017-T; de 5 de maio de 2017, processo n.º 409/2016-T; de 31 de março de 2017, processo n.º 291/2016-T; de 9 de março de 2016, processo n.º 556/2015-T; e de 5 de junho de 2015, processo n.º 741/2014-T.

               

                Conforme argumentação expendida no processo n.º 674/2017-T, acima citado, a solução de exclusão de tributação dos prédios com afetação não habitacional remonta à anterior verba 28 da Tabela Geral do Imposto do Selo (“TGIS”), antepassado próximo do AIMI, alicerçada em opções de política económica de não agravamento da fiscalidade do setor produtivo.

 

                O Tribunal Constitucional, acolhendo a posição de JOSÉ MARIA FERNANDES PIRES, refere a este respeito que “a aplicação do imposto aos prédios com afetação a habitação e a terrenos para construção em que esteja prevista ou aprovada a construção de habitação, revela intenção de não onerar o sector produtivo e as empresas em geral. Na verdade, os prédios afetos a atividades empresariais, nomeadamente comércio, serviços ou atividade industrial, podem alcançar um valor superior a um milhão com relativa facilidade, sem que esse facto possa revelar uma relevância em termos de riqueza idêntica à que revelam os que têm afetação à habitação com o referido valor” – cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 692/2016, de 14 de dezembro de 2016.

 

                Preocupação de desoneração do setor produtivo que continuou a ser acautelada pelo legislador do AIMI que, sem prejuízo de introduzir, em nome de uma maior equidade fiscal, um elemento progressivo de base pessoal, tributando de forma mais elevada os patrimónios imobiliários mais avultados, continuou a evitar o seu impacto na atividade económica, através da exclusão da incidência de prédios rústicos, mistos e outros utilizados como fatores de produção – comerciais, industriais e de serviços – em conformidade com o Relatório do Orçamento de Estado para 2017, para a Estratégia de Promoção do Crescimento Económico e de Consolidação Orçamental, p. 60 .

 

                Resulta do exposto que o legislador fiscal manteve a exclusão de tributação que provinha da verba 28 da TGIS, relativamente aos prédios urbanos diretamente afetos a atividades produtivas, nas quais não podem deixar de se incluir a exploração hoteleira e turística.

 

                A Requerente, apesar de ter declarado erroneamente os prédios urbanos que compõem o empreendimento B... como destinados a fins habitacionais, demonstrou que estes prédios não têm fins residenciais, pois fazem parte integrante de um empreendimento turístico aberto ao público que fornece exclusivamente, desde a data de abertura, que remonta a 1993, serviços de alojamento do tipo hoteleiro e serviços conexos de desporto e lazer.

 

                Feita essa prova, o ato de liquidação de AIMI viola a norma delimitadora negativa da incidência material ou objetiva, que consta do artigo 135.º-B, n.º 2 do Código do IMI, que exclui deste imposto os prédios classificados como “comerciais, industriais ou para serviços” e “outros”, referidos nas alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 6.º do Código do IMI.

 

                Importa relembrar que a incidência do imposto, no que tange aos imóveis urbanos, está associada à destinação real e objetiva que é dada aos mesmos, independentemente do que venha a constar da inscrição matricial, pelo que, cabendo a factualidade apurada no âmbito normativo da alínea b) do n.º 1 do art.º 6.º do CIMI, e não no definido na alínea a) do mesmo número, não pode a situação tributária deixar de ser aferida em função desta última norma, pois tal corresponderia a tratar indistintamente as duas normas para efeitos de incidência do imposto.

 

                É certo que o erro na classificação matricial dos prédios em causa, enquadrados na espécie “habitacionais” em vez de “para serviços”, pode ser inicialmente imputável à Requerente, pois deriva das declarações de inscrição na matriz, efetuadas pelo seu sócio através do formulário MOD. 129; contudo, não pode obnubilar-se que a AT dispõe de poderes para promover oficiosamente as incorreções matriciais e que, in casu, nunca o fez. 

 

                Em todo o caso, manifestando-se a inequívoca afetação exclusiva dos imóveis a serviços e, portanto, a uma atividade produtiva, condição de exclusão da incidência objetiva de AIMI, não estão reunidos os pressupostos legais de tributação da Requerente em sede deste imposto, pelo que o ato tributário de liquidação de AIMI impugnado, relativo ao ano 2018, padece de vício substantivo, por erro nos pressupostos, e deve ser anulado, com a consequente restituição da prestação tributária de AIMI paga em excesso.

 

                JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

                O direito a juros indemnizatórios alicerça-se no artigo 43.º da LGT que, no seu n.º 1, o faz depender da determinação de que houve erro imputável aos serviços, do qual tenha resultado o pagamento de prestação tributária superior à legalmente devida.

 

                Resulta do adquirido processual que a errónea classificação dos prédios nas matrizes – como “habitacionais” ao invés de “para serviços” – se ficou a dever às declarações do sócio da Requerente, aquando da inscrição dos prédios, e que a própria Requerente ao longo das últimas décadas (quase 30 anos) nunca promoveu a correção deste erro que lhe é, desta forma, imputável.

 

                A AT procedeu à liquidação do AIMI à Requerente com base nos elementos de que dispunha, declarados pelo (sócio do) sujeito passivo, procedimento que não merece censura.

 

                Deste modo, a liquidação indevida do AIMI teve origem num erro do próprio sujeito passivo e não da AT, improcedendo por essa razão o pedido de condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios, atenta a falta de comprovação dos pressupostos constitutivos desse direito, designadamente no que se refere à determinação de erro imputável aos serviços.

* * *

               

                A Requerida solicita, ao abrigo do disposto nos artigos 280.º, n.º 3 da CRP e 72º, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional, que seja determinada a notificação ao Ministério Público do Acórdão Arbitral. No entanto, a situação dos presentes autos arbitrais não tem enquadramento nas normas em apreço, pois não foi desaplicada qualquer norma ou segmento de norma por inconstitucionalidade, pelo que vai indeferido este pedido da Requerida. 

 

* * *

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras ou, em qualquer caso, cuja apreciação seria inútil – cf. artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

                EM SÍNTESE

 

Pelos motivos expostos, conclui-se pela ilegalidade do ato tributário de liquidação de AIMI impugnado, por violação da norma de exclusão de incidência constante do artigo 135.º-B, n.º 2 do Código do IMI, o que determina a sua anulação, em conformidade com o disposto no artigo 163.º do novo CPA, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT.

 

V.           DECISÃO

 

                De harmonia com o que foi exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:

 

(a)          Julgar improcedente a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral deduzida pela Requerida;

 

(b)          Julgar procedente o pedido de anulação do ato de liquidação de AIMI referente ao ano 2018, no valor de € 125.490,96, com a consequente restituição da importância paga à Requerente;

 

(c)          Julgar improcedente o pedido de condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 125.490,96 correspondente à liquidação de AIMI em crise – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

VII.         CUSTAS

 

                Custas no montante de € 3.060,00, sendo € 2.938,00 a cargo da Requerida e € 122,00 a cargo da Requerente, em razão do proporcional decaimento (respetivamente 96% e 4% ), em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 26 de setembro de 2019

 

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

Alexandra Coelho Martins

António Alberto Franco

Olívio Mota Amador