Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 673/2019-T
Data da decisão: 2021-01-04  IRC  
Valor do pedido: € 127.190,51
Tema: IRC – Gastos com financiamentos a entidades relacionadas.
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SUMÁRIO:

À luz do art.º 23.º, n.ºs 1 e 2/c) do CIRC, na redacção introduzida em 2014, a dedutibilidade dos encargos com financiamentos suportados, decorrentes de suprimentos e prestações suplementares efectuados a favor das empresas relacionadas, dependerá do facto de tais financiamentos contribuírem para, segundo regras normais de gestão, incrementar a expectativa de benefícios futuros ou para manter a fonte produtora.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 07 de Outubro de 2019, A..., S.A. , NIPC..., com sede no ..., ..., n.º..., ..., Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2019..., da liquidação de juros compensatórios n.º 2019... e da demonstração de acerto de contas n.º 2019..., referente ao ano de 2015, no valor de €172.190,50.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese:

i.             violação do artigo 23.º do Código do IRC;

ii.            incumprimento do ónus probatório que cabia à AT de demonstração dos factos que fundamentam as corecções efectuadas, em violação do disposto no artigo 74.º da LGT;

iii.           inconstitucionalidade do artigo 23.º do Código do IRC por violação dos princípios da capacidade contributiva, da tributação das empresas segundo o seu rendimento real, igualdade, proporcionalidade, adequação, justiça fiscal e da liberdade de condução do negócio quando interpretado e aplicado nos termos em que o fez a AT;

iv.           erro na consideração do EBITDA no valor de €6.971.529,78, sendo que, em seu entender, o EBITDA fiscal correctamente apurado ascende a €7.117.915,67;

v.            erro na consideração dos gastos de swap incorridos pela Requerente, no período de tributação de 2015, no que diz respeito à aplicação do limite estipulado no artigo 67.º, n.º 1 do Código do IRC;

vi.           ilegalidade da correcção efectuada pela AT, porquanto desconsiderou a existência de excesso de limite de EBITDA não utilizado nos períodos de tributação anteriores.

 

3.            No dia 08-10-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 29-11-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 02-01-2020.

 

7.            No dia 05-02-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            No dia 20-10-2020, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foi inquirida a testemunha, no acto, apresentada pela Requerente.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            A Requerente é uma sociedade anónima de capitais privados, com fins lucrativos que exerce, a título principal, a actividade de “promoção imobiliária (desenvolvimento de projectos de edifícios) a que corresponde o CAE 41100 e, a título secundário, a actividade de arrendamento de bens imobiliários, a que corresponde o CAE 68200.

2-            A Requerente tem como objecto social a “gestão de imóveis próprios. Subsidiariamente, compra de prédios ou terrenos e desenvolvimento das respectivas urbanizações”.

3-            No âmbito da sua actividade económica, a Requerente é proprietária e explora comercialmente o prédio urbano, composto por edifício de seis caves e doze pisos sito na ..., n.º..., em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º..., da freguesia de ... .

4-            O edifício designado por “B...”, é constituído por uma galeria comercial (composta por 78 lojas e por um “food court”), escritórios e parques público e privado de estacionamento, num total de 832 lugares de estacionamento.

5-            Para financiar a construção do B..., a Requerente celebrou, em 15-05-1996, um contrato de abertura de crédito com o Banco C..., o Banco D... e o Banco E... .

6-            Ao abrigo desse contrato, foi concedido à Requerente um empréstimo no montante de até 6.000.000.000$00 (€ 29.927.873,82), distribuídos do seguinte modo:

•             Banco C...: 2.000.000.000$00 (€ 9.975.957,94);

•             Banco D...: 2.000.000.000$00 (€ 9.975.957,94);

•             Banco E...: 2.000.000.000$00 (€ 9.975.957,94).

7-            Este financiamento concedido pelo Banco C..., Banco D... e Banco E...(doravante, “Sindicato Bancário”) destinava-se “exclusivamente a assegurar os meios financeiros complementares necessários para a A... construir e efetuar a comercialização, mediante venda, arrendamento, e cessão temporária, a título oneroso, de frações e espaços do Edifício [B...], no ..., em Lisboa” (cf. cláusula 5.ª do contrato de abertura de crédito).

8-            Entre outras obrigações, a Requerente comprometeu-se, perante o Sindicato Bancário, a:

a)            Assegurar a obtenção de novos financiamentos ou por outros meios tidos por convenientes para que sempre tivesse os fundos necessários para concluir a construção do B...;

b)           Submeter a aprovação do Plano de Marketing e de Comercialização do B...;

c)            Submeter e manter atualizadas apólices de seguros relativas ao B...;

d)           Obter autorizações e licenças de utilização necessárias para que o B... servisse como edifício de comércio, escritórios e estacionamentos;

e)           Não constituir garantias a favor de terceiros que onerassem os seus ativos, bem como os seus créditos e rendimentos, sem prévia autorização do Sindicato Bancário;

f)            Não conceder empréstimos aos seus acionistas antes de efetuar o pagamento integral das obrigações para si resultantes deste financiamento

9-            Este contrato de financiamento vigoraria durante o prazo de 150 meses (10 anos e 3 meses) a contar da data da primeira utilização (cf. cláusula 7.ª).

10-         Em 15-09-1999, a Requerente celebrou um novo contrato de abertura de crédito com o Banco de Investimento Imobiliário.

11-         Ao abrigo desse contrato, o Banco C... concedeu à Requerente um empréstimo no montante de até 1.000.000.000$00 (€ 4.987.978,97) (cf. cláusula 3.ª).

12-         Este financiamento destinava-se “exclusivamente a assegurar os meios financeiros complementares necessários para a A... concluir a construção e efetuar a comercialização, mediante venda, arrendamento, e cessão temporária, a título oneroso, de frações e espaços do Edifício [B...], no ..., em Lisboa” (cf. cláusula 4.ª).

13-         Entre outras obrigações, a Requerente comprometeu-se, perante o Banco C... a:

a)            Assegurar a obtenção de novos financiamentos ou por outros meios tidos por convenientes para que sempre tivesse os fundos necessários para concluir a construção do B...;

b)           Submeter ao Banco de Investimento Imobiliário a aprovação do Plano de Marketing e de Comercialização do B...;

c)            Submeter e manter atualizadas apólices de seguros relativas ao B...;

d)           Obter autorizações e licenças de utilização necessárias para que o B... servisse como edifício de comércio, escritórios e estacionamentos;

e)           Não constituir garantias a favor de terceiros que onerassem os seus ativos, bem como os seus créditos e rendimentos, sem prévia autorização do Banco C...;

f)            Não conceder empréstimos aos seus acionistas antes de efetuar o pagamento integral das obrigações para si resultantes deste financiamento.

14-         Este contrato de financiamento vigoraria durante o prazo de 150 meses (10 anos e 3 meses) a contar do dia 01.06.1999 (cf. cláusula 5.ª).

15-         Para construir o B... e desenvolver a sua actividade, a Requerente endividou-se perante a sua accionista e outras entidades do grupo, endividamento este que, no final de 2000, apresentava os seguintes valores:

•             Suprimentos da F... NV no montante de 1.210.779.997$00 (€ 6.039.345,16);

•             Prestações acessórias da F... NV no montante de 3.000.000.000$00 (€ 14.963.936,91);

•             Empréstimo concedido pela sociedade de direito suíço G... GmbH no montante de 2.300.000.000$00 (€ 11.472.351,63), acrescido de juros vencidos no montante de 982.324.084 (€ 4.899.811,87).

16-         Em 2000, a Requerente tinha como accionista último H... de nacionalidade israelita-belga-espanhola.

17-         Em 2000, o detentor do capital social da Requerente, H... resolveu desinvestir em Portugal, propondo-se vender as acções da Requerente.

18-         Em 29-12-2000, a sociedade de direito português I..., SGPS, S.A. (“I...”) adquiriu à sociedade F... N.V. (uma sociedade sedeada nas ... Holandesas, doravante “F... NV”) a totalidade das acções representativas do capital social da Requerente, pelo montante de 250.000.000$00 (€ 1.246.994,74), a ser pago até ao dia 25-06-2001 (conforme cláusulas I.1.(a), I.3 e V do “Share Purchase Agreement”).

19-         No âmbito desta transação, ficou acordado entre o vendedor e o comprador que a Requerente iria, após a venda, proceder ao reembolso dos seguintes capitais alheios (cfr. cláusula II do “Share Purchase Agreement”):

a)            Suprimentos da F... NV no montante de 1.210.779.997$00 (€ 6.039.345,16) – cfr. cláusula II do “Share Purchase Agreement”;

b)           Prestações acessórias da F... NV no montante de 3.000.000.000$00 (€ 14.963.936,91) – cfr. cláusula III do “Share Purchase Agreement”; G... GmbH no montante de 2.300.000.000$00 (€ 11.472.351,63), acrescido de juros vencidos e (ainda) não pagos no montante de 982.324.084 (€ 4.899.811,87).

20-         Ao abrigo da cláusula I.1.(b) do “Share Purchase Agreement”, ficou acordado que seria igualmente adquirida, pela Requerente, a totalidade das acções representativas do capital social da sociedade J..., S.A., que também era detida integralmente pela F... NV.

21-         Pela compra da J..., ficou acordado que a A... pagaria à F... NV a quantia de 6.250.000.000$00 (€ 31.174.868,57), assim discriminada (cfr. cláusula IV do “Share Purchase Agreement”):

•             Até ao dia 25.02.2001, a Requerente faria um pagamento à F... NV no montante de 3.500.000.000$00 (€ 17.457.926,40);

•             Até ao dia 25.06.2001, a Requerente faria um pagamento à F... NV no montante de 2.750.000.000$00 (€ 13.716.942,17).

22-         Ficou ainda acordado que a Requerente forneceria, conjuntamente com a I..., para assegurar o cumprimento das responsabilidades contratualmente assumidas, à F... NV garantias bancárias irrevogáveis emitidas pela K... nos seguintes montantes e termos (cfr. cláusula VI do “Share Purchase Agreement”):

•             3.000.000.000$00 (€ 14.963.936,91), válida até 29.01.2001;

•             3.500.000.000$00 (€ 17.457.926,40), válida até 28.02.2001;

•             2.750.000.000$00 (€ 13.716.942,17), válida até 29.06.2001;

•             250.000.000$00 (€ 1.246.994,74), válida até 29.06.2001.

23-         A Requerente celebrou, em conjunto com a I..., em 29-12-2000, um contrato de abertura de crédito, constituição e prestação de garantias com um conjunto de instituições bancárias constituído pelas seguintes instituições: K..., S.A. (“K...”), L... (“L...”), M..., S.A. (“M...”), N..., S.A. (“N...”), O..., S.A. (“O...”), P... S.A. (“P...”), doravante, quando referidos em conjunto, os “Bancos”.

24-         Ao abrigo desse contrato, a K... e o L... concederam, no imediato, à Requerente um empréstimo sob a forma de abertura de crédito no montante de 4.500.000.000$00 (€ 22.445.905,37), assim discriminado: K..., 3.600.000.000$00 (€ 17.956.724,29) e MG, 900.000.000$00 (€ 4.489.181,07).

25-         A K... e o L... abriram ainda um crédito até ao montante de 12.000.000.000$00 (€ 59.855.747,65), a ser utilizado por parte da Requerente (e também da I...) através da emissão de garantias bancárias, nos moldes seguintes:

a)            3.000.000.000$00 (€ 14.963.936,91), para vigorar até 30.01.2001;

b)           3.500.000.000$00 (€ 17.457.926,40), para vigorar até 28.02.2001;

c)            2.750.000.000$00 (€ 13.716.942,17), para vigorar até 29.06.2001;

d)           250.000.000$00 (€ 1.246.994,74), para vigorar até 30.06.2001;

e)           2.500.000.000$00 (€ 12.469.947,43), para vigorar até 30.06.2001.

26-         Ficou acordado que, à medida que os termos das garantias fossem sendo devolvidos à K..., os montantes dessas garantias seriam utilizados para efeitos de financiamento à Requerente (e também, numa menor parte à I...), sendo os respectivos desembolsos repartidos pelos Bancos nas seguintes percentagens (cfr. cláusula segunda): K...: 52%; L...: 20%; M...: 8%;N...: 8%;O...: 8%;P...: 4%.

27-         As aberturas de crédito acima enunciadas destinavam-se a facultar à Requerente os meios financeiros necessários para poder regularizar o seu passivo e para a realização de investimentos e permitir à I... a realização de investimentos.

28-         A Requerente e a I... comprometeram-se, perante os Bancos, a não utilizar os fundos postos à respectiva disposição para fins diferentes dos que fundamentaram a sua concessão.

29-         Este contrato de financiamento vigoraria até à celebração de um novo contrato de abertura de crédito, no montante de 25.000.000.000$00 (€ 124.699.474,27), a ter lugar até 30-06-2001, entre as mesmas partes contratantes (cfr. Cláusula 5.º).

30-         Em 20-04-2001, a I... e a Requerente celebraram com os Bancos um novo contrato de abertura de crédito, constituição e prestação de garantias.

31-         Neste novo contrato, ficou estabelecido que os Bancos aceitavam realizar uma abertura de crédito até ao montante de 25.000.000.000$00 (€ 124.699.474,27).

32-         Foi expresso pelas partes contratantes que, tendo presente o total do capital a mutuar, uma parte já havia sido utilizada, nos seguintes termos:

a)            4.500.000.000$00 (€ 22.445.905,37) foram entregues à Requerente aquando da celebração do primeiro contrato de abertura de crédito;

b)           3.000.000.000$00 (€ 14.963.936,91) foram entregues à Requerente em 26-01-2001 (contra a devolução de um termo de garantia bancária de igual montante);

c)            3.500.000.000$00 (€ 17.457.926,40) foram entregues à Requerente em 26-02-2001 (contra a devolução de um termo de garantia de igual montante).

33-         Os restantes termos de garantia bancárias que haviam sido emitidas pela K... e pelo L... ao abrigo do anterior contrato de abertura de crédito foram devolvidos pela Requerente (e também pela I...).

34-         Ao abrigo das cláusulas segunda e quarta do novo contrato de abertura de crédito, dos 25.000.000.000$00 (€ 124.699.474,27) ora atribuídos, parte seria utilizada para pagar os créditos da K... e do L... emergentes da abertura de crédito anteriormente realizada, sendo entregue pelos Bancos à Requerente e à I... a importância de 14.000.000.000$00 (€ 69.831.705,59), assim discriminada: 11.000.000.000$00 (€ 54.867.768,68) à Requerente e 3.000.000.000$00 (€ 14.963.936,91) à I... .

35-         Este novo contrato de abertura de crédito destinava-se a facultar à Requerente os meios financeiros necessários para poder regularizar o seu passivo e para a realização de investimentos e permitir à I...  a realização de investimentos.

36-         Neste novo contrato ficou igualmente estabelecido o dever, entre outras obrigações a cumprir pela Requerente (e também pela I...), de os fundos postos à sua disposição não serem utilizados para fins diferentes dos que fundamentaram a sua concessão.

37-         Este contrato de financiamento vigoraria, de acordo com sua cláusula quinta, por um período de trinta anos.

38-         Em 31-05-2001, a Requerente e a I... subscreveram, respectivamente, aumentos de capital social nas sociedades J... e A... de tal forma que a J... passou a ter um capital social no montante de 2.506.025.000$00 (€ 12.500.000,00), integralmente subscrito pela Requerente e a Requerente passou a ter um capital social no montante de 2.506.025.000$00 (€ 12.500.000,00), integralmente subscrito pela I... .

39-         A Requerente transferiu para a J... um conjunto de fundos que totalizaram a importância de 2.950.000.000$00, os quais tiveram a seguinte proveniência:

a)            2.466.025.000$00 foram provenientes do aumento de capital realizado pela I...;

b)           208.653.287$00 corresponderam ao montante remanescente do empréstimo que lhe havia sido concedido pelos Bancos e que não tinha sido utilizado para dar cumprimento às obrigações decorrentes do Share Purchase Agreement;

c)            240.321.713$00 foram provenientes das rendas que foi recebendo em resultado da sua atividade, em especial do arrendamento do B... .

40-         Em 20-08-2007, a Requerente celebrou com o Q... um contrato de abertura de crédito com hipoteca, consignação de rendimentos, cessão de créditos, penhor de ações e penhor de contas bancárias.

41-         Ao abrigo deste novo contrato de abertura de crédito, o Q... concedeu à Requerente um crédito até ao montante de € 125.500.000,00, o qual se destinou, também ele, a refinanciar o investimento de longo prazo que a Requerente havia realizado no B... .

42-         O crédito concedido pelo Q... à Requerente era composto por duas tranches: tranche A, no montante de € 113.000.000,00, disponibilizada no próprio dia da celebração deste novo contrato e a tranche B, no montante máximo de € 12.500.000,00, a ser disponibilizada, por uma única vez, a qualquer momento, até ao dia 31-10-2007.

43-         Para assegurar a cobertura do risco de taxa de juro até à data do reembolso do crédito, a Requerente e o Q...  acordaram que a primeira subscreveria um produto de cobertura (“swap”), em termos aceitáveis para o segundo, durante o período de tempo (no mínimo, até ao dia 20-08-2012) de contagem de juros em que estes fossem apurados por referência a uma taxa variável.

44-         Para garantir o cumprimento de todas as obrigações decorrentes da celebração deste contrato de financiamento:

•             a Requerente constituiu a favor do Q... hipoteca voluntária de primeiro grau sobre o B..., consignação dos rendimentos decorrentes do seu arrendamento e penhor financeiro de contas bancárias;

•             a Requerente obrigou-se a respeitar um conjunto alargado de obrigações respeitantes a este bem imóvel, como seja mantê-lo em bom estado de conservação, manter em dia os seguros multirriscos relativos ao mesmo, manter as autorizações necessárias à sua exploração, autorizar a realização de inspeções àquele por parte do Q..., etc.;

•             a I... constituiu penhor financeiro de primeiro grau, a favor do Q..., sobre todas e cada uma das acções da Requerente de que aquela era titular.

45-         A Requerente utilizou as verbas recebidas do Q... para, nomeadamente, pagar o passivo em dívida para com a K..., o O... e com a L..., suportar o pagamento de comissões e demais encargos exigidos pelo Q... e suportar os encargos fiscais a título de Imposto de Selo, devido pelo capital mutuado e pelas comissões bancárias cobradas pelo Q... .

46-         Ficou acordado entre a Requerente e o Q... que o contrato de abertura de crédito seria celebrado por um período de 8 anos, com início a 20-08-2007 e termo em 19-08-2015.

47-         Com referência a 31-12-2015, a Requerente apresentou um endividamento total para com Q..., no montante € 110.228.486,88 dos quais uma parte correspondia ao capital em dívida decorrente da abertura de crédito e outra parte decorre do passivo assumido em resultado da contratação do produto financeiro de cobertura do risco de taxa de juro (“swap”).

48-         Em consequência do endividamento perante o Q..., a Requerente suportou encargos, no período de 2015, no montante total de € 4.376.962,98: €2.469.361,11, registados contabilisticamente na conta 6886 e €1.907.594,37, registados contabilisticamente na conta 6911.

49-         Entre os anos de 2000 e 2006, a Requerente obteve rendimentos prediais que ascenderam a um montante total de € 52.438.693,94:

 

50-         A Requerente entendeu alocar uma parte dessas rendas recebidas ao financiamento não remunerado de outras partes relacionadas, mormente a sua sociedade-mãe à data, a I... .

51-         Verifica-se a seguinte evolução nos saldos creditícios que a Requerente apresentava sobre a I..., no período compreendido entre os anos de 2002 e 2006:

 

52-         Em 29-09-2011, a I... vendeu à sociedade de direito holandês R... B.V. a totalidade das acções representativas do capital social da Requerente.

53-         O preço acordado entre as partes contratantes para a compra dessas acções foi fixado no montante de € 32.500.000,00, o qual correspondia à dívida que a I... tinha para com a Requerente.

54-         Tal preço foi pago pela R... B.V. à I...  através da figura da assunção da dívida prevista no artigo 595.º do Código Civil.

55-         A Requerente suportou, em 2015, encargos financeiros no montante de €4.376.962,98, resultantes de financiamentos obtidos junto da instituição financeira Q..., cujo saldo final do período ascendia a €110.228.486,88.

56-         A Requerente apresentava na sua contabilidade empréstimos não remunerados, concedidos à empresa mãe e a empresas do Grupo, no montante total de €36.847.615,97, assim discriminados:

•             R... N.V - €32.500,000,00;

•             I... SGPS, SA - €4.242.833,77;

•             S..., S.A. - €44.782,20;

•             T...- €45.000,00;

•             U...- €15.000,00.

57-         Em 30-05-2016, a Requerente procedeu à entrega da declaração modelo 22 de IRC, relativa ao exercício de 2015, identificada com o n.º ..., na qual não indicou no quadro 07, qualquer importância a título de encargos financeiros não fiscalmente dedutíveis e, no campo 748 do quadro 07, relativo à “limitação à dedutibilidade de gastos de financiamento líquidos (art.º 67.º)” a importância de €858.821,39.

58-         Na sua Declaração Anual/Informação Empresarial Simplificada (IES), a Requerente indicou por lapso um EBITDA de € 6.971.529,78.

59-         O EBITDA da Requerente, resultante do seu balancete analítico geral é de € 7.117.915,67.

60-         A Requerente foi objecto de uma acção inspectiva externa, de âmbito parcial, ao período de tributação de 2015, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2018... .

61-         Na sequência da referida acção inspectiva, a Requerente foi notificada do projecto de relatório de inspecção e para, querendo, exercer direito de audição.

62-         A Requerente não exerceu direito de audição prévia.

63-         A Requerente foi notificada do relatório de inspecção tributária no qual a AT efectuou os seguintes ajustamentos ao lucro tributável:

 

64-         Do relatório de inspecção consta, além do mais, o seguinte:

 

65-         A Requerente foi notificada da liquidação adicional de IRC n.º 2019... e da demonstração de acerto de contas n.º 2019..., da qual resultou imposto a pagar no montante de €172.190,51.

66-         A Requerente não procedeu ao pagamento voluntário das referidas liquidações, pelo que foi instaurado o processo de execução fiscal n.º ...2019... .

67-         De modo a obter a suspensão do referido processo de execução fiscal, a Requerente prestou garantia bancária.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, bem como a prova testemunhal produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Os factos dados como provados nos pontos 58 e 59 resultam do balancete analítico junto pela Requerente como documento 16, abundantemente detalhado, que não foi impugnado pela Requerida, e que permite a esta exercer, cabalmente, todos os poderes-deveres de controlo e fiscalização que lhe assistem.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

a. Das correcções relativas aos encargos financeiros suportados pela Requerente no ano

de 2015

Relativamente às correcções ora em apreço, invoca a Requerente vários vícios.

Dispõe o art.º 124.º do CPPT que:

“1 - Na sentença, o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.

2 - Nos referidos grupos a apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte:

a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos;

b) No segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior.”

Deste modo, e não tendo sido expressamente estabelecida pela Requerente qualquer relação de subsidiariedade entre os vícios arguidos, passar-se-á à apreciação do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, por ser aquele cuja procedência determina a mais estável e eficaz tutela dos interesses ofendidos.

*

A questão principal colocada pela Requerente nos presentes autos de processo arbitral, prende-se com a aferição da legalidade das correcções operadas pela AT, referentes ao exercício de 2015, relativamente a gastos financeiros da Requerente imputáveis a financiamentos gratuitos, concedidos por aquela a outras entidades relacionadas, mormente à sua sociedade mãe, à data, I..., SGPS, S.A.

Dito de outro modo, como sintetiza a Requerente, a principal questão a decidir nos presentes autos é a de saber se “Podia (ou não) a AT desconsiderar para efeitos fiscais, nos moldes em que o fez, os encargos devidos e pagos pela A... à Instituição Financeira Q...– Sucursal em Portugal durante o período de tributação de 2015”.

As questões suscitadas nestes autos foram já objecto de análise na decisão proferida no

âmbito do processo n.º 61/2018-T, onde as partes, factos e questões são em tudo idênticas,

sendo que naquela decisão foi apreciado o IRC dos anos de 2013 e 2014.

                Nos termos da fundamentação lavrada pela AT, e subjacente às correcções em questão, as mesmas assentam no disposto no art.º 23.º/1 e 2/c) do CIRC, na redacção aplicável ao referido período, tendo, em suma, a AT entendido que não estão em causa encargos relativos a capitais alheios aplicados na exploração da actividade económica da Requerente e que não se tratam de gastos totalmente necessários à obtenção do rendimento, à manutenção da fonte produtora, ou ainda, para garantir os rendimentos sujeitos a IRC, dado não possuírem nexo de causalidade económica com a actividade da Requerente. 

                A redacção da norma em questão, à data dos factos, era, e é, a seguinte:

“1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

2 - Consideram-se abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, os seguintes gastos e perdas:

c) De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de obrigações e outros títulos, prémios de reembolso e os resultantes da aplicação do método do juro efetivo aos instrumentos financeiros valorizados pelo custo amortizado;”

                A matéria em questão foi objecto de ampla apreciação e discussão, a nível jurisprudencial e doutrinal, sendo que, independentemente do mais, julga-se que o ponto de partida para a apreciação de qualquer questão que se apresente a decidir relativa à matéria em causa, deve ser, conforme formulado no Acórdão do STA de 04-06-2014, proferido no processo 01763/13, o de que “a relevância ou não de determinadas despesas como custos do exercício sempre teria que ser vista em concreto, caso a caso, em função do peculiar contexto empresarial em que se desenvolvem e das finalidades que prosseguem”.

                Posto isto, “constitui jurisprudência consolidada do S.T.A. que à luz do artº. 23, do C.I.R.C., não são de considerar como fiscalmente relevantes, além do mais, os custos com juros de empréstimos bancários contraídos por uma sociedade e aplicados no financiamento gratuito de sociedades suas associadas” .

Com efeito, reiteradamente, tem afirmado o STA que “À luz do art. 23º do CIRC, não são de considerar como fiscalmente relevantes os custos com juros e imposto de selo de empréstimos bancários contraídos por uma sociedade e aplicados no financiamento gratuito de sociedades suas associadas.”  e que “Não sendo a recorrente uma SGPS nem estando abrangida pelo regime de tributação de grupos de sociedade os encargos financeiros por si suportados decorrentes dos suprimentos e prestações suplementares efectuados a empresas associadas de forma gratuita não podem ser considerados como custos fiscalmente dedutíveis por não serem indispensáveis para a realização de proveitos da recorrente sujeitos a imposto ou para a sua manutenção como fonte produtora dos mesmos nos termos do artigo 23.º do CIRC na redacção vigente à data dos factos” .

                O referido entendimento tem sido reafirmado por aquele Superior Tribunal, ao longo dos anos e até ao presente, tendo nos acórdãos de 19-04-2017 e de 28-02-2018, proferidos, respectivamente, nos processos 0925/16 e 01206/17, sido exarado que:

- “I - Não sendo a recorrente uma SGPS nem estando abrangida pelo regime de tributação de grupos de sociedade os encargos financeiros por si suportados decorrentes dos suprimentos e prestações suplementares efectuados a empresas associadas de forma gratuita não podem ser considerados como custos fiscalmente dedutíveis por não serem indispensáveis para a realização de proveitos da recorrente sujeitos a imposto ou para a sua manutenção como fonte produtora dos mesmos nos termos do artigo 23 do CIRC na redacção vigente à data dos factos.

II - Mantendo-se a recorrente autonomamente como sujeito passivo de IRC e as empresas a si associadas igualmente autónomas e igualmente sujeitos passivos em sede de IRC os encargos financeiros por si suportados decorrentes dos suprimentos e prestações suplementares efectuados a favor das empresas a si associadas não podem considerar-se como custo indispensável para efeitos de dedutibilidade em sede de IRC ao abrigo do disposto no artigo 23 do CIRC por serem alheios ao exercício da sua actividade.”;

- “I - Sendo certo que a impugnante é um sócio da sociedade participada e a ela pode efectuar prestações suplementares, caso preencha os requisitos legais, o que aqui se não mostra em discussão, na sua esfera jurídica a decisão de efectuar a prestação suplementar não é exercício da sua actividade empresarial porque ela não tem por objecto, também, a gestão de participações sociais.

II - O acordo parassocial que celebrou e em cumprimento do qual veio a realizar as prestações suplementares, não altera/amplia o objecto social da impugnante, e, por não obter enquadramento legal neste, não é desenvolvimento da actividade social da impugnante.

III - Não se trata de aferir da bondade dos actos de gestão realizados pela impugnante, mas de verificar que, sejam quais forem as operações financeiras que realize, fora do seu objecto social, não são um acto de gestão da sua actividade empresarial, pelo que não pode aportar a esta os custos que essa operação financeira produza.

IV - O reforço do capital da sociedade participada através de prestações suplementares efectuadas pela impugnante não são exercício da actividade empresarial da impugnante, pelo que os custos que incorram com essas ou por causa das realizações de tais prestações não são custos dedutíveis em sede de IRC à luz do art.º 23.º do CIRC.”.

                Por seu lado, doutrina relevante emergiu em várias sedes de forma crítica em relação à jurisprudência assinalada, pugnando que os financiamentos gratuitos ou abaixo do custo, de uma sociedade a uma outra, consigo relacionada, poderão ainda considerar-se como exercício da actividade empresarial daquela.

                No processo arbitral 695/2015T , é revista doutrina e jurisprudência anterior sobre a matéria, análise para a qual se remete.

Em síntese, no referido aresto arbitral, quanto ao conceito de activo e de fonte produtora, conclui-se que quanto à questão “Uma sociedade participante que se endivide e ceda esses fundos a entidades participadas, cobrando-lhes juros nulos, ou inferiores aos pagos, está a desenvolver atividade própria ou alheia (i.e., a realizar atos de gestão alheios ao seu interesse)?, deverá considerar-se que “a dedutibilidade dos juros suportados pela participante dependerá do facto de tais financiamentos contribuíram para, segundo regras normais de gestão, incrementar a expetativa de benefícios futuros ou para manter a fonte produtora (ativo financeiro)”. 

Entendeu-se assim, naquele caso, que quando a participante financia as participadas (seus activos financeiros), na contabilidade da participante “a alocação de fundos às participadas tem como contrapartida o incremento do valor do investimento contabilizado na conta "41-Investimentos financeiros". A fonte produtora que é financiada, na qual se reforça a posição da investidora é, em primeira linha, o conjunto de ativos financeiros” da participante.

Mais se julgou que “a fonte produtora materializa-se jurídica e contabilisticamente no ativo da [participante], que concentra legal, económica e financeiramente as características de uma fonte produtora da [participante]: é um conjunto de ativos previamente adquirido por esta entidade, que lhe outorga direitos sobre as participadas, e dele se esperam rendimentos na esfera da adquirente.”.

Ainda no acórdão arbitral em questão, acabou-se por concluir que: “… a AT corrige apenas o diferencial de juros e não a totalidade dos juros pagos pela [participante]. …, esta lógica de ajustamento fiscal afigura-se desajustada. Querendo-se questionar o diferencial de preços (taxas de juro) pagos e cobrados, seriam as normas de preços de transferência as que se deveriam aplicar, e não as do artigo 23.º do CIRC”.

 

*

                Ponderados os vários argumentos das posições antagónicas acima apresentadas, propende-se para o entendimento de que os financiamentos de uma sociedade a uma outra sua relacionada com a qual esteja em situação de relações especiais, deverão reputar-se como integrando o âmbito da actividade empresarial da primeira.

                Com efeito, será notório, crê-se, que numa situação dessas a “saúde” financeira do grupo económica se revista de capital importância para as sociedade que o integram, como notório será que o bom desempenho económico das sociedades relacionadas é susceptível de gerar ganhos sujeitos a IRC para as restantes sociedades do grupo, quer ao nível do aumento do valor económico das participações, com o consequente aumento do património e da robustez financeira do grupo, e todas as vantagens, em termos de mercado, que daí advêm, quer ao nível da eventual geração de dividendos e/ou mais-valias, quer, também, ao nível dos movimentos económicos e sinergias intra-grupo, que é, consabidamente, um dos principais fundamentos da existência de um regime jurídico especial aplicável aos grupos económicos.

                Deste modo, não se julga que se deva considerar que a disponibilização de meios financeiros, num caso como o dos autos, por uma sociedade a outra (ou a outras) sua relacionada, seja alheio, por regra, ao interesse empresarial da primeira, dado que este integra, não só o interesse singular da mesma, mas, igualmente e de forma relevante, o interesse colectivo grupal. Ou seja, e dito de outra forma, o interesse do grupo – e no que para o caso releva, a saúde financeira do grupo – integra também, de forma directa e imediata, o interesse empresarial de cada uma das entidades relacionadas, devendo por isso as decisões, actos e actividades praticados no interesse do grupo, ser considerados, também e por regra, praticados no interesse da sociedade que os pratica e que integra aquele.

Sabendo-se, não obstante, que à luz da redacção vigente em 2013 da norma aplicanda (art.º 23.º/1/c) do CIRC então vigente), a jurisprudência do STA na matéria é clara e reiterada, no sentido de que “Não sendo a recorrente uma SGPS nem estando abrangida pelo regime de tributação de grupos de sociedade os encargos financeiros por si suportados decorrentes dos suprimentos e prestações suplementares efectuados a empresas associadas de forma gratuita não podem ser considerados como custos fiscalmente dedutíveis por não serem indispensáveis para a realização de proveitos da recorrente sujeitos a imposto ou para a sua manutenção como fonte produtora dos mesmos nos termos do artigo 23 do CIRC na redacção vigente à data dos factos.” , o certo é que, no caso sub iudice, não está em causa a aplicação daquela redacção da norma do art.º 23.º do CIRC.

                De facto, no ano de 2014, a norma em questão nos presentes autos, o art.º 23.º do CIRC, foi alterada na sua redacção, de modo significativo e intencional, passando a referir como critério geral da dedutibilidade dos gastos, que estes tenham sido incorridos ou suportados “para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”, quando antes dispunha no sentido da necessidade de que os mesmos “comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora”.

                Conforme resulta, inequivocamente, do “Anteprojeto de Reforma” do Código do IRC , a alteração introduzida foi no sentido de deixar claro que “o critério da indispensabilidade foi criado para impedir a consideração fiscal de gastos que não se inscrevem no âmbito da atividade das empresas sujeitas ao IRC” e se destina a excluir os “encargos que foram incorridos no âmbito da prossecução de interesses alheios, mormente dos sócios”.

                À luz de tal critério, e do quanto se expôs anteriormente, não se julga que se possa considerar, por regra, que a concessão de financiamento por uma sociedade integrante de um grupo económico a uma outra sociedade relacionada e integrante desse mesmo grupo, em situações como a dos autos, se possa qualificar como não inserida na actividade da primeira, e como tal se julguem os gastos subjacentes a tal operação qualificáveis como indedutíveis, à luz do art.º 23.º do CIRC aplicável.

                Senão vejamos:

Da prova documental junta aos autos, resulta demonstrado que ficou expressamente acordado no contrato celebrado com o Q... que o financiamento “se destina a refinanciar o investimento a longo prazo no Imóvel” (cfr. ponto 41 dos factos provados).

Por outro lado, provou-se que a Requerente obteve rendimentos próprios avultados provenientes do exercício da sua actividade, pelo que não há fundamento para concluir que, necessariamente, alguma parte do financiamento efectuado pelo Q... se destinou a refinanciamento de empréstimos anteriores efectuados às empresas do grupo.

                Acresce que, ainda que se estivesse no quadro legal anterior, regido pela redacção do artigo 23.º do CIRC anterior à alteração introduzida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, sempre haveria de se concluir pela existência de interesse próprio da Requerente no financiamento às suas relacionadas. Tal como dos factos provados, caso a I..., SGPS. S.A., sociedade mãe da Requerente, à data, falhasse no cumprimento das suas obrigações no âmbito dos financiamentos, a actividade da Requerente seria necessariamente afectada, desde logo, porque os financiamentos em vigor estavam garantidos com hipoteca sobre o B..., única fonte dos rendimentos da Requerente.

Deste modo, caso se verificasse uma situação de incumprimento, quer pela I..., SGPS, SA, quer pela Requerente, poderia ser executada a hipoteca sobre o imóvel, o que implicaria a perda do imóvel que era explorado pela Requerente, comprometendo, irremediavelmente a sua capacidade de gerar rendimentos sujeitos a IRC.

                Com efeito, a não concessão de financiamento à I..., SGPS, SA poderia implicar a execução do imóvel que era explorado pela Requerente, vendo-se esta privada daquela fonte de rendimentos mostrando-se, portanto, os empréstimos necessários para assegurar a fonte de rendimento e concedidos no âmbito da prossecução do interesse próprio da Requerente.

De resto, a jurisprudência dos Tribunais Superiores da jurisdição tributária estadual, na matéria em questão, emitida, toda a que é conhecida, à luz da redacção anterior da norma em causa, que, como se viu, foi alterada, acabou por reconduzir a questão à mera inserção da actividade de detenção e gestão de participações sociais no objecto social das sociedades participantes, conforme decorre, transparentemente, dos cotejo dos acórdãos do STA de 21-02-2018 e de 30-05-2018, ambos proferidos no processo 0473/13, e de 28-02-2018, proferido no processo 01206/17.

Todavia, o objecto social não limita a licitude dos actos jurídicos das sociedades, nem a sua capacidade jurídica, nem, muito menos, a sujeição a imposto dos proveitos de tais actos ou actividades, dispondo o art.º 6.º/4 do C.S. Comerciais que “As cláusulas contratuais e as deliberações sociais que fixem à sociedade determinado objecto ou proíbam a prática de certos actos não limitam a capacidade da sociedade, mas constituem os órgãos da sociedade no dever de não excederem esse objecto ou de não praticarem esses actos.”, de onde decorre que a prática por uma sociedade de actos de comércio que não estejam compreendidos no seu objecto, não são proibidos, nem, consequentemente, e de per si, ilícitos.

Assim, e ainda que estranhos ao objecto social, esses actos ou actividades são susceptíveis de “obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC” das sociedades, pelo que razão alguma se vê para excluir os gastos, decorrentes desses mesmos actos ou actividades, à luz da redacção do art.º 23.º/1 do CIRC, vigente em 2015, unicamente por não se reconduzirem, formalmente, ao objecto social do sujeito passivo, sem prejuízo de, em situações como a dos autos, a dedutibilidade de tais gastos poder ser excluída ou limitada, quer por via das normas relativas aos preços de transferência,quer da limitação da dedutibilidade dos gastos financeiros, nos termos do art.º 67.º do CIRC.

Face ao exposto, e tendo em conta que, como se referiu atrás, a jurisprudência conhecida do STA e dos Tribunais Centrais na matéria foi proferida no âmbito da redacção do art.º 23.º do CIRC, vigente até 31-12-2013, julga-se que as correcções em apreciação, referentes aos período de 2015, ao considerarem não dedutíveis os encargos financeiros suportados pela Requerente com empréstimos concedidos a empresas relacionadas no exercício de 2015, viola o disposto no art.º 23.º/1 do CIRC, enfermando, como tal, de erro de direito e devendo, por isso, ser anuladas, procedendo, nessa parte, o pedido arbitral.

 

b. Da limitação à dedutibilidade dos gastos de financiamento

A Autoridade Tributária e Aduaneira fez aplicação da limitação à dedutibilidade de gastos de financiamento, prevista no artigo 67.º do CIRC, nas redacções da Lei n.º 66- B/2012, de 31 de Dezembro, e da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro.

Tendo em conta a desconsideração fiscal de parte dos encargos financeiros suportados pela Requerente com o financiamento contraído junto da Q..., a AT recalculou os gastos de financiamento líquidos que poderiam ser deduzidos pela Requerente, no período de tributação de 2015, à luz do regime previsto no artigo 67.º do CIRC.

No exercício de 2015, a aplicação desta norma traduziu-se numa correcção favorável à Requerente no montante de €858.821,39.

Para apurar o montante dessa correcção a Autoridade Tributária e Aduaneira baseou-se no valor do EBITDA (resultado antes de depreciações, gastos de financiamento líquidos e imposto) indicado pela Requerente, de €6.971.529,78, para o exercício de 2015. 

A Requerente vem dizer no pedido de pronúncia arbitral que esse valor que indicara está errado e que o valor correcto é de €7.117.915,67, apresentando o balancete relativo ao ano de 2015.

A Autoridade Tributária e Aduaneira não impugna esse documento, nem questiona que os valores correctos são os agora indicados pela Requerente, limitando-se a referir que «A requerente tomou conhecimento de todo o conteúdo do RIT, tendo sido notificada do respetivo

projeto de conclusões, para, querendo, exercer o direito de audição, no prazo de quinze dias, nos termos do art.º 60.º da LGT. Não exerceu esse direito, ou seja não indicou quaisquer dúvidas, erros ou lapsos que possam ter sido suscitados pela leitura do projeto de relatório, nem solicitou quaisquer esclarecimentos que considerasse necessários ao bom entendimento dos motivos que levaram ao serviços inspetivos à determinação do lucro tributável corrigido, do novo cálculo do EBDITA Ajustado (Fiscal) nem de quaisquer outras correções efetuadas”.

                A não invocação do erro no valor do EBITDA em sede de direito de audição ao projecto de relatório de inspecção não faz precludir a possibilidade de ser invocado em sede de impugnação das liquidações que decorrem das correcções efectuadas em sede inspectiva. Na impugnação das liquidações podem, e devem, os órgãos jurisdicionais conhecer de todas as ilegalidades de substância que afectem o acto tributário em crise, quer essas ilegalidades tenham ou não sido suscitadas na fase graciosa do litígio.

Ora, o que se verifica é que  no “decurso do procedimento”, foram disponibilizados à AT “balancetes analíticos, Relatórios e Contas, Mapa de Provisões, Perdas Imparidade em Créditos e respetivo mapa de cálculos auxiliares e mapa de antiguidade de saldos, Mapa de Depreciações e Amortizações (Modelo 32), ficheiros SAFT da contabilidade e da faturação, mapas de apoio aos cálculos do IRC, tributações autónomas e retenções na fonte, e ainda cópia de alguns dos documentos de suporte aos lançamentos contabilísticos consultados” (cfr. pág. 11 do RIT).

Neste contexto, verifica-se que à AT foram facultados todos os elementos necessários para aferir da correcção do valor de EBITDA emergente do balancete analítico do exercício de 2015, pelo que, aqui como no processo arbitral 61/2018T do CAAD , é de considerar provado que os valores em que se basearam as correcções relativas à limitação dos gastos de financiamento são incorrectos, o que implica que as correcções enfermam de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto, que justifica a sua anulação, sendo o erro imputável à Requerente, que elaborou, erroneamente, a sua IES.

Sendo de concluir que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado procedente quanto a estas correcções, fica prejudicado, por subsidiário, o conhecimento das restantes questões colocadas sobre esta matéria .

*

c. Da indemnização por prestação indevida de garantia

A Requerente prestou garantia bancária para suspender os processos de execução instaurados para cobrança coerciva das quantias liquidadas e formula, a final, um pedido de indemnização por garantia indevida.

O artigo 171.º do CPPT estabelece que «a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda» e que «a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência».

 Assim, é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.

O pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido artigo 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.

O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:

“Artigo 53.º

Garantia em caso de prestação indevida

1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.”

Assim, procedendo o pedido de pronúncia arbitral, a Requerente tem direito a indemnização pela garantia prestada, na proporção do vencimento, nos termos daquele n.º 1.

Não havendo elementos que permitam determinar o montante da indemnização, a condenação terá de ser efectuada com referência ao que vier a ser liquidado em execução do presente acórdão (artigos 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea d) da LGT).

 

***

 

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            declarar a ilegalidade do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2019..., da liquidação de juros compensatórios n.º 2019... e da demonstração de acerto de contas n.º 2019..., referente ao ano de 2015, no valor de €172.190,50;

b)           Condenar a Requerida no pagamento de indemnização por garantia indevida, no valor que entretanto venha a demonstrar-se suportado, se necessário em execução de sentença;

c)            Condenar a Requerida nas custas do processo, abaixo fixadas.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €172.190,51, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.672,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 4 de Janeiro de 2020

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Paulo Lourenço)

 

O Árbitro Vogal

(Fernando Borges de Araújo)