Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 665/2019-T
Data da decisão: 2020-04-29  IMT  
Valor do pedido: € 15.581,64
Tema: IMT – Falta de fundamentação
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Decisão Arbitral

 

 

 

I. Relatório

 

   1. A..., residente no Brasil, titular do número de identificação fiscal português..., sendo seu representante fiscal em Portugal B..., titular do número de identificação fiscal..., veio, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, no n.º 2 do artigo 3.º e nos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, apresentar pedido de pronúncia arbitral dos atos de indeferimento da reclamação graciosa deduzida pelo Requerente contra a liquidação de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), no valor de € 15.581,64 (quinze mil quinhentos e oitenta e um euros e sessenta e quatro cêntimos).

 

1.1.  O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 7 de outubro de 2019.

1.2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como o signatário como árbitro, nomeação aceite dentro do prazo legal.

1.3. Notificadas as partes dessa designação, não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

1.4. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído no dia 30 de dezembro de 2019.

1.5. Prolatado o despacho determinado pelo artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou requerimento no sentido de ser concedida prorrogação do prazo para apresentação da Resposta e junção do Processo Administrativo, por um período não inferior a 15 dias, invocando a existência e complexidade de diversos processos atribuídos às Juristas designadas.

1.6. Por despacho arbitral de 30 de janeiro de 2020, o peticionado foi deferido quanto à resposta, determinando-se, porém, a junção do Processo Administrativo dentro do prazo legal de resposta, por se entender que os fundamentos invocados não prejudicavam a sua junção.

1.7. Não existindo exceções a discutir ou controvérsia sobre a matéria de facto, foi proferido despacho arbitral, no dia 18 de março de 2020, dispensando a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e, bem assim, a produção de alegações, tendo-se designado o dia 30 de abril de 2020 como data de prolação da decisão judicativa arbitral.

 

2. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, ex vi o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.

 

3. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, como determinado pelos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não enfermando o processo de quaisquer nulidades.

 

 

II. Fundamentação

 

4. Matéria de facto

 

4.1. Factos Provados

 

Com interesse para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

4.1.1. No dia 13 de outubro de 2017, faleceu, no Brasil, C..., natural da freguesia de..., concelho de ..., residente em ..., São Paulo Brasil – cfr. documento n.º 7, junto pelo Requerente com o pedido de pronúncia arbitral.

4.1.2. O falecido, na data referida supra, encontrava-se casado, desde 28 de março de 1971, sob o regime da comunhão de adquiridos com D..., de nacionalidade portuguesa, à data da sucessão residente em ..., São Paulo, Brasil, tendo-lhe sobrevivido três filhos: A..., ora Requerente, E... (titular do número de identificação fiscal português...) e F... (titular do número de identificação fiscal português...) – cfr. documento n.º 7, junto pelo Requerente com o pedido de pronúncia arbitral.

4.1.3. À data do falecimento, o património a partilhar era composto pelos seguintes bens e direitos:

  1. Fração autónoma designada pela letra “P” do prédio urbano sito na Rua..., n.º..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º ... da união de freguesias de ... e ..., inscrito na correspondente matriz predial urbana sob o artigo n.º ..., com o valor patrimonial tributário de € 230.310,00, à qual se atribuiu o valor de € 850.000,00.
  2. Frações autónomas designadas pelas letras “E”, “G”, “H”, “I” e “N” do prédio urbano sito na ..., n.º ... e..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º ... da freguesia de ..., inscrito na correspondente matriz predial urbana sob o artigo n.º ..., cada uma com o valor patrimonial tributário de € 14.212,75 (com exceção da fração autónoma designada pela letra “N”, cujo valor patrimonial tributário era de € 15.398,85), às quais se atribuíram, respetivamente, os seguintes valores: € 80.000,00, € 80.000,00, € 80.000,00, € 80.000,00 e € 90.000,00.
  3. Prédio rústico situado na ..., ..., freguesia de..., Ansião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ansião sob o n.º ... da freguesia de ..., inscrito na correspondente matriz predial rústica sob o artigo n.º..., com o valor patrimonial tributário de € 48,98, ao qual se atribuiu o valor de € 15.000,00.
  4. Prédio urbano sito no ..., freguesia de ..., concelho de Ansião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ansião sob o n.º ... da freguesia de ..., inscrito na correspondente matriz predial urbana sob o artigo n.º..., com o valor patrimonial tributário de € 78.200,00, ao qual se atribuiu o valor de € 300.000,00.
  5. Prédio rústico denominado “...”, situado no..., freguesia de..., concelho de Ansião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ansião sob o n.º ... da freguesia de ..., inscrito na correspondente matriz predial urbana sob o artigo n.º..., com o valor patrimonial tributário de € 30,80, ao qual se atribuiu o valor de € 12.500,00;
  6. Prédio rústico denominado “...”, situado no ..., freguesia de ..., concelho de Ansião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ansião sob o n.º ... da mesma freguesia, inscrito na correspondente matriz predial rústica sob o artigo n.º..., com o valor patrimonial tributário de € 2,71, ao qual se atribuiu o valor de € 30.000,00;
  7. Quota com o valor nominal de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros) representativa do capital da sociedade «G..., Lda.», com o número de pessoa colectiva ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Cascais, com o capital social de € 5.000,00, com sede na ..., Lote..., ..., concelho de Cascais e freguesia de ... e ..., à qual se atribuiu o valor de € 3.500,00;
  8. Veículo da marca ..., modelo..., com a matrícula ..., ao qual atribuíram o valor de € 13.850,00;
  9. Veículo da marca ..., modelo..., com a matrícula..., ao qual atribuíram o valor de € 12.100,00;
  10. Veículo da marca ..., modelo..., com a matrícula ..., ao qual atribuíram o valor de € 9.569,00;
  11. Saldo da conta bancária depósito à ordem n.º ... aberta junto do Banco H... (H...), no valor de € 73.841,25 (setenta e três mil, oitocentos e quarenta e um euros e vinte e cinto cêntimos);
  12. Saldo da conta bancária depósito à ordem n.º ... aberta junto do Banco I..., no valor de € 35.554,59 (trinta e cinco mil, quinhentos e cinquenta e quatro euros e cinquenta e nove cêntimos);
  13. Saldo da conta bancária depósito à ordem n.º ... aberta junto do Banco I..., no valor de € 6.728,84 (seis mil, setecentos e vinte e oito euros e oitenta e quatro cêntimos);
  14. Saldo da conta bancária depósito à ordem n.º ... aberta junto do Banco I..., no valor de € 9.960,92 (nove mil, novecentos e sessenta euros e noventa e dois cêntimos);
  15. Saldo da conta bancária depósito à ordem n.º ... aberta junto do Banco I..., no valor de € 64.520,43 (sessenta e quatro mil, quinhentos e vinte euros e quarenta e três cêntimos);
  16. Saldo da conta bancária depósito à ordem n.º ... aberta junto do Banco I..., no valor de € 8.333,33 (oito mil, trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos);
  17. Crédito de suprimentos sobre a sociedade «G..., Lda.», melhor identificada supra, no valor de € 3.117.416,16 (três milhões, cento e dezassete mil, quatrocentos e dezasseis euros e dezasseis cêntimos);
  18. Conta de valores mobiliários n.º..., com 1294335 acções nominativas, cotadas, do H..., com o valor de € 325.266,39 (trezentos e vinte e cinco mil, duzentos e sessenta e seis euros e trinta e nove cêntimos);
  19. 1.255431 unidades de participação no Fundo de Investimento J... com o n.º de contrato..., no valor de € 14,16 (catorze euros e dezasseis cêntimos);
  20. 0.220976 unidades de participação no Fundo de Investimento J... com o n.º de contrato..., no valor de € 2,49 (dois euros e quarenta e nove cêntimos);
  21. 0.020434 unidades de participação no Fundo de Investimento K... o com o n.º de contrato ..., no valor de € 0,11 (onze cêntimos);
  22. 3.387181 unidades de participação no Fundo de Investimento K... com o n.º de contrato ..., no valor de € 18,32 (dezoito euros e trinta e dois cêntimos).

Perfazendo um total de € 5.298.175,99 (cinco milhões duzentos e noventa e oito mil, cento e setenta e cinco euros e noventa e nove cêntimos) – cfr. documento n.º 8, junto pelo Requerente.

4.1.4. A partilha da meação e da herança foi realizada através de documento particular autenticado, datado de 18 de julho de 2018, nos termos do qual foi adjudicado, a título de meação, parte, no valor de dois milhões seiscentos e quarenta e nove mil e oitenta e oito cêntimos, do crédito de suprimentos, referido supra – cfr. documento n.º 8, junto pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral.

4.1.5. Os restantes bens e direitos foram adjudicados, em compropriedade e em partes iguais, a A..., E... e F..., cabendo-lhes ainda a parte remanescente do crédito de suprimentos, ficando cada um com o valor de oitocentos e oitenta e três mil, vinte e nove euros e trinta e três cêntimos – cfr. documento n.º 8, junto pelo Requerente com o pedido de pronúncia arbitral.

4.1.6. De seguida, foi apresentado, no Serviço de Finanças de ..., requerimento com vista à liquidação de IMT e de Imposto do Selo – cfr. documento n.º 9, junto pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral.

4.1.7. Na sequência desse requerimento, no dia 1 de outubro de 2018, foi realizada demonstração de liquidação provisória, na qual se apurou, a título de IMT, a importância de € 15.581,64 – cfr. documento n.º 2, junto pelo Requerente com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido.

4.1.8. Tendo sido emitido documento de cobrança, com a identificação n.º 2018..., no valor de € 15.581,64 – cfr. documento n.º 3, junto pelo Requerente com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá por reproduzido.

4.1.9. Inconformado, o Requerente apresentou, no dia 11 de março de 2019, reclamação graciosa tendo como “objeto a liquidação de IMT a que corresponde a demonstração de liquidação provisória com o n.º de registo 2018/... e o documento de cobrança n.º 2018...– cfr. o requerimento de Reclamação Graciosa constante do Processo Administrativo junto pela Requerida.

4.1.10. Nessa reclamação, alegando não ter sido notificado da liquidação de IMT, protestou juntar a emissão de certidão comprovativa da liquidação que requerera junto do Serviço de Finanças de ...– cfr. Reclamação graciosa contante do Processo Administrativo junto pela Requerida.

4.1.10. A certidão foi passada no dia 28 de março de 2019, deixando-se aí consignado ter sido efetuada, inter alia, a “Liquidação de IMT n.º ..., no montante de € 15.581,64, data limite de pagamento 2018-11-30, Liquidação de Imposto d[o] Selo n.º 2018..., no montante de € 2.156,68, data limite de pagamento 2018-11-12 em nome de A..., NIF...” – cfr. Processo Administrativo junto pela Requerida.

4.1.11. Na data em que foi deduzida reclamação graciosa, o requerente fora notificado dos documentos referidos supra nos pontos 4.1.7. e 4.1.8. – cfr. Processo Administrativo junto pela Requerida.

4.1.11. No dia 12 de março de 2019, foram autuados 10 procedimentos de reclamação graciosa, um por imóvel, com tramitação diferente para cada prédio objeto de tributação em sede de IMT, nos termos seguintes:

Imóvel

Procedimento de Reclamação Graciosa

Artigo Urbano n.º ..., fracção H

...2019...

Artigo Urbano n.º..., fracção N

...2019...

Artigo Urbano n.º..., fracção E

...2019...

Artigo Rústico n.º ...

...2019...

Artigo Urbano n.º..., fracção I

...2019...

Artigo Urbano n.º ...

...2019...

Artigo Urbano n.º..., fracção G

...2019...

Artigo Rústico n.º ...

...2019...

Artigo Rústico n.º ...

...2019...

Artigo Urbano n.º..., fracção P

...2019...

 

 – cfr. Processo Administrativo junto pela Requerida.

4.1.12. Por ofício de 3 de junho de 2019, o Requerente foi notificado do projeto de indeferimento das reclamações graciosas – cfr. Processo Administrativo junto pela Requerida.

4.1.13. O Requerente, então reclamante, notificado para o efeito, não exerceu o direito de audição 

4.1.14. Todas as reclamações referidas em 4.1.11. foram objeto de despacho de indeferimento prolatado em 2 de julho de 2019 – cfr. Processo Administrativo junto pela Requerida.

 

 

4.2. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.

 

4.3. Motivação da matéria de facto

 

Considerando o disposto nos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.os 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil (por remissão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT), incumbe ao Tribunal o dever de selecionar a matéria de facto pertinente para a decisão judicativa, tomando em consideração a causa de pedir que sustenta a pretensão dos Requerentes.

No caso sub judice, a decisão sobre os factos provados e não provados radicou, segundo o princípio da livre apreciação da prova, no acervo documental presente nos autos, tanto com o requerimento de pronúncia arbitral, como, posteriormente, com o Processo Administrativo, organizado nos termos do artigo 111.º do CPPT, e junto pela Requerida.

Para além disso, a decisão da matéria de facto baseou-se no alegado pelos Requerentes que não foi questionado ou controvertido pela Autoridade Tributária e Aduaneira, aqui Requerida, que, ademais, circunscreveu a questão controvertida ao plano da análise da matéria de direito.

 

 

5. Matéria de direito

5.1. Enquadramento da questão decidenda

 

O presente processo tem por objeto imediato as decisões de indeferimento da reclamação graciosa deduzida e, por objeto mediato, a legalidade do ato de liquidação de IMT, no valor de € 15.581,64 (quinze mil quinhentos e oitenta e um euros e sessenta e quatro cêntimos), ao qual o Requerente assacou os vícios de violação do dever de fundamentação e de violação de lei.

 

5.2. Cumulação de pedidos

 

Como resulta do relatado supra, o requerente deduziu reclamação graciosa da liquidação de IMT, tendo sido abertos “por constrangimentos do sistema informático” dez procedimentos de reclamação graciosa, tendo merecido tramitação separada por cada prédio enquadrado na liquidação reclamada.

De acordo com o artigo 3.º do RJAT, é permitida a cumulação de pedidos «quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito».

Trata-se de um regime que concretizador de uma lógica pro actione que favorece a celeridade e a uniformidade das decisões, constituindo um importante fator de descongestionamento da jurisdição tributária (artigo 104.º do CPPT) e arbitral (artigo 3.º do RJAT), sem que se olvide também a possibilidade dessa cumulação ocorrer no próprio procedimento de reclamação graciosa (artigo 71.º do CPPT).

De acordo com o referido preceito do RJAT, a cumulação será admissível quando estejam em causa as mesmas circunstâncias de facto e a interpretação das mesmas normas jurídicas. O que sucede, indubitavelmente, no caso sub judicio porquanto todas as decisões de indeferimento reportam-se à mesma liquidação, traduzindo-se numa única questão jurídico-material, a qual foi tratada em procedimentos de reclamação diversos por “constrangimentos do sistema informático”.

Termos em que se admite a requerida cumulação de pedidos.

 

5.3. Fundamentos de direito

Da ilegalidade da liquidação por violação do dever legal de fundamentação

O Requerente da pronúncia arbitral tributária começa por assacar ao ato de liquidação, aqui em crise, a ilegalidade consubstanciada na falta de fundamentação do ato de liquidação do IMT, reassumida, do mesmo passo, perante o indeferimento do pedido de reclamação graciosa do mesmo imposto.

Conquanto apode ao mesmo ato outros erros de direito substantivo, português e brasileiro, sucessório e de partilha dos bens da herança cuja aplicação ao caso admitiu, a título hipotético ou subsidiário, haver sido levada a cabo pela AT, não pode deixar de começar-se pelo conhecimento do vício da falta de fundamentação, nos termos que resultam do disposto no artigo 124.º do CPPT.

Na verdade, não obstante o conhecimento dos vícios traduzidos na errada fixação dos factos materiais da causa ou na errada interpretação e aplicação do direito pertinente a esses factos (erro nos pressupostos de facto e de direito), em abstrato, pareça ser adequado para poder determinar uma mais estável e eficaz tutela dos interesses ofendidos, e, por isso, por eles se devesse aparentemente começar, tendo em conta o disposto no mesmo art.º 124.º, n.º 2, alínea a), do CPPT, o certo é que, na situação concreta dos autos, só uma vez decidido se são conhecidos – e quais - os fundamentos factuais e jurídicos em que se estribou a liquidação se poderá aferir se tais pressupostos de facto e de direito tidos por errados sofrem ou não da ilegalidade imputada.

  O conteúdo do dever de fundamentação dos atos administrativos e tributários é, hoje, no plano da sua definição normativa, uma questão que não suscita grande controvérsia doutrinal e jurisprudencial.

A necessidade de uma fundamentação expressa dos actos administrativos constitui, como é consabido, uma das garantias dos administrados reconhecidas constitucionalmente, de forma explícita a partir da revisão de 1982. As necessidades de converter o direito de recurso contencioso − assumido pelo constituinte originário como uma garantia fundamental dos administrados − num instrumento jurídico funcionalmente adequado, sob o ponto de vista substancial, para reagir contra quaisquer atos administrativos apodados de ilegais e de conferir transparência e visibilidade à atividade administrativa à efetiva realização substancial do princípio da legalidade, conduziu o legislador a que, logo na primeira alteração à Constituição de 76, estabelecesse a exigência de fundamentação expressa dos atos administrativos quando estes afetassem direitos e interesses legalmente protegidos[1].

  E o nosso legislador fundamental, em revisão constitucional, aprimorou ainda mais as suas exigências quanto à densidade significante da fundamentação ao ter passado a impor que esta, além de expressa, tenha de ser também acessível, não tendo a lei procedimental tributária, publicada posteriormente à Constituição de 1976, deixado de dar cumprimento à injunção constitucional.

  A jurisprudência do STA cedo abandonou a sua inicial − e equívoca − postura de não ter por incluídos no tipo dos atos constitucionalmente sujeitos ao dever de fundamentação os atos tributários, sob a argumentatio de que estes não seriam, em sentido estrito, atos administrativos e de que sempre seria possível ver cumpridas essas exigências de fundamentação expressa nos diversos atos de procedimento prévio à prática do ato de liquidação, que, então, estavam contemplados nos diferentes códigos fiscais vigentes, tendo passado a entender serem-lhes aplicáveis as regras constantes do art.º 1º do DL. n.º 256-A/77, de 17 de Junho. O CPT regulou a matéria em cinco dos seus preceitos - artigos 19.º alínea b), 21.º, 80.º, 81.º e 82.º-, evidenciando, desse modo, uma peculiar intenção de dar cumprimento ao sentido prescritivo do comando constitucional. E o mesmo veio a fazer a LGT, que constitui, hoje, a sede em que a matéria se encontra essencialmente regulada.

   O sentido que emerge do art.º 77.º da LGT corresponde a uma densificação normativa da injunção constitucional proclamada no art.º 268.º, n.º 3 da CRP, sendo de acentuar que a fundamentação, na sua expressão nuclear, tem de ser “expressa e acessível quando afete(m) direitos e interesses legalmente protegidos”.

É pela função que cumpre, ou pelos objetivos que deve satisfazer, que se afere, em cada tipo de situação jurídico-factual, a exigência e grau de densidade da “enunciação contextual, expressa, dos motivos de facto e de direito com base nos quais a administração se decidiu praticar o concreto ato administrativo nos precisos termos em que o fez” e a sua apreensibilidade cognitiva por parte do titular dos direitos afetados (Cfr. neste sentido, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 594/2008, disponível no respetivo website).

Abordando esta matéria diz-nos este aresto o seguinte: “[a] doutrina aponta, em geral, como sendo os seguintes os objectivos da fundamentação: uma função de pacificação traduzida na idoneidade para convencer o administrado da "justeza" do acto; uma função de defesa do administrado, ao possibilitar-lhe o recurso aos meios contenciosos e graciosos; uma função de autocontrole, por facilitar "a autofiscalização da Administração pelos próprios órgãos intervenientes no processo ou pelos seus superiores hierárquicos"; uma função de clarificação e de prova, porquanto "fixa em termos claros qual o significado que os órgãos administrativos atribuíram às provas e argumentação jurídica desenvolvida, qual a marcha do raciocínio e opções que se precipitaram no acto"; uma função democrática, por dar a conhecer aos administrados as razões da sua actuação concreta; uma função de incentivo à boa administração, pois que a "obrigação de motivar obriga as autoridades administrativas a examinar atentamente o bem fundado das decisões que pensam vir a tomar"; uma função de um bom controle da Administração, na medida em que "o conhecimento dos motivos das decisões habilitam os terceiros a melhor ajuizar da necessidade de interpor recurso administrativo ou contencioso dos actos que os afectam" (cf., entre muitos, Rui Machete, «Processo Administrativo Gracioso perante a Constituição Portuguesa de 1976», in Estudos de Direito Público e Ciência Política; José Osvaldo Gomes, Fundamentação do Acto Administrativo, 1979; José Carlos Vieira de Andrade, O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, 1991, pp. 65 e segs.). Sintetizando, pode dizer-se que o dever de fundamentação cumpre, essencialmente, três funções: a de propiciar a melhor realização e defesa do interesse público; a de facilitar o controlo da legalidade administrativa e contenciosa do acto e a de permitir aos órgãos hierarquicamente superiores ou tutelares controlar, mais eficazmente, a actividade dos órgãos subalternos ou sujeitos a tutela.”

  A fundamentação é, deste modo, consubstanciada pelo discurso verbalizado pela administração como suporte constituinte da decisão administrativa. Nesta perspetiva, estamos perante uma externação formal das razões de facto e de direito ser contemporâneas ou coetâneas da decisão administrativa e constituintes da mesma, não podendo considerar-se como legítimas todas aquelas que, ainda que porventura, com um propósito integrador do sentido da sua anterior declaração, apenas sejam produzidas e invocadas posteriormente.            

Numa formulação que traduz apenas a síntese do que a doutrina mais autorizada escreveu sobre a matéria, pode repetir-se que a fundamentação se consubstancia num discurso funcional externado pela administração, expresso, formal, explícito, contextual, com capacidade para dar a um destinatário normal, colocado na situação concreta do destinatário do ato as razões “justificantes” e “justificativas” - sob o ponto de vista formal - da concreta decisão administrativa.

  Deste modo, quanto a este importante nódulo problemático, é forçoso reconhecer que, em todo o caso, para estarmos em face de um discurso normativo-racionalmente justificativo, este não poderá deixar de expressar, no mínimo exigível, os factos apreendidos, o modo como foi efetuada essa prognose, os critérios adotados e as valorações efetuadas, devendo ser apenas tido como suficiente naqueles casos onde se revele uma sustentada aptidão comunicativa ou compreensividade para revelar inteiramente o juízo do autor do ato administrativo, de modo que possa permitir ao seu destinatário e ao tribunal o controlo da sua validade substancial, aceitando-o, reclamando, recorrendo hierarquicamente ou sindicando-o contenciosamente[2].

  Nessa linha, cremos que discurso fundamentador administrativo não pode deixar, assim, de ter em conta o contexto jurídico-histórico-factual em que acontece o ato tributário. Porém, não podemos deixar igualmente de relevar que, quanto às particulares exigências de fundamentação do ato tributário, esta pode assumir uma certa “geometria variável”.

No caso sub judicio, constata-se inexistir nos autos qualquer ato ou decisão da AT da qual constem, segundo os criteria supra enunciados, concretamente os factos e as razões de direito com base nos quais concluiu que o Requerente era sujeito passivo de IMT na expressão quantitativa expressa no ato de liquidação.

Na verdade, em face do constante da alínea … do Probatório, a enunciação dos factos relativos à liquidação é feita, no procedimento, de forma esparsa, sob a epígrafe de “demonstração de liquidação provisória. Este documento não serve como comprovativo de liquidação”. Por outro lado, neste documento, a AT não invoca qualquer razão jurídica para relevar os valores que aí descreve para efeitos de liquidação do IMT, o que consubstancia, no mínimo, uma insuficiência de fundamentação que equivale à falta de fundamentação, por não dar a conhecer o percurso racional cognitivo-valorativo dos elementos e valores que aí menciona.

Do mesmo vício padece a decisão da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente, a que alude o probatório. Mesmo admitindo que esta decisão administrativa tenha por subjacentemente adquiridos os factos reportados na referida “demonstração da liquidação provisória”, sempre é impossível distrair o resultado da liquidação a partir da simples consideração desses factos e das disposições legais que nela são mencionadas – o n.º 5 do art.º 2.º do CIMT e a regra 11.ª do n.º 4 do art.º 12.º do mesmo diploma.

Com efeito, no discurso expendido nenhuma alegação é feita pela administração no sentido de demonstrar que, por via dos preceitos legais citados, os valores abarcados na divisão (partilha) do património comum do autor da herança e do seu cônjuge e da partilha da outra parte desse património comum integrante da herança a partilhar pelos seus filhos, a ter em conta para efeitos da liquidação devessem ser apenas os relativos aos bens imóveis e que o excesso, para efeitos de tributação em IMT, devia ser aferido em função do que recebesse, por referência ao valor desses imóveis, para além do valor que coubesse na quota ideal dos herdeiros.

Nestes termos, tal decisão padece de falta de enunciação das razões jurídicas pelas quais os factos apontados conduzem racionalmente ao resultado tido como excesso na quota parte dos bens imóveis, tendo em conta o valor dos mesmos e a sua consideração dentro do valor da quota ideal. Recuperando o que se afirma no referido Acórdão do TC, a decisão não “fixa em termos claros qual o significado que os órgãos administrativos atribuíram às provas e (a) argumentação jurídica desenvolvida, qual a marcha do raciocínio e opções [jurídicas e fáticas] que se precipitaram no acto”, sendo que idêntica conclusão poderia alcançar-se, mutatis mutandis, por referência ao quadro de valores que foi apresentado pela AT, integrando o art.º 25 da contestação; ainda que, em todo o caso, tal fundamentação, por não integrar os termos do ato tributário, constitua, nos termos expostos, uma fundamentação irrelevante, atendo o seu carácter a posteriori.

  Se as razões de facto e de direito, com base nas quais foi praticado o ato de liquidação, traduzissem ou correspondessem ao alegado na contestação da AT, nos seus artigos 4.º  a 41.º, decerto que o percurso cognitivo e valorativo seria apreensível por qualquer contribuinte normal. Mas tal não encontra em qualquer ato praticado, no procedimento, enquanto ato de liquidação ou, sequer, na decisão da reclamação graciosa, qualquer equivalência.

  No caso em apreço, e contrariamente ao sustentado na Resposta da Requerida, pode afirmar-se, com meridiana certeza, que o Requerente se viu privado de vislumbrar os elementos pertinentes na determinação dos fundamentos de facto e de direito que pudessem justificar o resultado do ato de liquidação. E tanto é assim que o Requerente desenvolveu a sua defesa em função de diversos quadros de facto possíveis e da eventualidade de aplicação de diversos regimes jurídicos.

  Termos em que se tem de concluir pela procedência da causa de pedir da falta de fundamentação e, consequentemente, pela ilegalidade e anulabilidade da liquidação.

  Face a este juízo, fica prejudicado o conhecimento das outras causas de pedir, sendo que a possibilidade do seu conhecimento apenas se revelaria possível na presença de uma decisão de fundamentação que explicitasse, nos termos atrás referidos, o percurso racional cognitivo-valorativo efetivamente prosseguido pela AT.

 

 

6. Decisão

 

Destarte, atento o exposto, este Tribunal Arbitral decide:

a) julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação da liquidação de IMT, no valor de € 15.581,64; e, em consequência, anular as decisões de indeferimento da reclamação graciosa;

b) condenar a Requerida nas custas processuais infra determinadas.

 

 

7. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 15.581,64.

 

8. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 918,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

 

Coimbra, 29 de abril de 2020,

 

 

 

 

João Pedro Rodrigues

 

 

Notifique-se.

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Já antes desta alteração o legislador ordinário tinha intervindo no sentido de consagrar a exigência desse dever, através do DL. n.º 256-A/77, de 17 de Junho. Este diploma não fez, aliás, nada de mais do que conferir todo o sentido que, nesse âmbito, era já possível extrair do artigo 269.º da Constituição da República Portuguesa (versão originária) quando previa o direito à informação sobre o andamento dos processos e do conhecimento das resoluções tomadas já que estes momentos envolvem necessariamente a externação das razões de facto e de direito que acabam por suportar a marcha do procedimento administrativo e a sua conclusão num certo sentido.

[2] Sobre estas exigências, ainda que com concretização posterior relativamente à avaliação da matéria tributável, cfr. o nosso texto “Breves considerações sobre a natureza do acto de determinação indirecta da matéria tributável e o dever da sua fundamentação expressa”, in Aa. Vv., Estudos em memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida”, 2007.