Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 662/2020-T
Data da decisão: 2021-12-28  IVA  
Valor do pedido: € 330.177,84
Tema: IVA - Conhecimento da tempestividade da reclamação graciosa, enquanto pressuposto processual do processo arbitral. Objecto do processo. Facto interruptivo do prazo de caducidade do direito à liquidação. Definição da localização das operações sujeitas a imposto. Efeitos da indicação, pela AT, de prazo superior ao legal.
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SUMÁRIO:

 

1. A tempestividade da reclamação graciosa constitui condição necessária para a tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral, pelo que integra um pressuposto processual deste último e é de conhecimento oficioso.

 

2. Para que o Tribunal possa conhecer da impugnação do acto tributário, não é necessário que seja igualmente impugnada a legalidade da prévia reclamação administrativa.

 

3. O mero envio da notificação, para o domicílio fiscal electrónico, não interrompe o prazo de caducidade do direito à liquidação, sendo para tal necessário que decorra o prazo previsto no artigo 39.º, n.º 10, do CPPT.

 

4. Em sede de IVA, a definição normativa da localização das operações sujeitas prevalece sobre a localização física ou geográfica destas.

 

5. Tendo a AT notificado a Requerente para exercer o direito de audição prévia em 30 dias e não em 15 dias, esta não poderá ser prejudicada por tal erro.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros José Poças Falcão (Presidente), Martins Alfaro e Nuno Cunha Rodrigues (Vogais), designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 03-05-2021, acordam no seguinte:

 

 

I. RELATÓRIO

           

A..., LDA., (doravante abreviadamente designada por “A...” ou “Requerente”), contribuinte fiscal n.º..., com domicílio fiscal na Rua ..., n.º ..., ...-... ... veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAMT”), pedindo a anulação dos seguintes actos de liquidação de IVA e de juros:

  1. 201501 – 2019...– € 12.124,45
  2. 201502 – 2019 ... – € 17.115,45
  3. 201503 – 2019 ...– € 49.450,00
  4. 201504 – 2019 ... – € 2.109,10
  5. 201505 – 2019 ... – € 15.007,50
  6. 201506 – 2019 ... – € 13.800,00
  7. 201508 – 2019 ... – € 32.108,00
  8. 201509 – 2019 ... – € 28.658,00
  9. 201510 – 2019 ... – € 12.857,00
  10. 201511 – 2019 ... - € 12.995,00
  11. 201512 – 2019 ... – € 133.953,34.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT”).

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 30-11-2020.

Em 18-01-2020, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação dos Árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT.

 

Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 artigo 11.º do RJAMT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Colectivo foi constituído em 03-05-2021.

 

A AT apresentou Resposta em que invocou duas excepções e defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

Notificada para o efeito, a Requerente respondeu à matéria de excepção, pugnando pela sua improcedência.

 

Foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAMT e decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas simultâneas.

 

Por despacho de 29-10-2021, foi prorrogado o prazo para decisão até ao máximo de 2 meses.

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

 

 

 

II. DO PEDIDO DA REQUERENTE:

 

A Requerente solicita a anulação de um conjunto de actos de liquidação de IVA e de juros, com os seguintes fundamentos e pela seguinte ordem:

  1. A Requerida AT não se pronunciou sobre a audição prévia em sede de procedimento de inspecção tributária;
  2. A Requerente foi notificada das liquidações após decorrido o prazo de caducidade do direito à liquidação;
  3. Há falta de fundamentação das liquidações.
  4. A Requerente é um sujeito passivo de IVA, pelo que não teria a obrigação de liquidar o IVA.

 

III. DA RESPOSTA DA REQUERIDA AT:

 

Em resposta, a Requerida invocou as seguintes excepções:

 

  1. O pedido arbitral é intempestivo;
  2. É requerida a pronúncia arbitral sobre a legalidade dos actos de liquidação, mas não sobre a decisão final do procedimento de reclamação graciosa.

 

A Requerida pronunciou-se, ainda, pela total improcedência dos vícios invocados pela Requerente.

 

 

IV. MATÉRIA DE FACTO

 

4.1. - Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

O procedimento de inspecção tributária foi interno.

 

A Requerente foi notificada do projecto de relatório final do procedimento de inspecção tributária, em 29-10-2019.

 

Naquela notificação, a Requerente foi igualmente notificada para o exercício do direito de audição prévia, sendo-lhe concedido um prazo de 30 dias para o efeito.

 

A notificação para o exercício do direito de audição prévia em 30 dias deveu-se a "erro do sistema".

 

A Requerente, notificada para exercer o direito de audição prévia na instrução do procedimento de inspecção tributária, apresentou a sua pronúncia em 25-11-2019.

 

Na referida pronúncia, a Requerente alegou que os serviços a que se referia o projecto de relatório do procedimento de inspecção tributária não haviam sido prestados em Portugal, mas sim no território autónomo de Hong Kong e na República Popular da China, pelo que não eram tributáveis em território nacional, assim questionando frontalmente a localização das operações que a Requerida pretendia tributar.

 

A Requerida proferiu a decisão final do procedimento de inspecção tributária em 15-11-2019, sem que tivesse em conta o que a Requerente alegou em sede de audição prévia.

 

A Requerida remeteu à Requerente a decisão final do procedimento de inspecção tributária por correio registado em 21-11-2019.

 

Do relatório final do procedimento de inspecção tributária, que originou as liquidações objecto do pedido de pronúncia arbitral, fundamentando-as, consta o seguinte:

 

 

 

II.4.5.6. Incidência de Imposto sobre as prestações de serviços

 

De acordo com as regras de localização definidas na alínea a) do n.° 6 do artigo 6.° do CIVA, independentemente da sede, estabelecimento estável ou domicílio do prestador de serviço, são tributáveis em território nacional, as prestações de serviço efetuadas a um sujeito passivo dos referidos no nº 5 do artigo 2.° do CIVA, no âmbito da sua atividade, sendo, para o efeito, considerados sujeitos passivos de imposto relativamente a tais serviços, quando os respetivos prestadores não tenham, no território nacional, sede, estabelecimento estável ou, na sua faltas, o domicílio, a partir do qual os serviços são prestados, as pessoas singulares ou coletivas referidas na alínea a) do mesmo normativo legal.

 

Como sujeito passivo enquadrável na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.° do CIVA e adquirente de serviços pagos a empresas sediadas em Hong Kong e China, assume, por força do disposto na alínea e) do n.º 1 do art.2° do CIVA, o papel de sujeito passivo de imposto, competindo-lhe, nesse sentido a liquidação do imposto à taxa de 23%, sobre o valor tributável nas prestações de serviços.

 

A realização exclusiva de operações isentas previstas no artigo 9.° do CIVA não confere, contudo, nos termos do estatuído no artigo 20.º do CIVA e inaplicabilidade do disposto no artigo 23.°, direito à dedução do imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos.

 

Face ao seu enquadramento o sp estaria obrigado a declarar tais operações nas correspondentes declarações periódicas, conforme espelhado no quadro que se segue, e a entregar o montante do imposto exigível apurado nos termos dos artigos 19.1 a 26.º do CIVA, no prazo previsto para o envio da referida DP:

 

No âmbito do CIVA, com a localização dos imóveis, em território nacional, as despesas inerentes às vendas dos mesmos, estão abrangidas, peio regime previsto na al. a), do n.º 6, do art.º 6.º , sendo tributáveis em território nacional, as prestações de serviços, efectuadas a um sujeito passivo, dos referidos no n.º 5, do art.º 2.º, ambos do CIVA, nomeadamente a pessoas singulares ou colectivas, que de um modo independente e com caracter de habitualidade, exerçam actividades de produção, comércio ou prestações de serviços, quando os respetivos prestadores, não tenham, no território nacional sede, estabelecimento estável, ou na sua falta, o domicilio, a partir do qual os serviços são prestados, com os devidos enquadramentos legais da al. a) e e), do n.º 1 e n.° 5, do art.° 2.º, também do CIVA.

 

A sociedade A..., Lda., está enquadrada na al. a), do n.° 1, do art.º 2.°, sendo adquirente dos serviços, dos fornecedores em Hong-Kong e China, será o s.p., em território nacional, a ter obrigação da liquidação do mesmo, à taxa de 23%, nos termos do art.º 18.°, n.° 1, al. c), sobre o valor tributável das prestações de serviços, ambos do CIVA.

 

A realização exclusiva de operações isentas, previstas no art.º 9.°, do CIVA, pela A... não confere o direito à dedução do imposto, que tenha incidido sobre os bens ou serviços adquiridos, nos temos do art.º 20.º, e inaplicabilidade, do art.º 23.°, ambos do CIVA.

 

III. DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS À MATÉRIA TRIBUTÁVEL

 

III. 1. Imposto Sobre o Valor Acrescentado

 

Face ao exposto anteriormente, por critérios objectivos e meramente aritméticos, apurámos o seguinte imposto em falta, não entregue nos cofres do Estado, conforme os art.°s 18.°, 19.º a 27.º, 41.º e 78.º do CIVA, distribuído pelos períodos seguintes:

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Os valores das bases tributáveis, foram retirados do extrato dá conta 62223- FSE/Publicidade/ Outros Mercados, para cada mês, a fim de se apurar os valores a liquidar, para cada período.

 

Em síntese, o montante do imposto em falta, por período, é o seguinte:

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As notificações de todas as liquidações objecto do pedido de pronúncia arbitral, foram enviadas por Via CTT e dirigidas para o domicílio fiscal electrónico da Requerente.

 

As referidas notificações foram enviadas nas seguintes datas:

Liquidação (201501) - 2019 ... - Envio de Notificação em 2019-12-13;

Liquidação (201502) - 2019 ... - Envio de Notificação em 2019-12-13;

Liquidação (201503) - 2019 ... - Envio de Notificação em 2019-12-13;

Liquidação (201504) - 2019 ... - Envio de Notificação em 2019-12-13;

Liquidação (201505) - 2019 ... - Envio de Notificação em 2019-12-13;

Liquidação (201506) - 2019 ... - Envio de Notificação em 2019-12-13;

Liquidação (201508) - 2019 ... - Envio de Notificação em 2019-12-13;

Liquidação (201509) - 2019 ... - Envio de Notificação em 2019-12-13;

Liquidação (201510) - 2019 ... - Envio de Notificação em 2019-12-20;

Liquidação (201511) - 2019 ... - Envio de Notificação em 2019-12-21;

Liquidação (201512) - 2019 ... - Envio de Notificação em 2019-12-20.

 

As notificações das liquidações controvertidas foram validamente efectuadas.

 

O IVA em causa nas liquidações controvertidas resulta, em parte, de operações tributáveis realizadas com entidades com sede ou domicílio no território autónomo de Hong Kong.

 

A Requerente não fez constar das declarações periódicas de IVA as operações que realizou e que estiveram na base das liquidações controvertidas.

 

A reclamação graciosa, tendo por objecto os actos tributários que são objecto do pedido de pronúncia arbitral, foi apresentada em 24-02-2020.

 

A notificação da decisão final do procedimento de reclamação graciosa ocorreu em 02-09-2020.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 24-11-2020.

4.2. - Factos não provados

 

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.

 

4.3. - Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

O Tribunal não está obrigado a pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar apenas a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamentam o pedido formulado pelo autor (cfr. artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.ºs 2 a 4, do Código do Processo Civil) e consignar se a considera provada ou não provada (cf. ainda o artigo 123.º, n.º 2, do Código do Processo e Procedimento Tributário, ex vi artigo 29º, do RJAMT).

 

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação à prova produzida, na sua convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas - artigo 607.º, n.º 5 do CPC.

 

Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - artigo 371.º, do CPC), é que não domina, na apreciação da prova produzida, o princípio da livre apreciação.

 

Por outro lado, nos termos do artigo 16.º, alínea e), do RJAMT, vigora no processo arbitral tributário o princípio da livre apreciação dos factos, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção dos árbitros.

 

A matéria de facto dada como provada tem génese nos documentos juntos pela Requerente bem como no processo administrativo, de que foi junta cópia pela Requerida, que não foram impugnados e os quais, analisados de forma crítica, constituíram a base da convicção do Tribunal, quanto à realidade dos factos descrita supra.

V. MATÉRIA DE DIREITO

 

5.1 - Excepções invocadas pela Requerida

 

O artigo 124.º, do CPPT, não faz alusão às questões processuais, diversamente do que sucede no CPC, no artigo 608.º, n.º 1, o qual estabelece um critério de precedência lógica, que impõe ao tribunal a apreciação prioritária das questões que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.

 

Com efeito, nos termos do artigo 608, n.º 1, do CPC, «sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 278.º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica».

 

Considera-se aplicável ao processo arbitral o estabelecido no artigo 608, n.º 1, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT.

 

E o artigo 18.º, n.º 1, alínea b), do RJAMT, refere-se expressamente às «excepções que seja necessário apreciar e decidir antes de conhecer do pedido».

 

A tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral constitui um pressuposto processual, cuja não verificação conduz à absolvição da instância - artigos 278.º, n.º 1, al. e), 576.º, n.º 2 e 577.º, todos do CPC, e 89.º, n.º 4, alínea k), do CPTA, ex vi o artigo 29.º, n.º 1, do RJAMT -, pelo que irá apreciar-se e decidir-se, em primeiro lugar, quanto a esta questão e, de seguida, quanto à segunda excepção suscitada pela Requerida.

 

5.1.1 - 1.ª excepção invocada - Intempestividade do pedido arbitral

 

A Requerida suscitou a intempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral, uma vez que a Requerente identificou como objecto do pedido as liquidações impugnadas, não fazendo «qualquer alusão, no seu pedido de pronúncia arbitral, a qualquer reclamação graciosa que tenha apresentado no seguimento da notificação dos actos de liquidação, não formulando/concretizando ao Tribunal qualquer pedido tendente à anulação do indeferimento expresso que operou, decorrente da sua reclamação graciosa».

 

Pelo que, ainda segundo a Requerida, «não tendo a Requerente sindicado o acto em segundo grau, inexiste o apoio que poderia firmar a tempestividade do pedido e, consequentemente, a possibilidade de o Tribunal apreciar o pedido formulado relativamente ao acto de autoliquidação, na medida em que, estando os poderes de cognição do Tribunal limitados pelo pedido, e não o podendo, como é óbvio exceder, fica o Tribunal impedido de apreciar e declarar (o que quer que seja) relativamente ao pedido concretizado, por o mesmo ser intempestivo.».

 

Não assiste razão à Requerida.

 

Na decisão arbitral proferida no processo n.º 415/2020-T,[1] considerou-se, em sede de delimitação do objecto processual da arbitragem, o seguinte:

 

«No pedido arbitral, começa-se por invocar a violação dos princípios da verdade material e do inquisitório com fundamento na não admissão da produção de prova testemunhal, que havia sido requerida pelos sujeitos passivos no âmbito do procedimento tributário de reclamação graciosa, e que se lhes afigurava ser útil para a descoberta da verdade material e à correcta aplicação do direito, especialmente em vista a determinar os objectivos que estiveram na base da constituição da F... SGPS.

Importa referir, quanto a este aspecto, que o âmbito de competência dos tribunais arbitrais, na arbitragem tributária, é definido por referência à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte ou pagamento por conta ou à declaração de legalidade de actos de fixação da matéria tributável que não dê origem a liquidação (artigo 2.º, n.º 1, do RJAMT). Pelo que, tendo sido deduzido um pedido de constituição de tribunal arbitral para a apreciação da legalidade de um acto de liquidação, o objecto do processo é esse próprio acto tributário (neste sentido, o acórdão do STA de 18 de Maio de 2011, Processo n.º 0156/11, e, na doutrina, cfr. SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário, vol II, Coimbra, 2017, pág. 434).

A reclamação graciosa precedentemente deduzida, nos termos do artigo 70.º do CPPT, constituindo uma garantia procedimental do contribuinte, corresponde a um procedimento de segundo grau, permitindo que a Administração possa ainda tomar uma posição definitiva sobre a questão antes de o interessado poder suscitar um litígio judicial. E nesse sentido, o efeito útil e relevante do indeferimento da reclamação graciosa traduz-se na manutenção na ordem jurídica do acto tributário de liquidação».

 

Na senda deste entendimento - a que o Tribunal adere -, tendo sido deduzido um pedido de constituição de tribunal arbitral para a apreciação da legalidade de um acto de liquidação, o objecto do processo é esse próprio acto tributário, não sendo necessário - nem adequado - sindicar, em sede arbitral, a legalidade da reclamação graciosa.

 

É certo que poderia dizer-se, como a Requerida, que a falta de menção ao procedimento de reclamação graciosa no objecto do pedido arbitral, seria impeditiva de o tribunal arbitral conhecer da tempestividade da apresentação da reclamação graciosa.

 

Mas tal asserção não é correcta.

 

Com efeito, o tribunal arbitral tem sempre competência, em razão da matéria, para o conhecimento oficioso do procedimento de reclamação graciosa, enquanto pressuposto da tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral.[2]

 

Sendo a intempestividade da reclamação graciosa de conhecimento oficioso - artigos 578.º, do CPC e 89.º, nrs. 2 e 3, alínea k), do CPTA, aplicáveis ex vi o artigo 29.º, n.º 1, do RJAMT -, então, a maiori, ad minus, também a tempestividade da reclamação graciosa é de conhecimento oficioso.

 

Assim, este Tribunal não aprecia a tempestividade ou a intempestividade da reclamação graciosa, enquanto causa de pedir, mas sim enquanto pressuposto processual do pedido de constituição do tribunal arbitral.

 

E, enquanto pressuposto processual do pedido de constituição do tribunal arbitral, não pode o Tribunal deixar de apreciar a questão da tempestividade da reclamação graciosa, para efeitos de apreciação e decisão relativamente à tempestividade do pedido de pronúncia arbitral.

 

O Tribunal Arbitral não aprecia, assim, a questão da legalidade da tempestividade ou da intempestividade da reclamação graciosa, limita-se a apreciar as suas consequências.

 

Isto é, limita-se a ponderar quais as consequências da tempestividade ou da intempestividade da apresentação da reclamação graciosa no pedido de constituição do tribunal arbitral.

 

E, para tal ponderação, têm os tribunais arbitrais competência material, uma vez que cabe na competência dos tribunais a apreciação dos pressupostos processuais, sendo a tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral um deles e tratando-se de matéria de conhecimento oficioso, como já se viu anteriormente.

 

A isto acresce que o Tribunal tem, não só o poder, como também o dever, de apreciar os pressupostos processuais - neles se incluindo a tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral.

 

A tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral constitui, assim, um pressuposto processual que cabe ao tribunal arbitral apreciar e de cuja apreciação o tribunal, no exercício do seu poder jurisdicional - exclusivamente vinculado à lei -, não pode prescindir.

 

Em consequência, tem este Tribunal competência, em razão da matéria, para conhecer da tempestividade da apresentação da reclamação graciosa, relativa aos actos tributários em causa, enquanto pressuposto processual da própria tempestividade do pedido de constituição do tribunal arbitral, sem que para tal se revele necessário que a Requerente integre no objecto do processo a referida reclamação graciosa.

 

Nesse sentido, ou seja, que a tempestividade da reclamação administrativa é condição necessária para a tempestividade - no caso - da impugnação judicial, vejam-se, entre muitos, os seguintes arestos:

 

Acórdão do Tribunal Central Administrativo - Sul, proferido em 23-03-2017, no processo n.º 07644/14:

«Estando a reclamação graciosa fora de prazo à data em que foi apresentada, em consequência e independentemente da mesma ter sido ou não decidida, a impugnação judicial também será intempestiva».[3]

 

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 02-04-2009, no processo n.º 0125/09:

«Só a tempestividade da reclamação graciosa abre à impugnante, neste caso, a possibilidade de discutir a legalidade das liquidações impugnadas, pois a sua extemporaneidade da reclamação ainda que não consequência a extemporaneidade da impugnação conduz à sua necessária improcedência, por se reagir, então, contra um caso decidido ou resolvido».[4]

 

E «só a tempestividade da reclamação graciosa abre à impugnante, neste caso, a possibilidade de discutir a legalidade das liquidações, pois a confirmar-se a intempestividade da reclamação tudo se passa como se esta não tivesse existido».[5]

 

Ora, decorre da matéria de facto dada como provada que a reclamação graciosa em causa foi tempestivamente apresentada, que a notificação da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa ocorreu em 02-09-2020 e que o pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 24-11-2020, daqui se concluindo que o pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado dentro do prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, do RJAMT, ou seja, que foi tempestivamente apresentado.

 

Termos em que se julga improcedente a excepção de intempestividade, suscitada pela Requerida.

 

5.1.2 - 2.ª excepção invocada - Efeitos jurídicos de não ter sido requerida pronúncia arbitral sobre a legalidade da decisão final do procedimento de reclamação graciosa

 

A Requerida excepcionou ainda com fundamento em que a Requerente requereu pronúncia arbitral sobre a legalidade dos actos de liquidação, mas não sobre a decisão final do procedimento de reclamação graciosa.

 

Defende a Requerida que, não tendo a Requerente incluído, no pedido, a apreciação sobre a decisão final do procedimento de reclamação graciosa, não pode o tribunal arbitral conhecer apenas da legalidade das liquidações impugnadas, já que sempre teria que ser igualmente impugnada aquela decisão final.

 

Relativamente a esta matéria de excepção, reafirma-se aqui o entendimento que consta da decisão arbitral proferida no processo n.º 415/2020-T,[6] atrás citada:

 

«[…] o âmbito de competência dos tribunais arbitrais, na arbitragem tributária, é definido por referência à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte ou pagamento por conta ou à declaração de legalidade de actos de fixação da matéria tributável que não dê origem a liquidação (artigo 2.º, n.º 1, do RJAMT). Pelo que, tendo sido deduzido um pedido de constituição de tribunal arbitral para a apreciação da legalidade de um acto de liquidação, o objecto do processo é esse próprio acto tributário (neste sentido, o acórdão do STA de 18 de Maio de 2011, Processo n.º 0156/11, e, na doutrina, cfr. SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário, vol II, Coimbra, 2017, pág. 434).

 

E, concordando-se integralmente com o entendimento plasmado na decisão arbitral n.º 419/2014-T,[7] citar-se-á, por abundância:

 

«Como decorre da competência atribuída aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciar a legalidade de actos de liquidação, e não de decisões de indeferimento de recursos hierárquicos ou reclamações graciosas, quando há lugar a impugnação administrativa de actos de liquidação, estes actos de liquidação são sempre impugnáveis em prazo a contar da notificação da decisão de indeferimento, pois o artigo 10.º, n.º 1, indica-os como termos iniciais. Por isso, o requerente da arbitragem não tem que impugnar os actos de segundo ou terceiro grau e, mesmo quando impugna estes, considera-se que o objecto do processo arbitral é sempre o objecto mediato que constituem os actos de liquidação mantidos por actos de segundo ou terceiro grau sempre que o Requerente não impute a estes vícios próprios. Mas, obviamente, se o requerente da arbitragem apenas pretende ver declarada a ilegalidade de actos de liquidação, que são os que, sendo susceptíveis de execução coerciva, afectam a sua esfera jurídica, não tem que impugnar os actos de segundo ou terceiro grau, que carecem de lesividade autónoma.

 

De resto, uma hipotética deficiência na formulação do pedido não teria como corolário a absolvição da instância, apenas dando lugar, se necessário, mas sempre que necessário, a uma correcção, como impõe a alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º do RJAMT, em sintonia com o direito constitucional à impugnação contenciosa de todos os actos da Administração que lesem os direitos dos contribuintes (artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da CRP)».

 

Razões pelas quais o Tribunal considera que a Requerente não tinha que incluir, no objecto da impugnação, o acto de segundo grau, in casu, a reclamação graciosa anteriormente apresentada.

 

Improcede, assim, a excepção suscitada pela Requerida.

 

Em consequência, entrar-se-á de seguida no conhecimento de mérito da causa.

 

5.2 - Questões a decidir

 

As questões a decidir, correspondentes aos vícios que a Requerente assaca às liquidações impugnadas, são as seguintes:

 

  1. Verifica-se a ilegalidade das liquidações impugnadas, por as respectivas notificações terem ocorrido após o decurso do prazo de caducidade do direito do Estado à liquidação?

 

  1. Verifica-se a ilegalidade das liquidações impugnadas, advinda da inexistência da obrigação, por parte da Requerente, de liquidar o IVA?
  2. Verifica-se a preterição de formalidades essenciais, advinda da não concessão, à Requerente, da possibilidade de exercer cabal e adequadamente o direito de audição prévia à decisão final do procedimento de inspecção tributária?

 

  1. Verifica-se a falta de fundamentação das liquidações impugnadas?

 

5.2.1 - Questão prévia - Ordem de conhecimento dos vícios invocados pela Requerente

 

A ordem das questões a decidir, contante do ponto anterior da presente decisão arbitral, não coincide com a ordem dos correspondentes vícios invocados pela Requerente, no pedido de pronúncia arbitral.

 

Com efeito, tudo indica que, no pedido de pronúncia arbitral, a Requerente não invocou os vícios segundo uma ordem de subsidiariedade, antes os elencou segundo uma ordem lógica cronológica.

 

A Requerente atribuiu aos actos impugnados vícios procedimentais e vícios substantivos.

 

O artigo 124.º, n.º 2, alínea b), do CPPT, aplicável ao processo arbitral tributário nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAMT, regula a «ordem de conhecimento dos vícios na sentença», estatuindo que a apreciação dos vícios invocados seguirá a ordem indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade, sendo que, quando tal não ocorra, deverão apreciar-se os vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.

 

A propósito desta norma, JORGE LOPES DE SOUSA[8] anotou o seguinte:

 

«No n.º 1 deste artigo, determina-se que o tribunal conhecerá prioritariamente dos vícios de inexistência ou de nulidade do acto impugnado e só depois dos vícios sancionados com anulabilidade.

O estabelecimento desta ordem de conhecimento dos vícios, tem como pressuposto que, conhecendo de um vício que conduza à eliminação jurídica do acto impugnado, o tribunal deixará de conhecer dos restantes, pois, se assim não fosse, se o julgador tivesse de conhecer de todos os vícios imputados ao acto, seria indiferente a ordem de conhecimento.

Isto significa, assim, que o reconhecimento da existência de um vício leva a considerar prejudicados o conhecimento dos restantes […].

Trata-se, na verdade, de uma regra que só se pode justificar quando o reconhecimento da existência de um vício impeça definitivamente a renovação do acto, pois, se esta for possível em face do vício reconhecido, será necessário apreciar os restantes, uma vez que o conhecimento destes poderá levar à anulação com base num vício que impeça tal renovação.

[…]

Com esse objectivo de assegurar a melhor protecção para o impugnante, se estabelece que, em cada um dos grupos de vícios referidos (inexistência e nulidade, por um lado, e anulabilidade, por outro) o julgador deve conhecer prioritariamente dos vícios cuja procedência determine mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos [alínea a), do n.º 2 do art. 124.º do CPPT].   

No que concerne aos vícios que constituam anulabilidade, estabelece-se o mesmo critério, excepcionando apenas os casos em que o impugnante tenha estabelecido uma relação de subsidiariedade entre os vícios imputados ao acto (como é permitido pelo art. 101.º do CPPT), em que é dada primazia à sua vontade, se for ele o único impugnante ou, sendo mais que um, todos tenham estabelecido a mesma relação de subsidiariedade

 

Assim, o Tribunal começará por apreciar os vícios substantivos invocados,  uma vez que a sua eventual procedência determinará a impossibilidade da repetição dos actos impugnados, e apreciará de seguida os vícios procedimentais assacados pela Requerente aos referidos actos.

 

5.2.2 - Primeira questão a decidir: Verifica-se a ilegalidade das liquidações impugnadas, por as respectivas notificações terem ocorrido após o decurso do prazo de caducidade do direito do Estado à liquidação?

 

Alega a Requerente, nesta parte, que «as liquidações em apreço nestes autos foram notificadas à Requerente depois de decorrido o prazo de caducidade».

 

Decorre da resposta da Requerida que esta considera não ocorrer caducidade do direito à liquidação porque as notificações das liquidações foram enviadas ao sujeito passivo, umas em 13-12-2019, outras em 20-12-2019 e uma outra, em 21-12-20219.

 

O procedimento de inspecção tributária foi interno.

 

As notificações foram remetidas por Via CTT e dirigidas para o domicílio fiscal electrónico da Requerente.

 

Constituem objecto do presente pedido de pronúncia arbitral, em todos os casos, liquidações de IVA, relativas ao exercício de 2015.

 

Nos termos do artigo 45.º, n.º 1, da LGT, que fixa o prazo-regra de caducidade do direito à liquidação, «o direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro».

 

E o n.º 4, da mesma norma, estabelece o termo inicial do prazo de caducidade nos seguintes termos: «o prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, excepto no imposto sobre o valor acrescentado e nos impostos sobre o rendimento quando a tributação seja efectuada por retenção na fonte a título definitivo, caso em que aquele prazo se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou, respectivamente, a exigibilidade do imposto ou o facto tributário».

 

Disto decorre que, no caso concreto das liquidações em discussão nos presentes autos, o prazo do direito à liquidação terminaria no dia 31-12-2019, caso não sobreviesse facto interruptivo da caducidade daquele direito.

 

A Requerida alega que o referido prazo de caducidade foi interrompido pelo envio das notificações das liquidações.

 

Antes de mais, haverá que apurar se o envio da notificação da liquidação constitui facto com aptidão para interromper o prazo de caducidade do direito à liquidação, o qual tem, como se sabe, natureza de prazo peremptório.

 

O artigo 45.º, n.º 1, da LGT, estabelece, como regra aplicável à contagem de todos os prazos de caducidade, que «o direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte […]» no respectivo prazo.

 

Decorre daqui que o mero envio das notificações não é suficiente para interromper o prazo de caducidade do direito à liquidação, sendo necessário que as referidas notificações sejam recebidas pelo destinatário, já que se trata de actos receptícios.

 

Com efeito, decorre daquela norma da LGT que a notificação do acto de liquidação constitui requisito da perfeição do acto tributário, já que só ele torna a dívida decorrente da liquidação, certa e exigível.

 

Dito de outro modo, apenas com a notificação válida do acto de liquidação é que se considera concluído o procedimento administrativo de liquidação.

Como se doutrinou no acórdão do STA, de 01-10-2017, proferido no processo n.º 0660/15:

 

«Neste entendimento há que convir que embora quer conceptualmente quer materialmente [sejam] distintos o acto administrativo da liquidação e o acto que o notifica, a notificação não deixa de integrar o procedimento de liquidação e embora não seja pressuposto da legalidade do acto da liquidação na medida em que a notificação é sempre um acto posterior é contudo pressuposto da sua eficácia donde o prazo de caducidade continuar a correr enquanto não ocorrer a notificação válida do acto que o interrompa.

 

E dado que neste caso e em todo o direito público a notificação adquire a relevância de principio essencial no procedimento administrativo, como direito e garantia dos administrados ex vi do disposto no artigo 268 do CRP, o artigo 45 da LGT explicitando essa relevância e exigência constitucional, integrando a exigência de notificação da liquidação no prazo de caducidade do direito à liquidação faz decorrer a interrupção do prazo da caducidade do direito de liquidar pela AT não do momento em que pratica o acto de liquidação mas do momento da sua notificação ao sujeito passivo desse acto».[9]

 

Em consequência, o envio das notificações das liquidações, objecto do pedido de pronúncia arbitral, não interrompeu o prazo de caducidade do direito à liquidação, sendo tal prazo unicamente interrompido pela notificação válida das referidas liquidações.

 

Haverá então que apurar de seguida quais as datas em que ocorreram as notificações das liquidações controvertidas.

 

Previamente, importa dizer que se dá como assente que as notificações das liquidações controvertidas foram efectuadas validamente.

 

Com efeito, nem a Requerente suscitou a eventual invalidade das notificações das liquidações, objecto do pedido de pronúncia arbitral, nem resultam dos autos elementos que demonstrem tal invalidade.

 

As notificações de todas as liquidações em causa nos autos foram enviadas por Via CTT e dirigidas para o domicílio fiscal electrónico da Requerente.

 

Nos termos do artigo 39.º, n.º 10, do CPPT, «as notificações efetuadas para o domicílio fiscal eletrónico consideram-se efetuadas no décimo quinto dia posterior ao registo de disponibilização daquelas, sendo que a contagem só se inicia no primeiro dia útil seguinte, no sistema de suporte ao serviço público de notificações eletrónicas associado à morada única digital ou na caixa postal eletrónica da pessoa a notificar».

 

Deste modo, as notificações registadas na Via CTT em 13-12-2019 consideram-se efectuadas em 30-12-2019.

 

Pelo que as liquidações a que se referem as notificações registadas na Via CTT em 13-12-2019, se tornaram perfeitas antes de decorrido o respectivo prazo de caducidade, assim interrompendo este prazo.

 

Improcede, assim, nesta parte, a pretensão da Requerente.

 

No que respeita às restantes liquidações - relativas aos períodos de imposto 201510, 201511 e 201512 -, cujas notificações foram enviadas, por via CTT, para o domicílio fiscal electrónico da Requerente, em 20-12-2019 e em 21-12-2019:

 

Do que se concluiu quanto às liquidações a que se referem as notificações registadas na Via CTT em 13-12-2019, decorreria, em princípio, que as notificações das restantes liquidações, relativas aos períodos de imposto 201510, 201511 e 201512 - enviadas para o domicílio fiscal electrónico da Requerente apenas em 20-12-2019 e em 21-12-2019 - não teriam o alcance de interromper o prazo de caducidade do direito à liquidação, uma vez que, nos termos do artigo 39.º, n.º 10, do CPPT, o termo do prazo de quinze dias ali referido já teria recaído em 2020.

 

Porém, o artigo 45.º, n.º 7, alínea a), da LGT, estatui que «o prazo referido no n.º 1 é de 12 anos sempre que o direito à liquidação respeite a factos tributários conexos com:

a) País, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças, que devendo ser declarados à administração tributária o não sejam».

 

Tal como resulta da matéria provada, o IVA em causa nas liquidações controvertidas resulta, em parte, de operações tributáveis realizadas com entidades com sede ou domicílio no território autónomo de Hong Kong.

 

O território autónomo de Hong Kong consta da lista dos países, territórios e regiões com regimes de tributação privilegiada, claramente mais favoráveis, aprovada pela Portaria n.° 150/2004, de 13 de Fevereiro.

 

Por outro lado, resulta do probatório que a Requerente não fez constar das declarações periódicas de IVA as operações que realizou e que estiveram na base das liquidações controvertidas,

 

Sendo certo que, como veremos mais à frente, considera este Tribunal que a Requerente não estava desobrigada, para efeitos de IVA, de declarar as referidas operações.

 

Assim sendo e verificados os pressupostos constantes do artigo 45.º, n.º 7, alínea a), da LGT, as liquidações relativas aos períodos de imposto 201510, 201511 e 201512, na estrita medida em que respeitem a operações com o território autónomo de Hong Kong, têm o respectivo prazo de caducidade alargado para 12 anos,

 

Pelo que, aquando da efectivação das notificações electrónicas das referidas liquidações, o prazo de caducidade do direito do Estado à liquidação ainda não decorrera.

 

Mas tal já não sucede com as operações realizadas pela Requerente com a República Popular da China.

 

Com efeito, a República Popular da China não consta da lista dos países, territórios e regiões com regimes de tributação privilegiada, claramente mais favoráveis, aprovada pela Portaria n.° 150/20004, de 13 de Fevereiro, pelo que o artigo 45.º, n.º 7, da LGT, não é aplicável a estas operações.

 

Isto é, o prazo de caducidade do direito às liquidações relativas aos períodos de imposto 201510, 201511 e 201512, na estrita medida em que respeitem a operações com a República Popular da China, será o que consta no artigo 45.º, n.º 1, da LGT, isto é, de quatro anos, in casu, com termo inicial no dia 01-01-2016 e termo final em 31-12-2019.

 

Pelo que, aquando da efectivação das notificações electrónicas das referidas liquidações, já se completara o prazo de caducidade do direito do Estado à liquidação.

 

Em suma conclusiva:

 

Quanto às liquidações de IVA, objecto do pedido de pronúncia arbitral, relativas aos períodos de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Agosto e Setembro de 2015, estas foram notificadas à Requerente dentro do prazo de caducidade do direito do Estado à liquidação, improcedendo, nesta parte, a pretensão da Requerente.

 

Já quanto às liquidações de IVA, objecto do pedido de pronúncia arbitral, relativas aos períodos de Outubro, Novembro e Dezembro de 2015, cuja notificação se efectivou em 2020:

 

Quanto ao imposto ali contido, referente às operações realizadas pela Requerente com a República Popular da China, verifica-se a caducidade do direito do Estado à liquidação, procedendo, nesta parte, a pretensão da Requerente e

 

Quanto ao imposto ali contido, referente às operações realizadas pela Requerente com o território autónomo de Hong Kong, não se verifica a caducidade do direito do Estado à liquidação, improcedendo, nesta parte, a pretensão da Requerente.

 

5.2.3 - Segunda questão a decidir: Verifica-se a ilegalidade das liquidações impugnadas, advinda da inexistência da obrigação, por parte da Requerente, de liquidar o IVA?

 

Embora, na opinião deste Tribunal, a Requerente não seja explícita, entende-se que terá pretendido dizer que, enquanto sujeito passivo isento, não se encontra adstrita a liquidar IVA nas suas operações, uma vez que as operações sobre imóveis devem considerar-se localizadas no território autónomo de Hong Kong e na República popular da China.

 

Na sua resposta, a Requerida não se pronunciou sobre este fundamento alegado no pedido de pronúncia arbitral.

 

Entende este Tribunal que o facto de a Requerida realizar operações isentas de imposto não lhe confere algo comparável a uma isenção total de IVA.

 

A questão em concreto reside, não em saber se a Requerente goza de isenção de imposto, mas sim qual é a localização das operações, para efeitos de IVA, das operações por ela praticadas e a que se referem as correcções em discussão.

 

Caso as operações sejam localizadas em território português, sempre haverá a obrigação de liquidar o correspondente IVA.

 

Neste âmbito, é importante começar por dizer que a uma localização física das operações, contrapõe-se uma localização jurídica das operações.

 

Desde a sua pronúncia em sede de direito de audição prévia no procedimento de inspecção tributária, a Requerente parece entender que é a localização física ou geográfica das operações que determinará a sujeição ou não-sujeição destas a imposto.

 

Contudo, em sede de IVA, a verdade é que a localização das operações é definida normativamente.

 

E a definição normativa da localização das operações prevalece sobre a localização física ou geográfica destas.

 

Neste sentido, o Código do IVA dispunha, à altura dos factos, serem «tributáveis as prestações de serviços efectuadas a um sujeito passivo dos referidos no n.º 5 do artigo 2.º, cuja sede, estabelecimento estável ou, na sua falta, o domicílio, para o qual os serviços são prestados, se situe no território nacional, onde quer que se situe a sede, estabelecimento estável ou, na sua falta, o domicílio do prestador» - artigo 6.º, n.º 6, alínea a), do Código do IVA.

 

E que «não obstante o disposto no n.º 6, são tributáveis as seguintes operações: a) Prestações de serviços relacionadas com um imóvel sito no território nacional […]» - Artigo 6.º, n.º 8,  alínea a), do Código do IVA.

 

Assim sendo, as operações em causa encontravam-se, na sua totalidade, localizadas em território nacional.

 

Por esta razão, estava a Requerente obrigada a liquidar o respectivo IVA e a incluir o valor tributável de tais operações nas respectivas declarações periódicas de imposto.

 

Invoca ainda a Requerente, em seu favor, que o ofício-circulado n.º 30.191, de 08-06-2017, do subdirector-geral da AT, IVA, refere que, anteriormente a 2017, os critérios constantes do RE (EU) 282/2011 eram facultativos.

 

Diga-se, antes de mais, que os efeitos, ainda que externos, das instruções administrativas genéricas, não são susceptíveis de prevalecer sobre as normas legais.

 

Tais efeitos externos poderão, eventualmente, fundar a falta de culpa do particular, por exemplo, quanto a eventuais juros compensatórios ou quanto a eventuais infracções fiscais, mas não têm o alcance de derrogar uma norma legal.

 

Ora - e como se viu anteriormente - o Código do IVA continha, à data da verificação dos factos tributários em causa nos presentes autos, normas claras e imperativas sobre a localização das operações a que se referem as liquidações controvertidas.

 

Mas seriam tais normas facultativas, como afirma a Requerente?

 

Transcreve-se o mencionado ofício-circulado n.º 30.191, de 08-06-2017, na parte relevante:

 

«Alterações introduzidas no Regulamento de Execução (UE) n.º 282/2011 do Conselho, de 15 de março de 2011, relativas ao lugar das prestações de serviços relacionadas com bens imóveis

[…]

Considerando que a introdução de um conceito de bens imóveis com vista a garantir o tratamento fiscal uniforme pelos Estados-Membros das prestações de serviços relacionadas com bens imóveis poderia ter um impacto considerável nas práticas legislativas e administrativas dos Estados-Membros e a fim de assegurar uma transição suave para as novas regras, foi entendido que as alterações relativas às prestações de serviços relacionadas com bens imóveis seriam introduzidas apenas em 01/01/2017, sem prejuízo das regras ou práticas já aplicadas nos Estados-Membros.

 

Assim, apesar de, em Portugal, os critérios enunciados nas referidas normas já serem aplicados facultativamente antes de 01/01/2017, é, agora, oportuno divulgar, a todos os interessados, que aqueles critérios são, desde 01/01/2017, de aplicação obrigatória para a determinação do lugar das prestações de serviços relacionadas com bens imóveis».[10]

 

Do texto vindo de citar, decorre apenas que Portugal já aplicava, anteriormente a 01-01-2017, as alterações introduzidas no Regulamento de Execução (UE) n.º 282/2011 do Conselho, de 15 de Março de 2011, relativas ao lugar das prestações de serviços relacionadas com bens imóveis

 

E que essa aplicação, da parte de Portugal, anterior àquela data, era facultativa, uma vez que, nos termos do referido Regulamento de Execução (EU), aquelas alterações apenas se tornavam imperativas para os Estados-membros a partir de 01-01-2017.

 

Com efeito, o artigo 1.º, do Regulamento de Execução (UE) n.º 1042/2013, do Conselho, de 7 de Outubro de 2013, que alterou o Regulamento de Execução (UE) n.º 282/2011, no que diz respeito ao lugar das prestações de serviços, estabelece o seguinte, no que aos autos interessa:

 

«ii) é inserida a seguinte subsecção:

«Subsecção 6-A

 

Prestações de serviços relacionadas com bens imóveis

Artigo 31.º-A

 

1. Os serviços relacionados com bens imóveis a que se refere o artigo 47. o da Diretiva 2006/112/CE incluem apenas os serviços que tenham uma relação suficientemente direta com esses bens. Considera-se que os serviços têm uma relação suficientemente direta com bens imóveis nos seguintes casos:

 

a) Quando derivam de um bem imóvel e esse bem é um elemento constitutivo do serviço e constitui um elemento central e essencial para a prestação dos serviços;

 

[…]

 

p) A intermediação na venda ou na locação ou arrendamento de bens imóveis e na constituição ou transferência de determinados direitos ou direitos reais sobre bens imóveis (equiparados ou não a bens corpóreos), com exceção da intermediação abrangida pelo n. o 3, alínea d);».

 

E, quanto à aplicação no tempo, o artigo 3.º daquele Regulamento estabeleceu que:

 

«O presente regulamento entra em vigor no vigésimo dia seguinte ao da sua publicação no Jornal Oficial da União Europeia.

 

O presente regulamento é aplicável a partir de 1 de janeiro de 2015.

 

Todavia, os artigos 13º-B, 31.º-A e 31.º-B do Regulamento de Execução (UE) n.º 282/2011, como inseridos pelo presente regulamento, são aplicáveis a partir de 1 de janeiro de 2017».

 

Não obstante, Portugal decidiu antecipar facultativamente[11] aquela nova regulamentação, no âmbito interno, tendo-o feito através do Decreto-Lei n.º 186/2009, de 12 de Agosto.

E é essa a explicação da referência, no mencionado ofício-circulado n.º 30.191, de 08-06-2017, ao facto «de, em Portugal, os critérios enunciados nas referidas normas já serem aplicados facultativamente antes de 01/01/2017».

 

Em consequência, improcede, nesta parte, a pretensão da Requerente.

 

5.2.4 - Terceira questão a decidir: Verifica-se a preterição de formalidades essenciais, advinda da não concessão, à Requerente, da possibilidade de exercer cabal e adequadamente o direito de audição prévia à decisão final do procedimento de inspecção tributária?

 

Resulta dos factos provados que na notificação da Requerente para audição prévia, na instrução do procedimento de inspecção tributária, foi concedido a esta um prazo de 30 dias para se pronunciar.

 

Não obstante, a AT concluiu o referido procedimento ao fim de 15 dias e, ao fazê-lo, evidentemente não se pronunciou sobre os argumentos da Requerente, uma vez que esta ainda não se havia pronunciado.

 

A Requerida refere que a notificação para audição prévia em 30 dias se deveu a "erro do sistema".

 

Resulta do artigo 60.º, n.º 6, da LGT, que «o prazo do exercício oralmente ou por escrito do direito de audição é de 15 dias, podendo a administração tributária alargar este prazo até o máximo de 25 dias em função da complexidade da matéria».

 

Não obstante - e como vimos -, a Requerida concedeu à Requerente o prazo, não de 15, mas sim de 30 dias.

 

Deveria, ainda assim, a Requerente ter exercido o seu direito de audição prévia nos referidos 15 dias?

Entendemos que não.

 

Com efeito, o artigo 198.º, n.º 3, do CPC, aplicável ao procedimento arbitral tributário ex vi o artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAMT, claramente estatui que «se a irregularidade consistir em se ter indicado para a defesa prazo superior ao que a lei concede, deve a defesa ser admitida dentro do prazo indicado, a não ser que o autor tenha feito citar novamente o réu em termos regulares».

 

O CPC prevê igualmente que «os erros e as omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes» - artigo 157.º, n.º 6,

 

E o CPTA consigna que a impugnação judicial de actos administrativos possa ser admitida, para além do prazo legalmente previsto, «quando se demonstre, com respeito pelo contraditório, que, no caso concreto, a tempestiva apresentação da petição não era exigível a um cidadão normalmente diligente, em virtude de a conduta da Administração ter induzido o interessado em erro» - artigo 58.º, n.º 3, alínea b),

 

O que tem especialmente aplicação quando a Administração pública indica um prazo de impugnação, ou um modo de contagem do prazo, diferente do previsto na lei.

 

Como referem MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA:[12]

«A norma tutela os princípios da proteção da confiança e da boa fé e dá concretização prática, no plano processual administrativo, ao disposto nos artigos 8º, 9.º e 10.º do CPA».

 

Também o STA, abordando esta questão, expressou o seguinte entendimento:

 

«Pode dizer-se, numa formulação sintética, que a Administração viola a boa-fé quando falta à confiança que despertou num Particular ao actuar em desconformidade com aquilo que fazia antever o seu comportamento anterior, sendo que, enquanto princípio geral de direito, a boa-fé significa “que qualquer pessoa deve ter um comportamento correcto, leal e sem reservas, quando entra em relação com outros pessoas” – apud M. Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves e Pacheco Amorim, in “Código do Procedimento Administrativo”, 2ª edição, a págs. 108 -, apresentando-se como vocacionado para, designadamente, impedir o verificação de comportamentos desleais e incorrectos (obrigação de lealdade).

Aliás, a exigência da protecção da confiança é também uma decorrência do princípio da segurança jurídica, imanente ao Estado de Direito».[13]

 

Nem poderia ser de outro modo, atentos os princípios da boa-fé e da justiça.

 

E também porque não nos parece que ao particular - neste caso, à Requerente - fosse exigível outro comportamento.

 

Neste sentido, veja-se o acórdão do STA, de 09-09-2009, proferido no processo n.º 0461/09:

 

«[…] a jurisprudência tem vindo a adoptar o entendimento que os interessados não devem ser prejudicados por erros de entidades competentes- cfr. acórdãos deste STA de 5/05/87, 24/10/96 e 31/05/05, nos recursos n.ºs 23.205, 39.578 e 46.544.

Neste sentido, nada obsta à aplicação subsidiária do já citado n.º 1 do artigo 161.º do CPC e “maxime” do n.º 3 do artigo 198.º do mesmo diploma ao prever que “Se a irregularidade consistir em se ter indicado para a defesa prazo superior ao que lei concede, deve a defesa ser admitida no prazo indicado, a não ser que o autor tenha feito citar novamente o réu em termos regulares”.

Aplicando este entendimento ao caso que nos ocupa, tendo a ora recorrida sido notificada do indeferimento do recurso hierárquico que interpusera no dia 28/06/05 (4. do probatório), o prazo de três meses que lhe foi concedido nos termos dessa notificação, de natureza substantiva, contínuo e contado de acordo com as regras do artigo 279.º do CC, por remissão do artigo 20.º, n.º 1 do artigo 20.º do CPPT, terminava a 28/09/05 e daí que, tendo a acção administrativa especial sido apresentada nesta precisa data (7. do probatório), se tenha de concluir que a respectiva petição seja tempestiva para efeito de impugnação judicial, dessa forma tornando admissível a convolação, como bem se decidiu no despacho recorrido».[14]

 

Ou o acórdão do TCA - Sul, de 10-07-2014, proferido no processo n.º 07422/14:

 

«Situação diversa seria, por exemplo, a AT ter informado um prazo superior ao legalmente previsto, induzindo, deste modo, o Recorrente em erro, nesse caso, seria então de admitir tempestiva a acção, pois assim impõem os princípios constitucionais da boa-fé e da justiça, e a jurisprudência já o admitiu (nesse sentido, vide, Ac. do STA de 09/09/2009, proc. n.º 0461/09 que “[n]o caso de erro na notificação quanto ao prazo para a interposição dessa acção, nada obsta à aplicação subsidiária do disposto no n.º 1 do artigo 161.º do CPC e “maxime do n.º 3 do artigo 198 do mesmo diploma ao prever que “Se a irregularidade consistir em se ter indicado para a defesa prazo superior ao que a lei concede, deve a defesa ser admitida no prazo indicado, a não ser que o autor tenha feito citar novamente o réu em termos regulares”)».[15]

 

A tudo isto vem acrescer que é a própria Requerida que reconhece ter sido seu o erro na indicação de um prazo superior ao legalmente previsto, embora remetendo para o sempre útil erro de sistema.

 

Na verdade, o referido sistema é o sistema da Requerida e é esta - e não o Requerente - quem tem o domínio de tal sistema.

 

Deste modo, conclui-se que, tendo a Requerida notificado a Requerente para exercer o direito de audição prévia em 30 dias e não em 15 dias, esta não poderá ser prejudicada por tal erro, que é exclusivamente imputável à Requerida.

 

E, portanto, poderia a Requerente ter exercido o direito de audição prévia no referido prazo de 30 dias, o que, de resto, veio a fazer.

 

Mas, no momento em que a Requerente o fez, já a Requerida concluíra o procedimento de inspecção tributária, considerando que aquela não exercera o seu direito de audição prévia, pois considerou que, no caso concreto, o prazo para tal era de 15 e não de 30 dias.

 

Deste modo, a Requerida concluiu o procedimento de inspecção tributária quando ainda decorria o prazo para o sujeito passivo exercer o direito de audição prévia.

 

E, consequentemente, a Requerida proferiu a decisão final do procedimento de inspecção tributária sem que tivesse em conta o que o sujeito passivo alegou em sede de audição prévia.

 

A conclusão do procedimento de inspecção tributária em momento anterior àquele em que legalmente este deveria ter sido concluído, não só constitui, por si mesmo, vício do procedimento, como implica que a Requerida acabou por não dar à Requerente a possibilidade de pronunciar-se em audição prévia o que, por sua vez, constitui vício invalidante do procedimento de inspecção tributária e, consequentemente, do acto tributário que nele encontrou a fundamentação.

Qualquer destes dois vícios procedimentais, revestindo a natureza de vícios de forma,  não assume relevância invalidante, sempre que possa concluir-se, sem margem para dúvidas, que a decisão sobre a pretensão do interessado, teria de ser a mesma que foi tomada.

 

Com efeito e tal como se decidiu no Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA, de 22-01-2014, proferido no processo n.º 0441/13:

«E porque a audiência dos interessados se destina essencialmente a permitir a sua participação nas decisões que lhes digam respeito, contribuindo para o cabal esclarecimento dos factos e uma mais adequada e justa decisão, a omissão dessa audição constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade dessa decisão, a menos que seja manifesto que a decisão viciada só podia, em abstracto, ter o conteúdo que teve em concreto.

Com efeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem formado uma sólida orientação no sentido de que os vícios de forma não impõem, necessariamente, a anulação do acto a que respeitam, e que as formalidades procedimentais essenciais se podem degradar em não essenciais se, apesar delas, foi dada satisfação aos interesses que a lei tinha em vista ao prevê-las.

Consequentemente, e tendo em conta que a audiência prévia dos interessados não é um mero rito procedimental, a formalidade em causa (essencial) só se podia degradar em não essencial (não invalidante da decisão) se essa audiência não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, e se se impusesse, por isso, o aproveitamento do acto – utile per inutile non viciatur.

O que exige um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso».[16]

 

Concordando-se com tal interpretação, será necessário apreciar se é essa a situação que ocorre nos presentes autos.

Como decorre do probatório, a Requerente, notificada para exercer o direito de audição prévia na instrução do procedimento de inspecção tributária, apresentou a sua pronúncia em 25-11-2019.

 

Na referida audição prévia, a Requerente veio alegar que os serviços a que se referia o projecto de relatório do procedimento de inspecção tributária não haviam sido prestados em Portugal, mas sim no território autónomo de Hong Kong e na República Popular da China, pelo que não eram tributáveis em território nacional, assim questionando frontalmente a localização das operações que a Requerida pretendia tributar.

 

Trata-se não só de questão cuja apreciação é controversa - como o demonstra o facto de constituir uma das questões a resolver no presente pedido de pronúncia arbitral -, mas também de questão que constituía a versão do sujeito passivo e em que este baseara o seu entendimento de não considerar as referidas operações como tributáveis em sede de IVA, pelo que não é possível fazer com segurança um juízo de prognose póstuma, no qual se conclua que a decisão tomada no procedimento de inspecção tributária era a única possível ou que o exercício do direito de audição prévia não tinha a mínima possibilidade de influenciar a decisão tomada.

 

Assim, entende este Tribunal não serem de afastar, por via da aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo ao caso concreto, os efeitos invalidantes decorrentes da preterição da formalidade essencial, por não concessão, à Requerente, da possibilidade de exercer cabal e adequadamente o direito de audição prévia à decisão final do procedimento de inspecção tributária.

 

Pelo que tais efeitos invalidantes conduzirão necessariamente à anulação dos actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral, assim procedendo a pretensão da Requerente.

 

5.2.5 - Quarta questão a decidir: Verifica-se a falta de fundamentação das liquidações impugnadas?

 

De um modo absolutamente mínimo, a Requerente invoca o vício da falta de fundamentação numa única linha (n.º 7 do pedido de pronúncia arbitral).

 

A referida invocação é insuficiente, roçando a obscuridade, enquanto causa de pedir.

 

Não obstante, dir-se-á o seguinte:

 

É sabido que, à luz do artigo 77.º, da LGT, a fundamentação pode ser sucinta, bastando que seja suficiente para permitir ao destinatário do acto a reconstituição do iter cognoscitivo percorrido pela AT para ter decidido no sentido em que decidiu e não em outro qualquer e igualmente para permitir ao destinatário o controlo do acto.

 

Para que se considere suficiente a fundamentação do acto tributário, o respectivo destinatário deve ficar na posse dos concretos elementos de facto e de direito que fundam a decisão e de qual foi o itinerário cognoscitivo e valorativo de que resultou a decisão, pois apenas deste modo o particular ficará munido dos elementos essenciais para se conformar ou reagir, administrativa ou judicialmente,

 

Com efeito, ainda que de forma sucinta, o particular tem que ficar conhecedor de quais foram os factos concretos tidos em consideração pela AT, pois só desse modo poderá verificar a sua existência.

 

Também, ainda que de forma sucinta, o particular tem que ficar conhecedor de quais foram os critérios valorativos desses factos, adoptados pela AT, pois só desse modo poderá tomar a decisão  de aceitá-los ou, em alternativa, de discuti-los, apresentar outros factos ou até propor, em alternativa, outros critérios valorativos.

 

E, por fim, ainda que de forma sucinta, o particular tem que ficar conhecedor de quais foram as normas legais tomadas em consideração pela AT, pois só desse modo poderá aceitar a respectiva aplicação ao caso concreto ou, em alternativa, questionar quer a interpretação, quer a própria aplicabilidade de tais normas.

 

Ora, no caso dos presentes autos, as liquidações controvertidas foram antecedidas de um procedimento de inspecção tributária.

 

Do relatório final do referido procedimento - que originou tais liquidações -, facilmente se conclui que a fundamentação que ali consta existe e é suficiente para perceber o iter cognoscitivo que esteve na origem das liquidações.

 

Tal como resulta do probatório, do relatório final do referido procedimento constam as razões, de facto e de direito, que levaram a AT a decidir proceder às correcções que estão na base das liquidações controvertidas.

 

E, tal como resulta do probatório, a Requerente exerceu o direito de audição prévia, no âmbito do procedimento de inspecção tributária.

 

Poderá, claro, a Requerente discordar com aquelas razões, mas estas são suficientemente claras e congruentes para um destinatário normal, colocado na concreta posição da Requerente.

 

De resto, a Requerente foi notificada das conclusões finais do procedimento de inspecção tributária, pelo que não pode ignorar as razões das correcções em causa ao IVA dos períodos a que se refere o pedido de pronúncia arbitral.

 

E o direito dos particulares à fundamentação traduz-se no direito a conhecerem as razões de facto e de direito que determinaram a AT à prática de um acto tributário com certo conteúdo e não qualquer outro.

 

Ora, no caso dos presentes autos, não é crível que, após o decurso do procedimento de inspecção tributária, após o exercício do direito de audição prévia no referido procedimento e após ser notificada do relatório final do procedimento de inspecção tributária, a Requerente pudesse ainda ter dúvidas razoáveis sobre qual a fundamentação dos actos tributários aqui controvertidos.

 

Mostram-se, assim - e no caso concreto -, cumpridos os requisitos impostos à AT no que concretamente diz respeito ao dever de fundamentar as liquidações.

 

A este propósito, poderão ver-se, entre muitos, os seguintes arestos:

 

Acórdão do STA, proferido no processo n.º 0572/17, em 09-05-2018:

«Se a fundamentação das correcções operadas pela AT e que determinaram as liquidações adicionais impugnadas, exprime, em termos claros, suficientes, congruentes e inteligíveis, o critério legal e a motivação das mesmas, fica cumprida a dupla função de controlo endógeno e exógeno da legalidade de tais actos tributários e não ocorre insuficiência de fundamentação».[17]

 

Acórdão do STA, proferido no processo n.º 0512/17, em 14-03-2018:

«Se o critério legal que foi adoptado pela AT para apurar o lucro tributável está enunciado em termos claros e inteligíveis e foi inequivocamente compreendido pelo sujeito passivo, não ocorre falta de fundamentação».[18]

 

Acórdão do STA, proferido no processo n.º 246/09-30, em 17-06-2009:

«Estando o conteúdo do acto tributário em sintonia com o resultado do procedimento administrativo de que aos contribuintes foi sendo dado conhecimento pela via adequada e tendo estes reagido contra o acto de indeferimento de reclamação que está na origem do resultado espelhado na liquidação, não se verifica motivo determinante da anulação do acto tributário por falta de fundamentação».[19]

 

Acórdão do TCA-Norte, proferido no processo n.º             00731/09.0BEPNF, em 24-05-2012:

«Está suficientemente fundamentado o acto de liquidação adicional se as conclusões do relatório da fiscalização esclarecem, minimamente, o contribuinte, que dele foi notificado, das razões de facto e de direito que levaram a Administração Fiscal a liquidar o imposto em causa».[20]

 

Assim sendo, considera-se que não se verifica o invocado vício de falta de fundamentação, improcedendo, nesta parte, a pretensão da Requerente.

 

 

VI. DECISÃO

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral no seguinte:

 

  1. Quanto às liquidações de IVA, objecto do pedido de pronúncia arbitral, relativas aos períodos de Outubro, Novembro e Dezembro de 2015, julgam procedente o pedido arbitral, por caducidade do direito do Estado à liquidação, sendo, contudo, a procedência limitada apenas quanto ao imposto referente às operações realizadas pela Requerente com a República Popular da China, pelo que determinam a anulação das referidas liquidações, restrita à dimensão descrita;

 

  1. Quanto a todas as liquidações de IVA, objecto do pedido de pronúncia arbitral, julgam procedente o pedido arbitral, com fundamento em preterição de formalidade essencial, advinda da não concessão, à Requerente, da possibilidade de exercer cabal e adequadamente o direito de audição prévia à decisão final do procedimento de inspecção tributária, pelo que determinam a anulação das referidas liquidações.

 

VII. VALOR DO PROCESSO

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 330.177,84, indicado pela Requerente, sem oposição da Requerida.

 

 

VIII. CUSTAS

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAMT, fixa-se o montante das custas em € 5.814 (cinco mil, oitocentos e catorze euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique.

 

Lisboa, 28 de Dezembro de 2021

 

Os Árbitros,

 

(José Poças Falcão)

 

(Martins Alfaro)

 

(Nuno Cunha Rodrigues)

 

 



[2] Seguir-se-á aqui iter idêntico ao seguido na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 691-2020-T, ainda não publicada.

[3] Disponível em: http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/-/BC99C5C939871CC1802580F200365C84              

[5] Ídem.

[8] Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, Volume II, 6.ª Edição, Áreas Editora, Lisboa, 2011, pp. 340 e 341.

[10] Realçados do Tribunal.

[11] Pois apenas se encontrava obrigado a introduzir as referidas alterações a partir de 01-01-2017.

[12] Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª ed., Coimbra - Edições Almedina, pág. 751

[13] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 18-06-2003, proferido no processo n. 01188/02, disponível emhttp://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d91f021221d2fdde80256d55003780fd?OpenDocument&ExpandSection=1