Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 660/2017-T
Data da decisão: 2020-09-15  IVA  
Valor do pedido: € 2.144.303,54
Tema: IVA – Direito à dedução; erros de direito e erros materiais; competência do tribunal arbitral – Reforma da Decisão Arbitral (anexa à decisão).
*Substitui a Decisão Arbitral de 12 de março de 2019.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral, Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), Clotilde Celorico Palma e Sérgio Vasques, designados pelas partes, no seguinte:

 

A.  RELATÓRIO

I A marcha do processo

 

1.   Em 21.12.2017 foi aceite, pelo Senhor Presidente do CAAD, o pedido de pronúncia arbitral (PPA) deduzido pela A... GMBH (entidade de direito alemão, registada em Portugal como sujeito passivo não residente sob o número de identificação fiscal ..., com estabelecimento estável com morada na Rua ..., n.º..., Porto, anteriormente B...) ao abrigo do disposto nos art.os 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto -Lei n.º 10/2011, de 20.01 (“Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária”, doravante RJAT), na versão introduzida pelos art.os 228.º e 229.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31.12.

 

2.   Este pedido tem por objeto:

 

a) a declaração da ilegalidade do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) n.º 2017... (notificado em 21.09.2017), em consequência do qual resultou o indeferimento parcial de um pedido de reembolso apresentado, ou seja, na parte em que corrige o IVA deduzido no montante de 2.144.303,54, com todas as legais consequências; ou, subsidiariamente,

 

b) a declaração de ilegalidade da referida liquidação, e a consequente anulação parcial na parte em que corrige o IVA deduzido no montante de € 769.104,86 suportado em operações realizadas quando a Requerente já se encontrava registada para efeitos de IVA em Portugal, com todas as legais consequências.

 

3.  No mesmo dia 21.12.2017, o pedido de constituição de Tribunal Arbitral foi automaticamente notificado às Partes.

 

4. Dentro dos prazos previstos no RJAT, a Requerente procedeu à nomeação de árbitro, tendo indicado a Professora Doutora Clotilde Celorico Palma, nos termos do art.º 11.º. n.º 2, do RJAT. Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, a Requerida indicou como árbitro o Professor Doutor Sérgio Vasques.

 

5. Os árbitros indicados pelas Partes indicaram como árbitro presidente o Professor Doutor António Carlos dos Santos que aceitou essa incumbência no prazo aplicável, tendo, em seguida, tal designação sido efetuada pelo CAAD.

 

6. Em 20.02.2018, as Partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

7. Em 12.03.2018, em conformidade com o preceituado no n.º 7 do art.º 11.º do RJAT, foi constituído o presente Tribunal Arbitral Coletivo, podendo assim apreciar e decidir o objeto do processo.

 

8. Em 23.03.2018 foi proferido despacho arbitral nos termos do n.º 1 do art.º 17.º do RJAT, do qual foi a Requerida notificada na mesma data.

 

9. Em 30.04.2018, a Requerida apresentou a sua resposta, começando por invocar a exceção de incompetência deste TA para apreciar o litígio, questão essa que deve ser objeto de análise prévia.

 

10. Em 11.05.2018, foi proferido um despacho agendando para o dia 08.06.2017 a reunião a que se refere o art.º 18.º do RJAT, para se proceder à inquirição das testemunhas arroladas. Para o efeito, a Requerente foi convidada a indicar os factos sobre os quais as testemunhas deveriam ser inquiridas e designar o tradutor para audição das testemunhas estrangeiras.

 

11. Em 08.06.2018, teve lugar a reunião prevista no art.º 18.º do RJAT e a inquirição das seguintes testemunhas indicadas pela Requerente (cf. Ata da Reunião): C...; D...; E...; F... e G... . Para a audição destas duas últimas testemunhas foi nomeado como tradutor de alemão/ inglês para português (e vice-versa) H..., indicado pela Requerente e aceite pela Requerida e pelo TA, após demonstração das suas credenciais como intérprete. A testemunha I... não compareceu devido a doença, do facto sendo apresentada comprovação. Foi decidido que a sua audição ocorreria no dia 02.07.2017. Foi ainda decidido que as alegações deveriam ser apresentadas por escrito e de forma sucessiva e que, tendo em conta as diligências em curso e a proximidade das férias judiciais (art.º 17.º-A do RJAT), o prazo para a decisão seria prorrogado por dois meses, ao abrigo do art.º 21.º, n.º 2 do RJAT.

 

12. Em 02.07.2018, procedeu-se à inquirição da testemunha I... que não havia comparecido no dia 08.06.2018 (cf. a respetiva Ata). Nessa mesma reunião, o TA notificou a Requerente e a Requerida para, por esta ordem, apresentarem, no prazo de 20 dias, alegações escritas sucessivas, tendo o prazo para a Requerida começado a contar com a notificação da junção das alegações da Requerente. Tendo em conta o disposto no n.º 1 do art.º 21.º do RJAT, nessa mesma ocasião, foi fixado o dia 31.10.2018 como prazo para prolação da decisão arbitral.

 

13. Em 07.09.2018, foram apresentadas alegações por parte da Requerente (juntas aos autos), onde esta, tendo em conta a diligência de inquirição de testemunhas, reitera e desenvolve a sua posição sobre a matéria de facto e de direito expressa na petição inicial, e, bem assim, a sua posição sobre a exceção suscitada pela Requerida, rebatendo a argumentação desta.

 

14. A Requerida não apresentou alegações.

 

15. Em 18.10.2018, tendo em conta a condução do processo definida nas reuniões de 08.06.2018 e 02.07.2018, foi proferido um despacho no sentido de o TA, em conjunto com as Partes, analisar e decidir em reunião a agendar para 08.11.2018, a questão da exceção invocada pela Requerida. No mesmo despacho, atendendo a diversas ausências dos árbitros e à complexidade do processo, foi, ao abrigo do art.º 21.º, n.º 2 do RJAT, prorrogado o prazo para decisão do presente processo por mais dois meses.

 

16. Em 23.10.2018, a Requerida apresentou um requerimento onde refere nada ter a acrescentar sobre a exceção que já não tivesse escrito na contestação (mas invocando, ainda assim, em favor da sua tese dois acórdãos do STA, um de 11.06.2008 e outro de 21.02.2018), e onde solicita, em consequência, a dispensa de realização da reunião agendada para 08.11.2018.

 

17. Ouvida sobre o tema, a Requerente, em 29.10.2018, declarou nada ter a opor ao cancelamento da referida reunião, solicitando ao mesmo tempo que seja desconsiderada a nova argumentação trazida ao processo pela Requerida. Deste modo, a mencionada reunião foi cancelada por despacho de 07.11.2018.

 

18. Por despacho de 28.11.2018, foram as Partes informadas do sentido da posição do coletivo de não ser dado provimento à exceção de incompetência do TA invocada pela Requerida e, consequentemente, da prossecução do presente processo. No mesmo despacho, foi solicitado às Partes a remessa da transcrição (caso esta existisse) dos depoimentos prestados oralmente pelas testemunhas e, por precaução, decidido que, dada a existência de novas ausências de membros do coletivo durante alguns dias de dezembro e de janeiro, o prazo para a prolação da decisão seria prorrogado por mais dois meses.

 

19. Por despacho arbitral de 18.12.2018, foi dado provimento a um pedido da Requerida em que esta solicitava a anulação do despacho de 28.11.2018 na parte em que se referia a posição do TA sobre a exceção de incompetência, a qual será decidida e fundamentada no momento da decisão arbitral.

 

20. Em 08.02.2019, foi emitido o seguinte despacho arbitral: "Tendo em conta um mais completo apuramento da verdade material, notifique-se a Requerente para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos prova documental relativa aos factos alegados nos artigos 40.º e 42.º da petição inicial, bem como nos artigos 96.º. 99.º e 102.º das suas alegações, nomeadamente cópia das partes relevantes do relatório, análise, nota informativa ou instrução que esteve na base da revisão das faturas e/ ou troca de correspondência com a J...".

 

21. Em resposta ao solicitado, a Requerente, em 19.02.2019, juntou aos autos nove documentos (em alemão e inglês, tendo a sua tradução enviada em 04.03.2019, na sequência de despacho arbitral de 21.02.2019 – que prorrogou para 12.03.2019 o prazo para a decisão arbitral, não tendo havido objeção da Requerida em relação à junção ou tradução destes documentos), entre os quais a cópia de um memorando da K... de 20.10.2014 sobre o enquadramento em IVA das transações efetuadas pela Requerente, de um outro da L... relativos a propostas de consultoria fiscal sobre o mesmo tema e de documentos que provam o envolvimento da empresa M... na identificação das questões fiscais da Requerente, e, bem assim, diversos email e trocas de correspondência.

 

22. Em 05.03.2019, o Tribunal Arbitral determinou a notificação da Requerida para se pronunciar, querendo, no prazo de 5 dias, sobre os documentos traduzidos juntos aos autos pela Requerente, o que veio a ser efetuado através do Sistema de Gestão Processual, com expedição da notificação eletrónica em 07.03.2019.

 

23. A decisão arbitral foi prolatada em 12.03.2020 (retificada por despacho de 23.04.2020).

 

24. A Requerida deduziu impugnação da decisão arbitral no TCA-Sul (processo n.º 44/19.9BCLSB).

 

25. Na sequência da comunicação, em 27.05.2020, do Acórdão do TCA-Sul que declarou nula a decisão arbitral, nos autos de impugnação acima referidos (processo n.º 44/19.9BCLSB), por violação do contraditório, foi reaberto o presente processo e, por despacho arbitral, datado de 17.06.2020, promovida a notificação da Requerida, concedendo-se o prazo de 10 dias para esta se pronunciar sobre os documentos traduzidos juntos pela Requerente [em 04.03.2019].

 

26. Em 23.06.2020, em virtude do falecimento do Exmo. Prof. Doutor António Carlos dos Santos, árbitro-presidente e relator do processo, o Exmo. Senhor Presidente do CAAD proferiu despacho tendo em vista a respetiva substituição nos termos legais.

 

27. Na sequência do requerimento apresentado pelos árbitros designados pelas partes para que o árbitro-presidente fosse designado pelo Conselho Deontológico, foi, por despacho de 26.06.2020, designada a Dra. Alexandra Coelho Martins nessa qualidade, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com nomeação em 30.07.2020.

 

28. O Acórdão do TCA-Sul proferido no processo de impugnação autuado sob o n.º 44/19.9BCLSB, respeitante ao presente processo arbitral, transitou em julgado em 02.07.2020.

 

29. Nessa mesma data, a Requerida, na sequência da notificação do despacho arbitral (de 17.06.2020) para exercício do contraditório sobre a documentação traduzida junta pela Requerente, veio requerer a extinção da instância, por esgotamento do poder jurisdicional, ao abrigo do disposto no artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, do que a Requerente foi notificada, também para exercício do contraditório, conforme despacho de 01.09.2020.

 

30. Em 11.09.2020, a Requerente pronunciou-se no sentido de dever ser declarada improcedente a exceção suscitada pela Requerida, seguindo o processo os seus termos até final.

 

31. O requerimento de extinção da instância apresentado pela AT foi indeferido por despacho de 15.09.2020, que precede a presente decisão, por entender este Tribunal Arbitral que a decisão arbitral inicial foi proferida em prazo, ainda que o tenha sido no último dia.

 

II O Litígio

 

Fundamentação da posição da Requerente

 

32. Em defesa da sua posição, a Requerente, em síntese, alega que:

 

a) na base do presente litígio está a não aceitação pela Requerida da correção de uma errada qualificação de operações tributárias (prestações de serviços em vez de transmissões de bens) levada a cabo por uma empresa sua fornecedora, a J... S.A.;

 

b) apesar de estas operações não terem sido corretamente faturadas ou reportadas pela J... S.A., tendo esta empresa ocorrido em diversos erros, daí não resultou qualquer prejuízo para o Estado;

 

c) as correções promovidas pela Requerida ao IVA dedutível, que estiveram na origem da liquidação ora impugnada referem-se a IVA liquidado à Requerente, em dezembro de 2015, na sequência de faturas emitidas pela J..., S.A. (identificadas nos artigos 56.º e 57.º da PI)

 

d) o prazo para a emissão das faturas corrigidas não é o de dois anos, como defende a Requerida, por aplicação do art.º 78.º, n.º 3 do Código do IVA (CIVA), mas o de quatro anos, decorrente do art.º 98.º, n.º 2 do CIVA, em conjugação com o art.º 22.º do mesmo diploma (erro de direito).

 

33. A Requerente contesta assim a posição da Requerida (segundo a qual estaríamos perante “faturas de correção” que não foram declaradas na declaração periódica relativa ao período de imposto em que foram emitidas e em que o respetivo descritivo menciona como operação tributável uma “transmissão de bens”), uma vez que, tendo a referida faturação incidido sobre componentes de torres eólicas adquiridas pela J... S.A. que, em conjunto com outras componentes fornecidas pela Requerente, foram objeto de montagem por aquela empresa com o objetivo de entregar à Requerente o produto final (Nacelle), estaríamos perante "prestações de serviços".

 

34. De facto, o valor aportado pela J... S.A. referente a serviços de montagem e componentes incorporadas, designadamente, as componentes Generator e Converter (adquiridas pela J... S.A., até 2013, à sociedade N..., S.A.) nunca excedeu um montante de 30% relativamente ao custo total de uma Nacelle.

 

35. Assim, nos termos do art.º 4, n.º 2, alínea c), do CIVA, esta operação deveria ser qualificada como prestação de serviços e não como transmissão de bens.

 

36. Não dispondo, na altura, a Requerente de um estabelecimento estável, com uma estrutura com meios técnicos e humanos para o qual os serviços fossem prestados, os serviços levados a cabo pela J... S.A. não seriam sujeitos a IVA em Portugal, por aplicação a contrario da regra geral de localização prevista no art.º 6.º, n.º 6, alínea a), do CIVA.

 

37. Sucede, porém, que a J... S.A qualificou erradamente como transmissões de bens as operações efetuadas com a Requerente, liquidando IVA nas chamadas “faturas originárias” (emitidas com o número de identificação fiscal alemão da Requerente), pois entendeu que levava a cabo uma transmissão de bens localizada em Portugal.

 

38. Contudo, no início de 2015, na sequência de uma auditoria interna promovida pela Requerente, esta comunicou à J... S.A. que havia detetado o mencionado erro de qualificação das operações na emissão das faturas.

 

39. Perante isto, em fevereiro de 2015, a J... S.A, tendo em vista a correção da liquidação indevida de IVA, emitiu nota de crédito para anulação das faturas que mencionavam indevidamente transmissões de bens sujeitas em Portugal, bem como novas faturas, agora sem liquidação de IVA.

 

40. Acontece, porém, que a J... S.A. incorreu então em novo erro: nas novas faturas emitidas, indicou como justificativo da não liquidação de IVA o art.º 14.º do Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias (“RITI”), em vez de referir o art.º 6.º, n.º 6, alínea a), do CIVA.

 

41. Este erro, que não foi identificado na altura pelas partes contratantes, deveu-se provavelmente ao facto de os serviços da J... S.A. recorrerem a anteriores modelos de faturas (onde se mencionava o RITI), dado as menções ao enquadramento aplicável em sede de IVA serem feitos manualmente nas faturas.

 

42. Assim, quer a nota de crédito, quer as novas faturas (com erros) foram reportadas pela J... S.A. na declaração periódica de IVA de fevereiro de 2015.

 

43. A Direção de Finanças de ... (DF...) iniciou uma ação de inspeção em resposta ao pedido de reembolso do crédito de IVA na declaração periódica de IVA de agosto de 2015 efetuado pela J... S.A.

 

44. A J... S.A. defendeu então que as faturas em análise eram relativas a prestações de serviços e não a transmissões de bens, contestando a qualificação efetuada pela AT, a qual, partindo do enquadramento das operações como transmissões intracomunitárias de bens, solicitou a prova de expedição dos bens para outro EM e, na ausência desta, deu informalmente nota de que iria proceder à correção do valor do reembolso no montante de € 1.027.946,88.

 

45. Não obstante não ter concordado com a posição da DF... (pois entendia que as operações deveriam ser qualificadas como prestações de serviços), a J... S.A. procedeu à emissão de uma nota de crédito para anular as faturas emitidas em fevereiro de 2015 e emitiu novas faturas, com liquidação de IVA, tendo sido com base nessas faturas que a Requerente exerceu o seu direito à dedução.

 

46. No entanto, é cometido novo erro pela J... S.A., pois, ao invés de reportar estas novas faturas na declaração periódica de substituição n.º..., nos campos 3 e 4, limitou-se a retirar do campo 40 o valor do IVA da nota de crédito.

 

47. Na sequência da posição da DF... e com vista a uniformizar os seus procedimentos, a J... S.A. decidiu também corrigir as faturas emitidas entre 08.11.2011 e 18.07.2012.

 

48. Assim, em dezembro de 2015, a J... S.A. procedeu à emissão de notas de crédito, no valor de € 1.458.021,66, para anular as faturas inicialmente emitidas, e emitiu novas faturas, com liquidação de IVA, usando o número de identificação fiscal português da Requerente.

 

49. Contudo, em virtude de manifesto erro, as novas faturas, bem como as notas de crédito, não foram reportadas na declaração periódica correspondente ao período da sua emissão (dezembro de 2015), sem que deste procedimento resultasse lesão financeira para o Estado.

 

50. Os procedimentos de anulação e emissão de faturas subsequentes foram, assim, motivados pelo facto de a J... S.A., bem como a Requerente, terem concluído que as faturas emitidas originariamente não revelavam uma correta qualificação jurídico-tributária, tendo sido as faturas em causa emitidas com liquidação de IVA porque assim foi exigido pela AT, na sequência do procedimento inspetivo à J... S.A.

 

51. No que respeita à Requerente, o IVA está relacionado com operações que conferem o direito à dedução e foi mencionado em faturas que cumprem integralmente os requisitos previstos no art.º 36.º do CIVA.

 

52. Mas, segundo a Requerente, ainda que se entendesse que se verificou uma qualquer incorreção formal no descritivo das faturas, esta não prejudicaria o exercício do direito à dedução, pois constitui entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) que o grau de exigência no descritivo das faturas ou relativo a outros requisitos formais, para efeitos do exercício do direito à dedução, não deverá ser desproporcional face aos fins de identificação da operação e do controlo da fraude e evasão fiscais.

 

53. Ora, no caso sub judice, sustenta a Requerente, que não foram colocados em risco os fins de uma correta cobrança do IVA, nem o eficaz controlo das operações por parte da AT, uma vez que o imposto foi liquidado e entregue nos cofres do Estado.

 

54. Tendo assim sido cumpridos, no essencial, os requisitos previstos nos artigos 19.º, 22.º e 36.º do CIVA, não pode a Requerida negar à Requerente o exercício do direito à dedução pelo facto de o seu fornecedor –J... S.A. – não ter reportado numa declaração periódica de IVA as últimas faturas emitidas.

 

55. Na realidade, tal reporte não é condição para o exercício do direito à dedução na esfera do adquirente, nem tão-pouco pode ser negado o direito à dedução em virtude de as faturas, pelas razões já aduzidas, não fazerem expressa menção a prestações de serviços.

 

56. A negação do direito à dedução iria traduzir-se uma penalização contrária quer ao princípio da neutralidade, princípio central no sistema comum de IVA, quer ao princípio da proporcionalidade.

 

57. A título subsidiário, a requerente alega ainda que as faturas constantes dos documentos 11 a 33 da petição inicial, a que corresponde IVA deduzido no montante de € 769.104,86, foram emitidas pela J... S.A. com data posterior ao registo de IVA em Portugal da Requerente, ou seja, após 20.08.2012, pelo que, pelo menos neste ponto, não deveria haver dúvidas quanto ao reconhecimento do direito à dedução do imposto suportado, razão pela qual a liquidação impugnada deve ser objeto de anulação parcial, naquele montante.

 

58. Quanto a estas faturas, contesta a Requerente a posição da Recorrida, segundo a qual as faturas em causa foram “indevidamente emitidas ao adquirente com NIF DE, quando já possuía registo de IVA em Portugal, e para os quais não haveria direito ao reembolso pelo regime de reembolso a sujeitos passivos não estabelecidos em Portugal” , e ainda que “Embora o prazo de quatro anos ainda não tenha expirado relativamente às faturas originárias, não podem estas ser utilizadas porque o NIF do adquirente não coincide e, por isso não cumpre os requisitos ao art.º 36, n.º 5 do CIVA. Para que a retificação regularmente operasse tinha de ser emitido documento retificativo, nota de crédito, o que só poderia produzir efeitos nos prazos do art.º 78.º, n.º 3 do CIVA”.

 

59. Ou seja: segundo a Requerente (uma vez que a Requerida reconhece que o IVA foi efetivamente suportado pela Requerente, quando esta já se encontrava registada para esse efeito em Portugal), isso implicava, de acordo com a própria doutrina emanada da AT, que o pedido de reembolso deveria ser efetuado nos termos do art.º 22.º do CIVA. De facto, as “faturas originárias” acima referenciadas mantêm-se válidas para todos os efeitos jurídico-tributários, incluindo o direito à dedução por parte da Requerente, sem prejuízo de o NIF do adquirente indicado na fatura dizer respeito ao seu NIF alemão e não ao NIF português.

 

60. Contudo, ainda que se entendesse que as “faturas originárias” não produzem efeitos em virtude de terem sido objeto de anulação (e sem prejuízo de a Requerente entender não ser aplicável in casu o art.º 78.º, n.º 3 do CIVA), de facto, a J... S.A. anulou as faturas originárias, tendo indicado, nas últimas faturas emitidas, o número de IVA português da Requerente.  

 

61. Em 09.07.2018 a Requerente apresentou alegações escritas (juntas aos autos), onde reiterou e desenvolveu a sua posição relativamente à defesa da Requerida por exceção (a analisar adiante) e por impugnação, agora sustentada por transcrições provenientes da inquirição de testemunhas entretanto efetuada.

 

62. Segundo a Recorrente, decorre da inquirição das testemunhas a confirmação dos factos alegados na PI, nomeadamente que:

- a J... S.A. se limitou a proceder a serviços de montagem de componentes enviados pela Requerente;

 apenas no início de 2015 foi detetado que o regime de IVA aplicado nas faturas padecia de erro, por deficiente enquadramento jurídico-tributário das operações;

- tal facto deu-se em resultado de uma reanálise por parte da Requerente dos procedimentos seguidos à escala mundial, originando a constituição de um grupo de trabalho para o efeito;

- foi efetuada em Portugal uma análise das relações comerciais entre a Recorrente e a J... S.A. pela K..., que concluiu pela qualificação das operações tributáveis como sendo prestação de serviços, facto comunicado à J... S.A.;

- que os erros na faturação desta última empresa se deviam à falta de conhecimentos técnicos bastantes das pessoas responsáveis pela faturação, bem como ao uso de um software de gestão inadequado para a realidade portuguesa.

 

63. Segundo a Recorrente, a prova documental e testemunhal veio confirmar "que os procedimentos de anulação e emissão subsequentes foram motivados pelo facto de a J... S.A., bem como a Requerente, terem concluído que as faturas emitidas originariamente não revelavam um correto enquadramento jurídico-tributário, sendo que, inclusivamente, as faturas melhor identificadas no artigo 56.º da PI foram emitidas com liquidação de IVA tal como exigido pela Autoridade Tributária na sequência do procedimento inspetivo sobre a J... S.A."

 

64. A Recorrente reitera e reforça ainda a invocação da jurisprudência europeia, nomeadamente a decorrente do acórdão do TJUE Biosafe-Indústria de Reciclagens, de 12.04.2018, proferido no proc. C-8/17, segundo a qual o prazo para o exercício do direito à dedução se deve contar não da emissão das faturas iniciais mas da emissão ou receção dos documentos retificativos, desde que não se encontre provada a falta de diligência do adquirente ou conluio fraudulento entre as partes, incumbindo às autoridades fiscais competentes o ónus dessa prova.

 

Fundamentação da posição da Requerida

 

65. Notificada, em 30.04.2018 a Requerida apresentou a sua resposta, defendendo-se por exceção (alegando a incompetência do TA para decidir o presente litígio, questão a analisar posteriormente) e por impugnação. Solicita a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, por não provado, defende que as operações entre a Requerente e a J..., S. A. devem ser qualificadas como transmissões de bens e que o prazo para "correção das faturas é o de dois anos, por aplicação do n.º 3 do art.º 78.º do CIVA". Com base na argumentação a seguir sintetizada, a Requerida pede a sua absolvição de todos os pedidos com as legais consequências.

 

66. Na sequência de pedido de reembolso de IVA, solicitado pela ora requerente, no valor de € 15.850.827,91, na declaração periódica relativa ao período de janeiro de 2016, foi desencadeado um procedimento inspetivo (cujo relatório foi junto aos autos e se dá como reproduzido), de molde a aferir da legitimidade do referido pedido.

 

67. Até agosto de 2012, a Requerente atuou em Portugal como sujeito passivo não residente, não registado, nem estabelecido no território nacional, faturando as operações tributáveis, quer para o mercado interno, quer para o mercado intracomunitário, com utilização do seu número de identificação fiscal alemão (DE ...).

 

68. Deste modo, suportou imposto que redundou em situação de crédito de imposto perante o Estado, sendo o mesmo reembolsado após pedidos formulados ao abrigo do Regime de Reembolso do IVA a sujeitos passivos não estabelecidos no Estado membro de reembolso, publicado em anexo ao DL nº 189/2009, de 12.08, cujo art.º 6.º o aprovou.

 

69. De 20.08.2012 a 19.01.2015, a Requerente enquadrou-se como entidade não residente sem estabelecimento estável, no regime normal de periocidade mensal, mediante declaração de inscrição no registo tributário em IVA.

 

70. Não foi indicado na referida declaração qualquer representante fiscal, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 30.º do CIVA, representação que só veio a ocorrer em 28.08.2014.

 

71. Durante este período, a Requerente adquiriu bens e serviços a fornecedores nacionais, intracomunitários e operadores de países terceiros, aos quais comunicou, em regra, o seu número de identificação fiscal português.

 

72. A primeira fatura da Requerente emitida com número de identificação fiscal português (PT...) tem data de 27.11.2014.

 

73. Os bens e serviços adquiridos foram, na quase totalidade, enviados ou colocados à disposição da Requerente nas instalações da J..., S.A, sua participada, a fim de se proceder à montagem dos referidos aerogeradores.

 

74. A partir de finais de 2014, a Requerente passou a declarar também aquisições de bens e serviços no mercado interno destinados à execução de projetos de construção de parques eólicos em que interveio como parte contratante/fornecedor.

 

75. Perante a inexistência da declaração de operações ativas com IVA liquidado, a dedução de imposto originou crédito de imposto que foi sendo sucessivamente acumulado, devido ao aumento das operações internas de aquisição de bens e serviços e de importação.

 

76. Em 19.01.2015, a Requerente entregou nova declaração de alterações, enquadrando-se, desde 01.01.2015, como sujeito passivo não residente com estabelecimento estável (EE).

 

77. Além das transações intracomunitárias de bens enquadráveis para efeitos de IVA no artigo 14.º do RITI, a Requerente passou a realizar operações sujeitas e não isentas de IVA, nem enquadráveis na alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA.

 

78. Por estas operações de transmissão de bens e prestação de serviços essencialmente conexas com contratos de manutenção dos parques eólicos, a Requerente liquidou imposto, reportando o mesmo nas declarações periódicas.

 

79. No entanto, continuando a suportar IVA em Portugal que deduziu nas suas declarações periódicas e prosseguindo relativamente às operações ativas com o enquadramento antes referido, resultou uma situação de crédito de imposto que se foi acumulando até perfazer o montante € 15 850 827,91, valor solicitado na declaração periódica de janeiro de 2016.

 

80. O valor do crédito de imposto solicitado resultou, em grande parte, da dedução do imposto suportado entre 08.2012 e 01.2016, pela aquisição de bens e serviços e da realização pela Requerente de operações isentas ou relativamente às quais a obrigação de liquidação do imposto é da responsabilidade do adquirente.

 

81. A Requerente foi executando novos projetos de construção de parques eólicos, ascendendo o apuramento do IVA, no período de dezembro de 2015, ao valor declarado de € 12 870 773,01 (634 868,56 + 12 235 904,47), correspondente à soma do imposto reportado do ano de 2014, mais o incrementado em 2015, sendo aquele valor global reportado para o período seguinte (janeiro de 2016).

 

82. Entre 08.2012 e 01.2016, o aumento do imposto dedutível declarado perfez o montante de € 9 379 503,29, destacando-se a dedução de imposto inscrita no campo 24, da declaração periódica de dezembro de 2015, no montante de € 1 027 946,88.

 

83. No processo de inspeção acima referido, foram analisados os registos e elementos contabilísticos disponibilizados pela Requerente, concluindo a Requerida que os mesmos não preenchiam todos os requisitos previstos nos artigos 44.º do CIVA e 31.º do RITI.

 

84. Apuraram-se ainda situações de dedução indevida de imposto, no valor de € 341.665,00 relativas a transações tituladas por documentos que evidenciam terem as mesmas sido efetuadas anteriormente à data do registo de IVA em Portugal, por parte da Requerente.

 

85. Detetou-se o registo de “faturas de correção” de inexatidões, emitidas após a anulação das faturas originárias, mediante a emissão de notas de crédito, sem respeito pela limitação temporal de correção prevista no n.º 3 do artigo 78.º do CIVA (dois anos), nos casos de haver imposto liquidado a mais.

 

86. Verificou-se igualmente a não correspondência das “faturas de correção” com a verificação de novas transações, a par da sua emissão para além do prazo legal estabelecido.

 

87. Sustenta ainda a Requerida que os montantes constantes das faturas originárias, que foram, em sua opinião, legal e regularmente emitidas pela J... S.A., com IVA e com o número de identificação fiscal alemão da Requerente, poderiam e deveriam ter sido solicitados, nos prazos e condições do “regime de reembolso de IVA a não residentes”, pois era esse o procedimento (não desconhecido da Requerente) de recuperação do imposto pela via do reembolso de IVA a não residentes.

 

88. Do exposto conclui a Requerida que as “faturas de correção” emitidas são irrelevantes em sede de IVA, mantendo-se válidas para todos os efeitos legais as faturas originárias, relativas a transmissões de bens em território nacional emitidas com número de identificação fiscal alemão.

 

89. Na verdade, as “faturas de correção” não materializaram novas transações, nem foram consideradas na declaração periódica relativa ao período de imposto de dezembro 2015, período em que foram emitidas.

 

90. Para que as deduções de imposto fossem possíveis, com base nos documentos que foram analisados era necessário que as novas faturas emitidas (no caso em apreço, as segundas faturas relativamente ao lote das dez originárias e as terceiras faturas relativamente ao lote das 25) fossem corrigidas nos termos legais, o que não aconteceu.

 

91. O n.º 3 do artigo 78.º do CIVA tem como objeto as faturas onde o sujeito passivo liquidou, a mais, imposto a terceiros, e que apresentam inexatidão no valor tributável da operação ou no imposto. A “correção de faturas” tidas por inexatas, devido a erro de enquadramento, não é atendível para efeitos de regularização do imposto liquidado pela J... S.A. para lá do prazo de dois anos previsto no n.º 3 do artigo 78.º do CIVA.

 

92. Acresce que, no último pedido de reembolso relativo a 2011, a J... S.A. apresentou faturas com liquidação de imposto, suportado pela Requerente, em montante que ascendeu a € 341 665,00, reembolso que lhe havia sido pago por transferência bancária internacional em 14.04.2015.

 

93. Ou seja: as referidas faturas foram novamente registadas e reportadas na declaração periódica do pedido do reembolso, de janeiro de 2016, apesar do reembolso já ter sido efetuado. Este facto foi, porém, reconhecido pela Requerente e, consequentemente, tal montante foi expurgado do pedido.

 

B.  SANEAMENTO

 

As Partes

 

94. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas (art.ºs 4.º e 10.º do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03, doravante Portaria de Vinculação).

 

95. O Tribunal foi devidamente constituído.

 

96. Deverá, porém, ser previamente decidida a questão da competência ou incompetência deste TA suscitada pela Requerida, uma vez da sua resolução depende a legitimidade para ele apreciar o mérito da causa.

 

C.  DA PROVA DA MATÉRIA DE FACTO

 

Fundamentação

 

97. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

98. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

99. Em matéria tributária vale o princípio da livre apreciação da prova, segundo o qual o tribunal deve julgar segundo a sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação dos vários meios de prova trazidos ao processo (cf. art.º 655.º, n.º 1 do CPC e art.º 72.º LGT). Mas isto não significa o arbítrio do julgador, pois a prova deve ser valorada segundo critérios da experiência comum.

 

100. Sendo, no processo tributário, admitidos todos os meios gerais de prova (art.º 115.º, n.º 1, do CPPT), foram tidos em consideração, antes de mais, os factos documentados na petição inicial e nas alegações da Requerente, bem como na resposta da Requerida (cf. o artigo 110.º, n.ºs 6 e 7, do CPPT), incluindo o Processo Administrativo juntos aos autos, em especial o Relatório da Inspeção Tributária, cujo valor probatório poderá ter força obrigatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas.

 

101. Foi igualmente admitida e levada a cabo a produção de prova testemunhal, a qual não suscitou da parte da Requerida quaisquer dúvidas ou reservas (nem antes, nem durante, nem em momento posterior à inquirição das testemunhas) quer quanto à idoneidade às pessoas indicadas, quer relativamente aos depoimentos efetuados.

 

102. A prova testemunhal disponibilizada corroborou ou não contradisse a prova documental existente, mostrando-se, deste modo, coerente e com a segurança necessária para não se suscitarem dúvidas razoáveis relativamente à verificação dos factos em análise.

 

103. Não foram dados como provados ou como não provados alegações das partes, consistentes em afirmações conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se tem de aferir em relação à concreta matéria de facto consolidada. 

 

Factos provados com relevo para a decisão

 

104. A Requerente é uma entidade de direito alemão (anteriormente designada como B...), que desenvolve a sua atividade na área das energias renováveis, em concreto na promoção, construção e exploração de parques eólicos, em vários países da União Europeia.

 

105. Em Portugal, o Grupo de que a Requerente é cabeça integra as seguintes entidades:

•             O..., Lda., NIF..., Porto;

•             P…, Lda., NIF…, Vagos;

•             Q…, SA. NIF..., Vagos;

•             R..., SA. NIF..., Vagos;

•             S..., SA. NIF..., Oliveira de Frades

 

106. Dada a dispersão geográfica dos mercados onde opera, bem como a complexidade e dimensão dos aerogeradores, o modelo de negócio da Requerente desenvolve-se nos seguintes moldes:

a) As componentes que constituem um aerogerador são maioritariamente adquiridas pela Requerente a entidades terceiras, que podem ou não ser do Grupo T...;

b) A Nacelle, estrutura nuclear do aerogerador, é montada com as diversas componentes igualmente adquiridas a fornecedores terceiros, sendo também a sua montagem subcontratada a fornecedores terceiros; e,

c) Por regra, as componentes são enviadas pelos fornecedores diretamente para os locais onde os parques eólicos são construídos.

 

107. Atualmente, a Requerente realiza em Portugal operações de venda de projetos de construção de parques eólicos;

 

108. Para além dessas vendas, continua a efetuar:

- aquisições intracomunitárias de bens, enviados de outros Estados-membros para os parques eólicos aqui situados;

- aquisição de componentes a fornecedores portugueses, as quais se destinam a parques eólicos em Portugal ou, tratando-se de componentes de uma Nacelle, são enviadas para fornecedores portugueses que procedem à sua montagem;

- aquisição de serviços de montagem de Nacelles a fornecedores portugueses, as quais são posteriormente enviadas para os parques eólicos, para aí serem objeto de instalação num aerogerador.

 

109. Entre os fornecedores portugueses que adquirem bens e serviços destacam-se: a U... S.A., com o número de identificação de pessoa coletiva ...; a V..., S.A., com o número de identificação de pessoa coletiva 508.254.426 e a já referida J..., S.A., com o número de identificação de pessoa coletiva 508.254.442, as duas últimas empresas integrando, como se disse, o Grupo T... .

 

110. A J... S.A. dedica-se ao fabrico, montagem e comercialização de componentes de turbinas eólicas e a atividades inerentes à montagem, coordenação, gestão e concretização de projetos industriais tendentes à montagem e exploração de parques eólicos.

 

111. A Requerente adquire à J... S.A. serviços de montagem das Nacelles, após adquirir a entidades terceiras – como a W..., S.L. - os diversos componentes das Nacelles, os quais são entregues nas instalações da J... S.A., que procede à montagem da Nacelle (documentos 1 e 2 juntos pela Requerente).

 

112. Concluída a montagem, a Nacelle é enviada pela J... S.A. para o parque eólico, por conta e risco da Requerente (documento 3 junto pela Requerente).

 

113. O valor aportado pela J... S.A. nunca excede os 30%, referente a serviços de montagem e incorporação de componentes.

 

114. No passado, as componentes Generator e Converter eram adquiridas pela J... S.A à sociedade N... S.A. (documento 4 junto pela requerente).

 

115. Os componentes entregues pela Requerente representam pois cerca de 70% do valor de uma Nacelle.

 

116. O enquadramento da ação comercial da Requerente em Portugal comporta três períodos distintos:

a) Até 20.08.2012 atuou como sujeito passivo não residente, não registado, nem possuindo entre nós estabelecimento estável;

b) Entre 20.08.2012 e 19.01.2015, agiu como sujeito passivo não residente, sem estabelecimento estável, mas registado para efeitos de IVA, no regime de periodicidade normal, por forma a reportar as aquisições intracomunitárias de bens, enviados de outros Estados-membros para Portugal;

c) A partir de 19.01.2015, a Requerente ficou enquadrada como sujeito passivo não residente com estabelecimento estável, passando a ser igualmente um sujeito passivo de IRC em Portugal com efeitos retroativos para efeitos deste imposto a janeiro de 2015. Este registo derivou do facto de a Requerente ter projetos de construção de parques eólicos em Portugal com duração superior a 6 meses.

 

117. Até setembro/outubro de 2014, a Requerente emitiu as suas faturas com o NIF alemão (D...), passando a emiti-las com o NIF português em novembro/dezembro de 2014.

 

118. O regime de IVA das operações da Requerente e o reporte das mesmas nas declarações periódicas manteve-se, à exceção dos serviços de montagem das Nacelles prestados pela J... S.A. relativamente a parques eólicos afetos ao estabelecimento estável da Requerente.

 

119. Assim, relativamente a operações da Requerente com a J..., S.A. (únicas em análise no caso sub judice), a Requerente recebeu, com relevância para os autos, dois lotes de faturas (as chamadas faturas originárias) que lhe foram endereçadas pela J..., S.A. com menção expressa a operações de transmissão de bens:

- Lote 1: de 08.11.2011 a 18.07.2012, a J..., S.A. liquidou IVA no montante total de €

1.458.021,66, em 10 faturas emitidas à B... (...) com o NIF alemão

- Lote 2 de 06.08.12 a 19.03.2013, a J..., S.A. liquidou IVA no montante total de € 1.028.494,88, em 25 faturas emitidas à B... (...) com o NIF alemão.

 

120. As 10 faturas do Lote 1, emitidas entre 08.11.2011 e 18.07.2012, são as seguintes:

Data Emissão     Fatura   Emitido a:           Total      Base Tributável IVA

08-11-2011         217500036           DE...      364.326,00          296.200,00          68.126,00

08-11-2011         217500037           DE...      364.326,00          296.200,00          68.126,00

08-11-2011         217500038           DE...      546.489,00          444.300,00          102.189,00

23-12-2011         217500042           DE...      552.024,00          448.800,00          103.224,00

06-02-2012         217500046           DE...      1.639.467,00      1.332.900,00       306.567,00

29-03-2012         217500048           DE...      918.195,00          746.500,00          171.695,00

24-04-2012         95300000             DE...      1.457.304,00      1.184.800,00       272.504,00

29-05-2012         95300003             DE...      910.815,00          740.500,00          170.315,00

02-07-2012         95300005             DE...      546.489,00          444.300,00          102.189,00

18-07-2012         95300006             DE...      497.811,27          404.724,61          93.086,66

                                               7.797.246,27      6.339.224,61      1.458.021,66

 

121. Por sua vez, as 25 faturas inicialmente emitidas (Lote 2) são as que constam do quadro infra (documentos 9 a 33 juntos pela Requerente).

Data Emissão     Nr. Documento NIF adquirente Total      Base Tributável IVA

06-08-2012         95300011             DE...      182.163,00          148.100,00          34.063,00

06-08-2012         95300012             DE...      1.202.079,00      977.300,00          224.779,00

18-09-2012         95300016             DE...      108,24   88,00     20,24

18-09-2012         95300017             DE...      413.034,00          335.800,00          77.234,00

03-10-2012         95300022             DE...      5.579,60               4.536,26               1.043,34

03-10-2012         95300023             DE...      74.261,25            60.375,00             13.886,25

03-10-2012         95300024             DE...      206.517,00          167.900,00          38.617,00

08-10-2012         95300025             DE...      148.522,50          120.750,00          27.772,50

18-10-2012         95300026             DE...      74.261,25            60.375,00             13.886,25

18-10-2012         95300027             DE...      257.662,11          209.481,39          48.180,72

31-10-2012         95300031             DE...      257.612,91          209.441,39          48.171,52

14-11-2012         95300033             DE...      331.874,16          269.816,39          62.057,77

14-11-2012         95300034             DE...      183.351,66          149.066,39          34.285,27

28-11-2012         95300035             DE...      10.587,00            8.600,00               1.978,00

28-11-2012         95300039             DE...      331.874,16          269.816,39          62.057,77

07-12-2012         95300040             DE...      257.612,91          209.441,39          48.171,52

19-12-2012         95300047             DE...      183.351,66          149.066,39          34.285,27

20-01-2013         95300051             DE...      275.027,52          223.599,61          51.427,91

11-02-2013         95300057             DE...      148.522,50          120.750,00          27.772,50

15-02-2013         95300058             DE...      183.400,86          149.106,39          34.294,47

15-02-2013         95300059             DE...      183.351,66          149.066,39          34.285,27

21-02-2013         95300061             DE...      74.261,25            60.375,00             13.886,25

21-02-2013         95300062             DE...      183.351,66          149.066,39          34.285,27

08-03-2013         95300065             DE...      148.522,50          120.750,00          27.772,50

19-03-2013         95300068             DE...      183.351,66          149.066,39          34.285,27

                                               5.500.233,12      4.471.734,24      1.028.498,88

 

122. Todas estas faturas foram objeto de correção por parte da J... S.A. (faturas de correção), após anulação das faturas originárias, mediante a emissão de notas de crédito.

 

123. As operações ativas realizadas pela Requerente, enquanto “sujeito passivo não residente com estabelecimento estável” em Portugal, respeitam somente aos projetos de construção de parques eólicos em Portugal, com duração superior a 6 meses, a clientes Portugueses;

 

124. Estas operações foram vistas como não sendo objeto de liquidação de IVA, conferindo direito à dedução, motivo pelo qual a Requerente se encontra sistematicamente numa situação de crédito de imposto.

 

125. Na declaração periódica de janeiro de 2016, a Requerente solicitou um reembolso de IVA, no montante de € 15.850.827,91 (documento 6 junto pela Requerente - cópia da Declaração Periódica do período 2016/01).

 

126. Na sequência deste pedido de reembolso, a Requerida desencadeou um procedimento inspetivo credenciado pela ordem de serviço n.º OI2016..., de âmbito parcial, em IVA, com incidência no período de janeiro de 2016, abrangendo os períodos de formação do crédito de imposto de agosto de 2012 até janeiro de 2016.

 

127. O valor do reembolso solicitado pela Requerente decorre, em larga medida, da dedução do imposto suportado entre 08.2012 e 01.2016, pela aquisição de bens e serviços e da realização pela Requerente de operações isentas ou relativamente às quais a obrigação de liquidação do imposto é da sua responsabilidade (por aplicação do mecanismo da inversão do encargo).

 

128. Como resultado do processo inspetivo, concluiu a Requerida pela dedução indevida de IVA:

a) no período de dezembro de 2015, no valor de € 1.027.946,88, referente a IVA liquidado pela J... S.A.;

b) no período de janeiro de 2016, no valor de € 1.458.021,66, referente também a IVA liquidado pela J... S.A.

 

129. Foram emitidas pela J... S.A. com data posterior ao registo de IVA em Portugal da Requerente as 10 faturas referidas constantes do Lote 1 (documentos 11 a 33 juntos pela Requerente):

 

130. Assim, decidiu a Requerida efetuar uma correção ao valor do IVA a reembolsar à Requerente no montante total de € 2.485.968,54 (documento 7 junto pela Requerente – cópia do Relatório de Conclusões da Ação de Inspeção).

 

131. De acordo com o Relatório da Inspeção Tributária, as correções com reflexo no montante de reembolso de IVA decompõem-se do seguinte modo:

 

a) € 341.665,00: IVA já devolvido pela Requerida no seguimento de um reembolso de IVA solicitado pela Requerente ao abrigo da Diretiva n.º 2008/9/CE; e,

b) € 2.144.303,54: IVA liquidado pela J... S.A., em faturas emitidas em dezembro de 2015.

 

132. No valor da correção ao IVA dedutível no montante de € 1.458.021,66, reportado no período de janeiro de 2016, está compreendido o já referido montante de € 341.665,00 reembolsado pela AT no seguimento de um reembolso de IVA solicitado pela Requerente ao abrigo da Diretiva n.º 2008/9/CE.

 

133. Em consequência, emitiu a AT a liquidação de IVA n.º 2017..., objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, em decorrência da qual resultou o indeferimento parcial do pedido de reembolso de IVA apresentado pela Requerente, desconsiderando o montante de imposto objeto de correções, no valor de € 2.485.968,54 (documento 8 junto pela Requerente).

 

134. O valor total de € 2.144.303,54, relativo a IVA suportado na sequência de operações realizadas pela J... S.A. tem por base diversas faturas emitidas em dezembro de 2015,  que têm, porém, subjacente duas situações distintas:

a) O montante de € 1.027.946,88, reportado como IVA a favor da Requerente na declaração periódica de IVA de dezembro de 2015, diz respeito a faturas que foram emitidas pela J... S.A., na sequência de uma ação inspetiva levada a cabo pela DF... sobre esta entidade; e,

b) O montante de € 1.116.356,66, reportado como IVA a favor da Requerente na declaração periódica de IVA de janeiro de 2016, diz respeito a faturas emitidas após o período objeto da referida ação de inspeção com vista a uniformizar os procedimentos.

 

135. Numa fase inicial das operações realizadas entre a J... S.A. e a Requerente, a J... S.A. faturava a Requerente procedendo à liquidação de IVA, por considerar que realizava uma transmissão de bens localizados em Portugal, sendo as faturas emitidas com o número de identificação fiscal alemão da Requerente (Faturas 1, as originais).

 

136. A J... S.A. foi informada pela Requerente de que o regime de IVA aplicado nas faturas em questão não estaria correto, tendo ocorrido um erro de enquadramento jurídico-tributário das operações, na medida em que, para efeitos de IVA, as operações realizadas com a Requerente qualificavam como prestações de serviços e não como transmissões de bens, como, erroneamente, constava do descritivo das faturas em questão.

 

137. A conclusão quanto ao erróneo enquadramento das operações derivou de uma reanálise, por parte de uma equipa especialmente incumbida para o efeito pela Requerente, à escala mundial, e relativamente a todos os fornecedores, do enquadramento jurídico-tributário que vinha sendo seguido não apenas nas operações mantidas com a J... S.A., mas com todos os fornecedores da Requerente, sujeitos a diferentes regimes de tributação.

 

138. Com vista a corrigir a liquidação indevida de IVA, em fevereiro de 2015, a J... S.A. procedeu:

a) À emissão de nota de crédito (doravante designada por “Nota de Crédito 1”), para anular as faturas inicialmente emitidas, designadamente o IVA aí indevidamente liquidado - € 1.027.946,88 (cópia da nota de crédito NC 95330006 junta como documento 34 pela Requerente).

b) À emissão de novas faturas (Faturas corrigidas - faturas 2), ao número de identificação fiscal alemão da Requerente, sem liquidação de IVA, por aplicação do art.º 4.º, n.º 2, alínea c) do Código do IVA conjugado com o art.º 6.º, n.º 6, alínea a) do CIVA (cópias das faturas FT 95300255 e FT 95300257 juntas como documentos 35 e 36 pela Requerente).

 

139. A nota de crédito (Nota de Crédito 1) e as novas faturas (Faturas 2) emitidas pela J... S.A. foram as seguintes:

Data Emissão     Nota de crédito Emitido a:           Total      Base Tributável IVA

12-02-2015         NC 95330006      DE...      5.497.281,12      4.469.334,24       1.027.946,88

 

Data Emissão     Fatura   Emitido a:           Total      Base Tributável

28-02-2015         FT 95300255       DE...      10.824,24            4.469.334,24

28-02-2015         FT 95300257       DE...      4.458.510,00      4.458.510,00

                                               4.469.334,24      4.469.334,24

 

140. No momento da emissão destas faturas corrigidas, desconhecia a J... S.A. que a Requerente já se encontrava registada para efeitos de IVA em Portugal, pelo que, por lapso, as referidas faturas foram emitidas com o número de identificação fiscal alemão da Requerente.

 

141. Nas novas faturas emitidas, ao invés de indicar como motivo justificativo da não aplicação do imposto o art.º 6.º, n.º 6, alínea a) do CIVA a contrario, a J... S.A. indicou o art.º 14.º do Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias (“RITI”), não tendo sido o erro identificado pela J... S.A. nem pela Requerente.

 

142. Estes documentos foram reportados pela J... S.A. na declaração periódica de IVA desse mês de fevereiro de 2015 (documento 37 junto pela Requerente) nos seguintes termos:

- No campo 40, o IVA da nota de crédito (Nota de Crédito 1): € 1.027.946,88; e,

- No campo 7, a base tributável das faturas corrigidas: € 4.469.334,24.

 

143. No âmbito da análise do referido pedido de reembolso apresentado pela J... S.A., e porque as faturas cujos valores foram reportados no Campo 7 da declaração periódica de IVA de fevereiro de 2015 indicavam como justificação para a não liquidação de IVA “artigo 14 do RITI”, a DF... solicitou os comprovativos de expedição dos bens para outro Estado-Membro.

 

144. A J... S.A., no entanto, já antes da ação inspetiva, havia sustentado que as faturas em questão diziam respeito a prestações de serviços (cf. Relatório da Inspeção Tributária, p. 25).

 

145. Por ter entendido que a J... S.A. não apresentou, em devido tempo, prova que demonstrasse que as operações correspondiam a prestações de serviços, a DF... indicou, informalmente, que iria corrigir o valor do reembolso no montante de € 1.027.946,88.

 

146. Não obstante manifestar desacordo com a posição da DF... (quando esta entende que as operações não qualificavam como prestações de serviços), a J... S.A. adotou os seguintes procedimentos:

- Emissão de nota de crédito (doravante designada “Nota de Crédito 2”), para anular as faturas 2 corrigidas emitidas em fevereiro de 2015 (documento n.º. 40 junto pela Requerente).

- Emissão de novas faturas corrigidas (doravante designadas “Faturas 3”), com liquidação de IVA, uma vez que nessa altura já havia sido identificado que a Requerente já se encontrava registada para efeitos de IVA em Portugal, nas novas faturas emitidas (Faturas 3) indicou o respetivo NIF português (documentos 41 e 42 juntos pela Requerente).

 

147. Assim, em dezembro de 2015, a J... S.A. procedeu à emissão de notas de crédito (no valor de € 1.458.021,66) para anular as faturas inicialmente emitidas, conforme quadro abaixo (documentos 53 a 62 juntos pela Requerente):

 

148. Ao invés, porém, de reportar estas novas faturas (Faturas 3) na declaração periódica de substituição n.º..., nos campos 3 e 4, a Requerente apenas retirou do campo 40 o valor do IVA das notas de crédito (Nota de Crédito 2).

 

149. As novas faturas não foram, pois, reportadas na declaração periódica correspondente ao período da sua emissão (dezembro de 2015), o mesmo se passando com as notas de crédito (documento 73 junto pela Requerente).

 

150. Na medida em que o montante das notas de crédito emitidas ao número de identificação fiscal alemão da Requerente correspondia exatamente ao montante faturado ao seu número de identificação fiscal português, o programa informático de contabilidade da J... S.A. fez a correspondência e assumiu um valor de zero, não extraindo as operações em questão para a declaração periódica de IVA.

 

151. Nenhuma fatura, com exceção das Faturas 2, posteriormente anuladas, refere expressamente no descritivo “transmissão de bens”.

 

152. Estes procedimentos – emissão das Faturas 3, com NIF português da Requerente, emissão de Nota de Crédito 2 e entrega da declaração de substituição de fevereiro de 2015 – foram todos realizados em dezembro de 2015 (ponto III.5.2.2.C, pág. 27 do documento 7 junto pela Requerente).

 

153. Embora as operações não tenham sido corretamente faturadas e reportadas pela J..., S.A., tendo sido assinaladas excessivas irregularidades e incorreções que foram, aliás, objeto de contraordenações, não foi questionada a existência de neutralidade financeira no que toca ao volume de receitas recebidas pelo Estado, como decorre do quadro infra:

 

Período Documentos Emitidos   Declarações de IVA        Receita do Estado

2012 e 2013       Faturas 1             BT           4.741.734,24      Jan-Dez Campo 3              4.741.734,24     

                               IVA         1.028.498,88                      Campo 4              1.028.498,88      1.028.498,88

Fevereiro de 2015            Nota Crédito 1  BT           4.469.334,26       Fev-15                                

                               IVA         1.027.946,88                      Campo 40            1.027.946,88      -1.027.946,88

                Faturas 2             BT           4.469.334,26                      Campo 7              4.469.334,26     

                               IVA         0,00                                                     

Dezembro de 2015          Nota Crédito 2  BT           4.469.334,26                                                     

                               IVA         0,00       Fev-15                  1.027.946,88       -1.027.946,88

                Faturas 3             BT           4.469.334,26      (DP substituição)             4.469.334,26     

                               IVA         1.027.946,88                                                     

                                                                                                             

                                                                               Campo 40            -1.027.946,88     1.027.946,88

                                               1.028.498,88

                BT: Base Tributável

 

154. Apesar de não serem exaustivos nem decisivos para a resolução da questão, os documentos trazidos aos autos pela Requerente em 04.02.2019 revelam, da parte desta, esforços para corrigir uma atuação excessivamente negligente da J... em todo este processo.

 

155. Factualidade aditada pelo Acórdão proferido pelo TCA-Sul (processo n.º 44/19.9 BCLSB) respeitante aos presentes autos arbitrais:

 

“235. A 08 de fevereiro de 2019, foi prolatado despacho pelo Árbitro Relator com o seguinte teor:

Tendo em conta  um mais completo  apuramento da verdade material, notifique-se a Requerente para, no prazo de   10 dias, juntar aos autos prova documental  relativa aos factos alegados nos artigos 40.º e 42.º da petição inicial, bem como nos artigos 96.º. 99.º e 102.º das suas alegações, nomeadamente cópia das partes relevantes do relatório, análise, nota informativa ou instrução que esteve na base da revisão das faturas e/ ou  troca de correspondência com  a J... .

(acordo das partes; cfr. fls. 797 do PA apenso);

 

236. Na mesma data, foi expedida notificação eletrónica a ambas as partes com o seguinte teor:

Com referência ao processo em epígrafe, comunica-se a V. Exa. que se encontra disponível para consulta no Sistema de Gestão Processual, o despacho proferido pelo Tribunal Arbitral em 2019-02-08.

(acordo das partes; cfr. fls. 798 a 782 do PA apenso);

 

237. Na sequência da notificação do despacho proferido no ponto 235., a Requerente procedeu, em 18 de fevereiro de 2019, à junção de nove documentos redigidos em língua inglesa e alemã, manifestando, desde logo, a disponibilidade para a tradução dos mesmos (acordo das partes; cfr. fls. 800 a 887 do PA apenso);

 

238. A 19 de fevereiro de 2019, Viviane Penas Ribeiro, Técnica do CAAD, remete email endereçado, designadamente à Autoridade Tributária, com o seguinte teor:

Com referência ao processo em epígrafe, comunicamos a V. Exa. que se encontra disponível para consulta, no Sistema de Gestão Processual, requerimento apresentado pelo(a) ilustre mandatário(a) do sujeito passivo.

(cfr. fls. 889 do PA apenso);

 

239. A 21 de fevereiro de 2019, o Árbitro Relator profere despacho com o seguinte teor:

Notifique-se a Requerente para, no prazo de 5 dias, apresentar a tradução dos documentos em inglês e alemão recentemente juntos aos autos.

Em virtude da diligência acima referida, o prazo para a decisão arbitral é prorrogado para 12 de março de 2019, notificando-se as Partes e os Órgãos dirigentes do CAAD desta decisão

(acordo das partes; cfr. fls. 890 do PA apenso);

 

240. Na sequência da notificação do despacho referido no ponto 239., a Requerente apresentou, em 22 de fevereiro de 2019, requerimento de prorrogação de prazo por mais cinco dias (acordo das partes; cfr. fls. 894 a 897 do PA apenso);

 

241. O requerimento referido no ponto antecedente foi deferido por despacho datado de 25 de fevereiro de 2019, o qual apresenta o seguinte teor:

Concedido o alargamento do prazo para apresentação dos documentos traduzidos por mais 5 dias. Solicita-se contudo que, se a tradução estiver pronta antes do final do prazo, seja imediatamente enviada

(acordo das partes; cfr. fls. 900 do PA apenso);

 

242. Na mesma data, o despacho referido no ponto antecedente foi expedido via notificação eletrónica para ambas as partes (acordo das partes; cfr. fls. 901 a 903 do PA apenso);

 

243. Em resultado do despacho proferido no ponto 241., a Requerente apresentou requerimento datado de 04 de março de 2019, no qual procede à junção dos nove documentos apresentados em 18 de fevereiro de 2019, acompanhados da respetiva tradução (acordo das partes; cfr. fls. 904 a 1084 do PA apenso);

 

244. A 04 de março de 2019, Cláudia Vicente, Técnica do CAAD, expede notificação eletrónica endereçada à Autoridade Tributária, com o seguinte teor:

Com referência ao processo em epígrafe, comunicamos a V. Exa. que se encontra disponível para consulta, no Sistema de Gestão Processual, requerimento apresentado pelo(a) ilustre mandatário(a) do sujeito passivo.

(acordo das partes; cfr. fls. 1085 do PA apenso);

 

245. A 05 de março de 2019, o Árbitro Relator profere despacho com o seguinte teor:

Notifique-se a Requerida, para, querendo, no prazo de 5 dias, se pronunciar sobre os documentos traduzidos juntos aos autos pela Requerente

(cfr. fls. 1087 do PA apenso);

 

246. A 07 de março de 2019, é expedida notificação eletrónica endereçada à Autoridade Tributária tendente à notificação do despacho referido no ponto antecedente (acordo das partes; cfr. fls. 1090 do PA apenso);

 

247. A 12 de março de 2019, foi proferida decisão arbitral no âmbito do processo n.º 660/2017-T (acordo das partes; cfr. decisão a fls. 1091 e seguintes do PA apenso);”

 

Factos dados como não provados

 

156. Não foi provada a existência de prejuízo ou de risco sério de perda de receita para o Estado.

 

157. Não foi igualmente provado indício ou risco de fraude, de intenção fraudulenta por parte a Requerente ou de um conluio fraudulento entre as partes contratantes envolvidas nas operações em causa.

 

D. DO DIREITO

 

Uma questão prévia: A exceção de incompetência do Tribunal Arbitral

 

A posição da Requerida

 

158. Ao abrigo do art.º 2.º, n. º1, alínea a), do RJAT, a Requerida defendeu-se por exceção e por impugnação, sustentando, quanto à primeira (cuja argumentação aqui se procura sintetizar), a incompetência material do tribunal arbitral, uma vez que, segundo ela, o ato de indeferimento parcial de um pedido de reembolso não traduz um ato tributário de liquidação, estando fora do âmbito material da arbitragem tributária.

 

159. Para a Requerida, deduz-se dos artigos 28.º, 33.º, 150.º e 151.º da petição que "o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral se traduz no indeferimento parcial do reembolso que a Requerente havia formulado, aquando da submissão da declaração periódica de Janeiro de 2016, onde solicitava o reembolso de imposto no montante global de € 15.850.827,91.

 

160. E, acrescenta a Requerida: "se o objeto do pedido se traduz, como vem sendo demonstrado, e é assumidamente confessado pela ora Requerente, no indeferimento parcial do reembolso que havia solicitado aquando da entrega da declaração periódica de Janeiro de 2016, então sempre diremos que esta instância arbitral se mostra materialmente incompetente para conhecer de tal pedido."

 

161. Qualifica a denominada “Demonstração da liquidação de IVA” enviada pela AT à Requerente como sendo a demonstração de mero "acerto de contas entre o montante de reembolso solicitado e a parte que é indeferida", que redunda num montante a reembolsar de € 13 364 859,15 e não de € 15 850 827,91 como a Requerente havia solicitado.

 

162. A aferição da legitimidade do direito ao reembolso em sede de IVA (que não tem natureza de verdadeiro direito potestativo) é função da legitimidade do exercício do direito à dedução. No caso dos presentes autos, segundo a Requerida, tal aferição foi efetuada através do procedimento inspetivo, realizado ao abrigo da ordem de serviço nº OI2016..., tendo-se determinado pela sua ilegitimidade parcial, no montante de € 2.485.968,54.

 

163. Ora, de acordo com a vontade expressa do legislador, no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT “fixam-se, com rigor, quais as matérias sobre as quais se pode pronunciar o tribunal arbitral”.

 

164. Esta fixação é taxativa, apenas abrangendo "pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e pagamentos por conta" e "pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais".

 

165. Deste modo, esta jurisdição não se mostra competente para conhecer da pretensão da ora requerente relativamente ao pedido que formula, já que o ato de indeferimento parcial de um pedido de reembolso não traduz um ato tributário de liquidação. De facto, se no caso dos presentes autos a referida demonstração da liquidação mais não é do que a demonstração do quantum do reembolso que foi indeferido, a qual não produz efeitos jurídicos próprios, o meio processual adequado à sua impugnação na via contenciosa deveria ser, seguindo a doutrina do Acórdão do STA, de 06.11.2008, a ação administrativa especial.

 

166. A competência material prevista no art.º 2.º, n.º 1, do RJAT sofre ainda limitações por força do estabelecido no art.º 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março de 2011. Uma eventual decisão favorável à competência do TA no caso sub judice seria inconstitucional por violação do artigo 212.º, n.º 3, da CRP e, bem assim, do princípio do livre acesso aos tribunais, na vertente do direito ao duplo grau de jurisdição, decorrente dos artigos 20.º e 268.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

 

167. Em favor da sua posição , a Requerida invoca ainda diversas decisões, nomeadamente o Acórdão Arbitral, de 3.10.2015 (proferido no âmbito do processo n.º 48/2015-T) e o Acórdão Arbitral de 04.02.2016 (proferido no âmbito do processo n.º 341/2015T) , ao mesmo tempo que critica, por considerar incongruente, a jurisprudência arbitral em sentido divergente, nomeadamente a decorrente dos Acórdãos arbitrais de 04.04.2014 (proferido no processo n.º 238/2013-T) e de 06.04.2017 (proferido no processo n.º 240/2016-T).

 

A posição da Requerente

 

168. Segundo a Requerente (cuja argumentação procuramos igualmente sintetizar), improcede a posição da Requerida, pois ela resulta de um manifesto equívoco que assenta num um erro de interpretação quanto ao pedido formulado pela Requerente.

 

169. Assim, no introito da petição de constituição do TA, a Requerente identificou com clareza que o pedido de pronúncia arbitral é deduzido para apreciação da “ilegalidade parcial do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) n.º 2017..., notificado em 21 de Setembro de 2017. É este o ato impugnado, o qual teve como consequência o indeferimento parcial de pedido de reembolso de IVA que solicitou aquando da entrega da declaração periódica do período de janeiro de 2016.

 

170. Ao contrário do que, por equívoco, alega a Requerida, não é, pois, exato que a Requerente tenha identificado como objeto do processo um qualquer pedido de apreciação da ilegalidade de um ato de indeferimento parcial de pedido de reembolso de IVA.

 

171. Aliás, em rigor, na parte final do pedido de pronúncia arbitral, que delimita o respetivo objeto, a Requerente formula um pedido principal e ainda um pedido subsidiário.

 

172. Assim, a título principal, a Requerente pediu a “declaração de ilegalidade da liquidação de IVA n.º 2017..., e consequente anulação parcial na parte em que corrige IVA deduzido no montante de € 2.144.303,54, com todas as legais consequências”.

 

173. A título subsidiário, solicitou “A declaração de ilegalidade da liquidação de IVA n.º 2017..., e consequente anulação parcial na parte em que corrige IVA deduzido no montante de € 769.104,86 suportado em operações realizadas quando a Requerente já se encontrava registada para efeitos de IVA em Portugal, com todas as legais consequências”.

 

174. Não se verifica, pois, um qualquer pedido de anulação de uma decisão de indeferimento de um pedido de reembolso, mas sim um pedido de anulação parcial da liquidação de IVA n.º 2017..., através da qual a Requerida corrigiu IVA deduzido pela Requerente.

 

175. Na realidade, a posição da Requerida assenta ainda num outro pressuposto, o de negar a existência de uma verdadeira liquidação, ao afirmar que, apesar de formalmente a AT, por diversas vezes, usar a expressão "liquidação" , esta dita liquidação de IVA impugnada pela Requerente “mais não traduz do que um acerto de contas entre o montante de reembolso solicitado e a parte que é indeferida”.

 

176. A Requerente não põe em causa a jurisprudência que nega competência a um TA para apreciação de um pedido através do qual se requeira a condenação da AT para proceder a um reembolso.

 

177. Mas afirma a competência do TA para, como ocorre no caso sub judice, apreciar um pedido de anulação de uma liquidação de IVA que lhe foi notificada pela Requerida, na sequência de correções ao montante do IVA dedutível, não tendo assim formulado qualquer pedido quanto a um reembolso de IVA. Uma vez praticado um ato de liquidação de imposto, como é o caso da liquidação impugnada nos autos, é a mesma reconduzível à previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.

 

178. Com efeito, resulta do Acórdão Arbitral de 16.02.2017 (proferido no processo n.º 410/2016-T) que “O reconhecimento de um direito ao reembolso de IVA não é o objeto do pedido, embora aquele estivesse na origem das inspeções realizadas à Requerente, que deram lugar às mencionadas correções aritméticas que geraram as liquidações adicionais de imposto aqui em crise. São esses atos de liquidação decorrentes das alegadas desconsiderações de um conjunto de deduções de IVA, por parte da AT, a que a Requerente considera ter direito que correspondem ao objeto do pedido. Estamos, pois, no âmago do processo de impugnação de atos de liquidação, da competência da jurisdição arbitral”.

 

179. Por conseguinte, se a AT notifica o contribuinte de uma "demonstração de liquidação de imposto", qualificando-a expressamente como tal, na sequência de correções aritméticas ao IVA dedutível declarado, seja relativamente à totalidade do IVA ou apenas a uma parte, estamos perante uma liquidação de imposto cuja legalidade integra o âmbito de competência material da jurisdição arbitral.

 

180. Não há assim qualquer inconstitucionalidade que possa decorrer do reconhecimento de competência a este TA para decidir as questões de fundo suscitadas. Aliás, uma eventual interpretação deste TA em sentido contrário seria, ela sim, inconstitucional na medida em que afrontaria o princípio constitucional da tutela de confiança, que decorre do art.º 2.º da CRP.

 

DECISÃO SOBRE A EXCEÇÃO INVOCADA PELA REQUERIDA

 

181. A questão de direito que aqui se põe gira em torno da natureza da arbitragem tributária e, sobretudo, do conceito de liquidação em IVA.

 

182. O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28.04, autorizou o Governo a legislar “no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”, de modo a que o processo arbitral tributário constituísse um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária.

 

183. O Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01 (RJAT), concretizou a mencionada autorização legislativa com um âmbito mais restrito do que o previsto na lei de autorização legislativa, não contemplando designadamente uma competência alternativa à da ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária, instituindo "a arbitragem tributária limitada a determinadas matérias, arroladas no seu art.º 2.º”.

 

184. O âmbito da jurisdição arbitral tributária está, assim, delimitado, num primeiro momento, pelo disposto no artigo 2.º do RJAT que enuncia, no seu n.º 1, os critérios de repartição material da competência, abrangendo a apreciação de pretensões que se dirijam à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos. Essas pretensões são as referidas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, que dispõe que a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação da "declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta".

 

185. Num segundo momento, a competência dos tribunais arbitrais fiscais é limitada pelos termos em que a AT venha a ser vinculada à sua jurisdição. De facto, o art.º 4.º do RJAT faz depender a vinculação da AT de “portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”.

 

186. É a Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03 (doravante, Portaria de Vinculação, abreviadamente PV) que veio concretizar quais os litígios a que a arbitragem se aplica. Dispõe a PV, no seu artigo 2.º, que os serviços e organismos que hoje constituem a AT vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida, com algumas exceções, entre as quais as "pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário" e as "pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão".

 

187. É, pois, um ato regulamentar (e não uma declaração de vontade da AT) que limita os litígios suscetíveis de resolução por via da arbitragem. Assim, o recurso à arbitragem tributária é optativo por parte dos contribuintes, mas a sujeição a essa mesma arbitragem não o é por parte da AT, que a ela fica sujeita nos termos do RJAT e da PV.

 

188. O RJAT e a PV devem, pois, ser interpretados de acordo com as regras gerais decorrentes dos artigos 11.º da LGT e 9.º do Código Civil: assim será, no caso concreto, quanto ao conceito de liquidação nas suas diversas formas.

 

189. Em Direito Fiscal, a liquidação era tradicionalmente vista em sentido estrito, reconduzindo-se ao ato de aplicação de uma alíquota à matéria coletável, dando origem à coleta. Mas, cada vez mais, a liquidação não se esgota nessa operação aritmética, antes se afirma como uma operação de conteúdo bem mais amplo e complexo, distinto, porém, nos impostos sobre o rendimento  e no IVA.

 

190. Em sede de IVA, a liquidação tem por base o sistema declarativo (autoliquidação), sendo um ato complexo só plenamente entendível se considerado em sentido amplo.

 

191. Ou seja: só entendível tendo em conta o "mecanismo do crédito e o encadeamento da liquidaçãodedução" que, como refere Sérgio Vasques, servem para "assegurar a neutralidade típica do IVA, prevenindo o efeito cumulativo e garantindo que o imposto é suportado em definitivo pelo consumidor final".

 

192. Decorre, aliás, da estrutura do próprio CIVA, estarmos perante uma noção ampla de liquidação, a qual abrange as deduções e as regularizações de imposto (artigos 19.º a 26.º do CIVA), bem como liquidações administrativas decorrentes de atos de fiscalização e determinação oficiosa do imposto (Capítulo VI do CIVA).

 

193. É assim o caso das liquidações adicionais reguladas pelo art.º 87.º do CIVA, relativo ao "momento e modalidades do exercício do direito à dedução". No n.º 1 deste artigo, estipula-se que, sem prejuízo do caso das liquidações com base em presunções e métodos indiretos, a efetuar nos termos da LGT, a AT "procede à retificação das declarações dos sujeitos passivos, quando fundamentadamente considere que nelas figure um imposto inferior ou uma dedução superior aos devidos, liquidando adicionalmente a diferença".

 

194. E no nº 5 deste mesmo artigo, diz-se que se "passados 12 meses relativos ao período em que se iniciou o excesso, persistir crédito a favor do sujeito passivo superior a € 250, este pode solicitar o seu reembolso". Este surge assim, ao lado da dedução por subtração e do reporte, como modalidade de exercício do direito à dedução e, consequentemente, pode ser visto como elemento integrante da própria liquidação de imposto, distinguindo-se claramente de formas de devolução do imposto, como, vg., a restituição do IVA já pago aos partidos políticos ou à Igreja.

 

195. É nesse o sentido que deve entender-se a posição de José Xavier de Basto e Gonçalo Avelãs Nunes, quando afirmam que "um reembolso contestado pela administração fiscal em tudo equivale a uma liquidação de imposto e os meios de reagir contra esse ato da administração, que nega ou revoga um reembolso, são idênticos aos que a lei põe à disposição dos contribuintes para anular, no todo ou em parte, a liquidação do imposto."

 

196. De facto estamos, nestes casos, perante uma simples mudança da forma da liquidação: uma autoliquidação converte-se em liquidação administrativa adicional. O facto de, no plano contabilístico, tal facto se pressupor um acerto de contas não altera a natureza jurídica do ato.

 

197. Assim, os documentos emanados da AT e notificados à Requerente dando conta da "demonstração de liquidação do IVA", do "número liquidação" e da "data liquidação" são, no plano jurídico, pertinentes e corretas.

 

198. Pelo que, dado o acima exposto, a exceção deverá ser julgada improcedente.

 

Defesa por impugnação

 

Transmissão de bens e prestação de serviços no direito português

 

199. A primeira questão a resolver é a de saber se as operações realizadas pela J... S.A. para a Requerente configuram, na realidade, uma transmissão de bens (como defende a Requerida, com base nos descritivos das faturas) ou uma prestação de serviços (como defende a Requerente, com fundamento em erro de qualificação jurídica nas faturas em causa perpetrado pela J..., S.A.).

 

200. As soluções consagradas na lei têm variado ao longo dos tempos.   Atualmente o CIVA dispõe, no seu n.º 1 e na al. e) do n.º 3 do seu art.º. 3.º o seguinte:

1 - Considera-se, em geral, transmissão de bens a transferência onerosa de bens corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.

2 - Consideram-se ainda transmissões de bens, nos termos do n.º 1 deste artigo:

3 - A entrega de bens móveis produzidos ou montados sob encomenda, quando a totalidade dos materiais seja fornecida pelo sujeito passivo que os produziu ou montou".

 

201. As transmissões de bens podem ser internas (efetuadas no território português) ou destinadas ao comércio externo, podendo então tomar a forma de transmissões intra-UE (quando destinadas a um EM) ou de exportações (quando destinadas a um território ou país terceiro). Em qualquer dos casos rege, em regra, o princípio do destino, sendo a operação isenta (isenção completa) no território nacional e, no primeiro caso, tributada em IVA em outro EM (como aquisição intracomunitária de bens) ou, no segundo caso, eventualmente tributada em imposto indireto (sendo este o IVA, como importação de bens) no território para onde o bem foi exportado.

 

202. Por sua vez, os n.ºs 1, 2, al c) e 6 do art.º 4.º do CIVA estatuem que:

1 - São consideradas como prestações de serviços as operações efetuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens.

2 - Consideram-se ainda prestações de serviços a título oneroso:

c) A entrega de bens móveis produzidos ou montados sob encomenda com materiais que o dono da obra tenha fornecido para o efeito, quer o empreiteiro tenha fornecido, ou não, uma parte dos produtos utilizados. 

3 - No que se refere ao disposto na alínea c) do n.º 2, a Direção-Geral dos Impostos pode excluir do conceito de prestação de serviços as operações em que o fornecimento de materiais pelo dono da obra seja considerado insignificante."

 

203. As prestações de serviços definem-se assim por defeito (ou, como também se diz, pelo seu "caráter residual"): no plano interno serão, pois, todas as operações que, tendo por base uma atividade económica e um ato de consumo, não constituam transmissões de bens. É, pois, a existência ou não de uma transmissão de bens que deverá ser esclarecida em primeira linha.

 

204. No entanto, o CIVA procura, em certos casos (como os do n.º 2 do art.º. 5.º acima transcrito), estender o conceito de prestações de serviços a prestações gratuitas que, em rigor, o extravasam.

 

205. Do exposto deduz-se que, se o dono da obra (o cliente) fornece materiais, ainda que de forma parcial, a operação é qualificada como prestação de serviços, a menos que estejamos perante um fornecimento insignificante desses materiais, caso em que estaremos perante uma transmissão de bens.

 

206. No caso dos autos, a prova documental (docs. 1 a 5) e a testemunhal mostram que a J..., S.A. se limitou a prestar serviços de montagem ou assemblagem de componentes (Nacelles) enviados pela Requerente.

 

207. Estas componentes eram, em regra propriedade desta, mas por vezes eram adquiridas pela J..., S.A. (empreiteiro) para incorporação nas Nacelles, sendo que, nestes casos, o valor aportado por este relativo a serviços e componentes de montagem nunca excedeu um montante de 30% do custo total de uma Nacelle, e, consequentemente, os restantes 70% decorrentes das componentes entregues pela Requerente (dono da obra).

 

208. Como na faturação da J..., S.A à Requerente (que, nessa altura, não dispunha de estabelecimento estável entre nós) estas operações foram qualificadas como transmissões de bens e não como prestações de serviços, existe um erro de direito (e não meramente um erro de facto ou de cálculo) que irá, aliás, contaminar todo o processo, estando na base de um encadeamento de erros cometidos pela J..., S.A. na tentativa induzida pela Requerente de os corrigir.

 

209. Este erro de enquadramento jurídico (avançado por uma equipa constituída pela Requerente para o efeito) teve como consequência que as transmissões fossem tributadas em Portugal, diferentemente do que aconteceria se estivéssemos perante prestações de serviços (as quais não seriam localizadas cá, por aplicação a contrario do disposto no art.º. 6º., n.º 6, al. a), do CIVA).

 

A questão da distinção entre erro de facto (material) e de direito e dos prazos de retificação aplicáveis.

 

210. A segunda questão que se põe é a da distinção entre erro de direito e erro de facto e, consequentemente, a de saber qual o prazo durante o qual pode ser efetuada a retificação dos lotes de faturas dois e três e exercido o direito à dedução. A Requerida entende existir erro de facto e um o prazo de dois anos por aplicação do art.º 78.º, n.º 3 do CIVA para a sua retificação, enquanto a Requerente sustenta haver erro de direito e portanto um prazo de 4 anos, de acordo com o disposto no art.º 98.º, n.º 2 do CIVA.

 

211. A primeira tese baseia-se na ideia de estarmos no essencial perante "correções meramente aritméticas à matéria tributável" (cf. Relatório da Inspeção Tributária, p. 14 in fine).

 

212. A metodologia levada a cabo para efetuar as correções consistiu em apurar "situações irregulares" (como o incumprimento de certas obrigações acessórias de faturação ou divergências no sistema VIES), parte das quais (como deduções indevidas ou duplicadas ou a inexistência de conta bancária para receber reembolsos) "com influência no direito ao reembolso pedido" (ibidem, pp. 16 e ss).

 

213. A segunda tese defende estarmos perante um erro de qualificação jurídica das operações tributadas e não perante um erro de facto (material ou de cálculo).

 

214. No plano doutrinal, defendem Afonso Arnaldo e Tiago Albuquerque Dias (“Afinal qual o prazo para deduzir IVA? Regras de Caducidade e (In)segurança Jurídica”, in AA. VV., Sérgio Vasques (coord.), Cadernos IVA 2014, Coimbra, Almedina, 2014, p. 44) que “os erros a que se refere o número 6 do artigo 78.º do Código do IVA se reconduzem às situações em que o sujeito passivo se equivoca na materialização do ato de dedução ou liquidação, nomeadamente, por lapso na transcrição de valores ou por razões aritméticas, i.e., em ambas as situações erros menores e evidentes".

 

215. Deste modo, "estarão abrangidos por estes conceitos de erro (tipicamente) as situações em que o sujeito passivo se engana a efetuar uma operação aritmética, nomeadamente, quando pretende apurar o imposto dedutível contido numa fatura (com IVA incluído) de serviços de um fornecedor (erro de cálculo), ou, ainda que efetuando corretamente o cálculo, comete lapso na inscrição do montante do imposto a deduzir na declaração periódica (erro material).”

 

216. Estão, pois, abrangidas pelo erro de facto “as situações em que o sujeito passivo efetua uma incorreta representação da realidade factual (a qual determina a sua subsunção a uma norma incorreta)” (loc. cit., pp. 45-46).

 

217. “O erro de facto que não origine um consequente erro de direito, não terá qualquer relevância para estes efeitos, porquanto o mesmo não terá qualquer influência no quantum do imposto a deduzir ou a liquidar” (idem, ibidem).

 

218. Por contraposição, o erro de direito verifica-se nas “situações em que, não obstante a correta representação da realidade factual, o sujeito passivo se equivoca na determinação da norma aplicável” (idem, ibidem), ou seja, em que se verifica um erro de enquadramento, por o sujeito passivo ter feito uma incorreta interpretação da situação fática ou uma errada aplicação do direito e, consequentemente, liquida ou deduz imposto a mais ou a menos.

 

219. Em sentido similar veja-se Alexandra Martins e Pedro Moreira, “Regularizações de IVA - A Alteração Superveniente dos Elementos da Operação, o Erro Material ou de Cálculo e o Erro de Enquadramento ou de Direito”, in AA. VV., Sérgio Vasques (Coord.), Cadernos IVA 2014, Coimbra, Almedina, 2014, pp. 61-62.

 

220. A noção de erro material ou de cálculo é igualmente precisada em termos semelhantes por Amândio F. Silva no seu cometário ao n.º 6 do art. 78.º do CIVA (in Clotilde C. Palma e A. Carlos dos Santos, Código do IVA e RITI, Notas e Comentários, Coimbra: Almedina, 2014, pp. 446-7), bem como em F. D. Neves, op. cit., pp. 602-3).

 

221. Na doutrina administrativa, a AT, através do Ofício-Circulado n.º 30082, de 17.11.2005, da Direção de Serviços do IVA, procedeu à definição conjunta do que entende por erros materiais ou de cálculo, considerando que são «aqueles que resultam de erros internos da empresa e não têm qualquer interferência na esfera de terceiros. Normalmente consistem em erros na transcrição das faturas para os registos ou dos registos para a declaração periódica, não compreendendo» as seguintes situações: «alteração do método de dedução do imposto nos sujeitos passivos mistos; apuramento de pro rata e regularizações de IVA sobre imóveis e outros bens do ativo imobilizado ou relativas à afetação de imóveis a fins distintos daqueles a que se destinam.

 

222. Esta distinção doutrinal entre erro de facto e erro de direito encontra eco em algumas decisões proferidas em processos do CAAD relativas ao exercício do direito à dedução. Uma é a proferida no Proc. n.º 649/2017-T, onde se pode ler: “O erro quanto à aplicação de determinados regimes jurídicos não constitui nem erro material nem erro de cálculo, pelo que é manifesto que não pode ser-lhe aplicado o regime do referido n.º 6 do artigo 78.º do CIVA.

 

223. Outra é a decisão de 17.05.2013 proferida no processo n.º 117/2013-T em termos que nos parecem perfeitamente aplicáveis ao caso sub judice e que passamos a transpor nas partes mais relevantes:

 

a) "O artigo 95.º-A, n.º 2 [do CPPT] fornece um conceito de «erros materiais ou manifestos» indicando que nele se integram, «designadamente os que resultarem do funcionamento anómalo dos sistemas informáticos da administração tributária, bem como as situações inequívocas de erro de cálculo, de escrita, de inexatidão ou lapso».

 

b) A associação do erro de cálculo ao erro material que se faz neste n.º 6 do artigo 78.º do CIVA, à semelhança do que sucede noutras normas (como o artigo 249.º do Código Civil, o artigo 667.º do CPC de 1961 e o artigo 614.º do CPC de 2013) revela que os erros de cálculo a que se pretende aludir serão deste tipo, designadamente erros aritméticos nas operações de cálculo do montante a deduzir.

 

c) Assim, estar-se-á perante um erro material no preenchimento do montante de IVA dedutível numa declaração quando se pretendia escrever um determinado montante e, por descuido ou lapso, acabou por se escrever montante diferente ou quando o erro do preenchimento da declaração resulta de um erro anterior do mesmo tipo que exista na contabilidade ou em algum documento que sirva de base ao exercício do direito à dedução. Estar-se-á perante um erro de cálculo, quando as operações aritméticas para determinar o montante do IVA dedutível foram mal efetuadas na própria declaração ou em algum dos documentos em que ela se baseou.

 

d) O erro quanto à aplicação de determinados regimes jurídicos não constitui nem erro material nem erro de cálculo, pelo que é manifesto que não pode ser-lhe aplicado o regime do referido n.º 6 do artigo 78.º do CIVA.

 

e) Assim, não sendo aplicável o regime do referido artigo 78.º, n.º 6, nem existindo qualquer regime limite temporal especial para exercício do direito à dedução com fundamento em erro de direito, será aplicável o regime geral sobre esta matéria que consta do artigo 98.º, n.º 2, do CIVA que, como se diz no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18-5-2011, proferido no processo n.º 966/10, fixa um limite máximo de quatro anos que não pode ser excedido em nenhum caso."

 

224. No mesmo sentido, vai a doutrina subjacente à fundamentação da decisão arbitral de 05.09.2018 proferida no processo do CAAD n.º 649/2017, de que extraímos o seguinte:

a) " O art.º. 98.º do CIVA comporta duas estatuições, a saber: "no seu n.º 1 impõe à AT a obrigação de proceder à revisão oficiosa, nos casos ali previstos; e no seu n.º 2 estabelece um prazo geral e supletivo para que os sujeitos passivos de IVA promovam, a seu favor, a retificação do imposto liquidado e deduzido.

 

b) Relativamente ao prazo de quatro anos previsto naquele n.º 2, o mesmo apenas será aplicável na falta de disposições especiais, as quais podemos encontrar no artigo 78.º do Código do IVA.

c) Em face destas normas legais, podemos agrupar as situações em que existe a faculdade (e, eventualmente, a obrigatoriedade) de regularização do IVA liquidado e deduzido, da seguinte forma (...):

i) A alteração superveniente das condições objetivas e subjetivas que presidiram à realização das operações, traduzida na anulação da operação ou na redução do seu valor tributável;

ii) A inexatidão da fatura ou o erro material ou de cálculo na transcrição dos seus elementos para a contabilidade ou declarações periódicas de IVA dos sujeitos passivos;

iii) O erro de enquadramento da operação, espelhado na fatura ou na contabilidade dos sujeitos passivos.”

(...)

 

d) "Quando da verificação de um erro de enquadramento ou erro de direito resultar uma regularização de imposto a favor dos sujeitos passivos, estes podem promovê-la nos termos do disposto no artigo 98.º do Código do IVA, isto é, no prazo geral e supletivo de quatro anos ali previsto."

(...)

e) "Consequentemente, atenta a inaplicabilidade daquela norma ou de qualquer outra disposição especial, no caso de erro de direito na dedução do IVA deverá ser aplicado o prazo geral e supletivo de quatro anos contados do nascimento do direito à dedução, constante do artigo 98.º do Código do IVA."

 

f) Assim, "O erro quanto à aplicação de determinados regimes jurídicos não constitui nem erro material nem erro de cálculo, pelo que é manifesto que não pode ser-lhe aplicado o regime do referido n.º 6 do artigo 78.º do CIVA.”

 

225. A questão foi tratada em termos similares pela jurisprudência do STA constante no Processo 1427/14, de 28-6-2017 onde se afirma “A aplicação dos métodos de dedução relativos a bens de utilização mista é juridicamente complexa pelo que o erro decorrente da aplicação deste regime jurídico não constitui nem erro material nem erro de cálculo. Estabelece o artigo 95.º-A, n.º 2, do CPPT que se consideram erros materiais ou manifestos os que resultarem do funcionamento anómalo dos sistemas informáticos da administração tributária, bem como as situações inequívocas de erro de cálculo, de escrita, de inexatidão ou lapso. Incluem-se neste conceito (cf. Jorge Lopes de Sousa in Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, 6ª ed. 2011) “todo o tipo de lapsos materiais, que são situações em que o autor do ato deixou nele escrito algo que não correspondia à sua vontade, como por exemplo, errada indicação do nome do contribuinte ou do tributo em causa ou erro aritmético no cálculo do tributo. Neste conceito de lapsos materiais incluem-se ainda os derivados do deficiente funcionamento do sistema informático da administração tributária.”. Ora no caso sub judice é convicção deste Tribunal Arbitral que o “erro” cometido pelo Requerente qualificar indevidamente operações de prestação de serviços como sendo transmissões de bens é um erro de direito, sendo aplicável o regime legal previsto no n.º 2 do artigo 98.º do CIVA. De facto, é entendimento do STA no aresto acima referido que “O prazo aplicável para reclamar do IVA entregue, em excesso, numa situação enquadrável no denominado erro de direito é de quatro anos, nos termos previstos no artigo 98.º, n.º 2 do CIVA”. O mesmo entendimento consta do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18.05.2011 proferido no processo n.º 966/10.

 

Conformidade do Direito Português com o Direito da União Europeia

 

Conceitos de transmissão de bens e prestação de serviços

 

226. O atual n.º 3 do art.º. 3.º, al e), do CIVA tem originariamente por base a al. a) do nº. 5 do art.º. 5.º da Sexta Diretiva do IVA, que concedia uma opção aos EM nos termos seguintes:

5. Os Estados-membros podem considerar entrega, na aceção do n.º 1

a) A entrega de um bem móvel por força de um contrato de empreitada, isto é, a entrega ao cliente, pelo empreiteiro, de um bem móvel por ele fabricado ou montado com materiais ou objetos que o cliente lhe confiou para o efeito, quer o empreiteiro tenha fornecido ou não uma parte dos produtos utilizados;"

 

227. Este dispositivo desapareceu com a reforma operada, em 2006, pelo art.º 121.º da Diretiva de Consolidação do IVA, a qual, porém, salvaguardou as situações existentes nos seguintes termos:

" Os Estados-Membros que, em 1 de Janeiro de 1993, consideravam as empreitadas de mão-de obra como entregas de bens podem aplicar às operações de entrega de uma empreitada de mão-de-obra a taxa aplicável ao bem obtido após execução da empreitada de mão-de-obra. 

Para efeitos da aplicação do primeiro parágrafo, entende-se por «entrega de uma empreitada de mão-de-obra» a entrega, pelo empreiteiro da obra ao seu cliente, de um bem móvel por ele fabricado ou montado com materiais ou objetos que o cliente lhe tenha confiado para o efeito, independentemente de o empreiteiro ter ou não fornecido uma parte dos materiais utilizados."

 

228. O Estado português fez uso parcial desta opção, cingindo-a aos casos em que o bem móvel final montado ou fabricado tenha na sua base apenas produtos fornecidos pelo empreiteiro, estando este regime conforme com o Direito da União.

 

Erro de direito e erro de facto. A questão dos prazos para a sua regularização

 

229. Uma outra questão é a de saber se a interpretação que aqui é feita relativamente à questão dos prazos em que podem ser retificados erros de facto e de direito tem ou não o respaldo do Direito europeu.

 

230. Em nome da segurança jurídica, o TJUE exige que haja um prazo nos direitos nacionais durante o qual o direito à dedução de IVA possa ser efetivado.

 

231. No entanto, o TJUE defende igualmente que o direito à dedução deve ser entendido de forma ampla, de molde a assegurar o princípio da neutralidade, não podendo ser negado pelas Autoridades Tributárias, com simples fundamento na existência de erros materiais ou de irregularidades contabilísticas. De onde resulta que a aplicação de um prazo de quatro anos para exercer a regularização de IVA a favor do sujeito passivo, está conforme com o princípio da neutralidade fiscal e da efetividade, quando não se esteja perante situações de fraude e evasão fiscal.

 

232. Assim, no processo n.º 28/2017-T, de 27.10.2017., onde foi amplamente desenvolvida a análise da jurisprudência do TJUE sobre a matéria em moldes que se mostram aplicáveis ao caso sub judice. O requerente entende que a posição da AT não é compatível com o direito europeu tal como é interpretado pela jurisprudência do TJUE, nomeadamente nos Acórdãos Ecotrade, EMS Bulgária e Giuseppe Astone.

 

233. Conclui o Tribunal Arbitral que “(…) no que respeita ao entendimento do TJ vertido nas três decisões analisadas, embora este comece por sancionar o prazo de caducidade do direito à dedução, procede, posteriormente, ao seu afastamento na aplicação aos casos concretos, por considerar que o mesmo constitui uma punição inadmissível à luz da Diretiva IVA e dos princípios da neutralidade, equivalência e efetividade. Neste âmbito, o TJ acaba sempre por confirmar esse direito à dedução para além dos prazos nacionais de caducidade em situações incomparavelmente menos sólidas do que a do Requerente”.

 

234. Nos casos do Acórdão Ecotrade (Itália) e do Acórdão EMS Bulgaria (Bulgária) – únicos aqui considerados -, estavam em causa transações intracomunitárias em que o sujeitos passivos (Ecotrade Spa) e EMS-Bulgária Transporte ODD) de acordo com a legislação europeia e doméstica, deviam ter autoliquidado imposto e ter exercido o direito à dedução do mesmo, o que por força do mecanismo de “reverse-charge” [nos Acórdãos referidos é identificado como “inversão do ónus da liquidação”] implicava não haver qualquer impacto financeiro em sede de IVA, vindo esse direito à dedução a ser negado pelas respetivas Autoridades Tributárias.

 

235. No primeiro caso – o do Acórdão Ecotrade – o sujeito passivo (Ecotrade Spa) fez um incorreto enquadramento tributário no sentido de que a transação intracomunitária (transporte  intracomunitário de escória de granulada de alto-forno e de outros aditivos) não estava sujeita a IVA, tendo em sede inspetiva a Autoridade Tributária Italiana enquadrado a transação intracomunitária como sujeita ao mecanismo de “reverse-charge” (ou inversão do “ónus de liquidação”) assim como detetado o não cumprimento de determinadas exigências contabilísticas (erros contabilísticos) relacionadas com o mecanismo de “reverse-charge”, dando origem à não declaração do IVA devido nas declarações periódicas de IVA de 2000 e 2001. A Autoridade Tributária Italiana liquidou IVA e coimas negando o direito à dedução com o fundamento de o mesmo ter caducado, uma vez que não tinha sido exercido o direito no prazo de dois anos contados a partir do momento em que o imposto se tornara exigível,

 

236. Eis os argumentos produzidos neste acórdão pelo TJUE:

 

a) O TJUE começa por referir quanto ao prazo de caducidade que os Estados-Membros podem exigir que o direito à dedução seja exercido durante o período em que surgiu ou durante um período mais lato, sem prejuízo de determinadas condições e modalidades definidas para o exercício desse direito poderem constar nas respetivas regulamentações nacionais porque a não existência de períodos temporais para o exercício do mesmo contraria o princípio da segurança jurídica;

 

b) Por outro lado, o TJUE refere que “um prazo de caducidade cujo termo conduz a que se puna o contribuinte não suficientemente diligente, que não reclamou a dedução do IVA a montante, fazendo-lhe perder o direito à dedução, não pode considerar-se incompatível com o regime fixado pela Sexta Diretiva, desde que, por um lado, esse prazo se aplique de igual modo aos direitos análogos em matéria fiscal que se baseiam no direito interno e aos que se baseiam no direito comunitário (princípio da equivalência) e, por outro, não torne praticamente impossível ou excessivamente difícil o exercício do direito à dedução (princípio da eficácia) (v. acórdãos de 27 de fevereiro de 2003, Santex, C-327/00, Col., p. I-1877, n.° 55, e de 11 de outubro de 2007, Lämmerzahl, C-241/06, ainda não publicado na Coletânea, n.° 52)”, conforme considerando 46, concluindo que “À luz do que precede, há que responder ao órgão jurisdicional de reenvio que os artigos 17.°, 18.°, n.ºs 2 e 3, e 21.°, n.° 1, alínea b), da Sexta Diretiva não se opõem a uma regulamentação nacional que institui um prazo de caducidade para o exercício do direito à dedução, como o em causa nos processos principais, desde que os princípios da equivalência e da eficácia sejam respeitados (…)”, conforme considerando 54, podendo concluir-se que tem que haver um prazo de caducidade para o exercício do direito à dedução e que esse prazo respeita os princípios de equivalência e de eficácia acima enunciados;

 

c) Conexo com a existência de um prazo de caducidade, que tem sempre que existir, devido ao princípio da segurança jurídica, o TJUE analisa a compatibilidade ou não com o Direito europeu, da negação do direito à dedução, neste caso por parte da Autoridade Tributária Italiana, fundamentada na existência de erros/irregularidades contabilísticas em situações de “reverse-charge”, em que o sujeito passivo deveria ter autoliquidado IVA e exercido o direito à dedução e não fez nem uma nem outra.

 

d) A pronúncia do TJUE vai no sentido de que mesmo que haja erros/irregularidades contabilísticas, se a legislação previr o exercício do direito à dedução para os casos de “reverse-charge”, então, esse direito não deve ser negado a não ser que se esteja perante situações de fraude como consta do aresto em causa: “No que respeita às obrigações que decorrem do artigo 18.°, n.º 1, alínea d), da Sexta Diretiva, embora seja verdade que esta disposição autoriza os Estados-Membros a estabelecer as formalidades relativas ao exercício do direito à dedução no caso de inversão do ónus da liquidação, a sua violação pelo sujeito passivo não o pode privar do seu direito à dedução. Com efeito, uma vez que é incontestável que o regime de inversão do ónus da liquidação era aplicável aos processos principais, o princípio da neutralidade fiscal exige que a dedução do IVA a montante seja concedida se as exigências de fundo foram cumpridas, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certas exigências formais (v., por analogia, acórdão de 27 de Setembro de 2007, Collée, C-146/05, Col.., p. I-7861, n.° 31).

 

e) Por consequência, uma vez que a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo é, enquanto destinatário da prestação de serviços em causa, devedor do IVA, não pode impor, no que se refere ao direito deste último à dedução desse imposto, condições adicionais que podem ter como efeito a impossibilidade absoluta do exercício desse direito (v. acórdão Bockemühl, já referido, n.° 51). O mesmo se pode dizer em relação ao artigo 22.°, n.ºs 7 e 8, da Sexta Diretiva, por força do qual os Estados-Membros adotarão as medidas necessárias a fim de que o sujeito passivo cumpra as suas obrigações de declaração e de pagamento ou estabelecerão outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do imposto e para evitar a fraude.

 

f) Efetivamente, embora essas disposições autorizem os Estados-Membros a adotar determinadas medidas, estas não devem, porém, ir para além do que é necessário para atingir os objetivos mencionados no número anterior. Tais medidas não podem, portanto, ser utilizadas por forma a porem sistematicamente em causa o direito à dedução do IVA, que é um princípio fundamental do sistema comum do IVA posto em prática pela legislação comunitária na matéria (v. acórdãos de 18 de dezembro de 1997, Molenheide e o., C-286/94, C-340/95, C-401/95 e C-47/96, Col.., p. I-7281, n.º 47, e Gabalfrisa e o., já referido, n.° 52). Ora, uma prática de retificação e de cobrança, como a em causa nos processos principais, que pune a violação de obrigações de contabilidade e de declaração pelo sujeito passivo com uma recusa do direito à dedução excede claramente o que é necessário para atingir o objetivo de assegurar a correta aplicação dessas obrigações, na aceção do artigo 22.°, n.° 7, da Sexta Diretiva, uma vez que o direito comunitário não obsta a que os Estados-Membros, para punir o não respeito das referidas obrigações, apliquem, eventualmente, uma coima ou uma sanção pecuniária proporcional à gravidade da infração. A referida prática também excede o que é necessário para garantir a correta cobrança do IVA e para evitar a fraude, na aceção do artigo 22.°, n.º 8, da Sexta Diretiva, visto que pode mesmo levar à perda do direito à dedução se a retificação da declaração pela Administração Fiscal só ocorrer após o termo do prazo de caducidade de que dispõe o sujeito passivo para proceder à dedução (v., por analogia, acórdão Gabalfrisa e o., já referido, n.ºs 53 e 54)” conforme é alegado pelo Requerente nos artigos 182 a 184.º da PI”, conforme considerandos 62 a 68;

 

237. Assim, relativamente ao Acórdão Ecotrade, sintetiza a referida decisão do CAAD o entendimento do TJUE nos termos seguintes:

"- deve existir um prazo de caducidade relativo ao exercício do direito à dedução devido ao princípio da segurança jurídica; - a situação em análise é uma situação de “reverse-charge” em que o sujeito passivo é obrigado a autoliquidar e a deduzir IVA, não havendo qualquer impacto financeiro;

- o exercício do direito à dedução nestes casos de “reverse-charge” não pode ser posto em causa devido ao princípio da neutralidade, princípio basilar no sistema comum IVA, devido a erros/irregularidades contabilísticos;

- a legislação europeia (Diretiva IVA) não impede que os Estados-Membros imponham medidas com vista ao cumprimento de obrigações de pagamento e declarativas em sede IVA com vista a garantir a cobrança exata e a evitar situações de fraude em sede de IVA;

- as medidas devem ser proporcionais não indo além do necessário para garantir o cumprimento

das obrigações de pagamento e declarativas do imposto;

- tais medidas não podem pôr em causa o exercício do direito à dedução, a não ser que se esteja perante situações de fraude e evasão fiscal;

- o não cumprimento das medidas pode dar origem a coimas ou sanções pecuniárias proporcionais à gravidade da situação instaurada pelos Estados-Membros em vez da negação do exercício do direito à dedução."

 

238. No segundo caso – EMS Bulgaria –, o sujeito passivo búlgaro (EMS-Bulgaria Transporte ODD) efetua uma transação intracomunitária (aquisição intracomunitária de bens), tendo aplicado o mecanismo de “reverse-charge” ao abrigo do qual liquidou e deduziu imposto, não havendo qualquer impacto financeiro, vindo a Administração Tributária Búlgara negar o direito à dedução pelo facto de o mesmo direito ter sido exercido fora do prazo de caducidade de acordo com o estabelecido na legislação búlgara; a decisão do TJUE foi, à semelhança do Acórdão Ecotrade, declarar que de acordo com o direito europeu, o sujeito passivo tinha direito à dedução na transação comunitária em análise;

 

239. De acordo com a jurisprudência do TJUE, o princípio da neutralidade do IVA exige que a dedução do imposto pago a montante seja concedida caso os requisitos substanciais tenham sido cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham porventura negligenciado certos requisitos formais (ex. Caso Barlis). Neste contexto, de acordo com o TJUE, desde que as Administrações Fiscais disponham dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo, enquanto destinatário das operações, é devedor do IVA, não pode impor, no que diz respeito ao seu direito à dedução, condições adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito.

 

240. Em conformidade com o TJUE, o direito à dedução previsto nos artigos 167.º e seguintes da Diretiva IVA é parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado. Esse direito exerce-se imediatamente em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efetuadas a montante. Neste contexto, no Caso Intiem, o TJUE precisou que o mecanismo da dedução do IVA regulado pela Sexta Diretiva “deve ser aplicado de tal forma que o seu âmbito de aplicação corresponda, na medida do possível, ao âmbito das atividades profissionais do sujeito passivo”.

 

241. É ainda jurisprudência constante do TJUE que, sendo o direito à dedução um elemento fundamental do regime de IVA, só é possível limitar este direito nos casos expressamente previstos pela Diretiva IVA e, ainda assim, com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade, não se podendo esvaziar o sistema comum do IVA do seu conteúdo.

 

242. Não existe, pois, qualquer desconformidade entre a forma como o direito interno tem sido interpretado e aplicado pelos tribunais portugueses nos arestos supracitados e a interpretação que é feita pelo TJUE do Direito europeu.

 

243. No caso sub judice, não ficou provada a existência de fraude nem sequer de abuso de direito, não tendo resultado do comportamento da Requerente qualquer prejuízo para o Estado. O facto de terem existido da parte da J...

erros sucessivos decorrentes de incorreta qualificação jurídica das operações em causa não deve ser penalizador nem coartar o seu direito à dedução.

 

E.  DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

244. A Requerente peticiona, ainda, a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

 

245. O artigo 43.º, n.º 1, da LGT, determina que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, estatuindo o n.º 5 do artigo 61.º do CPPT que os “juros são contados desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos”.

 

246. No caso concreto, verifica-se que a ilegalidade da liquidação adicional de imposto controvertida, por erro nos pressupostos de direito, é imputável à AT por, naquela liquidação, ter procedido à incorreta interpretação do artigo 98.º, n.º 2, conjugado com os artigos 22.º, n.º 2 e 23.º, n.º 6, todos do Código do IVA, pelo que o Requerente tem direito, em conformidade com o disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, aos respetivos juros indemnizatórios, nos termos do estatuído nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, calculados à taxa resultante do n.º 4 do artigo 43.º da LGT, até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos.

 

DECISÃO

 

Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide:

 

a.            Julgar procedente, por erro sobre os pressupostos de direito, o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de IVA n.º 2017... e consequente anulação na parte em que corrige o IVA deduzido no montante de € 2.144.303,54;

 

b.            Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos legais.

 

Custas a pagar pela Recorrente nos termos dos artigos 3.º e 5.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Valor do processo: € 2.144.303,54

 

Lisboa, 15 de setembro de 2020

 

Alexandra Coelho Martins

Clotilde Celorico Palma

Sérgio Vasques

 

 

 

 

 

Acordam os Árbitros António Carlos dos Santos (Árbitro Presidente), Clotilde Celorico Palma e Sérgio Vasques, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, no seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A – RELATÓRIO

I A marcha do processo

 

1. Em 21.12.2017 foi aceite, pelo Senhor Presidente do CAAD, o pedido de pronúncia arbitral (PPA) deduzido pela A... (entidade de direito alemão, registada em Portugal como sujeito passivo não residente sob o número de identificação fiscal..., com estabelecimento estável com morada na Rua..., n.º..., Porto, anteriormente B...) ao abrigo do disposto nos art.os 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto -Lei n.º 10/2011, de 20.01 (“Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária”, doravante RJAT), na versão introduzida pelos art.os 228.º e 229.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31.12.

 

2. Este pedido tem por objeto:

 

                a) a declaração da ilegalidade do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) n.º 2017... (notificado em 21.09.2017), em consequência do qual resultou o indeferimento parcial de um pedido de reembolso apresentado, ou seja, na parte em que corrige o IVA deduzido no montante de 2.144.303,54, com todas as legais consequências; ou, subsidiariamente,

 

                b) a declaração de ilegalidade da referida liquidação, e a consequente anulação parcial na parte em que corrige o IVA deduzido no montante de € 769.104,86 suportado em operações realizadas quando a Requerente já se encontrava registada para efeitos de IVA em Portugal, com todas as legais consequências.

 

3. No mesmo dia 21.12.2017, o pedido de constituição de Tribunal Arbitral foi automaticamente notificado às Partes.

 

4. Dentro dos prazos previstos no RJAT, a Requerente procedeu à nomeação de árbitro, tendo indicado a Professora Doutora Clotilde Celorico Palma, nos termos do art.º 11.º. n.º 2, do RJAT. Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, a Requerida indicou como árbitro o Professor Doutor Sérgio Vasques.

 

5. Os árbitros indicados pelas Partes indicaram como árbitro presidente o ora relator, que aceitou essa incumbência no prazo aplicável, tendo, em seguida, tal designação sido efetuada pelo CAAD.

 

6. Em 20.02.2018, as Partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

7. Em 12.03.2018, em conformidade com o preceituado no n.º 7 do art.º 11.º do RJAT, foi constituído o presente Tribunal Arbitral Coletivo, podendo assim apreciar e decidir o objeto do processo.

 

8. Em 23.03.2018 foi proferido despacho arbitral nos termos do n.º 1 do art.º 17.º do RJAT, do qual foi a Requerida notificada na mesma data.

 

9. Em 30.04.2018, a Requerida apresentou a sua resposta, começando por invocar a exceção de incompetência deste TA para apreciar o litígio, questão essa que deve ser objeto de análise prévia.

 

10. Em 11.05.2018, foi proferido um despacho agendando para o dia 08.06.2017 a reunião a que se refere o art.º 18.º do RJAT, para se proceder à inquirição das testemunhas arroladas. Para o efeito, a Requerente foi convidada a indicar os factos sobre os quais as testemunhas deveriam ser inquiridas e designar o tradutor para audição das testemunhas estrangeiras.

 

11. Em 08.06.2018, teve lugar a reunião prevista no art.º 18.º do RJAT e a inquirição das seguintes testemunhas indicadas pela Requerente (cf. Ata da Reunião): C...; D...; E...; F... e G... . Para a audição destas duas últimas testemunhas foi nomeado como tradutor de alemão/ inglês para português (e vice-versa) H..., indicado pela Requerente e aceite pela Requerida e pelo TA, após demonstração das suas credenciais como intérprete. A testemunha I... não compareceu devido a doença, do facto sendo apresentada comprovação. Foi decidido que a sua audição ocorreria no dia 02.07.2017. Foi ainda decidido que as alegações deveriam ser apresentadas por escrito e de forma sucessiva e que, tendo em conta as diligências em curso e a proximidade das férias judiciais (art.º 17.º-A do RJAT), o prazo para a decisão seria prorrogado por dois meses, ao abrigo do art.º 21.º, n.º 2 do RJAT.

 

12. Em 02.07.2018, procedeu-se à inquirição da testemunha I... que não havia comparecido no dia 08.06.2018 (cf. a respetiva Ata). Nessa mesma reunião, o TA notificou a Requerente e a Requerida para, por esta ordem, apresentarem, no prazo de 20 dias, alegações escritas sucessivas, tendo o prazo para a Requerida começado a contar com a notificação da junção das alegações da Requerente. Tendo em conta o disposto no n.º 1 do art.º 21.º do RJAT, nessa mesma ocasião, foi fixado o dia 31.10.2018 como prazo para prolação da decisão arbitral.

 

13. Em 07.09.2018, foram apresentadas alegações por parte da Requerente (juntas aos autos), onde esta, tendo em conta a diligência de inquirição de testemunhas, reitera e desenvolve a sua posição sobre a matéria de facto e de direito expressa na petição inicial, e, bem assim, a sua posição sobre a exceção suscitada pela Requerida, rebatendo a argumentação desta.

 

14. A Requerida não apresentou alegações.

 

15. Em 18.10.2018, tendo em conta a condução do processo definida nas reuniões de 08.06.2018 e 02.07.2018, foi proferido um despacho no sentido de o TA, em conjunto com as Partes, analisar e decidir em reunião a agendar para 08.11.2018, a questão da exceção invocada pela Requerida. No mesmo despacho, atendendo a diversas ausências dos árbitros e à complexidade do processo, foi, ao abrigo do art.º 21.º, n.º 2 do RJAT, prorrogado o prazo para decisão do presente processo por mais dois meses.

 

16. Em 23.10.2018, a Requerida apresentou um requerimento onde refere nada ter a acrescentar sobre a exceção que já não tivesse escrito na contestação (mas invocando, ainda assim, em favor da sua tese dois acórdãos do STA, um de 11.06.2008 e outro de 21.02 2018), e onde solicita, em consequência, a dispensa de realização da reunião agendada para 08.11.2018.

 

17. Ouvida sobre o tema, a Requerente, em 29.10.2018, declarou nada ter a opor ao cancelamento da referida reunião, solicitando ao mesmo tempo que seja desconsiderada a nova argumentação trazida ao processo pela Requerida. Deste modo, a mencionada reunião foi cancelada por despacho de 07.11.2018.

 

18. Por despacho de 28.11.2018, foram as Partes informadas do sentido da posição do coletivo de não ser dado provimento à exceção de incompetência do TA invocada pela Requerida e, consequentemente, da prossecução do presente processo. No mesmo despacho, foi solicitado às Partes a remessa da transcrição (caso esta existisse) dos depoimentos prestados oralmente pelas testemunhas e, por precaução, decidido que, dada a existência de novas ausências de membros do coletivo durante alguns dias de dezembro e de janeiro, o prazo para a prolação da decisão seria prorrogado por mais dois meses.

 

19. Por despacho arbitral de 18.12.2018, foi dado provimento a um pedido da Requerida em que esta solicitava a anulação do despacho de 28.11.2018 na parte em que se referia a posição do TA sobre a exceção de incompetência, a qual será decidida e fundamentada no momento da decisão arbitral.

 

20. Em 08.02.2019, foi emitido o seguinte despacho arbitral: "Tendo em conta  um mais completo  apuramento da verdade material, notifique-se a Requerente para, no prazo de   10 dias, juntar aos autos prova documental  relativa aos factos alegados nos artigos 40.º e 42.º da petição inicial, bem como nos artigos 96.º. 99.º e 102.º das suas alegações, nomeadamente cópia das partes relevantes do relatório, análise, nota informativa ou instrução que esteve na base da revisão das faturas e/ ou  troca de correspondência com  a J...".

 

21. Em resposta ao solicitado, a Requerente, em 19.02.2019, juntou aos autos nove documentos (em alemão e inglês, tendo a sua tradução enviada em 04.03.2019, na sequência de despacho arbitral de 21.02.2109 - que prorrogou para 12.03.2019 o prazo para a decisão arbitral,  não tendo havido objeção da Requerida em relação à junção ou tradução destes documentos), entre os quais a cópia de um memorando da K... de  20.10.2014 sobre o enquadramento em IVA das transações efetuadas  pela Requerente, de um outro da V... relativos a propostas de consultoria fiscal sobre o mesmo tema e de documentos que provam o envolvimento da empresa L... na identificação das questões fiscais da Requerente, e, bem assim,  diversos e-mail e trocas de correspondência.

 

II O Litígio

 

Fundamentação da posição da Requerente

 

22. Em defesa da sua posição, a Requerente, em síntese, alega que:

 

                a) na base do presente litígio está a não aceitação pela Requerida da correção de uma errada qualificação de operações tributárias (prestações de serviços bens em vez de transmissões de bens) levada a cabo por uma empresa sua fornecedora, a J... S.A.;

 

                b) apesar de estas operações não terem sido corretamente faturadas ou reportadas pela J... S.A., tendo esta empresa ocorrido em diversos erros, daí não resultou qualquer prejuízo para o Estado;

 

                c) as correções promovidas pela Requerida ao IVA dedutível, que estiveram na origem da liquidação      ora impugnada referem-se a IVA liquidado à Requerente, em dezembro de 2015, na sequência de faturas emitidas pela J..., S.A. (identificadas nos artigos 56.º e 57.º da PI)

 

                d) o prazo para a emissão das faturas corrigidas não é o de dois anos, como defende a Requerida, por aplicação do art.º 78.º, n.º 3 do Código do IVA (CIVA), mas o de quatro anos, decorrente do art.º 98.º, n.º 2 do CIVA, em conjugação com o art.º 22.º do mesmo diploma (erro de direito).

 

23. A Requerente contesta assim a posição da Requerida (segundo a qual estaríamos perante “faturas de correção” que não foram declaradas na declaração periódica relativa ao período de imposto em que foram emitidas e em que o respetivo descritivo menciona como operação tributável uma “transmissão de bens”), uma vez que, tendo a referida faturação incidido sobre componentes de torres eólicas adquiridas pela J... S.A. que, em conjunto com outras componentes fornecidas pela Requerente, foram objeto de montagem por aquela empresa com o objetivo de entregar à Requerente o produto final (...), estaríamos perante "prestações de serviços".

 

24. De facto, o valor aportado pela J... S.A. referente a serviços de montagem e componentes incorporadas, designadamente, as componentes Generator e Converter (adquiridas pela J... S.A., até 2013, à sociedade M..., S.A.) nunca excedeu um montante de 30% relativamente ao custo total de uma Nacelle.

 

25. Assim, nos termos do art.º 4, n.º 2, alínea c), do CIVA, esta operação deveria ser qualificada como prestação de serviços e não como transmissão de bens.

 

26. Não dispondo, na altura, a Requerente de um estabelecimento estável, com uma estrutura com meios técnicos e humanos para o qual os serviços fossem prestados, os serviços levados a cabo pela J... S.A. não seriam sujeitos a IVA em Portugal, por aplicação a contrário da regra geral de localização prevista no art.º 6.º, n.º 6, alínea a), do CIVA.

 

27. Sucede, porém, que a J... S.A qualificou erradamente como transmissões de bens as operações efetuadas com a Requerente, liquidando IVA nas chamadas “faturas originárias” (emitidas com o número de identificação fiscal alemão da Requerente), pois entendeu que levava a cabo uma transmissão de bens localizada em Portugal.

 

28. Contudo, no início de 2015, na sequência de uma auditoria interna promovida pela Requerente, esta comunicou à J... S.A. que havia detetado o mencionado erro de qualificação das operações na emissão das faturas.

 

29. Perante isto, em fevereiro de 2015, a J... S.A, tendo em vista a correção da liquidação indevida de IVA, emitiu nota de crédito para anulação das faturas que mencionavam indevidamente transmissões de bens sujeitas em Portugal, bem como novas faturas, agora sem liquidação de IVA.

 

30. Acontece, porém, que a J... S.A. incorreu então em novo erro: nas novas faturas emitidas, indicou como justificativo da não liquidação de IVA o art.º 14.º do Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias (“RITI”), em vez de referir o art.º 6.º, n.º 6, alínea a), do CIVA.

 

31. Este erro, que não foi identificado na altura pelas partes contratantes, deveu-se provavelmente ao facto de os serviços da J... S.A. recorrerem a anteriores modelos de faturas (onde se mencionava o RITI), dado as menções ao enquadramento aplicável em sede de IVA serem feitos manualmente nas faturas.

 

32. Assim, quer a nota de crédito, quer as novas faturas (com erros) foram reportadas pela J... S.A. na declaração periódica de IVA de fevereiro de 2015.

 

33. A Direção de Finanças de ... (DF...) iniciou uma ação de inspeção em resposta ao pedido de reembolso do crédito de IVA na declaração periódica de IVA de agosto de 2015 efetuado pela J... S.A.

 

34. A J... S.A. defendeu então que as faturas em análise eram relativas a prestações de serviços e não a transmissões de bens, contestando a qualificação efetuada pela AT, a qual, partindo do enquadramento das operações como transmissões intracomunitárias de bens, solicitou a prova de expedição dos bens para outro EM e, na ausência desta, deu informalmente nota de que iria proceder à correção do valor do reembolso no montante de € 1.027.946,88.

 

35. Não obstante não ter concordado com a posição da DF... (pois entendia que as operações deveriam ser qualificadas como prestações de serviços), a J... S.A. procedeu à emissão de uma nota de crédito para anular as faturas emitidas em fevereiro de 2015 e emitiu novas faturas, com liquidação de IVA, tendo sido com base nessas faturas que a Requerente exerceu o seu direito à dedução.

 

36. No entanto, é cometido novo erro pela J... S.A., pois, ao invés de reportar estas novas faturas na declaração periódica de substituição n.º..., nos campos 3 e 4, limitou-se a retirar do campo 40 o valor do IVA da nota de crédito.

 

37. Na sequência da posição da DF... e com vista a uniformizar os seus procedimentos, a J... S.A. decidiu também corrigir as faturas emitidas entre 08.11.2011 e 18.07.2012.

 

38. Assim, em dezembro de 2015, a J... S.A. procedeu à emissão de notas de crédito, no valor de € 1.458.021,66, para anular as faturas inicialmente emitidas, e emitiu novas faturas, com liquidação de IVA, usando o número de identificação fiscal português da Requerente.

 

39. Contudo, em virtude de manifesto erro, as novas faturas, bem como as notas de crédito, não foram reportadas na declaração periódica correspondente ao período da sua emissão (dezembro de 2015), sem que deste procedimento resultasse lesão financeira para o Estado.

 

40. Os procedimentos de anulação e emissão de faturas subsequentes foram, assim, motivados pelo facto de a J... S.A., bem como a Requerente, terem concluído que as faturas emitidas originariamente não revelavam uma correta qualificação jurídico-tributária, tendo sido as faturas em causa emitidas com liquidação de IVA porque assim foi exigido pela AT, na sequência do procedimento inspetivo à J... S.A.

 

41. No que respeita à Requerente, o IVA está relacionado com operações que conferem o direito à dedução e foi mencionado em faturas que cumprem integralmente os requisitos previstos no art.º 36.º do CIVA.

 

42. Mas, segundo a Requerente, ainda que se entendesse que se verificou uma qualquer incorreção formal no descritivo das faturas, esta não prejudicaria o exercício do direito à dedução, pois constitui entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) que o grau de exigência no descritivo das faturas ou relativo a outros requisitos formais, para efeitos do exercício do direito à dedução, não deverá ser desproporcional face aos fins de identificação da operação e do controlo da fraude e evasão fiscais.

 

43. Ora, no caso sub judice, sustenta a Requerente, que não foram colocados em risco os fins de uma correta cobrança do IVA, nem o eficaz controlo das operações por parte da AT, uma vez que o imposto foi liquidado e entregue nos cofres do Estado.

 

44. Tendo assim sido cumpridos, no essencial, os requisitos previstos nos artigos 19.º, 22.º e 36.º do CIVA, não pode a Requerida negar à Requerente o exercício do direito à dedução pelo facto de o seu fornecedor –J... S.A. – não ter reportado numa declaração periódica de IVA as últimas faturas emitidas.

 

45. Na realidade, tal reporte não é condição para o exercício do direito à dedução na esfera do adquirente, nem tão-pouco pode ser negado o direito à dedução em virtude de as faturas, pelas razões já aduzidas, não fazerem expressa menção a prestações de serviços.

 

46. A negação do direito à dedução iria traduzir-se uma penalização contrária quer ao princípio da neutralidade, princípio central no sistema comum de IVA, quer ao princípio da proporcionalidade.

 

47. A título subsidiário, a requerente alega ainda que as faturas constantes dos documentos 11 a 33 da petição inicial, a que corresponde IVA deduzido no montante de € 769.104,86, foram emitidas pela J... S.A. com data posterior ao registo de IVA em Portugal da Requerente, ou seja, após 20.08.2012, pelo que, pelo menos neste ponto, não deveria haver dúvidas quanto ao reconhecimento do direito à dedução do imposto suportado, razão pela qual a liquidação impugnada deve ser objeto de anulação parcial, naquele montante.

 

48. Quanto a estas faturas, contesta a Requerente a posição da Recorrida, segundo a qual as faturas em causa foram “indevidamente emitidas ao adquirente com NIF DE, quando já possuía registo de IVA em Portugal, e para os quais não haveria direito ao reembolso pelo regime de reembolso a sujeitos passivos não estabelecidos em Portugal” , e ainda que “Embora o prazo de quatro anos ainda não tenha expirado relativamente às faturas originárias, não podem estas ser utilizadas porque o NIF do adquirente não coincide e, por isso não cumpre os requisitos ao art.º 36, n.º 5 do CIVA. Para que a retificação regularmente operasse tinha de ser emitido documento retificativo, nota de crédito, o que só poderia produzir efeitos nos prazos do art.º 78.º, n.º 3 do CIVA”.

 

49. Ou seja: segundo a Requerente (uma vez que a Requerida reconhece que o IVA foi efetivamente suportado pela Requerente, quando esta já se encontrava registada para esse efeito em Portugal), isso implicava, de acordo com a própria doutrina emanada da AT, que o pedido de reembolso deveria ser efetuado nos termos do art.º 22.º do CIVA. De facto, as “faturas originárias” acima referenciadas mantêm-se válidas para todos os efeitos jurídico-tributários, incluindo o direito à dedução por parte da Requerente, sem prejuízo de o NIF do adquirente indicado na fatura dizer respeito ao seu NIF alemão e não ao NIF português.

 

50. Contudo, ainda que se entendesse que as “faturas originárias” não produzem efeitos em virtude de terem sido objeto de anulação (e sem prejuízo de a Requerente entender não ser aplicável in casu o art.º 78.º, n.º 3 do CIVA), de facto, a J... S.A. anulou as faturas originárias, tendo indicado, nas últimas faturas emitidas, o número de IVA português da Requerente. 

 

51. Em 09.07.2018 a Requerente apresentou alegações escritas (juntas aos autos), onde reiterou e desenvolveu a sua posição relativamente à defesa da Requerida por exceção (a analisar adiante) e por impugnação, agora sustentada por transcrições provenientes da inquirição de testemunhas entretanto efetuada.

 

52. Segundo a Recorrente, decorre da inquirição das testemunhas a confirmação dos factos alegados na PI, nomeadamente que:

- a J... S.A. se limitou a proceder a serviços de montagem de componentes enviados pela Requerente;

  apenas no início de 2015 foi detetado que o regime de IVA aplicado nas faturas padecia de erro, por   deficiente enquadramento jurídico-tributário das operações;

- tal facto deu-se em resultado de uma reanálise por parte da Requerente dos procedimentos seguidos à escala mundial, originando a constituição de um grupo de trabalho para o efeito;

-  foi efetuada em Portugal uma análise das relações comerciais entre a Recorrente e a J... S.A. pela K..., que concluiu pela qualificação das operações tributáveis como sendo prestação de serviços, facto comunicado à J... S.A.;

- que os erros na faturação desta última empresa se deviam à falta de conhecimentos técnicos bastantes das pessoas responsáveis pela faturação, bem como ao uso de um software de gestão inadequado para        a realidade portuguesa.

 

53. Segundo a Recorrente, a prova documental e testemunhal veio confirmar "que os procedimentos de anulação e emissão subsequentes foram motivados pelo facto de a J... S.A , bem como a Requerente, terem concluído que as faturas emitidas originariamente não revelavam um correto enquadramento jurídico-tributário, sendo que, inclusivamente, as faturas melhor identificadas no artigo 56.º da PI foram emitidas com liquidação de IVA tal como exigido pela Autoridade Tributária na sequência do procedimento inspetivo sobre a J... S.A."

 

54. A Recorrente reitera e reforça ainda a invocação da jurisprudência europeia, nomeadamente a decorrente do acórdão do TJUE Biosafe-Indústria de Reciclagens, de 12.04.2018, proferido no proc. C-8/17, segundo a qual o prazo para o exercício do direito à dedução se deve contar não da emissão das faturas iniciais mas da emissão ou receção dos documentos retificativos, desde que não se encontre provada a falta de diligência do adquirente ou conluio fraudulento entre as partes, incumbindo às autoridades fiscais competentes o ónus dessa prova.

 

Fundamentação da posição da Requerida

 

55. Notificada, em 30.04.2018 a Requerida apresentou a sua resposta, defendendo-se por exceção (alegando a incompetência do TA para decidir o presente litígio, questão a analisar posteriormente) e por impugnação. Solicita a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, por não provado, defende que as operações entre a Requerente e a J..., S. A. devem ser qualificadas como transmissões de bens e que o prazo para "correção das faturas é o de dois anos, por aplicação do n.º 3 do art.º 78.º do CIVA". Com base na argumentação a seguir sintetizada, a Requerida pede a sua absolvição de todos os pedidos com as legais consequências.

 

56. Na sequência de pedido de reembolso de IVA, solicitado pela ora requerente, no valor de € 15.850.827,91, na declaração periódica relativa ao período de janeiro de 2016, foi desencadeado um procedimento inspetivo (cujo relatório foi junto aos autos e se dá como reproduzido), de molde a aferir da legitimidade do referido pedido.

 

57. Até agosto de 2012, a Requerente atuou em Portugal como sujeito passivo não residente, não registado, nem estabelecido no território nacional, faturando as operações tributáveis, quer para o mercado interno, quer para o mercado intracomunitário, com utilização do seu número de identificação fiscal alemão (DE...).

 

58. Deste modo, suportou imposto que redundou em situação de crédito de imposto perante o Estado, sendo o mesmo reembolsado após pedidos formulados ao abrigo do Regime de Reembolso do IVA a sujeitos passivos não estabelecidos no Estado membro de reembolso, publicado em anexo ao DL nº 189/2009, de 12.08, cujo art.º 6.º o aprovou.

 

59. De 20.08.2012 a 19.01.2015, a Requerente enquadrou-se como entidade não residente sem estabelecimento estável, no regime normal de periocidade mensal, mediante declaração de inscrição no registo tributário em IVA.

 

60. Não foi indicado na referida declaração qualquer representante fiscal, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 30.º do CIVA, representação que só veio a ocorrer em 28.08.2014.

 

61. Durante este período, a Requerente adquiriu bens e serviços a fornecedores nacionais, intracomunitários e operadores de países terceiros, aos quais comunicou, em regra, o seu número de identificação fiscal português.

 

62. A primeira fatura da Requerente emitida com número de identificação fiscal português (PT...) tem data de 27.11.2014.

 

63. Os bens e serviços adquiridos foram, na quase totalidade, enviados ou colocados à disposição da Requerente nas instalações da J..., S.A, sua participada, a fim de se proceder à montagem dos referidos aerogeradores.

 

64. A partir de finais de 2014, a Requerente passou a declarar também aquisições de bens e serviços no mercado interno destinados à execução de projetos de construção de parques eólicos em que interveio como parte contratante/fornecedor.

 

65. Perante a inexistência da declaração de operações ativas com IVA liquidado, a dedução de imposto originou crédito de imposto que foi sendo sucessivamente acumulado, devido ao aumento das operações internas de aquisição de bens e serviços e de importação.

 

66. Em 19.01.2015, a Requerente entregou nova declaração de alterações, enquadrando-se, desde 01.01.2015, como sujeito passivo não residente com estabelecimento estável (EE).

 

67. Além das transações intracomunitárias de bens enquadráveis para efeitos de IVA no artigo 14.º do RITI, a Requerente passou a realizar operações sujeitas e não isentas de IVA, nem enquadráveis na alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA.

 

68. Por estas operações de transmissão de bens e prestação de serviços essencialmente conexas com contratos de manutenção dos parques eólicos, a Requerente liquidou imposto, reportando o mesmo nas declarações periódicas.

 

69. No entanto, continuando a suportar IVA em Portugal que deduziu nas suas declarações periódicas e prosseguindo relativamente às operações ativas com o enquadramento antes referido, resultou uma situação de crédito de imposto que se foi acumulando até perfazer o montante € 15 850 827,91, valor solicitado na declaração periódica de janeiro de 2016.

 

70. O valor do crédito de imposto solicitado resultou, em grande parte, da dedução do imposto suportado entre 08.2012 e 01.2016, pela aquisição de bens e serviços e da realização pela Requerente de operações isentas ou relativamente às quais a obrigação de liquidação do imposto é da responsabilidade do adquirente.

 

71. A Requerente foi executando novos projetos de construção de parques eólicos, ascendendo o apuramento do IVA, no período de dezembro de 2015, ao valor declarado de € 12 870 773,01 (634 868,56 + 12 235 904,47), correspondente à soma do imposto reportado do ano de 2014, mais o incrementado em 2015, sendo aquele valor global reportado para o período seguinte (janeiro de 2016).

 

72. Entre 08.2012 e 01.2016, o aumento do imposto dedutível declarado perfez o montante de € 9 379 503,29, destacando-se a dedução de imposto inscrita no campo 24, da declaração periódica de dezembro de 2015, no montante de € 1 027 946,88.

 

73. No processo de inspeção acima referido, foram analisados os registos e elementos contabilísticos disponibilizados pela Requerente, concluindo a Requerida que os mesmos não preenchiam todos os requisitos previstos nos artigos 44.º do CIVA e 31.º do RITI.

 

74. Apuraram-se ainda situações de dedução indevida de imposto, no valor de € 341.665,00 relativas a transações tituladas por documentos que evidenciam terem as mesmas sido efetuadas anteriormente à data do registo de IVA em Portugal, por parte da Requerente.

 

75. Detetou-se o registo de “faturas de correção” de inexatidões, emitidas após a anulação das faturas originárias, mediante a emissão de notas de crédito, sem respeito pela limitação temporal de correção prevista no n.º 3 do artigo 78.º do CIVA (dois anos), nos casos de haver imposto liquidado a mais.

 

76. Verificou-se igualmente a não correspondência das “faturas de correção” com a verificação de novas transações, a par da sua emissão para além do prazo legal estabelecido.

 

77. Sustenta ainda a Requerida que os montantes constantes das faturas originárias, que foram, em sua opinião, legal e regularmente emitidas pela J... S.A., com IVA e com o número de identificação fiscal alemão da Requerente, poderiam e deveriam ter sido solicitados, nos prazos e condições do “regime de reembolso de IVA a não residentes”, pois era esse o procedimento (não desconhecido da Requerente) de recuperação do imposto pela via do reembolso de IVA a não residentes.

 

 

78. Do exposto conclui a Requerida que as “faturas de correção” emitidas são irrelevantes em sede de IVA, mantendo-se válidas para todos os efeitos legais as faturas originárias, relativas a transmissões de bens em território nacional emitidas com número de identificação fiscal alemão.

 

79. Na verdade, as “faturas de correção” não materializaram novas transações, nem foram consideradas na declaração periódica relativa ao período de imposto de dezembro 2015, período em que foram emitidas.

 

80. Para que as deduções de imposto fossem possíveis, com base nos documentos que foram analisados era necessário que as novas faturas emitidas (no caso em apreço, as segundas faturas relativamente ao lote das dez originárias e as terceiras faturas relativamente ao lote das 25) fossem corrigidas nos termos legais, o que não aconteceu.

 

81. O n.º 3 do artigo 78.º do CIVA tem como objeto as faturas onde o sujeito passivo liquidou, a mais, imposto a terceiros, e que apresentam inexatidão no valor tributável da operação ou no imposto. A “correção de faturas” tidas por inexatas, devido a erro de enquadramento, não é atendível para efeitos de regularização do imposto liquidado pela J... S.A. para lá do prazo de dois anos previsto no n.º 3 do artigo 78.º do CIVA.

 

82. Acresce que, no último pedido de reembolso relativo a 2011, a J... S.A. apresentou faturas com liquidação de imposto, suportado pela Requerente, em montante que ascendeu a € 341 665,00, reembolso que lhe havia sido pago por transferência bancária internacional em 14.04.2015.

 

83. Ou seja: as referidas faturas foram novamente registadas e reportadas na declaração periódica do pedido do reembolso, de janeiro de 2016, apesar do reembolso já ter sido efetuado. Este facto foi, porém, reconhecido pela Requerente e, consequentemente, tal montante foi expurgado do pedido.

 

B. SANEAMENTO

 

As Partes

 

84. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas (art.ºs 4.º e 10.º do RJAT e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03, doravante Portaria de Vinculação).

 

85. O Tribunal foi devidamente constituído.

 

86. Deverá, porém, ser previamente decidida a questão da competência ou incompetência deste TA suscitada pela Requerida, uma vez da sua resolução depende a legitimidade para ele apreciar o mérito da causa.

 

C. DA PROVA da MATÉRIA DE FACTO

 

Fundamentação

 

87. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

88. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º,  n.º 1, alínea  e), do RJAT).

 

89. Em matéria tributária vale o princípio da livre apreciação da prova, segundo o qual o tribunal deve julgar segundo a sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação dos vários meios de prova trazidos ao processo (cf. art.º 655.º, n.º 1 do CPC e art.º 72.º LGT). Mas isto não significa o arbítrio do julgador, pois a prova deve ser valorada segundo critérios da experiência comum.

 

90. Sendo, no processo tributário, admitidos todos os meios gerais de prova (art.º 115.º, n.º 1, do CPPT), foram tidos em consideração, antes de mais, os factos documentados na petição inicial e nas alegações da Requerente, bem como na resposta da Requerida (cf. o artigo 110.º, n.ºs 6 e 7, do CPPT), incluindo o Processo Administrativo juntos aos autos, em especial o Relatório da Inspeção Tributária, cujo valor probatório poderá ter força obrigatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas.

 

91. Foi igualmente admitida e levada a cabo a produção de prova testemunhal, a qual não suscitou da parte da Requerida quaisquer dúvidas ou reservas (nem antes, nem durante, nem em momento posterior à inquirição das testemunhas) quer quanto à idoneidade às pessoas indicadas, quer relativamente aos depoimentos efetuados.

 

92. A prova testemunhal disponibilizada corroborou ou não contradisse a prova documental existente, mostrando-se, deste modo, coerente e com a segurança necessária para não se suscitarem dúvidas razoáveis relativamente à verificação dos factos em análise.

 

93. Não foram dados como provados ou como não provados alegações das partes, consistentes em afirmações conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se tem de aferir em relação à concreta matéria de facto consolidada. 

 

Factos provados com relevo para a decisão

 

94. A Requerente é uma entidade de direito alemão (anteriormente designada como B...), que desenvolve a sua atividade na área das energias renováveis, em concreto na promoção, construção e exploração de parques eólicos, em vários países da União Europeia.

 

95. Em Portugal, o Grupo de que a Requerente é cabeça integra as seguintes entidades:

•             N..., Lda., NIF..., Porto;

•             O…, Lda., NIF…, …;

•             P…, SA. NIF..., ...;

•             Q..., SA. NIF..., ...;

•             R..., SA. NIF..., ...

 

96. Dada a dispersão geográfica dos mercados onde opera, bem como a complexidade e dimensão dos aerogeradores, o modelo de negócio da Requerente desenvolve-se nos seguintes moldes:

a) As componentes que constituem um aerogerador são maioritariamente adquiridas pela Requerente a entidades terceiras, que podem ou não ser do Grupo N...;

b) A Nacelle, estrutura nuclear do aerogerador, é montada com as diversas componentes igualmente adquiridas a fornecedores terceiros, sendo também a sua montagem subcontratada a fornecedores terceiros; e,

c) Por regra, as componentes são enviadas pelos fornecedores diretamente para os locais onde os parques eólicos são construídos.

 

97. Atualmente, a Requerente realiza em Portugal operações de venda de projetos de construção de parques eólicos;

               

98. Para além dessas vendas, continua a efetuar:

                - aquisições intracomunitárias de bens, enviados de outros Estados-membros para os parques eólicos aqui situados;

                - aquisição de componentes a fornecedores portugueses, as quais se destinam a parques eólicos em Portugal ou, tratando-se de componentes de uma Nacelle, são enviadas para fornecedores portugueses que procedem à sua montagem;

                - aquisição de serviços de montagem de Nacelles a fornecedores portugueses, as quais são posteriormente enviadas para os parques eólicos, para aí serem objeto de instalação num aerogerador.

 

99. Entre os fornecedores portugueses que adquirem bens e serviços destacam-se: a S... S.A., com o número de identificação de pessoa coletiva...; a T..., S.A., com o número de identificação de pessoa coletiva ... e a já referida J..., S.A., com o número de identificação de pessoa coletiva..., as duas últimas empresas integrando, como se disse, o Grupo N... .

 

100. A J... S.A. dedica-se ao fabrico, montagem e comercialização de componentes de turbinas eólicas e a atividades inerentes à montagem, coordenação, gestão e concretização de projetos industriais tendentes à montagem e exploração de parques eólicos.

 

101. A Requerente adquire à J... S.A. serviços de montagem das Nacelles, após adquirir a entidades terceiras – como a U..., S.L. - os diversos componentes das Nacelles, os quais são entregues nas instalações da J... S.A., que procede à montagem da Nacelle (documentos 1 e 2 juntos pela Requerente).

 

102. Concluída a montagem, a Nacelle é enviada pela J... S.A. para o parque eólico, por conta e risco da Requerente (documento 3 junto pela Requerente).

 

103. O valor aportado pela J... S.A. nunca excede os 30%, referente a serviços de montagem e incorporação de componentes.

 

104. No passado, as componentes Generator e Converter eram adquiridas pela J... S.A à sociedade M... S.A. (documento 4 junto pela requerente).

 

105. Os componentes entregues pela Requerente representam pois cerca de 70% do valor de uma Nacelle.

 

106. O enquadramento da ação comercial da Requerente em Portugal comporta três períodos distintos:

a) Até 20.08.2012 atuou como sujeito passivo não residente, não registado, nem possuindo entre nós estabelecimento estável;

b) Entre 20.08.2012 e 19.01.2015, agiu como sujeito passivo não residente, sem estabelecimento estável, mas registado para efeitos de IVA, no regime de periodicidade normal, por forma a reportar as aquisições intracomunitárias de bens, enviados de outros Estados-membros para Portugal;

c) A partir de 19.01.2015, a Requerente ficou enquadrada como sujeito passivo não residente com estabelecimento estável, passando a ser igualmente um sujeito passivo de IRC em Portugal com efeitos retroativos para efeitos deste imposto a janeiro de 2015. Este registo derivou do facto de a Requerente ter projetos de construção de parques eólicos em Portugal com duração superior a 6 meses.

 

107. Até setembro/outubro de 2014, a Requerente emitiu as suas faturas com o NIF alemão (D...), passando a emiti-las com o NIF português em novembro/dezembro de 2014.

 

108. O regime de IVA das operações da Requerente e o reporte das mesmas nas declarações periódicas manteve-se, à exceção dos serviços de montagem das Nacelles prestados pela J... S.A. relativamente a parques eólicos afetos ao estabelecimento estável da Requerente.

 

109. Assim, relativamente a operações da Requerente com a J..., S.A. (únicas em análise no caso sub judice), a Requerente recebeu, com relevância para os autos, dois lotes de faturas (as chamadas faturas originárias) que lhe foram endereçadas pela J..., S.A. com menção expressa a operações de transmissão de bens:

- Lote 1: de 08.11.2011 a 18.07.2012, a J..., S.A. liquidou IVA no montante total de € 1.458.021,66, em 10 faturas emitidas à B... (N...) com o NIF alemão

- Lote 2 de 06.08.12 a 19.03.2013, a J..., S.A. liquidou IVA no montante total de € 1.028.494,      88, em 25 faturas emitidas à B... (N...) com o NIF alemão.

 

110. As 10 faturas do Lote 1, emitidas entre 08.11.2011 e 18.07.2012, são as seguintes:

Data Emissão     Fatura   Emitido a:           Total      Base Tributável IVA

08-11-2011         217500036           DE...      364.326,00          296.200,00          68.126,00

08-11-2011         271500037           DE...      364.326,00          296.200,00          68.126,00

08-11-2011         217500038           DE...      546.489,00          444.300,00          102.189,00

23-12-2011         217500042           DE...      552.024,00          448.800,00          103.224,00

06-02-2012         217500046           DE...      1.639.467,00      1.332.900,00       306.567,00

29-03-2012         217500048           DE...      918.195,00          746.500,00          171.695,00

24-04-2012         95300000             DE...      1.457.304,00      1.184.800,00       272.504,00

29-05-2012         95300003             DE...      910.815,00          740.500,00          170.315,00

02-07-2012         95300005             DE...      546.489,00          444.300,00          102.189,00

18-07-2012         95300006             DE...      497.811,27          404.724,61          93.086,66

                                                7.797.246,27      6.339.224,61      1.458.021,66

 

111. Por sua vez, as 25 faturas inicialmente emitidas (Lote 2) são as que constam do quadro infra (documentos 9 a 33 juntos pela Requerente).

 

Data Emissão     Nr. Documento NIF adquirente Total      Base Tributável IVA

06-08-2012         ...            DE...      182.163,00          148.100,00          34.063,00

06-08-2012         ...            DE...      1.202.079,00      977.300,00          224.779,00

18-09-2012         ...            DE...      108,24   88,00     20,24

18-09-2012         ...            DE...      413.034,00          335.800,00          77.234,00

03-10-2012         ...            DE...      5.579,60               4.536,26               1.043,34

03-10-2012         ...            DE...      74.261,25            60.375,00             13.886,25

03-10-2012         ...            DE...      206.517,00          167.900,00          38.617,00

08-10-2012         ...            DE...      148.522,50          120.750,00          27.772,50

18-10-2012         ...            DE...      74.261,25            60.375,00             13.886,25

18-10-2012         ...            DE...      257.662,11          209.481,39          48.180,72

31-10-2012         ...            DE...      257.612,91          209.441,39          48.171,52

14-11-2012         ...            DE...      331.874,16          269.816,39          62.057,77

14-11-2012         ...            DE...      183.351,66          149.066,39          34.285,27

28-11-2012         ...            DE...      10.587,00            8.600,00               1.978,00

28-11-2012         ...            DE...      331.874,16          269.816,39          62.057,77

07-12-2012         ...            DE...      257.612,91          209.441,39          48.171,52

19-12-2012         ...            DE...      183.351,66          149.066,39          34.285,27

20-01-2013         ...            DE...      275.027,52          223.599,61          51.427,91

11-02-2013         ...            DE...      148.522,50          120.750,00          27.772,50

15-02-2013         ...            DE...      183.400,86          149.106,39          34.294,47

15-02-2013         ...            DE...      183.351,66          149.066,39          34.285,27

21-02-2013         ...            DE...      74.261,25            60.375,00             13.886,25

21-02-2013         ...            DE...      183.351,66          149.066,39          34.285,27

08-03-2013         ...            DE...      148.522,50          120.750,00          27.772,50

19-03-2013         ...            DE...      183.351,66          149.066,39          34.285,27

                                                5.500.233,12      4.471.734,24      1.028.498,88

 

112. Todas estas faturas foram objeto de correção por parte da J... S.A. (faturas de correção), após anulação das faturas originárias, mediante a emissão de notas de crédito.

 

113. As operações ativas realizadas pela Requerente, enquanto “sujeito passivo não residente com estabelecimento estável” em Portugal, respeitam somente aos projetos de construção de parques eólicos em Portugal, com duração superior a 6 meses, a clientes Portugueses;

 

114. Estas operações foram vistas como não sendo objeto de liquidação de IVA, conferindo direito à dedução, motivo pelo qual a Requerente se encontra sistematicamente numa situação de crédito de imposto.

 

115. Na declaração periódica de janeiro de 2016, a Requerente solicitou um reembolso de IVA, no montante de € 15.850.827,91 (documento 6 junto pela Requerente - cópia da Declaração Periódica do período 2016/01).

 

116. Na sequência deste pedido de reembolso, a Requerida desencadeou um procedimento inspetivo credenciado pela ordem de serviço n.º OI2016..., de âmbito parcial, em IVA, com incidência no período de janeiro de 2016, abrangendo os períodos de formação do crédito de imposto de agosto de 2012 até janeiro de 2016.

 

117. O valor do reembolso solicitado pela Requerente decorre, em larga medida, da dedução do imposto suportado entre 08.2012 e 01.2016, pela aquisição de bens e serviços e da realização pela Requerente de operações isentas ou relativamente às quais a obrigação de liquidação do imposto é da sua responsabilidade (por aplicação do mecanismo da inversão do encargo).

 

118. Como resultado do processo inspetivo, concluiu a Requerida pela dedução indevida de IVA:

a)  no período de dezembro de 2015, no valor de € 1.027.946,88, referente a IVA            liquidado pela J... S.A.;

b) no período de janeiro de 2016, no valor de € 1.458.021,66, referente também a IVA liquidado pela J... S.A.

 

119. Foram emitidas pela J... S.A. com data posterior ao registo de IVA em Portugal da Requerente as 10 faturas referidas constantes do Lote 1 (documentos 11 a 33 juntos pela Requerente):

 

120. Assim, decidiu a Requerida efetuar uma correção ao valor do IVA a reembolsar à Requerente no montante total de € 2.485.968,54 (documento 7 junto pela Requerente - cópia do Relatório de Conclusões da Ação de Inspeção).

 

121. De acordo com o Relatório da Inspeção Tributária, as correções com reflexo no montante de reembolso de IVA decompõem-se do seguinte modo:

a) € 341.665,00: IVA já devolvido pela Requerida no seguimento de um reembolso de IVA solicitado pela Requerente ao abrigo da Diretiva n.º 2008/9/CE; e,

b) € 2.144.303,54: IVA liquidado pela J... S.A., em faturas emitidas em dezembro de 2015.

 

122. No valor da correção ao IVA dedutível no montante de € 1.458.021,66, reportado no período de janeiro de 2016, está compreendido o já referido montante de € 341.665,00 reembolsado pela AT no seguimento de um reembolso de IVA solicitado pela Requerente ao abrigo da Diretiva n.º 2008/9/CE.

 

123. Em consequência, emitiu a AT a liquidação de IVA n.º 2017..., objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, em decorrência da qual resultou o indeferimento parcial do pedido de reembolso de IVA apresentado pela Requerente, desconsiderando o montante de imposto objeto de correções, no valor de € 2.485.968,54 (documento 8 junto pela Requerente).

 

124. O valor total de € 2.144.303,54, relativo a IVA suportado na sequência de operações realizadas pela J... S.A. tem por base diversas faturas emitidas em dezembro de 2015, que têm, porém, subjacente duas situações distintas:

a) O montante de € 1.027.946,88, reportado como IVA a favor da Requerente na declaração periódica de IVA de dezembro de 2015, diz respeito a faturas que foram emitidas pela J... S.A., na sequência de uma ação inspetiva levada a cabo pela DF... sobre esta entidade; e,

b) O montante de € 1.116.356,66, reportado como IVA a favor da Requerente na declaração periódica de IVA de janeiro de 2016, diz respeito a faturas emitidas após o período objeto da referida ação de inspeção com vista a uniformizar os procedimentos.

 

125. Numa fase inicial das operações realizadas entre a J... S.A. e a Requerente, a J... S.A. faturava a Requerente procedendo à liquidação de IVA, por considerar que realizava uma transmissão de bens localizados em Portugal, sendo as faturas emitidas com o número de identificação fiscal alemão da Requerente (Faturas 1, as originais).

 

126. A J... S.A. foi informada pela Requerente de que o regime de IVA aplicado nas faturas em questão não estaria correto, tendo ocorrido um erro de enquadramento jurídico-tributário das operações, na medida em que, para efeitos de IVA, as operações realizadas com a Requerente qualificavam como prestações de serviços e não como transmissões de bens, como, erroneamente, constava do descritivo das faturas em questão.

 

127. A conclusão quanto ao erróneo enquadramento das operações derivou de uma reanálise, por parte de uma equipa especialmente incumbida para o efeito pela Requerente, à escala mundial, e relativamente a todos os fornecedores, do enquadramento jurídico-tributário que vinha sendo seguido não apenas nas operações mantidas com a J... S.A., mas com todos os fornecedores da Requerente, sujeitos a diferentes regimes de tributação.

 

128. Com vista a corrigir a liquidação indevida de IVA, em fevereiro de 2015, a J... S.A. procedeu:

a)  À emissão de nota de crédito (doravante designada por “Nota de Crédito 1”), para anular as faturas inicialmente emitidas, designadamente o IVA aí indevidamente liquidado - € 1.027.946,88 (cópia da nota de crédito NC 95330006 junta como documento 34 pela Requerente).

b) À emissão de novas faturas (Faturas corrigidas - faturas 2), ao número de identificação fiscal alemão da Requerente, sem liquidação de IVA, por aplicação do art.º 4.º, n.º 2, alínea c) do Código do IVA conjugado com o art.º 6.º, n.º 6, alínea a) do CIVA (cópias das faturas FT 95300255 e FT 95300257 juntas como documentos 35 e 36 pela Requerente).

 

129. A nota de crédito (Nota de Crédito 1) e as novas faturas (Faturas 2) emitidas pela J... S.A. foram as seguintes:

Data Emissão     Nota de crédito Emitido a:           Total      Base Tributável IVA

12-02-2015         NC 95330006      DE...      5.497.281,12      4.469.334,24       1.027.946,88

 

Data Emissão     Fatura   Emitido a:           Total      Base Tributável

28-02-2015         FT 95300255       DE...      10.824,24            10.824,24

28-02-2015         FT 95300257       DE...      4.458.510,00      4.458.510,00

                                                4.469.334,24      4.469.334,24

 

130. No momento da emissão destas faturas corrigidas, desconhecia a J... S.A. que a Requerente já se encontrava registada para efeitos de IVA em Portugal, pelo que, por lapso, as referidas faturas foram emitidas com o número de identificação fiscal alemão da Requerente.

 

131. Nas novas faturas emitidas, ao invés de indicar como motivo justificativo da não aplicação do imposto o art.º 6.º, n.º 6, alínea a) do CIVA a contrário, a J... S.A. indicou o art.º 14.º do Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias (“RITI”), não tendo sido o erro identificado pela J... S.A. nem pela Requerente.

 

132. Estes documentos foram reportados pela J... S.A. na declaração periódica de IVA desse mês de fevereiro de 2015 (documento 37 junto pela Requerente) nos seguintes termos:

- No campo 40, o IVA da nota de crédito (Nota de Crédito 1): € 1.027.946,88; e,

- No campo 7, a base tributável das faturas corrigidas: € 4.469.334,24.

                 

133. No âmbito da análise do referido pedido de reembolso apresentado pela J... S.A., e porque as faturas cujos valores foram reportados no Campo 7 da declaração periódica de IVA de fevereiro de 2015 indicavam como justificação para a não liquidação de IVA “artigo 14 do RITI”, a DF...solicitou os comprovativos de expedição dos bens para outro Estado Membro.

 

134. A J... S.A., no entanto, já antes da ação inspetiva, havia sustentado que as faturas em questão diziam respeito a prestações de serviços (cf.  Relatório da Inspeção Tributária, p. 25).

 

135.  Por ter entendido que a J... S.A. não apresentou, em devido tempo, prova que demonstrasse que as operações correspondiam a prestações de serviços, a DF... indicou, informalmente, que iria corrigir o valor do reembolso no montante de € 1.027.946,88.

 

136. Não obstante manifestar desacordo com a posição da DF... (quando esta entende que as operações não qualificavam como prestações de serviços), a J... S.A. adotou os seguintes procedimentos:

- Emissão de nota de crédito (doravante designada “Nota de Crédito 2”), para anular as faturas 2 corrigidas emitidas em Fevereiro de 2015 (documento n.º. 40 junto pela Requerente).

- Emissão de novas faturas corrigidas (doravante designadas “Faturas 3”), com liquidação de IVA, uma vez que nessa altura já havia sido identificado que a Requerente já se encontrava registada para efeitos de IVA em Portugal, nas novas faturas emitidas (Faturas 3) indicou o respetivo NIF português (documentos 41 e 42 juntos pela Requerente).

 

137. Assim, em dezembro de 2015, a J... S.A. procedeu à emissão de notas de crédito (no valor de € 1.458.021,66) para anular as faturas inicialmente emitidas, conforme quadro abaixo (documentos 53 a 62 juntos pela Requerente):

 

138.  Ao invés, porém, de reportar estas novas faturas (Faturas 3) na declaração periódica de substituição n.º..., nos campos 3 e 4, a Requerente apenas retirou do campo 40 o valor do IVA das notas de crédito (Nota de Crédito 2).

 

139. As novas faturas não foram, pois, reportadas na declaração periódica correspondente ao período da sua emissão (dezembro de 2015), o mesmo se passando com as notas de crédito (documento 73 junto pela Requerente).

 

140. Na medida em que o montante das notas de crédito emitidas ao número de identificação fiscal alemão da Requerente correspondia exatamente ao montante faturado ao seu número de identificação fiscal português, o programa informático de contabilidade da J... S.A. fez a correspondência e assumiu um valor de zero, não extraindo as operações em questão para a declaração periódica de IVA.

 

141. Nenhuma fatura, com exceção das Faturas 2, posteriormente anuladas, refere expressamente no descritivo “transmissão de bens”.

 

142. Estes procedimentos – emissão das Faturas 3, com NIF português da Requerente, emissão de Nota de Crédito 2 e entrega da declaração de substituição de fevereiro de 2015 – foram todos realizados em dezembro de 2015 (ponto III.5.2.2.C, pág. 27 do documento 7 junto pela Requerente).

 

143. Embora as operações não tenham sido corretamente faturadas e reportadas pela J..., S.A., tendo sido assinaladas excessivas irregularidades e incorreções que foram, aliás, objeto de contraordenações, não foi questionada a existência de neutralidade financeira no que toca ao volume de receitas recebidas pelo Estado, como decorre do quadro infra:

 

Período Documentos Emitidos   Declarações de IVA        Receita do Estado

2012 e 2013       Faturas 1             BT           4.741.734,24    Jan-Dez

                Campo 3              4.471.734,24    

                                IVA         1.028.498,88                    Campo 4              1.028.498,88     1.028.498,88

Fevereiro de 2015            Nota Crédito 1  BT           4.469.334,26    Fev-15

                                            

                                IVA         1.027.946,88                    Campo 40            1.027.946,88     - 1.027.946,88 

                Faturas 2             BT           4.469.334,26                    Campo 7              4.469.334,26    

                                IVA                             0,00                                                                 

Dezembro de 2015          Nota Crédito 2  BT           4.469.334,26    Fev-15

(DP substituição)                                             

                                IVA         0,00                                                       

                Faturas 3             BT           4.469.334,26                                                     

                                IVA         1.027.946,88                                                    

                                                                               Campo 40            - 1.027.946,88   1.027.946,88

                                                                                                             1.028.498,88

BT: Base Tributável

 

144. Apesar de não serem exaustivos nem decisivos para a resolução da questão, os documentos trazidos aos autos pela Requerente em 04.02.2019 revelam, da parte desta, esforços para corrigir uma atuação excessivamente negligente da J... em todo este processo.

 

Factos dados como não provados

145. Não foi provada a existência de prejuízo ou de risco sério de perda de receita para o Estado.

 

146  Não foi igualmente provado indício ou risco de fraude, de intenção fraudulenta por parte da Requerente ou de um conluio fraudulento entre as partes contratantes envolvidas nas operações em causa.

 

D. DO DIREITO

 

Uma questão prévia: A exceção de incompetência do Tribunal Arbitral

 

A posição da Requerida

 

147. Ao abrigo do art.º 2.º, n. º1, alínea a), do RJAT, a Requerida defendeu-se por exceção e por impugnação, sustentando, quanto à primeira (cuja argumentação aqui se procura sintetizar), a incompetência material do tribunal arbitral, uma vez que, segundo ela, o ato de indeferimento parcial de um pedido de reembolso não traduz um ato tributário de liquidação, estando fora do âmbito material da arbitragem tributária.

 

148. Para a Requerida, deduz-se dos artigos 28.º, 33.º, 150.º e 151.º da petição que "o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral se traduz no indeferimento parcial do reembolso que a Requerente havia formulado, aquando da submissão da declaração periódica de Janeiro de 2016, onde solicitava o reembolso de imposto no montante global de € 15.850.827,91.

 

149. E, acrescenta a Requerida: "se o objeto do pedido se traduz, como vem sendo demonstrado, e é assumidamente confessado pela ora Requerente, no indeferimento parcial do reembolso que havia solicitado aquando da entrega da declaração periódica de Janeiro de 2016, então sempre diremos que esta instância arbitral se mostra materialmente incompetente para conhecer de tal pedido."

 

150. Qualifica a denominada “Demonstração da liquidação de IVA” enviada pela AT à Requerente como sendo a demonstração de mero "acerto de contas entre o montante de reembolso solicitado e a parte que é indeferida", que redunda num montante a reembolsar de € 13 364 859,15 e não de € 15 850 827,91 como a Requerente havia solicitado.

 

151. A aferição da legitimidade do direito ao reembolso em sede de IVA (que não tem natureza de verdadeiro direito potestativo) é função da legitimidade do exercício do direito à dedução. No caso dos presentes autos, segundo a Requerida, tal aferição foi efetuada através do procedimento inspetivo, realizado ao abrigo da ordem de serviço nº OI2016..., tendo-se determinado pela sua ilegitimidade parcial, no montante de € 2.485.968,54.

 

152.  Ora, de acordo com a vontade expressa do legislador, no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT “fixam-se, com rigor, quais as matérias sobre as quais se pode pronunciar o tribunal arbitral”.

 

153. Esta fixação é taxativa, apenas abrangendo "pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e pagamentos por conta" e "pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais".

 

154. Deste modo, esta jurisdição não se mostra competente para conhecer da pretensão da ora requerente relativamente ao pedido que formula, já que o ato de indeferimento parcial de um pedido de reembolso não traduz um ato tributário de liquidação. De facto, se no caso dos presentes autos a referida demonstração da liquidação mais não é do que a demonstração do quantum do reembolso que foi indeferido, a qual não produz efeitos jurídicos próprios, o meio processual adequado à sua impugnação na via contenciosa deveria ser, seguindo a doutrina do Acórdão do STA, de 06.11.2008, a ação administrativa especial.

 

155. A competência material prevista no art.º 2.º, n.º 1, do RJAT sofre ainda limitações por força do estabelecido no art.º 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março de 2011. Uma eventual decisão favorável à competência do TA no caso sub judice seria inconstitucional por violação do artigo 212.º, n.º 3, da CRP e, bem assim, do princípio do livre acesso aos tribunais, na vertente do direito ao duplo grau de jurisdição, decorrente dos artigos 20.º e 268.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

 

156. Em favor da sua posição , a Requerida invoca ainda diversas decisões, nomeadamente o Acórdão Arbitral, de 3.10.2015 (proferido no âmbito do processo n.º 48/2015-T) e o Acórdão Arbitral de 04.02.2016 (proferido no âmbito do processo n.º 341/2015T) , ao mesmo tempo que critica, por considerar incongruente, a jurisprudência arbitral em sentido divergente, nomeadamente a decorrente dos Acórdãos arbitrais de 04.04.2014 (proferido no processo n.º 238/2013-T) e de 06.04.2017 (proferido no processo n.º 240/2016-T).

 

A posição da Requerente

 

157. Segundo a Requerente (cuja argumentação procuramos igualmente sintetizar), improcede a posição da Requerida, pois ela resulta de um manifesto equívoco que assenta num um erro de interpretação quanto ao pedido formulado pela Requerente.

 

158. Assim, no introito da petição de constituição do TA, a Requerente identificou com clareza que o pedido de pronúncia arbitral é deduzido para apreciação da “ilegalidade parcial do ato tributário de liquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) n.º 2017..., notificado em 21 de Setembro de 2017. É este o ato impugnado, o qual teve como consequência o indeferimento parcial de pedido de reembolso de IVA que solicitou aquando da entrega da declaração periódica do período de janeiro de 2016.

 

159. Ao contrário do que, por equívoco, alega a Requerida, não é, pois, exato que a Requerente tenha identificado como objeto do processo um qualquer pedido de apreciação da ilegalidade de um ato de indeferimento parcial de pedido de reembolso de IVA.

 

160. Aliás, em rigor, na parte final do pedido de pronúncia arbitral, que delimita o respetivo objeto, a Requerente formula um pedido principal e ainda um pedido subsidiário.

 

161. Assim, a título principal, a Requerente pediu a “declaração de ilegalidade da liquidação de IVA n.º 2017..., e consequente anulação parcial na parte em que corrige IVA deduzido no montante de € 2.144.303,54, com todas as legais consequências”.

 

162. A título subsidiário, solicitou “A declaração de ilegalidade da liquidação de IVA n.º 2017..., e consequente anulação parcial na parte em que corrige IVA deduzido no montante de € 769.104,86 suportado em operações realizadas quando a Requerente já se encontrava registada para efeitos de IVA em Portugal, com todas as legais consequências”.

 

163. Não se verifica, pois, um qualquer pedido de anulação de uma decisão de indeferimento de um pedido de reembolso, mas sim um pedido de anulação parcial da liquidação de IVA n.º 2017..., através da qual a Requerida corrigiu IVA deduzido pela Requerente.

 

164. Na realidade, a posição da Requerida assenta ainda num outro pressuposto, o de negar a existência de uma verdadeira liquidação, ao afirmar que, apesar de formalmente a AT, por diversas vezes, usar a expressão "liquidação" , esta dita liquidação de IVA impugnada pela Requerente “mais não traduz do que um acerto de contas entre o montante de reembolso solicitado e a parte que é indeferida”.

 

165. A Requerente não põe em causa a jurisprudência que nega competência a um TA para   apreciação de um pedido através do qual se requeira a condenação da AT para proceder a um reembolso.

 

166. Mas afirma a competência do TA para, como ocorre no caso sub judice, apreciar um pedido de anulação de uma liquidação de IVA que lhe foi notificada pela Requerida, na sequência de correções ao montante do IVA dedutível, não tendo assim formulado qualquer pedido quanto a um reembolso de IVA. Uma vez praticado um ato de liquidação de imposto, como é o caso da liquidação impugnada nos autos, é a mesma reconduzível à previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.

 

167. Com efeito, resulta do Acórdão Arbitral de 16.02.2017 (proferido no processo n.º 410/2016-T) que “O reconhecimento de um direito ao reembolso de IVA não é o objeto do pedido, embora aquele estivesse na origem das inspeções realizadas à Requerente, que deram lugar às mencionadas correções aritméticas que geraram as liquidações adicionais de imposto aqui em crise. São esses atos de liquidação decorrentes das alegadas desconsiderações de um conjunto de deduções de IVA, por parte da AT, a que a Requerente considera ter direito que correspondem ao objeto do pedido. Estamos, pois, no âmago do processo de impugnação de atos de liquidação, da competência da jurisdição arbitral”.

 

168. Por conseguinte, se a AT notifica o contribuinte de uma "demonstração de liquidação de imposto", qualificando-a expressamente como tal, na sequência de correções aritméticas ao IVA dedutível declarado, seja relativamente à totalidade do IVA ou apenas a uma parte, estamos perante uma liquidação de imposto cuja legalidade integra o âmbito de competência material da jurisdição arbitral.

 

169. Não há assim qualquer inconstitucionalidade que possa decorrer do reconhecimento de competência a este TA para decidir as questões de fundo suscitadas. Aliás, uma eventual interpretação deste TA em sentido contrário seria, ela sim, inconstitucional na medida em que afrontaria o princípio constitucional da tutela de confiança, que decorre do art.º 2.º da CRP.

 

DECISÃO SOBRE A EXCEÇÃO INVOCADA PELA REQUERIDA

 

170. A questão de direito que aqui se põe gira em torno da natureza da arbitragem tributária e, sobretudo, do conceito de liquidação em IVA.

 

171. O artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28.04, autorizou o Governo a legislar “no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”, de modo a que o processo arbitral tributário constituísse um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária.

 

172. O Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01 (RJAT), concretizou a mencionada autorização legislativa com um âmbito mais restrito do que o previsto na lei de autorização legislativa, não contemplando designadamente uma competência alternativa à da ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária, instituindo "a arbitragem tributária limitada a determinadas matérias, arroladas no seu art.º 2.º”.

 

173. O âmbito da jurisdição arbitral tributária está, assim, delimitado, num primeiro momento, pelo disposto no artigo 2.º do RJAT que enuncia, no seu n.º 1, os critérios de repartição material da competência, abrangendo a apreciação de pretensões que se dirijam à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos. Essas pretensões são as referidas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, que dispõe que a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação da "declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta".

 

174. Num segundo momento, a competência dos tribunais arbitrais fiscais é limitada pelos termos em que a AT venha a ser vinculada à sua jurisdição. De facto, o art.º 4.º do RJAT faz depender a vinculação da AT de “portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos”.

 

175. É a Portaria n.º 112-A/2011, de 22.03 (doravante, Portaria de Vinculação, abreviadamente PV) que veio concretizar quais os litígios a que a arbitragem se aplica. Dispõe a PV, no seu artigo 2.º, que os serviços e organismos que hoje constituem a AT vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida, com algumas exceções, entre as quais as "pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário" e as "pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão".

 

176. É, pois, um ato regulamentar (e não uma declaração de vontade da AT) que limita os litígios suscetíveis de resolução por via da arbitragem. Assim, o recurso à arbitragem tributária é optativo por parte dos contribuintes, mas a sujeição a essa mesma arbitragem não o é por parte da AT, que a ela fica sujeita nos termos do RJAT e da PV.

 

177. O RJAT e a PV devem, pois, ser interpretados de acordo com as regras gerais decorrentes dos artigos 11.º da LGT e 9.º do Código Civil: assim será, no caso concreto, quanto ao conceito de liquidação nas suas diversas formas.

 

178. Em Direito Fiscal, a liquidação era tradicionalmente vista em sentido estrito, reconduzindo-se ao ato de aplicação de uma alíquota à matéria coletável, dando origem à coleta. Mas, cada vez mais, a liquidação não se esgota nessa operação aritmética, antes se afirma como uma operação de conteúdo bem mais amplo e complexo, distinto, porém, nos impostos sobre o rendimento  e no IVA.

 

179. Em sede de IVA, a liquidação tem por base o sistema declarativo (autoliquidação), sendo um ato complexo só plenamente entendível se considerado em sentido amplo.

 

180. Ou seja: só entendível tendo em conta o "mecanismo do crédito e o encadeamento da liquidação-dedução" que, como refere Sérgio Vasques, servem para "assegurar a neutralidade típica do IVA, prevenindo o efeito cumulativo e garantindo que o imposto é suportado em definitivo pelo consumidor final".

 

181. Decorre, aliás, da estrutura do próprio CIVA, estarmos perante uma noção ampla de liquidação, a qual abrange as deduções e as regularizações de imposto (artigos 19.º a 26.º do CIVA), bem como liquidações administrativas decorrentes de atos de fiscalização e determinação oficiosa do imposto (Capítulo VI do CIVA). 

 

182. É assim o caso das liquidações adicionais reguladas pelo art.º 87.º do CIVA, relativo ao "momento e modalidades do exercício do direito à dedução". No n.º 1 deste artigo, estipula-se que, sem prejuízo do caso das liquidações com base em presunções e métodos indiretos, a efetuar nos termos da LGT, a AT "procede à retificação das declarações dos sujeitos passivos, quando fundamentadamente considere que nelas figure um imposto inferior ou uma dedução superior aos devidos, liquidando adicionalmente a diferença".

 

183. E no nº 5 deste mesmo artigo, diz-se que se "passados 12 meses relativos ao período em que se iniciou o excesso, persistir crédito a favor do sujeito passivo superior a € 250, este pode solicitar o seu reembolso". Este surge assim, ao lado da dedução por subtração e do reporte, como modalidade de exercício do direito à dedução e, consequentemente, pode ser visto como elemento integrante da própria liquidação de imposto, distinguindo-se claramente de formas de devolução do imposto, como, vg., a restituição do IVA já pago aos partidos políticos ou à Igreja.

 

184. É nesse o sentido que deve entender-se a posição de José Xavier de Basto e Gonçalo Avelãs Nunes, quando afirmam que "um reembolso contestado pela administração fiscal em tudo equivale a uma liquidação de imposto e os meios de reagir contra esse ato da administração, que nega ou revoga um reembolso, são idênticos aos que a lei põe à disposição dos contribuintes para anular, no todo ou em parte, a liquidação do imposto." 

 

185. De facto estamos, nestes casos, perante uma simples mudança da forma da liquidação: uma autoliquidação converte-se em liquidação administrativa adicional. O facto de, no plano contabilístico, tal facto se pressupor um acerto de contas não altera a natureza jurídica do ato.

 

186. Assim, os documentos emanados da AT e notificados à Requerente dando conta da "demonstração de liquidação do IVA", do "número liquidação" e da "data liquidação" são, no plano jurídico, pertinentes e corretas.

 

187. Pelo que, dado o acima exposto, a exceção deverá ser julgada improcedente.

 

Defesa por impugnação

 

Transmissão de bens e prestação de serviços no direito português

 

188. A primeira questão a resolver é a de saber se as operações realizadas pela J..., S.A. para a Requerente configuram, na realidade, uma transmissão de bens (como defende a Requerida, com base nos descritivos das faturas) ou uma prestação de serviços (como defende a Requerente, com fundamento em erro de qualificação jurídica nas faturas em causa perpetrado  pela J..., S.A.).

 

189. As soluções consagradas na lei têm variado ao longo dos tempos.   Atualmente o CIVA dispõe, no seu n.º 1 e na al. e) do n.º 3 do seu art.º. 3.º o seguinte:

1 - Considera-se, em geral, transmissão de bens a transferência onerosa de bens             corpóreos por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.

2 - Consideram-se ainda transmissões de bens, nos termos do n.º 1 deste artigo:

3 - A entrega de bens móveis produzidos ou montados sob encomenda, quando a totalidade dos materiais seja fornecida pelo sujeito passivo que os produziu ou montou".

 

190. As transmissões de bens podem ser internas (efetuadas no território português) ou destinadas ao comércio externo, podendo então tomar a forma de transmissões intra-UE (quando destinadas a um EM) ou de exportações (quando destinadas a um território ou país terceiro). Em qualquer dos casos rege, em regra, o princípio do destino, sendo a operação isenta (isenção completa) no território nacional e, no primeiro caso, tributada em IVA em outro EM (como aquisição intercomunitária de bens) ou, no segundo caso, eventualmente tributada em imposto indireto (sendo este o IVA, como importação de bens) no território para onde o bem foi exportado.

 

191. Por sua vez, os n.ºs 1, 2, al c) e 6 do art.º 4.º do CIVA estatuem que:

1 - São consideradas como prestações de serviços as operações efetuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens.

2 - Consideram-se ainda prestações de serviços a título oneroso:

                c) A entrega de bens móveis produzidos ou montados sob encomenda com materiais que o dono da obra tenha fornecido para o efeito, quer o empreiteiro tenha fornecido, ou não, uma parte dos produtos utilizados.

3 - No que se refere ao disposto na alínea c) do n.º 2, a Direção-Geral dos Impostos pode excluir do conceito de prestação de serviços as operações em que o fornecimento de materiais pelo dono da obra seja considerado insignificante."

 

192. As prestações de serviços definem-se assim por defeito (ou, como também se diz, pelo seu "caráter residual"): no plano interno serão, pois, todas as operações que, tendo por base uma atividade económica e um ato de consumo, não constituam transmissões de bens. É, pois, a existência ou não de uma transmissão de bens que deverá ser esclarecida em primeira linha.

 

193. No entanto, o CIVA procura, em certos casos (como os do n.º 2 do art.º. 5.º acima transcrito), estender o conceito de prestações de serviços a prestações gratuitas que, em rigor, o extravasam.

 

194. Do exposto deduz-se que, se o dono da obra (o cliente) fornece materiais, ainda que de forma parcial, a operação é qualificada como prestação de serviços, a menos que estejamos perante um fornecimento insignificante desses materiais, caso em que estaremos perante uma transmissão de bens. 

 

195. No caso dos autos, a prova documental (docs.  1 a 5) e a testemunhal mostram que a J..., S.A. se limitou a prestar serviços de montagem ou assemblagem de componentes (Nacelles) enviados pela Requerente.

 

 196. Estas componentes eram, em regra propriedade desta, mas por vezes eram adquiridas pela J..., S.A. (empreiteiro) para incorporação nas Nacelles, sendo que, nestes casos, o valor aportado por este relativo a serviços e componentes de montagem nunca excedeu um montante de 30% do custo total de uma Nacelle, e, consequentemente, os restantes 70% decorrentes das componentes entregues pela Requerente (dono da obra).

 

197. Como na faturação da J..., S.A à Requerente (que, nessa altura, não dispunha de estabelecimento estável entre nós) estas operações foram qualificadas como transmissões de bens e não como prestações de serviços, existe um erro de direito (e não meramente um erro de facto ou de cálculo) que irá, aliás, contaminar todo o processo, estando na base de um encadeamento de erros cometidos pela J..., S.A. na tentativa induzida pela Requerente de os corrigir.

 

198. Este erro de enquadramento jurídico (avançado por uma equipa constituída pela Requerente para o efeito) teve como consequência que as transmissões fossem tributadas em Portugal, diferentemente do que aconteceria se estivéssemos perante prestações de serviços (as quais não seriam localizadas cá, por aplicação a contrario do disposto no art.º. 6º., n.º 6, al. a), do CIVA).

 

A questão da distinção entre erro de facto (material) e de direito e dos prazos de retificação aplicáveis.

 

199. A segunda questão que se põe é a da distinção entre erro de direito e erro de facto e, consequentemente, a de saber qual o prazo durante o qual pode ser efetuada a retificação dos lotes de faturas dois e três e exercido o direito à dedução. A Requerida entende existir erro de facto e um o prazo de dois anos por aplicação do art.78, nº3 do CIVA para a sua retificação, enquanto a Requerente sustenta haver erro de direito e portanto um prazo de 4 anos, de acordo com o disposto no art.º 98.º, 2 do CIVA. 

 

200. A primeira tese baseia-se na ideia de estarmos no essencial perante "correções meramente aritméticas à matéria tributável" (cf. Relatório da Inspeção Tributária, p. 14 in fine).

 

201. A metodologia levada a cabo para efetuar as correções consistiu em apurar "situações irregulares" (como o incumprimento de certas obrigações acessórias de faturação ou divergências no sistema VIES), parte das quais (como deduções indevidas ou duplicadas ou a inexistência de conta bancária para receber reembolsos) "com influência no direito ao reembolso pedido" (ibidem, pp. 16 e ss).

 

202. A segunda tese defende estarmos perante um erro de qualificação jurídica das operações tributadas e não perante um erro de facto (material ou de cálculo).

203. No plano doutrinal, defendem Afonso Arnaldo e Tiago Albuquerque Dias (“Afinal qual o prazo para deduzir IVA? Regras de Caducidade e (In)segurança Jurídica”, in AA. VV., Sérgio Vasques (coord.), Cadernos IVA 2014, Coimbra, Almedina, 2014, p. 44) que “os erros a que se refere o número 6 do artigo 78.º do Código do IVA se reconduzem às situações em que o sujeito passivo se equivoca na materialização do ato de dedução ou liquidação, nomeadamente, por lapso na transcrição de valores ou por razões aritméticas, i.e., em ambas as situações erros menores e evidentes".

204. Deste modo, "estarão abrangidos por estes conceitos de erro (tipicamente) as situações em que o sujeito passivo se engana a efetuar uma operação aritmética, nomeadamente, quando pretende apurar o imposto dedutível contido numa fatura (com IVA incluído) de serviços de um fornecedor (erro de cálculo), ou, ainda que efetuando corretamente o cálculo, comete lapso na inscrição do montante do imposto a deduzir na declaração periódica (erro material).” 

205. Estão, pois, abrangidas pelo erro de facto “as situações em que o sujeito passivo efetua uma incorreta representação da realidade factual (a qual determina a sua subsunção a uma norma incorreta)” (loc. cit., pp. 45-46).

 

206. “O erro de facto que não origine um consequente erro de direito, não terá qualquer relevância para estes efeitos, porquanto o mesmo não terá qualquer influência no quantum do imposto a deduzir ou a liquidar” (idem, ibidem).

 

207. Por contraposição, o erro de direito verifica-se nas “situações em que, não obstante a correta representação da realidade factual, o sujeito passivo se equivoca na determinação da norma aplicável” (idem, ibidem), ou seja, em que se verifica um erro de enquadramento, por o sujeito passivo ter feito uma incorreta interpretação da situação fática ou uma errada aplicação do direito e, consequentemente, liquida ou deduz imposto a mais ou a menos.

 

208. Em sentido similar veja-se Alexandra Martins e Pedro Moreira, “Regularizações de IVA - A Alteração Superveniente dos Elementos da Operação, o Erro Material ou de Cálculo e o Erro de Enquadramento ou de Direito”, in AA. VV., Sérgio Vasques (Coord.), Cadernos IVA 2014, Coimbra, Almedina, 2014, pp. 61-62.

 

209. A noção de erro material ou de cálculo é igualmente precisada em termos semelhantes por Amândio F. Silva no seu cometário ao n.º 6 do art. 78.º do CIVA (in Clotilde C. Palma e A. Carlos dos Santos, Código do IVA e RITI, Notas e Comentários, Coimbra: Almedina, 2014, pp. 446-7), bem como em F. D. Neves, op. cit., pp. 602-3).

210. Na doutrina administrativa, a AT, através do Ofício-Circulado n.º 30082, de 17.11.2005, da Direção de Serviços do IVA, procedeu à definição conjunta do que entende por erros materiais ou de cálculo, considerando que são «aqueles que resultam de erros internos da empresa e não têm qualquer interferência na esfera de terceiros. Normalmente consistem em erros na transcrição das faturas para os registos ou dos registos para a declaração periódica, não compreendendo» as seguintes situações: «alteração do método de dedução do imposto nos sujeitos passivos mistos; apuramento de pro rata e regularizações de IVA sobre imóveis e outros bens do ativo imobilizado ou relativas à afetação de imóveis a fins distintos daqueles a que se destinam.

211. Esta distinção doutrinal entre erro de facto e erro de direito encontra eco em algumas decisões proferidas em processos do CAAD relativas ao exercício do direito à dedução. Uma é a proferida no Proc. n.º 649/2017-T, onde se pode ler: “O erro quanto à aplicação de determinados regimes jurídicos não constitui nem erro material nem erro de cálculo, pelo que é manifesto que não pode ser-lhe aplicado o regime do referido n.º 6 do artigo 78.º do CIVA.

212. Outra é a decisão de 17.05.2013 proferida no processo n.º 117/2013-T em termos que nos parecem perfeitamente aplicáveis ao caso sub judice e que passamos a transpor nas partes mais relevantes:

                a) "O artigo 95.º-A, n.º 2 [do CPPT] fornece um conceito de «erros materiais ou manifestos» indicando que nele se integram, «designadamente os que resultarem   do funcionamento anómalo dos sistemas informáticos da administração tributária, bem como as situações inequívocas de erro de cálculo, de escrita, de inexatidão ou lapso».

                b) A associação do erro de cálculo ao erro material que se faz neste n.º 6 do artigo 78.º do CIVA, à semelhança do que sucede noutras normas (como o artigo 249.º do Código Civil, o artigo 667.º do CPC de 1961 e o artigo 614.º do CPC de 2013) revela que os erros de cálculo a que se pretende aludir serão deste tipo, designadamente erros aritméticos nas operações de cálculo do montante a deduzir.

                c) Assim, estar-se-á perante um erro material no preenchimento do montante de IVA dedutível numa declaração quando se pretendia escrever um determinado montante e, por descuido ou lapso, acabou por se escrever montante diferente ou quando o erro do preenchimento da declaração resulta de um erro anterior do mesmo tipo que exista na contabilidade ou em algum             documento que sirva de base ao exercício do direito à dedução. Estar-se-á perante um erro de cálculo, quando as operações aritméticas para determinar o montante do IVA dedutível foram mal efetuadas na própria declaração ou em algum dos documentos em que ela se baseou.

                d) O erro quanto à aplicação de determinados regimes jurídicos não constitui nem erro material nem erro de cálculo, pelo que é manifesto que não pode ser-lhe aplicado o regime do referido n.º 6 do artigo 78.º do CIVA.

                e) Assim, não sendo aplicável o regime do referido artigo 78.º, n.º 6, nem existindo qualquer regime limite temporal especial para exercício do direito à dedução com fundamento em erro de direito, será aplicável o regime geral sobre esta matéria que consta do artigo 98.º, n.º 2, do CIVA que, como se diz no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18-5-2011, proferido no processo n.º 966/10, fixa um limite máximo de quatro anos que não pode ser excedido em nenhum caso."

 

213. No mesmo sentido, vai a doutrina subjacente à fundamentação da decisão arbitral de 05.09.2018     proferida no processo do CAAD n.º 649/2017, de que extraímos o seguinte:

                a) " O art.º. 98.º do CIVA comporta duas estatuições, a saber: "no seu n.º 1 impõe à AT a             obrigação de proceder à revisão oficiosa, nos casos ali previstos; e no seu n.º 2 estabelece um             prazo geral e supletivo para que os sujeitos passivos de IVA promovam, a seu favor, a retificação do imposto liquidado e deduzido.

 

                b) Relativamente ao prazo de quatro anos previsto naquele n.º 2, o mesmo apenas será aplicável            na falta de disposições especiais, as quais podemos encontrar no artigo 78.º do Código do          IVA. .

                c) Em face destas normas legais, podemos agrupar as situações em que existe a faculdade (e,                 eventualmente, a obrigatoriedade) de regularização do IVA liquidado e deduzido, da seguinte forma (...):

i) A alteração superveniente das condições objetivas e subjetivas que presidiram à realização das operações, traduzida na anulação da operação ou na redução do seu valor tributável;

ii) A inexatidão da fatura ou o erro material ou de cálculo na transcrição dos seus elementos para a contabilidade ou declarações periódicas de IVA dos sujeitos passivos;

iii) O erro de enquadramento da operação, espelhado na fatura ou na contabilidade dos sujeitos passivos.”

                               (...)

 

                d) "Quando da verificação de um erro de enquadramento ou erro de direito resultar uma regularização de imposto a favor dos sujeitos passivos, estes podem promovê-la nos termos do disposto no artigo 98.º do Código do IVA, isto é, no prazo geral e supletivo de quatro anos ali previsto." 

                               (...)

                e) "Consequentemente, atenta a inaplicabilidade daquela norma ou de qualquer outra disposição especial, no caso de erro de direito na dedução do IVA deverá ser aplicado o prazo geral e supletivo de quatro anos contados do nascimento do direito à dedução, constante do artigo 98.º do Código do IVA."

 

                f) Assim, "O erro quanto à aplicação de determinados regimes jurídicos não constitui nem erro material nem erro de cálculo, pelo que é manifesto que não pode ser-lhe aplicado o regime do             referido n.º 6 do artigo 78.º do CIVA.”

 

214. A questão foi tratada em termos similares pela jurisprudência do STA constante no Processo 1427/14, de 28-6-2017 onde se afirma “A aplicação dos métodos de dedução relativos a bens de utilização mista é juridicamente complexa pelo que o erro decorrente da aplicação deste regime jurídico não constitui nem erro material nem erro de cálculo. Estabelece o artigo 95.º-A, n.º 2, do CPPT que se consideram erros materiais ou manifestos os que resultarem do funcionamento anómalo dos sistemas informáticos da administração tributária, bem como as situações inequívocas de erro de cálculo, de escrita, de inexatidão ou lapso. Incluem-se neste conceito (cf. Jorge Lopes de Sousa in Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, 6ª ed. 2011) “todo o tipo de lapsos materiais, que são situações em que o autor do ato deixou nele escrito algo que não correspondia à sua vontade, como por exemplo, errada indicação do nome do contribuinte ou do tributo em causa ou erro aritmético no cálculo do tributo. Neste conceito de lapsos materiais incluem-se ainda os derivados do deficiente funcionamento do sistema informático da administração tributária.”. Ora no caso sub judice é convicção deste Tribunal Arbitral que o “erro” cometido pelo Requerente qualificar indevidamente operações de prestação de serviços como sendo transmissões de bens é um erro de direito, sendo aplicável o regime legal previsto no n.º 2 do artigo 98.º do CIVA. De facto, é entendimento do STA no aresto acima referido que “O prazo aplicável para reclamar do IVA entregue, em excesso, numa situação enquadrável no denominado erro de direito é de quatro anos, nos termos previstos no artigo 98.º, n.º 2 do CIVA”. O mesmo entendimento consta do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18.05.2011 proferido no processo n.º 966/10.

 

Conformidade do Direito Português com o Direito da União Europeia

 

Conceitos de transmissão de bens e prestação de serviços

 

215. O atual n.º 3 do art.º. 3.º, al e), do CIVA tem originariamente por base a al. a) do nº. 5 do art.º. 5.º da Sexta Diretiva do IVA, que concedia uma opção aos EM nos termos seguintes:

                5. Os Estados-membros podem considerar entrega, na aceção do n.º 1

                 a) A entrega de um bem móvel por força de um contrato de empreitada, isto é, a entrega ao cliente, pelo empreiteiro, de um bem móvel por ele fabricado ou montado com materiais ou objetos que o cliente lhe confiou para o efeito, quer o empreiteiro tenha fornecido ou não uma parte dos produtos utilizados;"

 

216. Este dispositivo desapareceu com a reforma operada, em 2006, pelo art.º 121.º da Diretiva de Consolidação do IVA, a qual, porém, salvaguardou as situações existentes nos seguintes termos:

                " Os Estados-Membros que, em 1 de Janeiro de 1993, consideravam as empreitadas de mão-de-obra como entregas de bens podem aplicar às operações de entrega de uma empreitada de mão-de-obra a taxa aplicável ao bem obtido após execução da empreitada de mão-de-obra. 

                Para efeitos da aplicação do primeiro parágrafo, entende-se por «entrega de uma empreitada de            mão-de-obra» a entrega, pelo empreiteiro da obra ao seu cliente, de um bem móvel por ele                fabricado ou montado com materiais ou objetos que o cliente lhe tenha confiado para o efeito, independentemente de o empreiteiro ter ou não fornecido uma parte dos materiais utilizados."

 

217. O Estado português fez uso parcial desta opção, cingindo-a aos casos em que o bem móvel final montado ou fabricado tenha na sua base apenas produtos fornecidos pelo empreiteiro, estando este regime conforme com o Direito da União.

 

Erro de direito e erro de facto. A questão dos prazos para a sua regularização

 

218. Uma outra questão é a de saber se a interpretação que aqui é feita relativamente à questão dos prazos em que podem ser retificados erros de facto e de direito tem ou não o respaldo do Direito europeu.

 

219. Em nome da segurança jurídica, o TJUE exige que haja um prazo nos direitos nacionais durante o qual o direito à dedução de IVA possa ser efetivado.

 

220. No entanto, o TJUE defende igualmente que o direito à dedução deve ser entendido de forma ampla, de molde a assegurar o princípio da neutralidade, não podendo ser negado pelas Autoridades Tributárias, com simples fundamento na existência de erros materiais ou de irregularidades contabilísticas. De onde resulta que a aplicação de um prazo de quatro anos para exercer a regularização de IVA a favor do sujeito passivo, está conforme com o princípio da neutralidade fiscal e da efetividade, quando não se esteja perante situações de fraude e evasão fiscal.

 

221. Assim, no processo n.º 28/2017-T, de 27.10.2017., onde foi amplamente desenvolvida a análise da jurisprudência do TJUE sobre a matéria em moldes que se mostram aplicáveis ao caso sub judice. O requerente entende que a posição da AT não é compatível com o direito europeu tal como é interpretado pela jurisprudência do TJUE, nomeadamente nos Acórdãos Ecotrade, EMS Bulgária e Giuseppe Astone.

 

222. Conclui o Tribunal Arbitral que “(…) no que respeita ao entendimento do TJ vertido nas três decisões analisadas, embora este comece por sancionar o prazo de caducidade do direito à dedução, procede, posteriormente, ao seu afastamento na aplicação aos casos concretos, por considerar que o mesmo constitui uma punição inadmissível à luz da Diretiva IVA e dos princípios da neutralidade, equivalência e efetividade. Neste âmbito, o TJ acaba sempre por confirmar esse direito à dedução para além dos prazos nacionais de caducidade em situações incomparavelmente menos sólidas do que a do Requerente”.

 

223. Nos casos do Acórdão Ecotrade (Itália) e do Acórdão EMS Bulgaria (Bulgária) - únicos aqui considerados -, estavam em causa transações intracomunitárias em que o sujeitos passivos (Ecotrade Spa) e EMS-Bulgária Transporte ODD) de acordo com a legislação europeia e doméstica, deviam ter autoliquidado imposto e ter exercido o direito à dedução do mesmo, o que por força do mecanismo de “reverse-charge” [nos Acórdãos referidos é identificado como “inversão do ónus da liquidação”] implicava não haver qualquer impacto financeiro em sede de IVA, vindo esse direito à dedução a ser negado pelas respetivas Autoridades Tributárias.

 

224. No primeiro caso – o do Acórdão Ecotrade – o sujeito passivo (Ecotrade Spa) fez um incorreto enquadramento tributário no sentido de que a transação intracomunitária (transporte intracomunitário de escória de granulada de alto-forno e de outros aditivos) não estava sujeita a IVA, tendo em sede inspetiva a Autoridade Tributária Italiana enquadrado a transação intracomunitária como sujeita ao mecanismo de “reverse-charge” (ou inversão do “ónus de liquidação”) assim como detetado o não cumprimento de determinadas exigências contabilísticas (erros contabilísticos) relacionadas com o mecanismo de “reverse-charge”, dando origem à não declaração do IVA devido nas declarações periódicas de IVA de 2000 e 2001. A Autoridade Tributária Italiana liquidou IVA e coimas negando o direito à dedução com o fundamento de o mesmo ter caducado, uma vez que não tinha sido exercido o direito no prazo de dois anos contados a partir do momento em que o imposto se tornara exigível;

              

225. Eis os argumentos produzidos neste acórdão pelo TJUE:

 

                a) O TJUE começa por referir quanto ao prazo de caducidade que os Estados Membros podem exigir que o direito à dedução seja exercido durante o período em que surgiu ou durante um período mais lato, sem prejuízo de determinadas condições e modalidades definidas para o exercício desse direito poderem constar nas respetivas regulamentações nacionais porque a não existência de períodos temporais para o exercício do mesmo contraria o princípio da segurança jurídica;

 

b) Por outro lado, o TJUE refere que “um prazo de caducidade cujo termo conduz a que se puna              o contribuinte não suficientemente diligente, que não reclamou a dedução do IVA a montante,             fazendo lhe perder o direito à dedução, não pode considerar se incompatível com o regime     fixado pela Sexta Diretiva, desde que, por um lado, esse prazo se aplique de igual modo aos              direitos análogos em matéria fiscal que se baseiam no direito interno e aos que se baseiam        no direito comunitário (princípio da equivalência) e, por outro, não torne praticamente                 impossível ou excessivamente difícil o exercício do direito à dedução (princípio da eficácia) (v. acórdãos de 27 de fevereiro de 2003, Santex, C 327/00, Col., p. I 1877, n.° 55, e de 11 de outubro de 2007, Lämmerzahl, C 241/06, ainda não publicado na Coletânea, n.° 52)”, conforme considerando 46, concluindo que “À luz do que precede, há que responder ao órgão        jurisdicional de reenvio que os artigos 17.°, 18.°, n.ºs 2 e 3, e 21.°, n.° 1, alínea b), da Sexta Diretiva não se opõem a uma regulamentação nacional que institui um prazo de caducidade para o exercício do direito à dedução, como o em causa nos processos principais, desde que os princípios da equivalência e da eficácia sejam respeitados(…)”, conforme considerando 54, podendo concluir-se que tem que haver um prazo de caducidade para o exercício do direito à dedução e que esse prazo respeita os princípios de equivalência e de eficácia acima enunciados;

 

                c) Conexo com a existência de um prazo de caducidade, que tem sempre que existir, devido ao princípio da segurança jurídica, o TJUE analisa a compatibilidade ou não com o Direito europeu, da negação do direito à dedução, neste caso por parte da Autoridade Tributária Italiana, fundamentada na existência de erros/irregularidades contabilísticas em situações de “reverse-charge”, em que o sujeito passivo deveria ter autoliquidado IVA e exercido o direito à dedução e não fez nem uma nem outra.

 

d) A pronúncia do TJUE vai no sentido de que mesmo que haja erros/irregularidades     contabilísticas, se a legislação previr o exercício do direito à dedução para os casos de “reverse-charge”, então, esse direito não deve ser negado a não ser que se esteja perante situações de fraude como consta do aresto em causa: “No que respeita às obrigações que decorrem do artigo                18.°, n.º 1, alínea d), da Sexta Diretiva, embora seja verdade que esta disposição autoriza os Estados Membros a estabelecer as formalidades relativas ao exercício do direito à dedução no caso de inversão do ónus da liquidação, a sua violação pelo sujeito passivo não o pode privar do seu direito à dedução. Com efeito, uma vez que é incontestável que o regime de inversão do             ónus da liquidação era aplicável aos processos principais, o princípio da neutralidade fiscal exige que a dedução do IVA a montante seja concedida se as exigências de fundo foram cumpridas, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certas exigências formais (v., por analogia, acórdão de 27 de Setembro de 2007, Collée, C 146/05, Col.., p. I 7861, n.° 31).

 

e) Por consequência, uma vez que a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo é, enquanto destinatário da prestação de serviços em causa, devedor do IVA, não pode impor, no que se refere ao direito deste último à dedução desse imposto, condições adicionais que podem ter como efeito a impossibilidade absoluta do       exercício desse direito (v. acórdão Bockemühl, já referido, n.° 51). O mesmo se pode dizer em              relação ao artigo 22.°, n.ºs 7 e 8, da Sexta Diretiva, por força do qual os Estados Membros adotarão as medidas necessárias a fim de que o sujeito passivo cumpra as suas obrigações de declaração e de pagamento ou estabelecerão outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do imposto e para evitar a fraude.

 

f) Efetivamente, embora essas disposições autorizem os Estados Membros a adotar       determinadas medidas, estas não devem, porém, ir para além do que é necessário para atingir os objetivos mencionados no número anterior. Tais medidas não podem, portanto, ser utilizadas por forma a porem sistematicamente em causa o direito à dedução do IVA, que é um princípio                fundamental do sistema comum do IVA posto em prática pela legislação comunitária na matéria          (v. acórdãos de 18 de dezembro de 1997, Molenheide e o., C 286/94, C 340/95, C 401/95 e C 47/96, Col.., p. I 7281, n.º 47, e Gabalfrisa e o., já referido, n.° 52). Ora, uma prática de retificação e de cobrança, como a em causa nos processos principais, que pune a violação de obrigações de contabilidade e de declaração pelo sujeito passivo com uma recusa do direito à dedução excede claramente o que é necessário para atingir o objetivo de assegurar a correta         aplicação dessas obrigações, na aceção do artigo 22.°, n.° 7, da Sexta Diretiva, uma vez que o direito comunitário não obsta a que os Estados Membros, para punir o não respeito das referidas obrigações, apliquem, eventualmente, uma coima ou uma sanção pecuniária proporcional à gravidade da   infração. A referida prática também excede o que é necessário para garantir a correta cobrança do IVA e para evitar a fraude, na aceção do artigo 22.°, n.º 8, da Sexta Diretiva, visto que pode mesmo levar à perda do direito à dedução se a retificação da                 declaração pela Administração Fiscal só ocorrer após o termo do prazo de caducidade de que dispõe o sujeito passivo para proceder à dedução (v., por analogia, acórdão Gabalfrisa e o., já    referido, n.ºs 53 e 54)” conforme é alegado pelo Requerente nos artigos 182 a 184.º da       PI”, conforme considerandos 62 a 68;

 

226. Assim, relativamente ao Acórdão Ecotrade, sintetiza a referida decisão do CAAD o entendimento do TJUE nos termos seguintes:

"- deve existir um prazo de caducidade relativo ao exercício do direito à dedução devido ao princípio da segurança jurídica;

- a situação em análise é uma situação de “reverse-charge” em que o sujeito passivo é obrigado a autoliquidar e a deduzir IVA, não havendo qualquer impacto financeiro;

- o exercício do direito à dedução nestes casos de “reverse-charge” não pode ser posto em causa devido ao princípio da neutralidade, princípio basilar no sistema comum IVA, devido a erros/irregularidades contabilísticos;

-  a legislação europeia (Diretiva IVA) não impede que os Estados-Membros imponham medidas com vista ao cumprimento de obrigações de pagamento e declarativas em sede IVA com vista a garantir a cobrança exata e a evitar situações de fraude em sede de IVA;

                - as medidas devem ser proporcionais não indo além do necessário para garantir o cumprimento            das obrigações de pagamento e declarativas do imposto;

                - tais medidas não podem pôr em causa o exercício do direito à dedução, a não ser que se          esteja   perante situações de fraude e evasão fiscal;

                - o não cumprimento das medidas pode dar origem a coimas ou sanções pecuniárias     proporcionais à gravidade da situação instaurada pelos Estados-Membros em vez da negação do exercício do direito à dedução."

 

227. No segundo caso – EMS Bulgaria –, o sujeito passivo búlgaro (EMS-Bulgaria Transporte ODD) efetua uma transação intracomunitária (aquisição intracomunitária de bens), tendo aplicado o mecanismo de “reverse-charge” ao abrigo do qual liquidou e deduziu imposto, não havendo qualquer impacto financeiro, vindo a Administração Tributária Búlgara negar o direito à dedução pelo facto de o mesmo direito ter sido exercido fora do prazo de caducidade de acordo com o estabelecido na legislação búlgara; a decisão do TJUE foi, à semelhança do Acórdão Ecotrade, declarar que de acordo com o direito europeu, o sujeito passivo tinha direito à dedução na transação comunitária em análise;

 

228. De acordo com a jurisprudência do TJUE, o princípio da neutralidade do IVA exige que a dedução do imposto pago a montante seja concedida caso os requisitos substanciais tenham sido cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham porventura negligenciado certos requisitos formais (ex. Caso Barlis). Neste contexto, de acordo com o TJUE, desde que as Administrações Fiscais disponham dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo, enquanto destinatário das operações, é devedor do IVA, não pode impor, no que diz respeito ao seu direito à dedução, condições adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito.

 

229. Em conformidade com o TJUE, o direito à dedução previsto nos artigos 167.º e seguintes da Diretiva IVA é parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado. Esse direito exerce-se imediatamente em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efetuadas a montante. Neste contexto, no Caso Intiem, o TJUE precisou que o mecanismo da dedução do IVA regulado pela Sexta Directiva “deve ser aplicado de tal forma que o seu âmbito de aplicação corresponda, na medida do possível, ao âmbito das atividades profissionais do sujeito passivo”.

 

230. É ainda jurisprudência constante do TJUE que, sendo o direito à dedução um elemento fundamental do regime de IVA, só é possível limitar este direito nos casos expressamente previstos pela Diretiva IVA e, ainda assim, com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade, não se podendo esvaziar o sistema comum do IVA do seu conteúdo.

 

231. Não existe, pois, qualquer desconformidade entre a forma como o direito interno tem sido interpretado e aplicado pelos tribunais portugueses nos arestos supracitados e a interpretação que é feita pelo TJUE do Direito europeu.

 

232. No caso sub  judice, não ficou provada a existência de fraude nem sequer de abuso de direito, não tendo resultado do comportamento da Requerente qualquer prejuízo para o Estado. O facto de terem existido da parte da J... erros sucessivos decorrentes de incorreta qualificação jurídica das operações em causa não deve ser penalizador nem coartar o seu direito à dedução.

 

E.  DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

233. A Requerente peticiona, ainda, a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios.

 

234. O artigo 43.º, n.º 1, da LGT, determina que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, estatuindo o n.º 5 do artigo 61.º do CPPT que os “juros são contados desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos”.

 

235. No caso concreto, verifica-se que a ilegalidade da liquidação adicional de imposto controvertida, por erro nos pressupostos de direito, é imputável à AT por, naquela liquidação, ter procedido à incorreta interpretação do artigo 98.º, n.º 2, conjugado com os artigos 22.º, n.º 2 e 23.º, n.º 6, todos do Código do IVA, pelo que o Requerente tem direito, em conformidade com o disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, aos respetivos juros indemnizatórios, nos termos do estatuído nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, calculados à taxa resultante do n.º 4 do artigo 43.º da LGT, até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos.

 

DECISÃO

 

Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide:

a.                            Julgar procedente, por erro sobre os pressupostos de direito, o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de IVA n.º 2017... e consequente anulação parcial na parte em que corrige o IVA deduzido no montante de € 2.144.303,54;

b.                           Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos legais.

Custas a pagar pela Requerida nos termos dos artigos 3.º e 5.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Valor do processo: € 2.144.303,54

 

Lisboa, 12 de março de 2019.

 

António Carlos dos Santos

Clotilde Celorico Palma

Sérgio Vasques