Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 656/2020-T
Data da decisão: 2021-09-21  IRC  
Valor do pedido: € 19.037,69
Tema: IRC - encargos não dedutíveis; tributações autónomas; verdade material
Versão em PDF

 

SUMÁRIO:

1.            De acordo com os princípios da legalidade tributária e do inquisitório, a Autoridade Tributária e aduaneira deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido.

2.            Verificando a Autoridade Tributária e Aduaneira, em sede de inspeção tributária, que são legalmente devidas correções à matéria tributável, as mesmas devem ser por ela efetuadas ainda que isso resulte em vantagem para o contribuinte.

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Professor Doutor Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:

 

1             RELATÓRIO

1. A..., LDA., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., ...-... Lisboa, anteriormente designada por B..., Unipessoal, Lda. (cfr. certidão do registo comercial que se junta como Doc. n.º 1), com o capital social de € 1.322.330,50, doravante designada por “A...” ou “requerente”, estando atualmente abrangida pelos serviços periféricos locais do Serviço de Finanças de Lisboa ..., vem, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 Março, requerer a Constituição de Tribunal Arbitral, para apreciação da legalidade de reclamação graciosa e anulação parcial das liquidações oficiosas de IRC, n.º 2019..., referente ao exercício de 2015, e n.º 2019..., referente ao exercício de 2016, por ilegalidade das tributações autónomas em IRC aí acolhidas, quanto aos montantes de € 13.700,32 (no exercício de 2015) e de € 5.337,37 (no exercício de 2016), num total de imposto a recuperar de € 19.037,69, em resultado de desconsideração de indedutibilidade ao lucro tributável relativamente a encargos com ajudas de custo e quilómetros nos montantes de € 275.028,32 (no exercício de 2015) e de € 109.421,85 (no exercício de 2016).

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 23.11.2020.

 

3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) nomeou como árbitro singular o Professor Doutor Jónatas Machado, em 26.12.2020.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 03.05.2021.

 

6.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, em 07.06.2021, onde, por exceção e impugnação, sustentou as liquidações em causa.  

 

7. Por ter sido requerida pelas e ser considerada necessária, o Tribunal marcou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, para o dia 09.07.2021.

 

8. No exercício da faculdade concedida às partes, veio a Requerente apresentar alegações finais no dia 27.07.2021, tendo a Requerida, em 13.09.2021, remetido para os argumentos anteriormente esgrimidos nos autos.

 

1.1          Descrição dos factos

 

9. São descritos e dados como provados os seguintes factos, relevantes para a decisão do caso sub judice:

 

a)            A requerente foi alvo de um procedimento inspetivo externo, com início em 30.01.2019, ao abrigo das Ordens de Serviço n.ºs OI2018... e OI2018..., de âmbito parcial, abrangendo o IRC e, mais tarde, alargado ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), com referência aos períodos de tributação aqui em causa de 2015 e 2016 (Doc. n.º 5).

b)           A 06.05.2019, a requerente recebeu, por mail remetido pelos serviços de inspeção tributária (cfr. Doc. n.º 6), a listagem das propostas de correção à matéria coletável e correspondente imposto (IRC) reflexo a pagar, conforme consta do quadro infra:

 

c)            Nesse email, a AT (equipa de inspeção) indicava que as correções a fazer respeitavam a acréscimo ao lucro tributável, por indedutibilidade, das importâncias respeitantes a deslocações e estadas não faturadas a clientes bem como das ajudas de custo igualmente não faturadas a clientes, seguindo o mesmo critério adotado no apuramento do lucro tributável da C...– empresa então do mesmo grupo económico, e cujo processo foi apreciado pela mesma equipa de inspeção – considerando-se que, na falta deste (exigente) mapa detalhado de controlo, os encargos não seriam dedutíveis em IRC, mas por outro lado não incidia tributação autónoma sobre os mesmos, por esta só incidir, à data, sobre ajudas de custo e compensações por deslocação em viatura do trabalhador dedutíveis em IRC, nos termos do artigo 23.ºA, nº1, alínea h) e 88.º, n.º 9 do CIRC.  (Docs. 6, 7, 8 e 9).

d)           A 22.05.2019, foi recebido novo mail enviado pelos serviços de inspeção tributária, onde se reiterava as propostas de correção e correspondente imposto (IRC) reflexo a pagar nos exatos mesmos termos (Doc. n.º 10).

e)           A 07.06.2019 a requerente recebeu novo mail remetido pelos serviços de inspeção tributária, nos termos do qual, não obstante uma referência expressa à C... e à necessária uniformidade de critérios, foi informada da desconsideração das correções anteriormente propostas, tornando dedutíveis ajudas de custo e quilómetros não faturados a clientes (Doc. n.º 10), conforme detalhe das correções desconsideradas pela inspeção tributária que se inclui no quadro infra:

 

 f)            A requerente foi posteriormente notificada do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (Doc. n.º 13), nos termos do qual se propuseram as seguintes correções à matéria coletável de IRC e consequente imposto reflexo (IRC) a pagar, onde, na linha do email de 07.06.2021, se confirmou o abandono do entendimento primitivo acerca da indedutibilidade das tipologias de encargos aqui em causa:

 

g)            A Requerente exerceu, por escrito, o direito de audição prévia face às correções propostas pelos serviços de inspeção tributária, onde questionou diretamente estes serviços acerca da desconsideração das correções anteriormente propostas à matéria coletável relativas aos gastos suportados pela requerente, nos exercícios de 2015 e de 2016 em causa; (Doc. n.º 14)

h)           O Relatório de Inspeção Tributária manteve, no essencial, o disposto no Projeto de Relatório de Inspeção Tributária (Doc. n.º 5)

i)             A requerente foi notificada das liquidações oficiosas de IRC n.º 2019..., relativa ao exercício de 2015, que originou um valor a pagar de € 1.178,62 e n.º 2019..., relativa ao exercício de 2016, que originou um valor a pagar de € 269,90, contra as quais apresentou reclamação graciosa, que seria liminarmente indeferida, nos termos do despacho de 26.08.2020 da Chefe de Divisão de Tributação e Justiça Tributária, da Direcção de Finanças de ...; (Docs. n.º 2, 3 e 4)

 

1.2          Argumentos das partes

10. Os argumentos trazidos aos autos centram-se na legalidade das liquidações efetuadas tendo em conta o facto de a inspeção tributária ter optado voltar atrás na proposta de correções inicialmente apresentada à requerente, que tinha por consequência uma correção favorável em sede de tributações autónomas.

11. A Requerente, na petição e nas alegações finais, sustenta a improcedência das exceções invocadas e a ilegalidade da liquidação com argumentos que a seguir se sintetizam:

a)            O princípio da verdade material, ínsito no artigo 6.º do mesmo RCPITA – Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira, deve nortear o procedimento de inspeção tributária, sendo um corolário do princípio do inquisitório, consagrado no artigo 58.º da LGT;

b)           O princípio da verdade material impõe que a AT, no âmbito do procedimento de inspeção, procure recolher os elementos probatórios que possibilitem mais tarde fundamentar o ato tributário que venha a ser praticado, sendo postulado pela natureza pública e indisponível da relação jurídico-tributária, assim abrangendo, por isso, os seus elementos de facto;

c)            A AT (incluindo a Inspeção Tributária) encontra-se vinculada ao princípio da prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes, tal como definido na lei, e não ao serviço de interesses particulares;

d)           Diretamente relacionado com a prossecução do interesse público, surge o princípio da imparcialidade, consagrado no artigo 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa enquanto limite à discricionariedade, obrigando a AT a não tomar partido ou beneficiar uma parte em prejuízo de outra;

e)           O procedimento de inspeção, à semelhança de qualquer outro procedimento administrativo, tem de ser considerado como um instrumento que garanta e assegure o efetivo respeito pelos direitos fundamentais e garantias dos contribuintes por parte da AT;

f)            A AT está impedida de atuar com base em critérios reditícios, está impedida de atuar sob a égide de outro critério que não seja o da lei, cuja aplicação tem de fiscalizar e que tem ela própria de aplicar.

g)            A AT agiu com intenções reditícias, visto a indedutibilidade não gerar nenhuma receita adicional geraria, dado ter a requerente créditos de SIFIDE para utilizar contra eventual coleta adicional de IRC;

h)           O princípio da imparcialidade assume particular importância, na medida em que se impõe enquanto elemento norteador da atuação da AT na indagação das situações sujeitas a inspeção, atuação essa que a lei pretende adstrita a critérios de isenção, com consagração expressa na LGT, no seu artigo 55.º

i)             A violação dos deveres impostos pelo princípio da imparcialidade não está dependente da prova de concretas atuações parciais, verificando-se sempre que um determinado procedimento faz perigar as garantias de isenção, de transparência e de imparcialidade:

j)             AT não atuou, no caso concreto aqui em causa, de acordo com os princípios a que se encontra adstrita nos termos da lei, tendo violado, em particular, o seu dever de imparcialidade, simplesmente porque estavam em causa factos contrários aos seus próprios interesses patrimoniais (diminuição da receita tributária, reembolso de imposto – no caso, tributações autónomas – a favor da requerente),

k)            Os princípios da legalidade, da colaboração e da cooperação não funcionam num só sentido, antes são bi-direcionais, ditando que também correções favoráveis ao contribuinte devem ser efetuadas;

l)             A atuação administrativa de prossecução do interesse geral ou comum, sobretudo quando a administração disponha de um espaço de discricionariedade, deve ser devidamente balizada pela obediência aos restantes princípios contidos neste artigo, ou seja, à legalidade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e celeridade, sem esquecer o princípio da boa-fé ou da proteção da confiança, sendo que este se traduz na impossibilidade de a administração poder mudar de critério de atuação de forma injustificada; .

m)          A AT deve promover a incorporação nas correções que efetue e subsequentes atos tributários que as corporizam, de todas as correções favoráveis ao contribuinte que à luz da lei se imponham;

n)           Em situações em que foi efetuada uma liquidação em momento em que já se sabe que não se verifica o facto tributário que lhe está subjacente, está-se perante um ato ilegal, à face dos princípios da justiça, da proporcionalidade e da igualdade na repartição de encargos públicos, cuja observância é imposta à Administração Tributária pelo art. 55º da LGT e que são corolário dos princípios da justiça, da necessidade e da igualdade, genericamente enunciados nos arts. 13.º e 18.º, n.º 2, da CRP e ínsitos no princípio do Estado de Direito democrático

o)           Sendo parcialmente ilegais as liquidações oficiosas que aqui se contestam, a requerente pagou imposto em montante superior ao legalmente devido, pelo que, declarada a ilegalidade destas liquidações oficiosas, a requerente tem direito não só ao reembolso do referido montante, mas, também, ao abrigo do artigo 43.º da LGT e do artigo 137.º, n.º 6 do Código do IRC, ao recebimento de juros indemnizatórios.

p)           O erro de que padecem as liquidações oficiosas contra as quais se reclama resulta de erro dos Serviços em sede de correções efetuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira na sequência do procedimento inspetivo de que foi alvo a requerente, agravado ainda pelo indeferimento da reclamação graciosa.

 

12. A Requerida responde, por exceção e impugnação, sustentando a total improcedência do pedido de pronúncia arbitral com os seguintes argumentos:

Por exceção

a)            A Reclamante não requer a anulação total ou parcial dos atos tributários reclamados, conforme previsto no art. 68.º do CPPT, mas antes a efetuação de correções adicionais que nunca foram formalmente propostas, por não constarem do Projeto de Relatório de Inspeção, nem do Relatório Final de Inspeção.

b)           Não tendo essas correções adicionais sido alvo de apreciação em sede de procedimento de inspeção tributária, o seu prazo de reclamação (prévia e obrigatória em caso de impugnação) era de 120 dias, prazo esse já decorrido aquando da apresentação da reclamação graciosa.

c)            O pedido em causa é extemporâneo (caducidade do direito de ação) e, para além disso, não cumpre os requisitos do artigo 131.º do CPPT.

d)           A emissão de novas liquidações no âmbito de um procedimento de inspeção tributária não repristina esse direito, já caducado, pois tal situação resultaria numa fraude à lei, e como tal, inconstitucional.

e)           A AT, em sede de reclamação graciosa, indeferiu liminarmente o pedido, não tendo analisado o pedido, pelo que, antes de mais a Requerente deveria, noutra sede que não a impugnação, requerer a anulação da decisão administrativa, e, em caso de procedimento dessa sua pretensão, obter a análise da sua pretensão por parte da AT;

f)            O RJAT não prevê um contencioso de mera anulação das decisões administrativas, não podendo aqui analisar os pressupostos de indeferimento liminar por um lado e, por outro lado, analisar as liquidações impugnadas, uma vez que o prazo de reclamação sobre as mesmas já havia decorrido.

 

Por impugnação

g)            A petição não visa contestar a legalidade das liquidações resultantes dos procedimentos inspetivos, antes pretendendo que as referidas liquidações sejam corrigidas para passarem a incluir, como despesas não dedutíveis, as ajudas de custo e os encargos com deslocação em viatura própria do trabalhador, com a consequente devolução à Requerente do valor do imposto pago a título de tributações autónomas;

h)           As pretendidas correções apenas foram ponderadas informalmente, na fase de prática de atos inspetivos, por meio de mensagens de correio eletrónico, emitidas no âmbito da troca de informações e da colaboração que deve existir entre a Inspeção Tributária e os inspecionados;

i)             Sobre as correções propostas nos procedimentos inspetivos e que deram origem às liquidações de IRC aqui em causa não transparece do pedido arbitral, nem da reclamação graciosa, qualquer discordância.

 

1.3. Saneamento  

 

13. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.

 

14. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), de acordo com os fundamentos infra. 

 

15. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.

 

2             FUNDAMENTAÇÃO

2.1          Factos dados como provados

16. Com base nos documentos trazidos aos autos foram dados como provados os factos elencados no ponto 1.1. 

 

2.2          Factos não provados

 

17. Com relevo para a decisão sobre o mérito não existem factos alegados que devam considerar-se como não provados.

 

2.3          Motivação

18. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

19. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

2.4          Questões decidendas

2.4.1.     Exceções

 

20. Resulta do pedido de pronúncia arbitral que o ato que constitui o objeto do pedido é o indeferimento expresso da reclamação graciosa – tendo esta sido considerada pela AT apresentada tempestivamente – e, em termos finais ou últimos, os atos de liquidação oficiosa de IRC n.º 2019..., relativa ao exercício de 2015, e n.º 2019..., relativa ao exercício de 2016, por ilegalidade dos mesmos nas liquidações autónomas em IRC aí acolhidas, quanto aos montantes de € 13.700,32, no exercício de 2015,  e € 5.337,37, no exercício de 2016. O ato de autoliquidação de cada um dos exercícios em causa não se reconduz ao objeto do processo.

 

21. No entender deste Tribunal Arbitral, e diferentemente do que sustenta a AT, a matéria em causa foi apreciada em sede do procedimento de inspeção tributária, tendo inclusivamente a AT voltado atrás nas correções inicialmente propostas, através do email enviado para a requerente em 06.05.2019 (Doc. n.º 6), sendo que as mesmas gerariam um direito à restituição de imposto a favor do sujeito passivo. Constitui um dado incontornável que a AT considerou expressamente a possibilidade de as correções omitidas serem legalmente devidas, tando mais que seguiu precisamente essa orientação relativamente à sociedade C... . Por outro lado, a requerente invocou esta mesma matéria quando exerceu, por escrito, o seu direito de audição prévia face às correções projetadas pela AT (Doc. n.º 14), tendo a inspeção tributária mantido a sua posição de se abster de realizar as correções inicialmente detetadas.  Posteriormente na reclamação graciosa que originou a decisão de indeferimento objeto do presente processo arbitral, a questão das correções em causa foi novamente suscitada.

 

22. Em face do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e no artigo 102.º, n.º 1, alínea e), do CPPT, deve concluir-se pela tempestividade do pedido de pronúncia arbitral em causa, dado que o prazo de 90 dias para apresentação do mesmo se conta a partir da notificação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e esta foi apresentada em 16.12.2019, no prazo de 120 dias a contar do termo do prazo para pagamento voluntário das liquidações oficiosas de IRC n.º 2019..., relativa ao exercício de 2015 (Doc. n.º 2), no caso, a contar de 23.09.2019, e n.º 2019..., relativo ao exercício de 2016 (cfr. Doc. n.º 3) no caso, a contar de 25.09.2019.

 

23. Sendo a decisão de indeferimento da reclamação graciosa objeto imediato deste processo arbitral, os atos tributários objeto da reclamação graciosa integram o objeto mediato do mesmo, como se depreende do artigo 97.º, nº1, alínea c) do CPPT, segundo o qual “o processo judicial tributário compreende a impugnação do indeferimento total ou parcial das reclamações graciosas dos atos tributários”. Em causa estão dois atos de liquidação cuja legalidade a AT teve oportunidade de apreciar, pois que foram emitidos na sequência de um procedimento inspetivo, tendo a requerente invocou, em audição prévia, a ilegalidade da alteração da posição da AT, conscientemente assumida, relativamente às correções que anteriormente havia invocado. Mos termos do artigo 9.º, n.º 1, da LGT, sob a epígrafe do acesso à justiça tributária, “[é] garantido o acesso à justiça tributária para a tutela plena e efetiva de todos os direitos ou interesses legalmente protegidos”, dispondo o n.º 2, que “[t]odos os atos em matéria tributária que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos são impugnáveis ou recorríveis nos termos da lei.” Em conformidade com o princípio da tutela jurisdicional plena e efetiva, o presente tribunal é competente, tanto para conhecer do indeferimento da reclamação, como para apreciar os vícios imputados ao ato de liquidação .

 

2.4.2.     Impugnação

 

24. O princípio da legalidade tributária constitui um princípio fundamental do direito constitucional fiscal, expressamente consagrado no artigo 103.º, nºs, 2 e 3 da CRP. Aí se dispõe que “[o]s impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”, sendo que [n]inguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei”. Pressupondo a subordinação do legislador fiscal à Constituição, o mesmo princípio é expressamente desenvolvido no artigo 8.º da LGT, sendo concretizado em toda a legislação fiscal. O princípio da legalidade tributária vincula a AT e os tribunais, devendo aquela, em primeira linha, e estes, em segunda linha, garantir, de forma objetiva, rigorosa e imparcial, que todos os contribuintes pagam o imposto legalmente devido, todo o imposto devido e nada mais do que o imposto devido.  Isso significa que, uma vez detetada, em sede de inspeção tributária, e à luz da legislação aplicável, a situação de haver lugar a correções à matéria tributável, ainda que a favor do contribuinte, a AT tem o dever de as efetuar.

 

25. No caso, a AT optou deliberadamente por desconsiderar, a indedutibilidade ao lucro tributável de encargos com ajudas de custo e quilómetros nos montantes de € 275.028,32 (no exercício de 2015) e de € 109.421,85 (no exercício de 2016), depois de ter sido alertada para o facto de se estar diante de encargos comprovadamente indedutíveis, e apesar de isso decorrer não só da Ficha Doutrinária n.º 71/08 como do artigo 23-ºA, n.º1, alínea a), do CIRC , que só admitia a dedutibilidade destes encargos não faturados a clientes nem imputados ao trabalhador como rendimento tributado em IRS se houvesse um mapa “através do qual seja possível efetuar o controlo das deslocações a que se referem aqueles encargos, designadamente os respetivos locais, tempo de permanência, objetivo e, no caso de deslocação em viatura própria do trabalhador, identificação da viatura e do respetivo proprietário, bem como o número de quilómetros percorridos”.

 

26. Ao arrepio do quadro legal então em vigor, a AT absteve-se de proceder às correspondentes correções de acréscimo ao lucro tributável – diferentemente do que fez relativamente à sociedade C..., que nessa altura integrava o mesmo grupo económico da Requerente e que tinha sido também objeto de inspeção tributária, por sinal pela mesma equipa inspetiva – e de anular, como logicamente deveria ter feito, as tributações autónomas que incidiam sobre esses encargos, nos montantes de € 13.700,32 (no exercício de 2015) e de € 5.337,37 (no exercício de 2016), num total de € 19.037,69, o que resultou em tributação sem que tenha havido facto tributário. Com efeito, nos termos da redação, então vigente, do artigo 88.º, n.º 9, do CIRC, apenas seriam devidas tributações autónomas sobre esse tipo de encargos quando os mesmos fossem dedutíveis.

 

27. Em termos relativos, esta a conduta da AT afigura-se incompatível com os princípios constitucionais da legalidade, igualdade e proibição do arbítrio, que exigem que a lei em si mesma e as decisões de aplicação da lei tratem de forma igual pessoas e situações em condições iguais. Dificilmente se pode compreender que uma mesma equipa da inspeção tributária, aplicando um mesmo quadro legal, proponha um tratamento diferente para situações fiscais manifestamente semelhantes. Em termos absolutos, a conduta adotada pela AT configura uma violação do princípio da legalidade e da exigência de boa-fé na relação que deve estabelecer com os contribuintes em geral e com a Requerente em particular. Neste âmbito, espera-se que a AT atue de maneira coerente com as suas declarações no procedimento administrativo sempre que estas manifestem uma correta interpretação da lei, gerando previsibilidade, confiança e segurança jurídica na esfera jurídica do sujeito passivo. Como resulta do artigo 58.º da LGT, sob a epígrafe do princípio do inquisitório, a AT deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, e tanto assim quanto a isso tenha sido instada pelo sujeito passivo.

 

28. Sendo parcialmente ilegais as liquidações oficiosas in casu, verifica-se que a Requerente pagou imposto em montante superior ao legalmente devido, pelo que, declarada a ilegalidade destas liquidações oficiosas, a mesma tem direito, não só ao reembolso do referido montante, mas, também, ao recebimento de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT e do artigo 137.º, n.º 6 do Código do IRC. O vício de que padecem as liquidações oficiosas contra as quais se reclama resulta de erro dos serviços da AT, na omissão de correções devidas sequência do procedimento inspetivo de que foi alvo a Requerente, agravado pelo indeferimento da reclamação graciosa.

 

3             DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

1.            Julgar procedente o presente pedido de pronúncia arbitral e declarar a ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e a ilegalidade parcial das liquidações oficiosas de IRC, n.º 2019..., referente ao exercício de 2015, e n.º 2019..., referente ao exercício de 2016;

2.            Condenar a Requerida à restituição à Requerente do montante de € 19.037,69, correspondente ao total das tributações autónomas em IRC aí acolhidas, de € 13.700,32 (no exercício de 2015) e de € 5.337,37 (no exercício de 2016, acrescido dos juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º1 e n.º 4, da LGT.

 

4             VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 19.037,69, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.

 

5             CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1 224.00 €, a cargo da Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

 

Notifique-se.

Lisboa, 21 de setembro de 2021

 

O Árbitro

Jónatas E. M. Machado