Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 655/2019-T
Data da decisão: 2020-06-19  IRS  
Valor do pedido: € 9.505,40
Tema: IRS - Artigo 43.º, n.º 2, Código do IRS - Tributação de mais-valias imobiliárias de não residentes; Reenvio Prejudicial.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório

1. A..., contribuinte fiscal n.º..., (doravante designada por “Requerente”), residente em ..., ... ..., França, apresentou, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, i.e., Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), o pedido de constituição de Tribunal Arbitral com vista à declaração de ilegalidade do ato de liquidação n.º 2018... de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), no valor de € 9.505,40, emitido pelo Serviço de Finanças de Lisboa ... e, bem assim, do ato de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa n.º ...2018..., apresentado sobre a referida liquidação de IRS sendo demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida” ou “AT”).

A) Constituição do Tribunal Arbitral

2. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro do tribunal singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes essa designação no dia 20 de novembro de 2019.

3. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, e mediante a comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído no dia 20 de novembro de 2019.

B) História Processual

4. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente veio deduzir impugnação contra o ato de liquidação de IRS de 2017 n.º 2018..., no valor de € 9.505,40, emitido pelo Serviço de Finanças de Lisboa ..., e, bem assim, contra o ato de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa n.º ...2018..., apresentado sobre a referida liquidação de IRS.

5. Como causa do pedido, a Requerente alega ter sido residente em França em 2017, tendo, em fevereiro desse ano, procedido à alienação da sua quota-parte (50%) relativamente a 4 imóveis localizados em Portugal, concretamente, no distrito de Braga, que herdou por óbito de seu pai.

6. Mais refere que apresentou a declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS relativa ao ano 2017, a qual foi acompanhada de um único anexo – o Anexo G – Categoria G, no qual reportou as referidas operações de alienação, ocorridas em 20 de fevereiro de 2017.

7. No cálculo do imposto devido, nos termos do nº 1 do artigo 43º do Código do IRS, a Autoridade Tributária e Aduaneira aplicou a taxa de 28% à totalidade do rendimento resultante das mais-valias realizadas pela Requerente, ao invés de ter considerado 50% daquele valor, face ao estatuído no nº 2 do artigo 43.º do Código do IRS,

8. A Requerente acusa ser ilegal a liquidação de IRS emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira, uma vez que entende que a limitação a 50% do valor das mais-valias prevista no artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS é aplicável, por força da proibição da discriminação e da restrição da liberdade de circulação de capitais na União Europeia, também aos residentes em outros países da União Europeia, invocando essencialmente o Acórdão do TJUE de 11/07/2007, proferido no âmbito do processo nº C-443/06 (Acordão Hollmann).

9. Com efeito, solicitou a Requerente que o presente tribunal declarasse a ilegalidade do referido ato de liquidação de IRS, condenando-se a Requerida no reembolso da quantia de € 4.752,70 e, bem assim no pagamento de juros indemnizatórios.

10. Devidamente notificada, a Requerida veio apresentar resposta, peticionando a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, alegando, para tal, o seguinte:

11. A matéria sujeita à apreciação do Tribunal Arbitral, reporta-se à exclusão da incidência de imposto de mais-valias a 50%, obtidas por um não residente em Portugal, tal como acontece com os residentes, violar o Direito Comunitário, pelo n.º 2 do artigo 43° do Código do IRS.

12. A Requerida refere que, apesar de no Acórdão C - 443/06 do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 2007OUT11, ter sido decidida a contrariedade com o Direito Comunitário da disciplina da tributação das mais-valias imobiliárias de não residentes resultante dos artigos 72°, n.º 1 e 43°, n.º 2 do Código do IRS, tal contrariedade deixou de existir com o aditamento dos n.ºs 7 (atual n.º 14) e 8 (atual n.º 15) ao artigo 72.º do Código do IRS efetuada pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12.

13. Com efeito, a Requerida solicita a respetiva absolvição do pedido e, consequentemente, que o ato tributário em análise, por não violar qualquer preceito legal ou constitucional, seja mantido na ordem jurídica.

14. A Requerida entende ainda que a presente instância deva ser suspensa, sujeitando-se questão ao Tribunal de Justiça, nos termos previstos no instituto do reenvio prejudicial (artigo 267.º do TFUE) “por desconhecer jurisprudência do TJUE que se debruce sobre a questão a dirimir nos presentes autos, designadamente proferida em casos com todas as características factuais apontadas, em face da referida alteração legislativa de 2008”.

15. Por despacho de 03 de junho de 2020, o Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 16.º do RJAT, decidiu, sem oposição das partes, que não se mostrava necessário promover a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, em resultado da simplicidade das questões em apreço, bem como por considerar que tinha em seu poder todos os elementos necessários para tomar uma decisão clara e imparcial.

16. Decidiu o presente Tribunal Arbitral convidar as partes, querendo, a produzir alegações finais, no prazo de 10 dias, e em conformidade com o n.º 2 do artigo 18.º do RJAT, fixou como prazo limite para a decisão arbitral 20 junho de 2020.

17. Na sequência do aludido despacho, os Requerentes optaram por não produzir alegações orais ou escritas, mantendo-se os argumentos já mobilizados no processo.

18. A Requerida, por sua vez, optou igualmente por não produzir alegações finais mantendo-se integralmente o já aduzido na resposta.

19. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente para apreciar as questões indicadas (artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade plena (artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

II. Questão a decidir

20. A questão a apreciar e a decidir, prende-se com saber se a diferença estabelecida pelo artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS, relativamente à base de incidência em IRS das mais-valias decorrentes da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, para residentes e não residentes em território português, é incompatível com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE, por se traduzir num regime fiscal menos favorável para os não residentes, constituindo uma situação de discriminação entre residentes em Portugal e residentes noutro Estado-membro da União Europeia.

III. Decisão da matéria de facto e sua motivação

A) Factos provados

21. Examinada a prova documental produzida pelas partes, o presente tribunal julga como provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:

a) No ano de 2017 a Requerente residia, tal como atualmente reside, em França, na ..., ... ... .

b) Nesse mesmo ano, em concreto a 20 de fevereiro de 2017, a Requerente alienou a sua quota-parte, na proporção de 50%, que detinha na qualidade de herdeira da herança aberta por óbito de seu pai B..., relativamente a quatro imóveis, localizados em Portugal, no distrito de Braga, freguesia de ..., concelho de Guimarães identificados sob os seguintes artigos matriciais:

a) Rústico, artigo ..., com um VPT de € 950,00;

b) Urbano, artigo ..., com um VPT de € 20.791,50;

c) Urbano, artigo ..., com um VPT de € 13.819,50; e

d) Urbano, artigo ..., com um VPT de 15.168,25.

c) Todos descritos na conservatória do registo predial de ... sob o n.º..., tudo conforme escritura pública junta como documento n.º 1.

d) Sequentemente, a Requerente apresentou a sua declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS relativa ao ano 2017, a qual foi acompanhada de um único anexo – o Anexo G – Categoria G, referente a “Mais-Valias e outros Incrementos Patrimoniais”.

e) Na referida declaração Modelo 3 de IRS relativa ao ano 2017, a Requerente reportou unicamente as operações de alienação dos 4 imóveis supra identificados, na respetiva quota-parte de 50% (cfr. documento n.º 2).

f) Ademais, a Requerente enquadrou-se como não residente em Portugal e como residente em país da União Europeia (cfr. documento n.º 2).

g) Na Modelo 3 de IRS de 2017 da Requerente, verifica-se que no quadro 8 B do Modelo 3 foi assinalado o campo 4 (não residente) e o campo 7, pretendendo a tributação pelo regime geral aplicável aos não residentes.

h) No âmbito do anexo G da declaração de rendimentos consta que as alienações onerosas de imóveis ocorridas em 20 de fevereiro de 2017 geraram um rendimento total de € 62.500,00, ao qual foi subtraída a soma dos valores de aquisição € 25.364,62 e as despesas e encargos de € 3.187,50.

i) Posteriormente, a Requerente foi notificada da liquidação n.º 2018... de IRS emitida pela Autoridade Tributária, sobre os rendimentos declarados relativamente ao ano 2017 (documento n.º 3).

j) Na referida liquidação foram apuradas mais-valias imobiliárias num total de 33.947,88 € (documento n.º 3).

l) Para o cálculo do imposto devido, a Requerida aplicou uma taxa de 28 % à totalidade das mais-valias realizadas.

m) Da referida aplicação da taxa de 28% à totalidade das mais-valias apuradas, resultou um valor a liquidar pela Requerente de € 9.505,40 (cfr. documento n.º 3)

n) A Requerente procedeu ao pagamento da quantia de € 9.505,40 (documento n.º 4).

o) Em 27 de dezembro de 2018, a Requerente apresentou a reclamação graciosa n.º ...2018..., no Serviço de Finanças de Lisboa ... por considerar ser ilegal e discriminatória a tributação da totalidade da mais-valia que auferiu, uma vez que a limitação a 50% desse valor aplica-se aos residentes em outros países da União Europeia (documento n.º 5).

p) Contra a referida Reclamação foi proferido despacho de indeferimento pela Requerida, com fundamento de que, tendo a Requerente exercido a opção pelo regime geral dos não residentes, as mais-valias  auferidas em território português pela mesma, não sendo  imputáveis a um estabelecimento estável nele situado, são tributadas à taxa autónoma de 28%, em conformidade com o plasmado na alínea a) do n.º 1 do artigo 72.º do CIRS, não se verificando a exclusão tributária do n.º 5 do artigo 10.º do CIRS.

q) Em face do exposto, veio a Requerente peticionar a constituição do presente tribunal arbitral, pedindo a condenação da Requerida com a declaração de ilegalidade do ato de liquidação e o correspondente reconhecimento ao direito à restituição dos valores já pagos e ao pagamento de juros indemnizatórios.

B) Factos não provados

22. Não existe factualidade relevante para a decisão da causa dada como não provada.

IV. Do Direito

23. Fixada a matéria de facto, cumpre analisar a questão de direito colocada pela Requerente.

A)           Quadro Jurídico

24. Sobre a questão em apreço, cumpre, antes demais, referir que, segundo o artigo 15.º, n.º 2 do Código do IRS, a tributação dos não residentes obedece ao princípio da territorialidade, ao abrigo do qual, apenas os rendimentos obtidos em território português são tributados pelo Estado português.

25. Ora, no caso sub judice, as mais-valias realizadas pela Requerente referem-se a imóveis localizados em Portugal, fator de localização que atrai a tributação para o Estado Português, sendo aquelas mais-valia enquadráveis como rendimentos de categoria G, nos termos do artigo 9.º, n.º 1, alínea a) do Código de IRS.

26. Atente-se que ao abrigo do artigo 10.º, n.º 4, alínea a) do Código do IRS, a mais-valia deve ser calculada pela diferença entre o valor de realização e o valor da aquisição do imóvel, deduzido dos custos incorridos com a alienação.

27. Por seu turno, o n.º 1 do artigo 43.º do mesmo Código estipula que o valor dos rendimentos qualificados como mais-valias será correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano.

28. Relativamente ao cálculo do referido saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias, o artigo 43.º, n.º 2, do Código de IRS, prevê um regime especial de tributação para os residentes, ao abrigo do qual, para efeitos do cálculo da mais-valia imobiliária sujeita a imposto, o saldo da alienação é apenas considerado em 50% do seu valor, ao invés de ser considerada a totalidade do saldo da mais-valia. Constata-se, assim, existir no artigo 43.º, n.º 2, do Código de IRS, um regime diferenciado de tributação das mais-valias de residentes e de não residentes, ao permitir-se que as mais-valias dos residentes sejam apenas consideradas em 50% do seu valor, ao passo que para os não residentes em Portugal as mais-valias são consideradas na sua totalidade.

29. Ainda a respeito do quadro jurídico a aplicar à ora Requerente, tem ainda lugar, a taxa especial de 28% prevista no artigo 72.º, n.º 1, a), do Código do IRS, que refere “1 - São tributados à taxa autónoma de 28%: a) As mais-valias previstas nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 10.º auferidas por não residentes em território português que não sejam imputáveis a estabelecimento estável nele situado.

B) Argumentos das partes

30. A Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu ao cálculo do imposto devido pela Requerente, considerando para efeitos de determinação do rendimento coletável a totalidade das mais-valias realizadas, não aplicando o regime de exclusão de 50% da mais-valias previsto no artigo 43.º, n.º 2, alínea b), do Código do IRS.

31. A Requerente entende que o regime de tributação das mais valias, decorrente do disposto nos artigos, 43º, nº 2 do Código do IRS, é incompatível com o direito europeu, recorrendo a vasta jurisprudência sobre o assunto para fundamentar a sua posição e pugnar pela ilegalidade do ato de liquidação de IRS.

32. Nomeadamente, começa por referir que a questão já foi apreciada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no Acórdão, de 11 de outubro de 2007, proferido no processo C-443/06, designado por “Acórdão Hollmann”.

33. Que na sequência deste Acórdão, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) português concluiu que “o n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS, (…) que limita a incidência de imposto a 50% das mais-valias realizadas apenas para residentes em Portugal, viola o disposto no art. 56.º do Tratado que Institui a Comunidade Europeia, ao excluir dessa limitação as mais-valias que tenham sido realizadas por um residente noutro Estado membro da União Europeia.”

 “Assim sendo, prevalecendo na ordem jurídica portuguesa a jurisprudência do TJUE, em matéria de direito comunitário, vinculando a mesma os tribunais nacionais, conforme é reconhecido pelo STA, e face ao paralelismo das questões que foram decididas com a questão agora em apreciação, a decisão nos presentes autos não se distinguirá, nem se poderia distinguir da orientação fixada na referida jurisprudência, isto é que a solução que o legislador português adoptou não eliminou o carácter discriminatório em que nesta matéria se encontram os sujeitos passivos residentes em Estados-Membros da União Europeia.”

34. Por sua vez, a Requerida, embora não contestando a jurisprudência invocada pela Requerente, alega que o atual “o quadro legal (bem como a obrigação declarativa) já não é aquele que existia à data do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, tendo em conta que foi efetuada a alteração à lei por força do aditamento dos n.º 7 e 8 (atuais 9 e 10) ao artigo 72 ° do Código do IRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12.”

35. No fundo, a Requerida pretende defender que embora a discriminação não tenha sido eliminada por via de uma alteração direta do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, ela veio dissipar-se ao introduzir-se a possibilidade de os não residentes poderem optar pela tributação ao abrigo do regime geral constante no artigo 68.º do Código do IRS prevista para os sujeitos passivos residentes.

36. Com efeito, a Autoridade Tributária e Aduaneira alega que a Requerente podia ter optado pela tributação das mais-valias à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º do Código do IRS, seria aplicável no caso de terem sido auferidas por residentes em território português, sendo que a determinação da taxa teria em conta todos os rendimentos incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes, o que não fez.

37. Nesta sequência, a decisão dessa opção caberia à Requerente, sendo que a mesma não escolheu ser tributada ao abrigo de um regime paralelo que fornece condições similares às aplicáveis aos residentes em Portugal.

38. Sem prejuízo do previamente referido, a Requerida entende ainda que a presente instância deva ser suspensa, sujeitando-se a questão ao Tribunal de Justiça, nos termos previstos no instituto do reenvio prejudicial (artigo 267.º do TFUE) “por desconhecer jurisprudência do TJUE que se debruce sobre a questão a dirimir nos presentes autos, designadamente proferida em casos com todas as características factuais apontadas, em face da referida alteração legislativa de 2008”.

C) Apreciação

39. A questão sub judice deverá ser analisada e decidida à luz dos princípios da União Europeia, do primado do direito europeu e, simultaneamente, privilegiando-se a jurisprudência do TJUE sobre as fontes de direito interno.

40. Este primado implica que os Estados Membros não possam aplicar normas nacionais contrárias ao direito europeu, ficando a força vinculativa daquelas normas suspensa até ser sanada a sua desconformidade.

41. Por outro lado, cabe ao TJUE averiguar a boa aplicação do princípio do primado do direito europeu, sendo, também, os tribunais nacionais responsáveis por assegurar o cumprimento daquele princípio, recorrendo, se necessário, ao processo de reenvio prejudicial, nos termos do artigo 267.º, do TFUE.

42. Conforme alega a Requerente, tanto o Acórdão Hollmann, como de seguida o STA no processo n.º 439/06, de 16 de janeiro de 2008, pronunciaram-se sobre a aplicação exclusiva a residentes em Portugal da incidência de IRS a apenas 50% das mais-valias imobiliárias, prevista no artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, no sentido da sua desconformidade com disposto do artigo 56.º do Tratado que institui a Comunidade Europeia, atual artigo 63.º do TJUE, constituindo um entrave à livre circulação de capitais.

 

43. Importa recordar que este acórdão teve por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado pelo STA, por decisão de 28 de setembro de 2006, entrado no Tribunal de Justiça em 27 de outubro de 2006, tendo decidido o TJUE que a “legislação nacional como a que está em causa no processo principal tem por efeito tornar a transferência de capitais menos atractiva para os não residentes, dissuadindo-os de efectuar investimentos imobiliários em Portugal e, consequentemente, operações relacionadas com estes investimentos, tal como a venda de um bem imóvel. 40 - Nestas condições, cabe concluir que o facto de se prever uma limitação da tributação a 50% das mais-valias realizadas apenas para os residentes em Portugal, e não para os não residentes, constitui uma restrição aos movimentos de capitais, proibida pelo artigo 56.° CE.»

44. Com efeito, não há dúvidas que a Requerida ignorou o que há muito a jurisprudência tem vindo a tecer sobre a discriminação postulada no artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS, entre residentes e não residentes, violadora do Direito da União Europeia, nomeadamente, do artigo 63.º do TFUE que proíbe qualquer restrição aos movimentos de capitais entre Estados Membros e entre Estados Membros e Países Terceiros.

45. É inquestionável que o artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS permite aos residentes beneficiar de uma carga fiscal diferente à que seria aplicável a um não residente em condições idênticas, residindo exatamente nesta distinção a discriminação que não encontra razão objetiva de existência.

46. Por conseguinte, este dispositivo normativo estabelece um tratamento diferenciado para residentes e não residentes, fazendo depender o acesso a um regime potencialmente mais favorável, da condição do sujeito passivo residir em território português.

47. No mesmo sentido, já se pronunciou o CAAD em diversas decisões sobre casos idênticos, concluindo pela declaração da ilegalidade das liquidações de IRS sobre mais-valias imobiliárias de não residentes, na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da consideração da totalidade da mesma, nomeadamente, nos processos números 45/2012-T, 127/2012-T, 748/2015-T, 89/2017-T, 617/2017.T, 370/2018-T e 74/2019-T.

48. Cumpre, agora, descortinar sobre se, como a Requerida defende, o efeito discriminatório produzido pelo artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS foi, de facto, ultrapassado com a alteração introduzida pela Lei n.º 67-A/2007 de 31 de dezembro, ao artigo 72.º do Código do IRS.

49. À data dos factos do caso em apreço, tais normativos dispunham do seguinte:

“9 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português.

10 - Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes.”

50. Ora, com a referida alteração legislativa, assistiu-se de certa forma a uma mudança de paradigma, podendo agora os não residentes optar por um regime igual ao aplicável aos residentes, ao abrigo do regime geral das taxas previstas no artigo 68.º do Código do IRS, o que, naturalmente, contribuiu para uma aproximação do tratamento fiscal dos não residentes das condições impostas pelo TJUE no Acordão Hollmann.

51. Não obstante, não é possível ignorar o facto de o artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS ter permanecido intacto na ordem jurídica portuguesa, e, bem assim, o facto de o legislador português ter claramente inclinado para a esfera do sujeito passivo não residente, a responsabilidade de anular um efeito discriminatório que continua patente no artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, o que não elimina a restrição aos movimentos de capitais proibida pelo artigo 63.º do TFUE, continuando a existir um regime “menos atrativo” para os não residentes, face ao que é aplicável aos residentes.

52. Ademais, e uma vez que sobre o presente Tribunal recai um dever especial de levar em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, “a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito” (artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil), não poderá ser ignorado o entendimento que tem vindo ser acolhido pela jurisprudência portuguesa, no sentido de que a introdução do regime das taxas gerais para os não residentes, não afastou o caráter discriminatório da tributação das mais-valias imobiliárias obtidas por não residentes, que se mantém patente no artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS.

53. Como se refere na decisão arbitral n.º 748/2015-T “há que registar que a solução introduzida pelo legislador para contornar a discriminação contida na supra mencionada norma nacional, faz impender sobre os não residentes um ónus suplementar, comparativamente aos residentes.

A isto acresce um outro reparo que resulta da complexidade de funcionamento do imposto, agravado pela “opção pelo englobamento” de todos os rendimentos obtidos no outro país, para além de outras questões relevantes associadas ao princípio da territorialidade previsto artigo 15º do CIRS, às condições de pessoalização do imposto e à progressividade do imposto, dificilmente compatível com uma adequada consideração dos valores auferidos noutro estado membro, no estado atual do direito comunitário.”

54. Também na decisão arbitral de 22 de maio de 2019, proferida no âmbito do processo n.º 74/2019-T, mencionou-se que “(…) a previsão deste regime facultativo faz impender sobre os não residentes um ónus suplementar, comparativamente aos residentes, não sendo a opção de equiparação suscetível de excluir a discriminação em causa. Na realidade, o regime de equiparação atualmente previsto no artigo 72.º do Código do IRS não afasta o caráter discriminatório do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, não podendo o contribuinte achar-se na circunstância de ter que optar por dois regimes, um legal e outro ilegal.”

55. Nesta decisão faz-se ainda alusão ao Acórdão Gielen, de 18/03/2010, Processo C-440/08, referido “num caso de evidente paralelismo”, referindo-se o seguinte:

a) «a opção de equiparação permite a um contribuinte não residente, (…) escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório», frisando que essa escolha não é passível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.».

b) «o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência (…) validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49.° TFUE em razão do seu carácter discriminatório».

c) O Tratado «se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes na concessão de um benefício fiscal (…) apesar de esses contribuintes poderem optar, no que se refere a esse benefício, pelo regime aplicável aos contribuintes residentes».

56. De igual modo, na decisão arbitral de 18 de junho de 2019, proferida no âmbito do processo n.º 63/2019-T, decidiu-se que “50. A solução inserida pelo legislador para contornar a discriminação contida na dita norma nacional, faz impender sobre os não residentes um ónus suplementar, comparativamente aos residentes.”

57. Também no âmbito do processo n.º 63/2019-T, em decisão de 18 de junho de 2019, refere o CAAD que “(…) muito embora o legislador nacional tenha consagrado a possibilidade de o sujeito passivo não residente optar pela tributação aplicável aos residentes, a verdade é que tal possibilidade não afasta o efeito discriminatório essencial da diferenciação de regimes prevista na legislação nacional entre residentes e não residentes, que é assim violadora dos artigos 63º e 18º do TFUE.”

“O regime diferenciado da tributação das mais-valias imobiliárias realizadas por não residentes em território português, estabelece uma discriminação incompatível com o princípio da liberdade de circulação de capitais, princípio fundamental da União Europeia, não obstante as alterações introduzidas ao Código do IRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, traduzidas no aditamento dos atuais n.ºs 9 e 10 do artigo 72.º, do Código do IRS.’’ 

58. Assim, não poderá o ato de liquidação ora em análise prevalecer contra o entendimento jurisprudencial até aqui explanado, nem contra as disposições do Direito da União Europeia, em específico, a proibição estabelecida no artigo 63.º do TFUE.

59. Por conseguinte, e por força do primado do direito da União Europeia sobre a legislação nacional dos Estados Membros (conforme artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa) deverá o regime estabelecido no artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS, ser aplicado à ora Requerente, devendo ser proferida nova liquidação, que tenha em consideração apenas 50% das mais-valias resultantes da alienação dos imóveis em apreço.

 

D) Do pedido de reenvio prejudicial ao TJUE

60. Cumpre agora apreciar a pretensão da Autoridade Tributária e Aduaneira de reenvio prejudicial, tendo presente o estatuído no artigo 267.º do TFUE, e bem assim, a pertinência desse reenvio para o julgamento da causa. Refere o artigo 267.º do TFUE o seguinte:

“O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

a) Sobre a interpretação dos Tratados;

b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.

Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.”

61. Se é verdade que o processo do reenvio prejudicial deva ser utilizado quanto esteja em causa a interpretação e a validade de normas de direito europeu e, sempre que uma decisão seja necessária ao julgamento da causa pelas instâncias jurisdicionais nacionais e esteja em causa uma decisão cujo recurso judicial interno não seja possível de ser apresentado,

62. Também é verdade que o recurso ao processo de reenvio prejudicial não é, de todo, um expediente de utilização discricionária, tendo o TJUE, no Acórdão Caso Cilfit, processo n.º 283/81, de 06-10-1982, esclarecido os moldes como os órgãos nacionais devem proceder, dando concretas orientações para que estes preservem a sua competência de julgamento quando considerem ser clara a solução dada pelo Direito da União Europeia.

63. Tal é o que sucede no presente caso, em que se assiste a uma incompatibilidade do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS com o artigo 63.º do TFUE, e a introdução do regime previsto no artigo 72.º, n.º 9 e 10, do mesmo código, com o intuito de contornar a discriminação do primeiro, mas que ainda assim não assegura a eliminação da restrição da liberdade de circulação de capitais, um vez que sobre o não residente impende um ónus (nomeadamente, declarativo) mais penoso, do que recai a um residente, para aceder ao mesmo regime de tributação de mais-valias imobiliárias.

 

64. Acresce que, a pergunta que a Requerida pretende ver apreciada é materialmente idêntica à questão anteriormente já apreciada pelo TJUE no Acordão Hollmann e existindo um precedente na jurisprudência do TJUE relativo ao regime estatuído no artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS, a interpretação do Direito da União Europeia já se encontra devidamente fixada e esclarecida na jurisprudência do TJUE.

65. Com efeito, e face à inércia do legislador de não ter procedido a uma alteração direta do artigo 43.º, n.º 2, do Código do IRS, e, por outro lado, ter criado um regime que não assegura um tratamento fiscal igual entre residentes e não residentes, entende o presente Tribunal ser absolutamente suficiente para julgar o presente caso, o entendimento exposto no Acórdão Hollmann e as disposições do Direito da União Europeia, considerando não ser necessária nova consulta.

E) Dos Juros Indemnizatórios

66. Para além da restituição da quantia indevidamente paga, a Requerente solicita ainda a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios.

67. Tal como resulta do artigo 43.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

68. Ao abrigo do artigo 61.º, n.º 1, b), do CPPT, o direito aos juros indemnizatórios é reconhecido pela entidade que determina a restituição oficiosa dos tributos, referindo o n.º 4 do mesmo artigo que se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea.

69.Ora, tendo presente o  artigo 24.º, n.º 5 do RJAT que reconhece ser devido “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” e que o artigo 24.º n.º 1, al. b), do mesmo diploma prevê uma obrigação de reestabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessárias, para o efeito,

70. Condena-se a Requerida a restituir à Requerente o montante indevidamente pago por esta (€ 4.752,70), acrescido de juros indemnizatórios, contados desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que são incluídos.

 

Decisão

71. Nestes termos, decide este Tribunal Singular:

a.            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IRS 2018..., emitido pelo Serviço de Finanças de Lisboa ... e, bem assim, do ato de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa n.º ...2018..., apresentado sobre a referida liquidação;

 

b.            Condenar a Requerida a reembolsar a Requerente no montante de €4.752,70; e

 

c.            Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados desde a data do pagamento indevido até ao seu integral reembolso.

 

Valor do processo

72. De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 306.º do Código do Processo Civil, da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 9.505,40 (nove mil quinhentos e cinco euros e quarenta cêntimos).

 

Custas

73. Nos termos do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 918.00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, CAAD, 19 de junho de 2020

 

 

O Árbitro

(Sérgio Santos Pereira)